Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1279/20.7T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONVENÇÃO DE LUGANO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
DECISÃO CONDENATÓRIA
FORÇA EXECUTIVA
INTERESSE EM AGIR
ISENÇÃO DE CUSTAS
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Os artigos 2º a 4º da Convenção de Lugano II não determinam a competência internacional do tribunal que pode rever a decisão proferida por um tribunal de um estado contratante. Estas regras de competência regem as acções declarativas e executivas, aquelas que teriam que estar cumpridas para que fosse proferida a decisão cujo reconhecimento e executoriedade são aqui solicitados.

II. Estamos perante um processo de reconhecimento de efeitos e atribuição de força executiva a uma sentença estrangeira proferida num estado contratante da Convenção de Lugano II, automático, na medida em que certos efeitos se produzem na ordem jurídica do estado de reconhecimento pela simples verificação das condições de reconhecimento estabelecidas nos art.ºs art.º 33.º e segs, e pela não verificação de qualquer obstáculo ao reconhecimento, mencionado nos artigos 34.º, ou 35.º, ou que possa ser tido em conta por força do disposto no art.º 45.º, todos da mesma Convenção.

III. A invocação de o réu no processo onde foi proferida a sentença Suíça, condenado a pagar ao autor um certo montante monetário, ser proprietário de um imóvel, em território português, constitui um inequívoco interesse em agir no processo em que é solicitado que seja conferida força executória àquela sentença estrangeira.

IV. Tendo o mesmo réu beneficiado de isenção do pagamento de custas no processo que correu termos na Suíça, por força do art.º 50.º, n.º 1 da Convenção de Lugano II, estará em Portugal, neste processo, isento de custas, e, não só de taxa de justiça, por isso corresponder à “isenção mais ampla prevista no direito do Estado requerido.”

Decisão Texto Integral:
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I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

AA foi condenado a pagar a BB a quantia de 50 000,00 francos suíços, acrescida de juros à taxa legal de 5% a contar desde Janeiro de 2012, por decisão condenatória proferida, em 24/10/2018, pelo Tribunal Distrital de ..., na Suíça.

BB, ao abrigo do disposto no art.º 38.º da Convenção de Lugano, requereu a atribuição de força executória em Portugal àquela sentença Suíça.

O Juiz ... do Juízo Central Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., em 04/06/2020, declarou executória em Portugal aquela decisão condenatória.

O réu AA interpôs recurso de apelação no qual apresentou as seguintes conclusões:

I. Compulsada a Petição Inicial e Douta Sentença Recorrida, não se alcançam as razões de facto e de direito, que possam suportar e justificar a qualidade de interessado do Requerente, pois conforme resulta da PI, os domicílios indicados para Requerente e Requerido são na Suíça, chegando o Requerente a alegar que segundo o que é do seu conhecimento o Requerido não tem domicílio em Portugal.

II. Para justificar o seu interesse e qualidade de Interessado, o Requerente alega, apenas, que o Requerido é proprietário de uma fração autónoma para habitação, sita em ..., Portugal, e, que pretende nomear esse bem à penhora, o que é manifestamente insuficiente face ao disposto na Convenção de Lugano II.

III.  Acresce que, como o Requerente não desconhece, no âmbito das diligencias de execução tendentes ao pagamento da quantia em que foi condenado, o Requerido foi convocado para comparecer no Office Des Poursuites du District Du Jura – Nord Vaudois no dia 07.09.2020, adiado posteriormente para o dia 28.09.2020, pelo que estando em curso as diligencias executórias adequadas e previstas na Legislação Suíça para execução da sentença aí proferida e consequente satisfação do pagamento, é notória, in casu, a ausência da qualidade de interessado do Requerente. (Docs. 1 e 2)

IV.  Com efeito, para aferir se o Requerente tem um interesse na declaração, o Tribunal precisará normalmente de identificar os alegados efeitos da decisão em questão e de determinar se, nas circunstâncias concretas, o Requerente está confrontado com um obstáculo que afecta o seu gozo actual desses efeitos, o que não ocorre na situação dos autos, não estando demonstrado o sei interesse em agir.

V. Face à ausência de alegação e prova que o Requerido tem domicílio em Portugal, mas apenas e tão só que é proprietário de um imóvel, entende-se que o lugar da execução deverá ser na Suíça, local onde tem domicílio, conforme resulta do Requerimento Inicial, não sendo aplicável o disposto no art.º 88º nº 3 do CPC, conforme pretensão do Requerente, face ao disposto no art.º 2º da Seção VI do Título II da Convenção de Lugano II que dispõe que: (…)

VI.  Em matéria de execução de decisões, os tribunais do Estado vinculado pela presente convenção do lugar da execução.

 O recurso de apelação foi decidido pelo acórdão proferido em 11/02/2021 pela Relação ... que o julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Invocada a nulidade do referido acórdão com fundamento em não conhecimento da suscitada questão de isenção do pagamento de taxa de justiça e demais encargos, veio, em conferência o mesmo Tribunal da Relação ... a reconhecer que o recorrente está isento de pagamento de taxa de justiça, mas não de encargos e de custas de parte.

AA, interpôs recurso de revista, invocando o disposto nos artigos 671º e seguintes do Código de Processo Civil, apresentando as correspondentes alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

I. Com o devido respeito, não podemos concordar com a decisão de condenação em Custas, desde logo porque é omitida pronuncia quanto à invocada isenção de taxa de justiça e demais encargos, reiterando-se a posição explanada na Reclamação de fls., (convolada para Recurso), que não foi objecto de pronúncia, mostrando-se, assim, violado o disposto no art.º 615º nº 1, al d) do CPC.

II. De igual modo, o artigo 52º da Convenção de Lugano é inequívoco ao referir que nenhuma taxa proporcional ao valor do litígio será cobrada no Estado requerido no processo de emissão de uma declaração de executoriedade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.06.2013, disponível in www.dgsi.pt),

III. Sem prejuízo do benefício reconhecido no artigo 52º, o Recorrente (taxas de justiça e custas) decorrer do apoio judiciário de que o Reclamante beneficia nos termos do artigo 50º, nº 1 da Convenção de Lugano II.

IV. Nos artigos 2º a 4º da Convenção de Lugano, consagra-se, a regra geral do domicílio do requerido (localizado num Estado-Membro), como critério fundamental de conexão, para fixação da competência internacional, independentemente da sua nacionalidade, enumerando o Diploma nos artigos 5º e segs. um conjunto de critérios especiais, todavia não se alcança nenhum que atribuía aos Tribunais Portugueses essa competência, que também não decorre do direito interno, que aliás a afasta, o que constitui questão de conhecimento oficioso dos Tribunais.

O Autor contra-alegou, pugnando, pela improcedência da revista e apresentando as seguintes conclusões:

A. A confirmar-se que a Relação não se pronunciou sobre a apelação autónoma referente à isenção de taxa de justiça, deverá a situação ser sanada por decisão directa do próprio STJ, por razões de economia e celeridade processual, em respeito pelos princípios constantes nos artigos 6.º, 547.º e 682.º do CPC, tanto mais que se trata de questão de direito.     

B. A excepção do artigo 684.º, n.º 2 do CPC deve ser interpretada no quadro destes princípios e em coerência com a finalidade do regime. Assim, os casos de omissão de pronúncia, quando resultem de um recurso autónomo e se refiram a estritas questões de direito, para mais incidentes sobre requisitos de admissibilidade ou não admissibilidade do recurso (como o dos autos), devem seguir o regime regra e ser imediatamente decididos pelo STJ e não o regime excepção de baixa à Relação.

C. A decisão directa do STJ, qualquer que ela seja, é a que melhor se adequa à marcha do processo e não afecta os direitos das partes nem o resultado da lide. Se o processo baixar à Relação e esta decidir contra o Recorrente, a instância extingue-se de imediato, porque o recurso para o STJ ficaria vedado por aplicação da regra da “dupla conforme”; o efeito é, assim, exactamente o mesmo se o STJ decidir directamente em igual sentido. Por outro lado, se o processo baixar e a Relação decidir em favor do Recorrente, terá o processo que voltar a subir ao STJ para que este se pronuncie sobre o fundo da questão; o mesmo acontecerá se o STJ decidir directamente a questão da isenção de custas judiciais em sentido favorável ao Recorrente. A única diferença entre uma decisão directa do STJ e a baixa do processo para decisão da Relação é a maior celeridade e a simplificação e agilidade da tramitação processual da primeira opção sem qualquer perda das garantias das partes.

D. Inexiste qualquer omissão de pronúncia quanto à matéria constante das Conclusões I, II e V do articulado que o Recorrente apresentou perante a Relação. A matéria das conclusões I e II (falta de qualidade de parte interessada e de interesse em agir do Recorrido) foi decidida pelo tribunal a quo e de forma definitiva, uma vez que o Recorrente não incluiu a questão no objecto deste recurso, omitindo qualquer referência ao mesmo nas suas conclusões.

E. A matéria da conclusão V (incompetência internacional dos tribunais portugueses) foi também cristalinamente decidida pela Relação, pelo que tampouco aqui ocorre vício de omissão de pronúncia. O Recorrente trá-la de novo à liça, invocando a violação dos artigos 2.º a 4.º e 5.º e seguintes da Convenção por não encontrar nos critérios de atribuição de competência neles estabelecidos qualquer elemento de conexão comos tribunais nacionais.

F. A Convenção de Lugano tem dois propósitos nucleares (i) determinar a competência dos tribunais das partes contratantes na ordem internacional (matéria tratada no Título II, artigos 2.º a 31.º), e (ii) facilitar o reconhecimento e instituir um processo rápido que garanta a execução das decisões (matéria tratada no Título III, artigos 32.º a 56.º). A questão que constitui objecto destes autos, cabe claramente no segundo daqueles núcleos, porque visa o reconhecimento do carácter executório de uma sentença suíça em Portugal. A competência dos tribunais portugueses para este efeito está prevista no artigo 39.º, n.º 1 da Convenção, sendo o elemento de conexão estabelecido de forma evidente no artigo 38.º, n.º 1.

G. As regras de competência previstas no Título II da Convenção só relevam para a decisão sobre o reconhecimento da executoriedade de sentença estrangeira quando referidas a esta mesma sentença. É o que decorre do artigo 43.º, n.º 1 da Convenção, que estabelece a lista taxativa de razões que podem levar à recusa do exequatur, entre as quais consta a violação das regras de competência dos artigos 8.º a 17.º e 22.º.

H. Nessa medida, não há qualquer violação das regras dos artigos 2.º a 4.º e 5.º e seguintes da Convenção, na medida em que só se poderiam referir à sentença suíça cujo reconhecimento da executoriedade em Portugal é objecto destes autos, sentença essa que foi proferida em processo que opôs dois residentes da Suíça e, portanto, à luz das regras processuais desse país, tendo já transitado em julgado sem que o Recorrido tenha alguma vez invocado a incompetência do tribunal que a proferiu.

O réu manteve o recurso de revista excepto quanto à questão de pagamento de taxa de justiça cuja isenção de pagamento ficou estabelecida na 2.ª instância.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recorrente interpôs recurso ordinário de revista pelo que a admissibilidade do mesmo carece, num primeiro momento, de satisfazer as regras gerais aplicáveis ao recurso que não sejam expressamente afastadas por disposições especiais aplicáveis ao caso em análise.

Nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a admissibilidade da revista depende, em primeira linha, da verificação dos pressupostos atinentes ao valor da causa e da sucumbência. Se a questão da sucumbência não suscita dúvida, por ter sido total, já quanto ao valor da causa importa anotar que estamos face a uma acção em que o autor indicou na petição inicial o valor de 76 539,00€ e tal valor nem sofreu contestação do réu, nem alteração ou confirmação por parte do tribunal que omitiu o cumprimento do disposto no art.º 306.º do Código de Processo Civil, omissão geradora de nulidade por omissão de pronúncia, por força do disposto nos artigos 195.º, 199.º e 615.º, n.º 1, al. d), todos do Código de Processo Civil.

Tão pouco se mostra suscitada tal nulidade neste recurso de revista ou em qualquer outra fase processual, pelo que, nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 4 do Código de Processo Civil, consideramos definitivamente estabelecido aquele valor, indicado na petição inicial como o valor da acção, atendível também para efeitos de determinação da admissibilidade de recurso, em sintonia com anterior idêntica posição já adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Proc. n.º 478/11.7TTVRL.G1-A.S1 em 29/10/2015 e acessível em http://www.dgsi.pt/.

Assim, sem obstáculos de admissibilidade decorrentes do valor da causa, deparamo-nos com duas decisões das instâncias absolutamente coincidentes, mas onde o Tribunal da Relação conheceu de questões não expressamente analisadas na 1.ª instância – interesse em agir do autor – e em que se mostra suscitada a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses que, nos termos do disposto no art.º 629º, n.º 2, a) do Código de Processo Civil nos coloque perante uma decisão de que é sempre admissível recurso.

Na análise da suscitada questão de incompetência internacional dos tribunais portugueses para o presente litígio o interesse em agir do recorrido integra aquela questão.

A questão relativa aos encargos e custas de parte é uma matéria que sempre tem que ser apreciada na decisão de recurso, mesmo que não haja sido expressamente suscitada.

 Nada obsta, pois, à admissibilidade do presente recurso.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à responsabilidade do recorrente pelos encargos e custas de parte;

2. competência internacional dos tribunais portugueses para declarar a executoriedade de uma sentença proferida por um tribunal suíço, numa situação, como a dos autos, em que nem o requerente, nem o requerido residem em território nacional;

3. responsabilidade do recorrente pelo pagamento de encargos e custas de parte.


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I.4 - Os factos

As instâncias fixaram a seguinte factualidade relevante:

1. Encontra-se juntos aos autos certidão relativa à decisão judicial a que alude o art.º 54.° da Convenção.

2. O requerente junta cópia certificada da decisão, da qual resulta que o requerido teve intervenção na acção em que foi proferida a sentença exequenda.


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II - Fundamentação

1. Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à responsabilidade do recorrente pelos encargos e custas de parte

A nulidade por omissão de pronúncia a que se refere o art.º 615º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força dos artigos 679º e 666º, ambos do Código de Processo Civil implica uma omissão total de decisão de questão suscitada nos autos, como vem sendo afirmado de modo uniforme e constante pelo Supremo Tribunal de Justiça.

No acórdão proferido em conferência pelo Tribunal da Relação ... consta a este propósito, nomeadamente:

“(…) Por conseguinte, o valor da taxa de justiça - definida como contrapartida devida ao Estado pela prestação por este do serviço de justiça, logo, como verdadeira taxa - só dentro de limites geral, abstracta e previamente tabelados, tem correspondência com o valor do litígio.

Ora, o art.º 529 é susceptível de duas interpretações:

- segundo uma, à semelhança do que fizera com o art.º 519 do Regulamento, proíbe os Estados-Membros de, a pretexto de o processo de exequatur decorrer nos seus próprios Tribunais e entre partes, uma das quais é, por via de regra, estrangeira, se aproveitarem desta qualidade de estrangeiro e do valor do litígio, para cobrar impostos, direitos ou taxas sobre o processo de exequatur, proporcionais ao valor do litígio, assim discriminando negativamente os estrangeiros relativamente aos seus nacionais e, por via disso, dificultando a satisfação do direito daqueles - proibição do Estado oportunista;

- segundo outra, veda apenas a cobrança de imposto, direito ou taxa proporcional ao valor do litígio, independentemente do momento temporal da respectiva previsão.

O Regulamento comunitário tem, como se disse, primazia relativamente às fontes de direito nacionais.

Os termos peremptórios do citado art.º 529 - "Nenhum imposto, direito ou taxa proporcional ao valor do litígio será cobrado no Estado-Membro requerido no processo de emissão de uma declaração de executoriedade" - leva-nos a optar pela segunda daquelas interpretações e a rejeitara primeira.

Se bem que, de acordo com esta interpretação, o art.º 529 citado apenas afaste o princípio da proporcionalidade, sem excluir o estabelecimento de um montante fixo, traduzido numa taxa mínima obrigatória, entendimento este que já vinha do art.º 3 do Protocolo de 27-09-1968, anexo à Convenção de Bruxelas e que foi incorporado no art.º 529 (cfr. Neves Ribeiro, Processo Civil da União Europeia I, Coimbra, 2002, p.128).

Sendo as custas constituídas por taxa de justiça, encargos e custas de parte, forçoso é concluir que o processo de reconhecimento de executoriedade está isento de taxa de justiça (porque esta varia proporcionalmente em função do valor do litígio), mas não de encargos e de custas de parte».

Sufragando o entendimento supra, reconhece-se que em face do disposto no art.9 52.e da Convenção de Lugano II, o recorrente está isento de pagamento de taxa de justiça.”.

A questão foi apreciada pelo tribunal recorrido, o que inviabiliza a existência de qualquer omissão de pronúncia a ela relativa.

Improcede, pois, a revista com este fundamento.


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2. Competência internacional dos tribunais portugueses para declarar a executoriedade de uma sentença proferida por um tribunal suíço, numa situação, como a dos autos, em que nem o requerente, nem o requerido residem em território nacional

 O recorrente invoca a incompetência internacional dos tribunais portugueses para conferirem exequatur à sentença proferida pelo tribunal suíço, aqui em causa, indicando nos artigos 26 e 27 das suas alegações que:

“Nos artigos 2º a 4º da Convenção de Lugano, consagra-se, a regra geral do domicílio do requerido (localizado num Estado-Membro), como critério fundamental de conexão, para fixação da competência internacional, independentemente da sua nacionalidade.

27. Apesar do regime regra da competência ser o do domicílio do demandado, o Regulamento enumera nos artigos 5º e segs. um conjunto de critérios especiais, todavia não se alcança nenhum que atribuía aos Tribunais Portugueses essa competência, que também não decorre do direito interno, que aliás a afasta.”

Seguindo as indicações constantes do Relatório Explicativo da Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial assinada em Lugano, em 30 de Outubro de 2007 elaborado pelo Professor Fausto Pocar, em cumprimento de determinação do Conselho, constante das directrizes de negociação que aprovou na sua reunião de 14 e 15 de Outubro de 2002, com vista à superação as dúvidas de interpretação que possam surgir em processos intentados nos tribunais nacionais e como ponto de referência para clarificar o significado da Convenção e facilitar a sua uniforme aplicação logo encontramos que o

 “objectivo da Convenção é fortalecer, nos territórios das Partes Contratantes, a protecção jurídica das pessoas neles estabelecidas, e para esse fim é necessário determinar a competência dos respectivos tribunais na ordem internacional, facilitar o reconhecimento e instaurar um processo rápido que garanta a execução das decisões, bem como dos actos autênticos e das transacções judiciais.(…) A presente Convenção é, pois, uma convenção dual que rege, no seu campo de aplicação, a competência directa dos tribunais nos Estados por ela vinculados, a coordenação entre tribunais em caso de conflito de competência, as condições de reconhecimento das decisões, bem como um processo simplificado para a sua execução.

(…) As regras de competência incluídas na Convenção são abrangentes, e o facto de o requerido ter ou não domicílio no território de um Estado vinculado pela Convenção não é critério delimitativo do âmbito da Convenção em termos de competência.”

O art.º 2.º da Convenção estabelece como regra geral de competência o domicílio do requerido num Estado vinculado pela Convenção, sendo indiferente que este seja ou não nacional desse estado. Nos termos do art.º 59.º da Convenção a noção do domicílio das pessoas singulares é determinada pelo direito interno do Estado em cujo território têm domicílio.

Tal regra geral de competência com fundamento no domicílio do requerido apenas pode ser derrogada pelas regras de competência estipuladas na Convenção, a saber, as Secções 2 a 7 do Título II. Isso significa que apenas por força dessas regras pode uma pessoa domiciliada no território de um Estado vinculado pela Convenção, quer singular quer colectiva, ser demandada perante os tribunais de outro Estado vinculado pela Convenção.

O artigo 3º, n.º 1 da Convenção indica, de modo peremptório, quais as acções que não podem ser instauradas em tribunais que não sejam os referidos nas Secções 2 a 7 do Título II, excluindo quanto a elas qualquer outro critério de competência, independentemente de constar ou não do anexo I que são as seguintes:

o competências especiais, em matéria contratual,

o de obrigação alimentar, de responsabilidade extracontratual,

o de acção de indemnização ou de acção de restituição fundadas numa infracção,

o de acção relativa à exploração de uma sucursal, de uma agência ou de qualquer outro estabelecimento,

o de acção relativa à qualidade de fundador, de trustee ou de beneficiário de um trust constituído,

o de acção relativa à reclamação sobre remuneração devida por assistência ou salvamento de que tenha beneficiado uma carga ou um frete,

o de acções de responsabilidade emergente da utilização ou da exploração de um navio,

o competências em matéria de seguros,

o em matéria de contratos celebrados por consumidores,

o em matéria de contratos individuais de trabalho,

o em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis,

o em matéria de validade, de nulidade ou de dissolução de sociedades ou outras pessoas colectivas,

o em matéria de validade de inscrições em registos públicos,

o em matéria de inscrição ou de validade de patentes, marcas, desenhos e modelos e de outros direitos análogos sujeitos a depósito ou a registo,

o em matéria de execução de decisões,

o e, nas situações de extensão de competência constantes do art.º 23º da Convenção.

O artigo 3º, n.º 2 da Convenção tem de ser conjugado com o teor do anexo I, nele referido, e este é uma mera listagem das principais regras nacionais cuja aplicação não é permitida.

O art.º 4.º é uma estatuição que não fornece uma regra de competência e regula indirectamente a questão da competência quando o requerido não tiver domicílio no território de um Estado vinculado pela Convenção, remetendo para a lei nacional do Estado cujo tribunal foi chamado a pronunciar-se.

Nenhuma das referidas normas invocadas pelo recorrente determina a competência internacional do Tribunal que pode rever a decisão proferida por um tribunal de um estado contratante. Estas regras de competência regem as acções declarativas e executivas, isto é, como bem acentuou o acórdão recorrido, aquelas que teriam que estar cumpridas para que fosse proferida a decisão cujo reconhecimento é neste processo solicitado.

A interpretação que o recorrente pretende fazer da Convenção levar-nos-ia a admitir que apenas a Suíça, onde o requerido tem domicílio, teria competência para reconhecer a dita sentença condenatória que um tribunal suíço proferiu, o que seria uma dupla inutilidade por a sentença Suíça não carecer de qualquer reconhecimento para ser executada na Suíça, e, sem ser reconhecida, também não poderia ser executada em qualquer outro estado signatário da Convenção. O modelo construído pelo recorrente é um caminho para uma solução impossível.

A matéria da competência está regulada no Título II da Convenção que no seu Título III estatui sobre o reconhecimento e execução.

Seguindo de perto o Relatório Explicativo da Convenção antes identificado indicamos que um dos principais objectivos da Convenção radica na simplificação dos procedimentos para o reconhecimento e execução das decisões que recaem no seu âmbito vindo o Título III da Convenção a estabelecer um procedimento facilitador da livre circulação das decisões judiciais.  Sem ainda ter sido estabelecido um espaço judiciário único, no espaço da União Europeia e da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), com livre circulação de decisões judiciais e a abolição de quaisquer processos de exequátur, o certo é que a declaração de executoriedade de uma decisão judicial proferida por um Tribunal de um estado signatário da Convenção, numa primeira fase, está reduzida a pouco mais de uma formalidade, operando de forma quase automática e apenas sujeita a simples verificação formal, confiando que o Estado de origem agiu correctamente.

O art.º 33. da Convenção indica que “As decisões proferidas num Estado vinculado pela presente convenção são reconhecidas nos outros Estados vinculados pela presente convenção, sem necessidade de recurso a qualquer processo”, não estabelecendo regras restritivas de competência para os Tribunais que hão-de conferir esse reconhecimento - nos outros Estados vinculados pela presente convenção.

                    

Estamos perante um processo de reconhecimento de efeitos e atribuição de força executiva a uma sentença estrangeira proferida num estado contratante da Convenção de Lugano, automático na medida em que certos efeitos se produzem na ordem jurídica do estado de reconhecimento pela simples verificação das condições de reconhecimento estabelecidas na Convenção de Lugano, art.º 33.º e segs..

Nenhum obstáculo ao reconhecimento, mencionado nos artigos 34.º, ou 35.º, da Convenção de Lugano se verifica, foi alegado pelo recorrente ou pode ser tido em conta por força do disposto no art.º 45.º da Convenção.

A escolha dos tribunais portugueses pelo aqui recorrido assenta na invocação de ser o recorrente proprietário de um imóvel, em território português, circunstância por este não afastada e que permite antever a competência dos tribunais portugueses para o futuro processo executivo onde venha a ser solicitada a cobrança coerciva do montante que o recorrente foi condenado a pagar ao recorrido pelo tribunal suíço. O não pagamento voluntário da dívida reconhecida judicialmente aponta para a razoabilidade de o credor estar carecido de tutela judicial na medida em que provavelmente só o uso dos meios judiciários lhe permitirão alcançar o desiderato de cobrança da dívida, por meios coercivos, seja pela venda do imóvel do recorrente, seja apenas pela séria ameaça de que essa venda venha a ter lugar, o que constitui um inequívoco interesse em agir no processo em que solicita que seja conferida força executiva à sentença estrangeira, condição imprescindível para instauração futura, e, eventual, em Portugal desse processo executivo.

Nos termos expostos, nem o recorrente demonstrou que os tribunais portugueses são incompetentes em razão da nacionalidade para conferirem força executiva à sentença suíça, nem a interpretação da Convenção de Lugano nos permite confirmar tal conclusão.

Improcede, pois, a revista com este fundamento.


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3. Responsabilidade do recorrente pelo pagamento de encargos e custas de parte

O acórdão recorrido considerou que o recorrente estava isento do pagamento de taxa de justiça, mas não de encargos e custas de parte. Suportou-se na argumentação de que a taxa de justiça varia proporcionalmente em função do valor do litígio, mas que o mesmo não acontece com os encargos e as custas de parte, no Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, reproduzindo uma anterior decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-6-2013, proferida no proc. n.º 1939/11.3T2AVR.C1, acessível em www.dgsi.pt.

O art.º 50.º, n.º 1 da Convenção de Lugano refere que:

“O requerente que, no Estado de origem, tiver beneficiado no todo ou em parte de assistência judiciária ou de isenção de preparos e custas, beneficiará, nos processos previstos na presente secção, da assistência mais favorável ou da isenção mais ampla prevista no direito do Estado requerido.”

O Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial dispõe de uma norma similar, ou pelo menos com a mesma finalidade de facilitação da declaração de executoriedade de uma decisão judicial, no seu art.º 52º:

Nenhum imposto, direito ou taxa proporcional ao valor do litígio será cobrado no Estado-Membro requerido no processo de emissão de uma declaração de executoriedade.”

O Protocolo n.º 2 anexo à Convenção de Lugano, relativo à interpretação uniforme da convenção,

 “(…) Desejando, no pleno respeito pela independência dos tribunais, impedir interpretações divergentes e chegar a uma interpretação tão uniforme quanto possível das disposições da presente convenção e das disposições do Regulamento (CE) n.º 44/2001, cujo conteúdo é em grande medida reproduzido na presente convenção, e dos outros instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção

estabeleceu no art.º 1.º que:

Na aplicação e na interpretação das disposições da presente convenção, os tribunais terão em devida conta os princípios definidos em qualquer decisão pertinente proferida pelos tribunais dos Estados vinculados pela presente convenção e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativamente à ou às disposições em causa ou a disposições análogas da Convenção de Lugano de 1988 ou dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da convenção”.

Tomaremos ainda em consideração que o recorrente, na sentença suíça foi condenado a pagar custas judiciais no montante de 7 160 CHF (francos suíços), valor que foi deixado a cargo do Estado, a título de assistência judiciária.

Na ausência de jurisprudência significativa sobre esta questão emanada do Tribunal de Justiça da EU, onde possam recolher-se princípios pertinentes para a decisão da mesma, teremos que analisar o texto do art.º 52.º da Convenção de Lugano e a natureza jurídica das custas processuais em Portugal.

O requerente beneficiou no estado de origem de assistência judiciária que o isentou totalmente do pagamento de custas. À luz da Convenção deverá beneficiar da isenção mais ampla prevista no direito do Estado requerido que não pode ser diversa da isenção total das custas.

Em Portugal, nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais:

“As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte”.

A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e tem uma natureza mista decorrendo o seu montante do valor e complexidade da causa, art.º 6.º.

Os encargos cujos tipos se encontram definidos no art.º 16, também daquele DL, são o preço de serviços prestados no âmbito do processo, não têm a natureza jurídica de taxas, e, dificilmente se configuram como devidos neste tipo de processos.

As custas de parte, definidas no art.º 26º, são calculadas em várias parcelas todas dependentes das taxas de justiça pagas, estas determinadas em função do valor e complexidade da causa. Essencialmente referem-se às taxas de justiça pagas pela parte contrária, que também definem os limites da verba exigível a título de honorários. A expressão “nenhum imposto, direito ou taxa proporcional ao valor do litígio será cobrado” tem, pois, que abarcar estes 3 componentes das custas processuais.

Procede, pois, a revista com este fundamento.

III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso de revista e, em consequência, conceder a isenção do pagamento de encargos e custas de parte, revogando, nesta parte o acórdão recorrido que se confirma quanto a tudo o mais decidido.

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Sem custas, nos termos do disposto no art.º 50º da Convenção de Lugano.

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Lisboa, 24 de Maio de 2022

Ana Paula Lobo (relatora)

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo