Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
67/1999.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: MANDATO
CADUCIDADE
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
PROCURAÇÃO POST MORTEM
DOAÇÃO
TESTAMENTO
REVOGAÇÃO
LEGADO
Data do Acordão: 07/13/2010
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.162
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITO SUCESSÓRIO
Doutrina: - Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, 1,219.
- Irene de Seiça Girão, in estudo “Mandato de Interesse Comum”, publicado na obra “Comemorações dos 35 Anos do Código Civil”, vol. III, 2007, págs. 369 a 416.
- Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág.541.
- Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito” – 2005 – 3ª edição, págs. 716 e segs.
- Pedro Pais de Vasconcelos, “Procuração Irrevogável”, págs. 111, 117.
- Pessoa Jorge, in “Mandato Sem Representação”, 20.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ªedição, pág. 240.
- Vaz Serra, in RLJ, Ano 109, pág. 124.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL – ARTS. 258º, 265º, 940º,1157º,1174º,1175º, 1180º, 2179º, 2312º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 24.01.1990, BMJ 393-588;
- DE 13.02.1996, BMJ 454-641;
- DE 03.06.1997, BMJ 468-369;
- DE 22.02.2002, BMJ, 494, 320.
Sumário : I) - O art. 1174º do Código Civil estabelece vários fundamentos de caducidade do contrato de mandato, um deles é a morte do mandante. Todavia, essa caducidade não ocorre se o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, o que se compreende, por nesse caso, o mandato não servir apenas a realização dos interesses do mandante mas de outrem, que tanto pode ser o mandatário como um terceiro ou ambos.

II) – A lei não define o que seja o “interesse do procurador ou de terceiro” que se deva considerar relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante.

III) – Quer o mandato, quer a procuração não são revogáveis apenas por do contrato ou do acto jurídico unilateral (caso da procuração), constar expressamente uma cláusula de irrevogabilidade; relevante é que da relação basilar, que está na origem da decisão do “dominus”, resulte a existência de um interesse conferido no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado.

IV) – Não é pela via da pretensa caducidade do contrato de mandato – pela morte do mandante – e dos poderes por si conferidos em procuração irrevogável, que a representante/mandatária estava impedida de celebrar o contrato de doação previsto naquele; quanto à procuração tendo ela sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, a convencionada irrevogabilidade só pode ser derrogada se houver acordo do procurador ou de terceiro, a menos que exista justa causa – nº3 do art. 265º do Código Civil.

V) - O donatário, no caso herdeiro legitimário do mandante, é terceiro com interesse, tendo em conta a relação basilar, do mandante de dispor dos seus bens em favor de um herdeiro, pelo que, pese embora a mandatária ter optado por celebrar por escritura pública a doação que lhe era concedida, quer pelo contrato, quer pela procuração, depois da morte do mandante, há que considerar formalmente válido o contrato de doação já que ao intervir na escritura como donatário.

VI) – Ficcionando-se pelo teor do mandato e da procuração, que os negócios abrangidos nesse contrato, por mor da não caducidade resultante da morte do mandante, são como que celebrados em vida do mandante.

VII) – No testamento – art. 2179º, nº1, do Código Civil – que é um acto de vontade unilateral do testador e não um contrato, como é a doação – art. 940º, nº1, do citado diploma – o autor do testamento pode livremente revogá-lo e pode fazê-lo não só através de um novo testamento, em que expressamente exprime vontade de disposição do seu património incompatível com a precedente – art. 2312º – ou fazê-lo tacitamente, nos termos do art.2313º do diploma legal citado.

VIII) – Existe ainda disposição revogatória tácita do testamento, se através de válida disposição de vontade, pela via de contrato de mandato antes referido e através da procuração irrevogável a ele associada, o autor do testamento, estando em causa como está a sucessão testamentária onde foi feita uma liberalidade (assim se devem entender os legados feitos à Autora), concede poderes que autorizam o mandatário e procurador a dispor dos seus bens sem restrições em favor de um seu herdeiro legitimário.

IX) – A procuração em causa não é uma procuração post mortem destinada a produzir efeitos após o decesso do dominus; do que se trata, no caso, é da eficácia dos actos após a morte do dominus, já que por vontade dele a procuração irrevogável foi querida para valer e ter eficácia antes e após a sua morte – os efeitos começaram em vida do representado e sobrevivem à sua morte.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA e marido, BB, intentaram, em 5.3.1999, na comarca de Loulé – 3º Juízo Cível – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

CC e seu filho, DD (menor à data da instauração dos autos e então representado por sua mãe).

Pedindo os primeiros que se declare a nulidade do contrato de mandato em que foi mandante EE, já falecido, respectivamente sogro e avô dos RR., e da correspondente procuração por aquele emitida a favor da 1ª Ré, bem como do contrato de doação de dois prédios (um rústico, sob o artigo matricial n° ... e com o n° registral 0..., e outro urbano, sob o artigo matricial n° ... e com o n° registral 0..., ambos da freguesia de Almancil) a favor do 2° Réu, celebrado com base nessa procuração, com os consequentes cancelamentos no registo predial.

Mais pedem que sejam declarados válidos os testamentos outorgados pelo referido EE, para quem a Autora trabalhou desde 1968 e até à morte deste (apenas com uma interrupção de cerca de 5 anos), em que eram deixados os aludidos prédios, a título de legados, aos Autores,

Na petição inicial, alegaram os AA., no essencial, o seguinte:

- que são beneficiários, como legatários, de testamento outorgado pelo de cujus em 17.10.1988, em que - a par de instituir como “herdeiro universal da sua herança seu único neto, DD” - declarou legar a favor dos AA., “um talhão de terreno com a área de mil metros quadrados (...) a desanexar de um prédio rústico que possui (...) e se destina a arredondamento de um prédio que os legatários possuem no mesmo sítio”, e de um outro testamento outorgado pelo mesmo de cujus em 9.1.1996, pelo qual “amplia o legado feito naquele [primeiro] testamento” aos AA., de modo a que “o legado compreenda a totalidade do prédio misto, abrangendo todo o urbano de rés-do-chão ou cave e primeiro andar ou rés-do-chão elevado, bem como todo o rústico”, ao mesmo tempo que declara “que deseja manter o seu anterior testamento (...) em tudo quanto não tenha sido alterado pelo presente, vigorando assim ambos em conjunto”;

- que foi lavrada no 2° Cartório Notarial de Loulé, com data de 24/3/1998, uma procuração, em que outorga o referido EE, e em que este declara “que constitui sua bastante procuradora CC (...), a quem atribui poderes para vender ou doar, outorgando as respectivas escrituras notariais de compra e venda e/ou doação, a favor do seu neto e único herdeiro, DD”, vários prédios, entre os quais os dois supra identificados;

- que nessa mesma procuração declara o outorgante que a “procuração é irrevogável nos termos dos artigos 265° e 1170° do Código Civil, a pedido das partes por ser do interesse do mandante e mandatário, e não caduca por morte daquele”;

- que o referido EE faleceu em 19/6/1998;

- que foi lavrada no 1° Cartório Notarial de Loulé, com data de 2/11/1998, uma escritura de doação, em que outorgou “CC (...), na qualidade de procuradora de EE, já falecido”, e pela qual “doa a DD, neto do seu representado” os dois prédios supra identificados.

Pretendem os AA. que essa procuração foi emitida quando o de cujus já havia sofrido grave acidente cerebral (em 31/1/1997), não estando à data em condições de entender e perceber o acto que estava a praticar, o que inquina de nulidade, quer o mandato e respectiva procuração, quer a doação, para além de a doação já envolver, por posterior à morte do de cujus, a disposição de bens alheios.

Na contestação, os RR. opõem-se aos pedidos, sustentando que as deixas testamentárias a favor dos AA. se deveram a pressão psicológica por eles exercida sobre o de cujus, que este procurou contrariar através da emissão da procuração sub judicio, a fim de permitir que os bens ali referidos ficassem para o seu neto após a sua morte, e que foi lavrada quando o de cujus ainda se encontrava na plena posse das suas faculdades mentais, apenas não assinando (mas apondo a sua impressão digital) por ter dificuldade em fazê-lo, devido a trombose sofrida em Janeiro de 1997, pelo que são válidas a aludida procuração e a doação outorgada com base nessa procuração, e que, na prática, revogaram a deixa testamentária a favor dos AA.

Alegando que a impossibilidade de tomarem posse dos bens (móveis e imóveis) da herança aberta por óbito de EE causa prejuízos aos RR., pedem estes, em reconvenção, a condenação dos AA. a pagar-lhes indemnização, a liquidar em execução de sentença.

Aos AA. veio a ser concedido parcialmente apoio judiciário, na proporção de metade (1/2), por decisão de fls. 117/118.
***

Foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção, absolvendo RR. e AA. dos respectivos pedidos.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: quanto aos pedidos dos AA., estes não lograram provar que tivesse ocorrido vício ou erro da vontade do declarante na emissão da procuração sub judicio, pelo que essa procuração se deve considerar válida e, sendo irrevogável (por conferida no interesse de mandante e mandatário, conforme nela expressamente declarado), se deve ter por igualmente válida a doação outorgada com base nela, assim improcedendo os respectivos pedidos de declaração de nulidade; quanto ao pedido reconvencional, verifica-se que não foram alegados e provados factos bastantes para sustentar o pretendido direito de indemnização dos RR., pelo que sempre teria de improceder tal pedido.

Desta decisão foi interposto pelos AA. recurso de apelação.

Esse recurso foi objecto de acórdão proferido pela Relação de Évora, em 20/9/2007, no qual se decidiu aditar dois novos factos à matéria de facto assente e anular parcialmente o julgamento quanto à matéria dos quesitos 2°, 3°, 4°, 5° e 9°, por se ter proferido decisão sem que ocorresse a junção aos autos de documentação clínica do de cujus, relativa à sua capacidade intelectual, ordenada mas não recebida, e tida por relevante para as respostas a dar a esses quesitos.
***

Junta a referida documentação clínica e repetido o julgamento na parte anulada, com novas respostas aos quesitos de teor semelhante, teve lugar nova prolação de sentença, que voltou a julgar improcedentes os pedidos de AA. e RR., com argumentação muito próxima da utilizada na anterior sentença.

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Inconformados com a nova decisão, dela apelaram os AA., para o Tribunal da Relação de Évora que, por Acórdão de 18.11.2009 – fls. 559 a 583 –, julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.
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De novo inconformados os AA. recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

A) A escritura de doação outorgada em benefício do ora Recorrido, foi levada a efeito já depois da morte de EE;

B) Para a escritura a Recorrida utilizou a procuração que conferia, entre outros, poderes para vender ou doar, poderes gerais de administração de todos os bens imóveis, nela se indicando que era irrevogável;

C) Na indicada escritura vem referido que o doador é já falecido;

D) A excepção à regra de livre revogabilidade só poderá ser aplicada se não contrariar outras disposições legais de carácter imperativo;

E) A aceitação da doação tem de ocorrer em vida do doador, face ao disposto no art. 945.°/l do Código Civil, limitação esta que não é imposta na compra e venda;

F) A aceitação dá-se com a celebração do contrato de doação, o que no caso ocorreu após o óbito;

G) Pelo que não tendo sido aceite a doação em vida do doador, a procuração como acto unilateral, valendo quanto muito, como proposta de doação, caducou com o óbito do mandante;

H) Dispondo o art. 969.°/l do Código Civil que enquanto não for aceite a doação, o doador pode livremente revogar a sua declaração negocial, é intrínseco à natureza da proposta de doação a sua livre revogabilidade, sendo, assim, nula e de nenhum efeito, quanto aos poderes para doar, a cláusula de irrevogabilidade aposta na procuração;

I) Ainda que uma procuração possa ser irrevogável, tal não é incompatível com a caducidade da mesma;

J) No caso, além da mesma não se poder considerar irrevogável e ainda que o fosse, caducou por óbito do mandante, pela não aceitação em vida do proponente doador;

L) Carecia a Recorrida de poderes para representar o mandante em face da ineficácia da declaração de irrevogabilidade e da caducidade do mandato por procuração;

M) Os bens do falecido adquiridos pelo Recorrido através daquela escritura, tinham já passado para a esfera patrimonial dos legatários, ora Recorrentes;

N) Encontrando-se os Recorrentes na posse dos bens objecto do legado, e sendo do
conhecimento dos Recorridos o falecimento do mandante, devendo os herdeiros, que não têm a qualidade de terceiros, cumprir com os legados, só restava aos Recorridos respeitar o testamento abstendo-se de fazer uso da procuração;

O) A doação foi, assim, de bens alheios;

P) Os vícios atrás invocados afastam a necessidade de questionar se a procuração foi ou não no interesse comum e se na sua base existia relação subjacente, mas, sempre se dirá que não se pode concluir pela sua irrevogabilidade, porque não há como saber se a procuração estava ligada a algum contrato e que tipo de contrato;

Q) Deve a escritura ser declarada nula e de nenhum efeito, cancelando-se o respectivo registo;

R) Assim se não tendo entendido e decidido, o douto acórdão recorrido não fez a melhor interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente, art. 945.°/l, 946.°, 947.°/l, 969.°, 892.°, 13l6. °, 2082.°, 2265.° e 2270.° do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provada a seguinte matéria de facto:

[A] No dia 17.10.88, no Cartório Notarial de Loulé, EE “outorgou” o testamento que consta dos autos a fls. 16 a 18, cujo teor aqui se tem por inteiramente reproduzido dos factos assentes;

[B] No dia 09.01.96, no Cartório Notarial de Loulé, EE “outorgou” o testamento que consta dos autos a fls. 20 a 22, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido (dos factos assentes);

[C] No dia 10.04.97, no 1° Cartório Notarial de Loulé, foi “formalizada” a procuração que consta dos autos a fls. 86 e 87, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido (dos factos assentes);

[D] No dia 19.06.98, na Freguesia de S. Clemente, faleceu EE, deixando como herdeiro legitimário o Réu DD Cristóvão (dos factos assentes);

[E] No dia 24.03.98 foi elaborada a procuração que consta dos autos a fls. 32 a 36, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, nela figurando como um dos “outorgantes” EE (dos factos assentes);

[F] Com base na procuração referida em E), em 02.11.98, no 1° Cartório Notarial de Loulé, foi realizada a escritura de doação que consta dos autos a fls. 38 a 40, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, através do qual são doados ao R. os seguintes prédios:

— o prédio urbano, para habitação, de cave esquerda com corredor, cave direita e rés-do-chão, com vários compartimentos (...), inscrito sob o art. ... e descrito sob o n° ...;
— o prédio rústico composto de terra de cultura com árvores, inscrito sob o art. ... e descrito sob o n° ... – (dos factos assentes);

[G] Os prédios identificados em F) encontram-se actualmente inscritos (com carácter definitivo) a favor do Réu DD, na Conservatória do Registo Predial de Loulé, através respectivamente das cotas GI e G2 (dos factos assentes);

[H] Os AA. ocupam os prédios identificados em F), incluindo o respectivo recheio e mobiliário (dos factos assentes);

[1] Em 31.07.97, EE sofreu um acidente vascular cerebral que lhe afectou temporariamente a consciência e ainda os movimentos, sendo que, naquela data, se apresentava confuso e desorientado espácio-temporalmente, o que sucedia também em 20.05.97 (da resposta ao quesito 3°);

[J] EE não assinou a procuração que consta dos autos a fls. 32 a 36 por não poder fazê-lo (da resposta ao quesito 9º);

[L] EE sabia assinar o seu nome (aditado pelo Ac. RE de 20/9/2007);

[M] EE não ditou os termos da procuração referida em E) (aditado pelo Ac. RE de 20/9/2007).

Fundamentação:


Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber, se com base numa procuração irrevogável conferida no interesse do representado e do representante, pode este, após a morte do representado, celebrar contratos de doação de imóveis que por testamento anterior não revogado, o representante havia legado.

A questão decidenda convoca os regimes jurídicos da procuração irrevogável e do contrato de mandato, e as implicações na eficácia de uma e outro no fenómeno sucessório.

Importa considerar:

- que EE, por testamentos celebrado, em 17.10.88 e 9.1.1996, legou aos AA. recorrentes dois prédios – um rústico e outro urbano acima identificados.

- faleceu no dia 19.6.1998;

- em 24.3.1998 outorgou procuração a favor da 1ª Ré conferindo-lhe poderes para vender, doar, outorgar as respectivas escrituras notariais de compra e venda e/ou doação a favor do seu neto e único herdeiro, DD, menor de 13 anos…o prédio urbano situado na freguesia de Almansil, concelho de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo d... m... q... e t... e dos prédios rústicos situados na freguesia de São Clemente…Ficou consignado – “esta procuração é irrevogável nos termos dos artigos duzentos e sessenta e cinco e mil cento e setenta do Código Civil, a pedido das partes e não caduca por morte daquele”.

- com base nessa procuração, tendo falecido o representado EE, a representante celebrou, em 2.11.1998, escritura pública de doação dos prédios identificados a favor do DD.

As instâncias consideraram que sendo a procuração irrevogável, e tendo sido estabelecida também no interesse do representante e não caducando com a morte do representado, com base nela e no contrato de mandato que supõe, mesmo após a morte do mandante, poderia ter sido, como foi, celebrada a escritura de doação.

Os recorrentes sustentam que, não tendo sido a procuração usada em vida do mandante, os bens pertencem à herança aberta por sua morte tendo, como legatários, adquirido a propriedade dos imóveis legados no momento da morte do EE, configurando a doação como um negócio de disposição de coisa alheia, sendo ainda de considerar, aduzem, que a doação implica aceitação em vida do doador, o que não existiu.

Vejamos:

Estatui o art. 258º do Código Civil

“O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.

A representação consiste no exercício jurídico, em nome de outrem, com imputação dos seus efeitos na esfera jurídica desse outrem – o representado.

Há uma separação entre quem actua quem age, e aquele em cuja esfera jurídica se repercute a actuação do representante o (actor).

O normativo abrange a representação legal e a voluntária.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 240:

Dois requisitos são indispensáveis para que a representação produza o seu efeito típico, que é a inserção directa, imediata, do acto na esfera jurídica do representado (dominus negotii):
a) Que o representante aja em nome do representado do (contemplatio domini), neste aspecto se distinguindo a representação da chamada comissão.
b) Que o acto realizado caiba dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante:
Não se verificando este último requisito só a ratificação pode tornar o negócio eficaz em relação ao representado (art. 268°, nº1).
Ao conceito de representação não é essencial que os poderes representativos sejam conferidos no interesse do representado: poderão sê-lo também no interesse do representante ou de terceiro (cfr. o art. 265º, nº3)”.

Não são confundíveis a representação e o mandato.

O mandato – art. 1175º do Código Civil – “É o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem” – é um contrato de prestação de serviço.

Confrontando a representação e o mandato, resulta, segundo Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 541, que:

“a) Pode haver mandato sem haver representação, quando o mandatário não recebeu poderes para agir em nome do mandante; age por conta do mandante, mas em nome próprio: é o caso do contrato de comissão, regulado nos artigos 266° e segs. do Código Comercial, e do contrato de mandato sem representação, cuja regulamentação foi introduzida pelo Código Civil (art. 1180º), sendo análoga à daquele negócio da lei mercantil. b) Pode haver representação sem haver mandato, não só na hipótese da representação legal, mas também no que toca à representação voluntária: a representação voluntária resulta de um acto — a chamada procuração (art. 262°) — que pode existir autonomamente (negócio unilateral, qualificam-no os autores alemães e italianos) ou coexistir com um contrato que, normalmente, será o mandato, mas pode ser outro, como, por ex. o contrato de trabalho ou de agência.”

Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito” - 2005 – 3ª edição, págs. 716 e segs:

“A procuração é um negócio jurídico unilateral pela qual alguém confere poderes de representação… é um negócio unilateral que se completa com a declaração negocial do constituinte. Não carece de aceitação”.

O art. 265º do Código Civil-Extinção da procuração

“1. A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado.
2. A procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
3. Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.

Na obra citada o autor afirma:

“Apesar da redacção do nº2 do artigo 265° não pode afirmar-se que exista vigente um princípio da livre revogabilidade da procuração. O regime da revogabilidade da procuração resulta da relação fundamental e depende da teia de interesses para cuja satisfação a procuração seja outorgada e os respectivos poderes devam ser exercidos.
Por isso, o nº3 do artigo 265º estatui que não pode ser revogada sem justa causa ou sem o acordo do interessado a procuração que “tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro”.
A irrevogabilidade da procuração nunca é absoluta.
Mesmo quando resulta do interesse primário do procurador ou de terceiro, exclusivo ou concorrente com o do constituinte, a procuração pode sempre ser revogada com o consentimento de todos os titulares dos interesses fundamentais e quando ocorra justa causa de revogação”.

O citado tratadista, in “Procuração Irrevogável”, pág. 111, discorrendo sobre o interesse de terceiro, escreve:

“ O interesse do terceiro deve ser procurado, não na relação de representação, mas antes no conjunto formado pela procuração e pela relação subjacente.
Normalmente o terceiro não é parte do negócio que constitui a relação subjacente, nem este negócio o afecta.
Na generalidade dos casos, o terceiro limita-se a intervir no negócio celebrado em representação do dominus, não intervindo nem sequer tendo conhecimento do negócio que constitui a relação subjacente…”.

Mais adiante na pág. 117:

“A fundamentação da irrevogabilidade da procuração reside…no princípio segundo o qual os poderes atribuídos no interesse de uma pessoa só podem ser revogados por essa mesma pessoa.
Existindo um interesse do terceiro na procuração, esta só poderá ser revogada se ele der o seu acordo.
De outro modo, o dominus não a pode revogar.
A procuração será irrevogável, quer o terceiro seja o único interessado, quer existam outros interessados.
Embora o terceiro não seja sujeito na relação de representação, nem parte na procuração, se for titular de um interesse neste negócio, o dominus não poderá revogá-lo. A possibilidade de influência da posição do terceiro resulta de a relação subjacente ser a causa da procuração, influenciando-a.
Se a procuração fosse um negócio abstracto puro, não seria possível que o interesse do terceiro implicasse a irrevogabilidade da procuração, uma vez que não é parte na procuração, nem sujeito da relação que deste negócio resulta”. (destaque nosso)

Doutrinou o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 13.2.1996, in BMJ 454-641:

“A procuração, tal como o mandato, “é livremente revogável pelo representado”, mas se “tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa” (artigos 265.° e 1170.° do Código Civil).
O princípio geral da livre revogabilidade da procuração assenta na ideia de que esse acto jurídico unilateral de atribuição de poderes representativos é um “acto de confiança” do dador de poderes, que “se entrega a uma certa dependência do procurador”, uma vez que os efeitos dos negócios realizados nos limites desses poderes se produzem na esfera jurídica do representado, o qual deve poro ficar inteiramente livre, em regra, de recuperar a autonomia da sua vontade pondo termo àquela relação de confiança.
A lei não define o “interesse do procurador ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão daquele princípio geral e, normalmente, será de atender à “relação jurídica em que a procuração se baseia”, sendo caso típico daquele interesse o de qualquer deles ter “contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio” ou “o direito a uma prestação” (cfr. Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 109.°, pág. 124, e Acórdão deste Tribunal de 24 de Janeiro de 1990, Boletim, n.°393, pág. 588)”.

O art. 1157º do Código Civil, define mandato (1) como:

“O contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”.

A figura do mandato distingue-se da procuração, porquanto no mandato há um contrato, o que pressupõe a existência de, pelo menos, duas manifestações de vontade “contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, I, 219.

Na procuração há um negócio jurídico unilateral, autónomo – art. 262º, nº1, do Código Civil.

No mandato os actos jurídicos praticados pelo mandatário são praticados por conta de outrem, como resulta do art. 1157º do Código Civil; na procuração são-no em nome do procurador.

O mandato pode ser exercido sem representação – art. 1180º do Código Civil – ou com representação.

Neste, “o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação” – cfr. Pessoa Jorge, in “Mandato Sem Representação”, 20.

Mandato sem representação “é aquele pelo qual uma pessoa – mandante – confia a outra – mandatário – a realização em nome desta, mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto” – Pessoa Jorge – “ O Mandato Sem Representação” – 411.

No mandato sem representação o mandatário torna-se titular dos direitos que emergem da actividade que exerceu, por incumbência de terceiros, mas fica obrigado a transmitir-lhes os direitos adquiridos em cumprimento da obrigação que lhe advém – art. 1181º, nº1, do Código Civil.

“ (...) No mandato sem representação há interposição, num contrato a celebrar, de uma pessoa que actua em nome próprio e não do mandante, embora aja por conta e no interesse deste.
Como resulta do art. 1180º do Código Civil, os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se na esfera jurídica do mandatário, que fica com a obrigação de os transferir para a pessoa por conta de quem age, ou seja, o mandante.
No mandato sem representação o mandatário age por conta do mandante, mas em nome próprio, não se podendo falar em formalidade de mandato ou em mandato verbal ferido de nulidade, já que aqui vigora o princípio da liberdade formal. (...)” - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.2.2002, in BMJ, 494, 320.

O art. 1174º do Código Civil estabelece vários fundamentos de caducidade do contrato de mandato, um deles é a morte do mandante – 1º:

Todavia, essa caducidade não ocorre se o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, o que se compreende por nesse caso o mandato não servir apenas a realização dos interesses do mandante mas de outrem, que tanto pode ser o mandatário como um terceiro – art. 1175º, 1ª parte do Código Civil – ou de ambos.

A lei não define o que seja o “interesse do procurador ou de terceiro que se deva considerar relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante.

Será caso típico daquele interesse o de qualquer daqueles (procurador ou terceiro), ter “contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio”, ou “o direito a uma prestação” (cfr. Vaz Serra, in RLJ, Ano 109, pág. 124, e Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.01.90, BMJ 393- 588).

“A não caducidade do mandato implica necessariamente como que ficcionar o prolongamento da vida do mandante até ao cumprimento integral da missão atribuída ao mandatário, podendo este, por isso, validamente praticar, em nome do mandante e para além da sua morte, os actos de que fora incumbido” – Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 9.03.95, BMJ 445 – 462.

Acerca do mandato de interesse comum, Irene de Seiça Girão, no estudo “Mandato de Interesse Comum”, publicado na obra “Comemorações dos 35 Anos do Código Civil”, vol. III, 2007, págs. 369 a 416 – nas conclusões 3ª e 4ª afirma:

“De mandato de interesse comum só pode, por isso, falar-se quando o mandato é parte integrante de uma relação jurídica complexa, da qual possa deduzir-se que a decisão do mandante de conferir ao mandatário o encargo de praticar certo acto jurídico por sua conta, com a pressuposta autorização para influir nas suas relações patrimoniais, não é fruto de uma mera opção relativamente à gestão do seu património, mas o “preço” convencionado, ou a contrapartida, de uma outra prestação, em face da qual se coloca numa relação de reciprocidade ou interdependência.
A conexão entre os vários vínculos que compõem aquela relação revela-se, precisamente, na sua ligação funcional, no sentido de que a prestação própria e típica do mandato se apresenta funcionalmente subordinada àquele diverso acordo existente entre o mandante e o titular do interesse protegido, não representando mais do que o instrumento executivo para a realização dos efeitos práticos com ele pretendidos”.

Vaz Serra, acerca da revogabilidade do mandato de interesse comum, escreve:

Igualmente no nosso direito é de entender que a revogação de um mandato (ou de uma procuração) irrevogável, por assim resultar da relação jurídica basilar e, em especial, por ter sido conferido no interesse do mandatário (ou do procurador) ou de terceiro, não produz a sua extinção, salvo se tal houver sido estipulado ou justa causa.
Desde que essa irrevogabilidade da procuração ou do mandato se funda na relação jurídica que está na base de uma ou do outro, e especialmente, do facto de resultar dessa relação que uma ou o outro foi conferido também no interesse do procurador ou mandatário ou de terceiro, não pode o dador de poderes ou o mandante, mediante acto unilateral seu (revogação), lesar um tal interesse, excepto havendo convenção em contrário ou ocorrendo justa causa.” Anotação ao Acórdão de 18 de Abril de 1975, in “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, Ano 109.°, 1976-1977, pág. 127.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 3.6.1997, in BMJ 468-369, pode ler-se”

A irrevogabilidade tem de “resultar da relação jurídica basilar e, em especial por ter sido conferida no interesse do mandatário (ou do procurador) ou de terceiro” (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n° 109, pág. 127), ou, como refere este Supremo nos seus acórdãos de 24 de Janeiro de 1990 (Boletim 393, pág. 592) e 27 de Setembro de 1994 - Colectânea de Jurisprudência -Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano 1994, Tomo III, pág. 68), “para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto e, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro tenham direito”.

Temos, assim, que, quer o mandato, quer a procuração não são revogáveis apenas por do contrato ou do acto jurídico unilateral (caso da procuração), constar expressamente uma cláusula de irrevogabilidade; relevante é que da relação basilar, que está na origem da decisão do “dominus”, resulte a existência de um interesse conferido no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado.

Não é, pois, pela via da pretensa caducidade do contrato de mandato e dos poderes conferidos na procuração irrevogável, outorgada pelo referido EE, que a representante estava impedida de celebrar o contrato de doação; quanto à procuração tendo ela sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro a convencionada irrevogabilidade só pode ser derrogada se houver acordo do procurador ou de terceiro, a menos que exista justa causa - nº3 do art. 265º do Código Civil.

Temos por inquestionável o interesse para pessoa terceira, emergente da procuração e do mandato dimanados do referido EE, já que através do contrato de mandato e da incindível procuração irrevogável, visava ele contemplar com bens o seu único e universal herdeiro o 2º Réu Filipe Cristóvão, ou através de contrato de compra e venda, que em seu nome a mandatária estava autorizada a celebrar, ou através de contrato de doação dos imóveis que identificou na procuração que a favor dela, e também no interesse de terceiro, outorgou.

O donatário é o terceiro com interesse, tendo em conta a relação basilar do mandante de dispor dos seus bens em favor de um herdeiro, pelo que, pese embora a mandatária ter optado por celebrar por escritura pública a doação que lhe era concedida quer pelo contrato, quer pela procuração, depois da morte do mandante, há que considerar formalmente válido o contrato de doação já que ao intervir na escritura como donatário – ficcionando-se pelo teor do mandato que os negócios abrangidos nesse contrato, por mor da não caducidade resultante da morte do mandante – essa intervenção exprime aceitação da doação (2), que se tem que ter como dada em vida do mandante doador.

Ao invés do que os recorrentes afirmam, a mandatária/procuradora não estava obrigada a outorgar a escritura de doação em vida do mandante, precisamente pelo facto do mandato, como foi expressamente acordado, se manter para lá da morte do mandante, e, portanto, não ter caducado; daí também que não se possa considerar que existiu uma mera proposta de doação que caducou por não ter sido aceita pelo donatário enquanto vivo o doador – art. 945º, nº1, do Código Civil.

Entendem os recorrentes que, sendo legatários e estando na posse dos bens legados, aberta a sucessão, os herdeiros deveriam cumprir os legados, sendo que doação dos bens feita após a morte do testador EE evidencia um negócio de disposição de bens alheios. Já vimos que assim não é pelo facto do mandato ter eficácia post mortem do mandante, existindo previsão expressa de não caducidade do mandato.

Sendo válida a doação feita após a morte do mandante, e tendo ele em data anterior, por via testamentária, feito legado de bens imóveis à recorrente, coloca-se a questão da subsistência desses legados após a doação dos mesmos bens.

No testamento – art. 2179º, nº1, do Código Civil – que é um acto de vontade unilateral do testador e não um contrato, como é a doação – art. 940º, nº1, do citado diploma – o autor do testamento pode livremente revogá-lo e pode fazê-lo não só através de um novo testamento em que expressamente exprime vontade de disposição do seu património incompatível com a precedente – art. 2312º - ou fazê-lo tacitamente, nos termos do art.2313º do diploma legal citado.

Existe ainda disposição revogatória tácita do testamento, se através de válida disposição de vontade pela via de contrato de mandato, que pretende que não caduque com a sua morte e através de procuração irrevogável a ele associada onde confere ao mandatário e procurador poderes para dispor dos seus bens, o autor do testamento, estando em causa como está, a sucessão testamentária onde foi feita uma liberalidade (assim se devem entender os legados feitos à Autora), conceder poderes que autorizam o mandatário e procurador a dispor dos seus bens sem restrições, advenientes do prévio testamento, em favor de um seu herdeiro legitimário.

A procuração em causa não é uma procuração post mortem destinada a produzir efeitos após o decesso do dominus; do que se trata, no caso, é da eficácia dos actos após a morte do dominus, já que por vontade dele a procuração irrevogável foi querida para valer e ter eficácia antes e após a sua morte – os efeitos começaram em vida do representado e sobrevivem à sua morte.

Pedro Pais de Vasconcelos aborda as incidências do uso da procuração irrevogável após a morte do dominus e na obra citada, pág. 189, escreve:

“A procuração post mortem naturalmente irrevogável pode, no entanto, levantar um outro problema no que respeita às regras do Direito das Sucessões.
As normas relativas à sucessão por morte são, na sua grande maioria, imperativas.
Têm esta natureza, por exemplo, as regras relativas as classes de sucessíveis, as regras de sucessão das várias classes de sucessíveis e as regras relativas à sucessão legitimária. Através de uma procuração naturalmente irrevogável post mortem, poder-se-ia evitar ou contornar a aplicação destas regras.
Para tanto bastaria que o procurador após a morte do dominus originário, procedesse à distribuição de bens e direitos a pessoas diferentes dos herdeiros, ou violando as regras aplicáveis. Uma vez que os herdeiros não poderiam revogar a procuração, não se poderia evitar esta violação das normas sucessórias. Esta característica poderia levar à tendência para não admitir a validade da procuração naturalmente irrevogável post mortem, por permitir a violação das regras sucessórias.
Embora a questão seja relevante, não pode ser respondida deste modo, Para que a procuração possa ser qualificada como uma procuração naturalmente irrevogável post mortem, para além do termo inicial, é necessário que o procurador, ou o terceiro, tenham um interesse na procuração […].
[…] Numa situação destas, mesmo que a outorga da procuração influa sobre a herança, diminuindo-a, nem por isso se pode considerar que a procuração viole as regras sucessórias.” (destaque e sublinhado nossos).

Esta doutrina vale, por identidade de razão, para a procuração cujos efeitos perduram e se produzem após a morte do “dominus”, porque ainda após esse momento os actos praticados o são como se o fossem por ele próprio.

O referido EE, ao agir como agiu, pretendeu revogar os legados feitos à recorrente, sem ter lançado mão da feitura de novo testamento ou da sua revogação expressa.

Pelo quanto dissemos o Acórdão não merece censura.

Decisão.

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pelas recorrentes sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam.
*

Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 13 de Julho de 2010.

Fonseca Ramos (Relator)

Cardoso de Albuquerque

Salazar Casanova (vencido com a declaração de que, para se considerar que o contrato de doação outorgado depois da morte do de cujus ao abrigo de procuração irrevogável, revoga tacitamente o testamento, importaria que a procuração referenciasse que a sua irrevogabilidade nos termos dos artigos 265.º e 1170.º do C.Civil, tinha em vista os imóveis, mencionados no testamento, não bastando a mera genérica referência aos imóveis integrativos do património do mandante/doador sem alusão ao testamento.
E se não há revogação do testamento, este constitui disposição válida e eficaz (artigos 2031.º, 2050.º, 2312.º, 2313.º do Código Civil).
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(1) A palavra deriva do latim mandatum, de mandare, com o sentido de “dar poder”, ou manum dar. Antigamente, o mandatário dava a mão ao mandante em testemunho da fidelidade daquilo que prometia, limitando-se a expressar confiança e amizade.
(2) “Não exige a lei…que a declaração de aceitação seja expressa. À parte o caso de aceitação tácita, previsto no nº2, deve entender-se, em regra, que a simples intervenção do donatário no acto da doação (por ex., na escritura pública), sem que este exprima o seu dissentimento, é manifestação bastante de aceitação (cfr. art. 217.º)” – Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 4ª edição, pág. 247.