Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3925/07.9TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÂO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: ATO MÉDICO
CONSENTIMENTO INFORMADO
DEVER DE ESCLARECIMENTO
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ - Nº 259 - ANO XXII - T. III/2014 - P. 47-52
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BIOMÉDICO - DIREITO DA MEDICINA / ACTO MÉDICO / ATO MÉDICO / CONSENTIMENTO INFORMADO / RESPONSABILIDADE MÉDICA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
- Álvaro Rodrigues, A Responsabilidade Médica em Direito Penal, pp. 41, 346.
- André Pereira, O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Centro Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 11, pp. 457, 478.
- Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, p. 399 in fine.
- Guilherme de Oliveira, RLJ n.º 3923, p.34 e seguintes.
- José Lago, “Consientemiento Informado y Responsabilidade Civil”, na revista Julgar, Número Especial, 2014, 163.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, I, Tomo I, p. 429.
- Rute Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico Reflexões Sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, in Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 15, pp. 79, 440.
- Sérgio Deodato, Direito da Saúde, p.42.
Legislação Nacional:
“CÓDIGO DEONTOLÓGICO” DA ORDEM DOS MÉDICOS (PUBLICADO COMO “REGULAMENTO” NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 2.ª SÉRIE, DE 13.1.2009): - ARTIGOS 44.º, N.º1 E 45.º, N.º1.
BASE XIV DA LEI DE BASES DA SAÚDE (N.º 48/99, DE 24.8, ALTERADA PELA LEI N.º 27/2002DE 8.11).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, N.º1, 376.º, N.º2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 156.º, 157.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 25.º, N.º1 E 27.º, N.º1.
DECRETO-LEI N.º 446/85, DE 25.10: - ARTIGO 1.º.
Legislação Comunitária:
CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: - ARTIGO 3.º.
Referências Internacionais:
- ARTIGO 5.º. DA CONVENÇÃO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DA DIGNIDADE DO SER HUMANO FACE ÀS APLICAÇÕES DA BIOLOGIA E DA MEDICINA: CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DO HOMEM E A BIOMEDICINA, VULGARMENTE CONHECIDA POR “CONVENÇÃO DE OVIEDO” OU “CDHBIO”, DE 4.4.1997, RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º1/2001, DE 3.1 E PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º1/2001, DA MESMA DATA.
- CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 8.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23.11.2005, PROCESSO N.º 5B3318, EM WWW.DGSI.PT.
-DE 10.5.2007, PROCESSO N.º 07B841, EM WWW.DGSI.PT.
-DE 18.3.2010, PROCESSO N.º 301/06.4TVPRT.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TEDH:
-DE 7.10.2008, BOGUMI CONTRA PORTUGAL, NO SÍTIO DO PRÓPRIO TRIBUNAL.
Jurisprudência Estrangeira:
JURISPRUDÊNCIA ALEMÃ:
-ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ALEMÃO, DE 22.12.2010 3STR 239/10,COM ACESSO NA INTERNET “BUNDESGERICHTSHOF.DE”, DEPOIS, “ENTSCHEIDUNGEN” E, DEPOIS, A DATA.
*
JURISPRUDÊNCIA FRANCESA:
ACÓRDÃO DA COUR DE CASSATION, DE 7.10.1998
Sumário :
1 . Com ressalvas que aqui não importam, o doente tem direito a ser informado, pelo médico, em ordem a poder decidir sobre se determinado ato médico que o vise deve ou não ser levado a cabo.

2 . Tal direito é disponível.

3 . O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação.

4 . Abrange, salvo ressalvas que aqui também não interessam e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento.

5 . Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo e aos seus riscos.

6 . Não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe.

7 . Nem a referência aos riscos de verificação excecional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento. 

8 . A referência num documento, assinado por médico e doente, a que aquele “explicou” a este, “de forma adequada e inteligível”, entre outras coisas, “os riscos e complicações duma cirurgia” não permite ajuizar da adequação e inteligibilidade e, bem assim, dos riscos concretamente indicados, pelo que é manifestamente insuficiente.

9 . Mas, se do mesmo documento consta que o doente não deve hesitar “em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido”, deve entender-se que este abdicou do seu direito a ser informado em termos detalhados.

10 . Para ser aplicável o regime de ónus de prova das cláusulas contratuais gerais, o que dele pretende beneficiar tem, antes, de fazer prova de que estamos em terreno próprio destas.

11 . Não tendo feito tal prova, sobre o doente, subscritor de tal documento, impende a demonstração de que assinou em branco e de que nada do que ali consta lhe foi referido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 . AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

A Companhia de Seguros BB, S.A.,

Hospitais Privados de Portugal – HPP CC, S.A. e

DD.

Alegou, em síntese, que:

Após ter sofrido ferida lácero–contusa com lesão dos nervos colaterais do polegar, veio a ser tratado clinicamente por ordem, conta e sob a responsabilidade da 1.ª Ré, no hospital demandado, onde lhe foi diagnosticada uma lesão de axonotmesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo, com incapacidade e abdução do polegar, embora com perfeita mobilidade da mão, pulso, cotovelo e ombro;

Numa das múltiplas consultas de ortopedia efetuadas no referido hospital, o Dr. EE, médico contratado e ao serviço da 2.ª Ré, informou-o de que essa lesão só seria atenuada ou curada com uma intervenção cirúrgica;

A que acabou por ser submetido por decisão do respectivo corpo clínico;

Não lhe explicaram o tipo de intervenção a que iriam proceder, as probabilidades de sucesso e graus de risco inerentes ao ato operatório.

Após essa intervenção, constituída por uma oponentoplastia/transferência do extensor radial do carpo, realizada pelo 3.º R., no HPP, ficou a padecer de limitação da mobilidade do dedo polegar, na flexão e extensão do cotovelo com limitação da supinação, retração isquémica de Volkmann relativamente à mão esquerda, contractura na flexão do punho, rigidez de todos os dedos da mão esquerda, com impossibilidade de usar essa mão, bem como rigidez do ombro esquerdo e incapacidade total para posicionar a mão esquerda no espaço e de com ela comunicar gestualmente.

Sequelas essas que, se soubesse que lhe podiam advir, o teriam levado a rejeitar tal intervenção.

As mencionadas sequelas ficaram-se a dever à culpa exclusiva e grave do 3.º R., dado ter atuado, quer na avaliação prévia do ato operatório, quer durante a cirurgia, com imperícia, negligência, inconsideração e descuido, não aplicando a técnica adequada ao caso do A.

No âmbito de acidente de trabalho, pelas sequelas mencionadas, foi-lhe fixado um coeficiente global de incapacidade de 50% para a sua profissão habitual de marceneiro, tendo a 1.ª Ré sido condenada, no respectivo processo, no pagamento dos montantes que especifica, sem que, no entanto, apesar de insistentemente procurar trabalho o tenha conseguido, apesar de não ter sido dado como incapaz para toda e qualquer outra profissão.

É, assim, dos RR. a responsabilidade por se encontrar nessa situação de desemprego, bem como a responsabilidade por todos os danos não patrimoniais que diz ter sofrido e para cuja indemnização reclama quantia nunca inferior a 50.000,00€.

Pediu, em conformidade:

A condenação solidária destes a pagarem-lhe € 59.672,00€, acrescidos de juros à taxa legal anual de 4%, desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia mensal de € 403,00, atualizável anualmente pelo salário mínimo nacional, desde Outubro de 2007, inclusive, até que consiga emprego, e, ainda, por cada doze meses em situação de desemprego, uma prestação igual de subsídio de férias e outra de subsídio de Natal.

2 . Em contestação, a 2.ª e 3.º RR, referiram, no essencial, que:

O médico que procedeu ao ato cirúrgico não foi o 3.º R., mas sim o Dr. EE;

O A. consentiu expressamente que fosse realizada a oponentoplastia a que se submeteu, com prévia informação dos diagnósticos, intervenções e riscos associados.

A referida oponentoplastia é um procedimento adequado à recuperação da mão para o caso do A. e a opção imposta pelo saber médico mais atualizado para a obtenção do resultado pretendido, isto é, a oponência do polegar, sem que ocorresse qualquer contra indicação que a desaconselhasse, tendo a mesma decorrido de forma tecnicamente escrupulosa.

O A. sofreu fratura do colo do úmero esquerdo no decurso do período de reabilitação, fulcral para a sua recuperação.

Não foi, pois, a cirurgia que provocou as sequelas de natureza mecânica descritas, só se explicando a alegada falta de mobilidade por uma recuperação deficiente ou outras circunstâncias alheias à atuação da responsabilidade dos RR.

E concluíram, defendendo a sua absolvição do pedido.

3 . A contestação da 1.ª Ré, declarada intempestiva, foi desentranhada.

4 . O A., em réplica, manteve a sua tese sobre a falta de consentimento livre e esclarecido e alegou a inexistência de qualquer relação entre a fratura do colo do úmero que sofreu e as sequelas de que ficou a padecer, pedindo, ainda, a não admissão, como prova, das fotografias e filmagens efetuadas, por as mesmas terem sido colhidas sem a sua autorização.

5 . Deduziu incidente de intervenção principal provocada contra EE que, admitido, determinou a respectiva citação para a causa, na sequência do que veio aos autos declarar a sua adesão à defesa apresentada pelos 2.ª e 3.º RR.

6 . Foi proferido despacho a autorizar a prova colhida por fotografias e filmagem.

7 . Após despacho saneador, foi realizada perícia médica, com prévia fixação do respectivo objeto, a propósito do que os 2.ª e 3.º RR. vieram interpor recurso, por ter sido desatendida uma pretensão sua referente à determinação desse objeto, já que entendiam que ele era mais amplo do que aquele sobre que versou a perícia realizada.

8 . Tal recurso foi admitido como de agravo, com subida diferida.

9 . A ação prosseguiu e, na devida oportunidade, foi proferida sentença que absolveu RR. e interveniente do pedido.

A 1ª ré foi absolvida por a sua responsabilidade, fundada no contrato de seguro de acidentes de trabalho, já ter sido fixada na ação de acidente de trabalho, nenhuma outra lhe podendo agora ser aditada;

Os demais RR e interveniente, por falência da demonstração dos pressupostos de responsabilidade civil, quer o referente ao nexo de causalidade entre o ato médico a que o A. foi sujeito e as sequelas que apresenta, quer por ter sido ilidida a presunção de culpa (em sede de responsabilidade contratual) que se considerou que impendia sobre os restantes demandados.

10 . Desta sentença – que implicou a subida do agravo – apelou o autor.

Mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto julgou:

Prejudicado o conhecimento do agravo;

Improcedente a apelação.

Quanto ao que agora importa, fez o seguinte sumário:

- É inequívoco o direito de cada indivíduo à sua integridade física, a qual haverá de ser atingida no caso de uma intervenção cirúrgica a que ele deva ser submetido. Tal direito compreende o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde, em termos segundo os quais a prática de atos médicos ou cirúrgicos sobre uma pessoa deve ser decidida (consentida) por esta, mas em circunstâncias tais que esteja devidamente habilitada a tomar a correspondente decisão. Exige-se, assim, um recorrentemente designado "consentimento informado".

- O consentimento informado deve compreender esclarecimento sobre diagnóstico e estado de saúde, meios e fins do tratamento, prognóstico, natureza do tratamento proposto, consequências secundárias do tratamento proposto, riscos e benefícios do tratamento proposto, em especial riscos frequentes e riscos graves, alternativas ao tratamento proposto, seus riscos e consequências secundárias, aspetos económicos do tratamento.

- No que toca a riscos, a obrigação de informação deve estender-se àqueles que são normais e previsíveis, designadamente por reporte a um conceito referencial de riscos "significativos" (significativos em razão da necessidade terapêutica da intervenção, em razão da sua frequência, em razão da sua gravidade, em razão do comportamento do paciente).

- Conformando-se o consentimento informado como a causa habilitante à prática de atos que, sem ele, constituiriam uma ofensa ao direito de personalidade do destinatário, o consentimento aparece como uma causa de exclusão da ilicitude. Como tal, constituindo facto impeditivo do direito invocado, a sua prova - quer do consentimento, quer da informação - compete àquele contra quem a invocação é feita, nos termos gerais do art. 342º, nº 2 do Código Civil.

- Esse ónus não é ilimitado e terá como fronteira, desde logo, a não imposição de uma prova diabólica, de factos negativos. Assim, não poderá deixar de ser o doente/lesado a alegar e demonstrar que o risco de cuja verificação resultaram os danos era um dos riscos previsíveis, razoáveis e significativos que lhe deviam ter sido transmitidos. Subsequentemente, sendo caso disso, é que o médico/prestador dos cuidados de saúde terá de demonstrar ter satisfeito a sua obrigação relativamente ao esclarecimento do doente sobre esse risco, sob pena de irrelevância do consentimento obtido, por não informado.

11 .  Ainda inconformado, pede revista o autor.

Conclui as alegações do seguinte modo:

1 . Nos documentos de fls. 77 e 78, concretamente no parágrafo compreendido entre as palavras "confirmo" até "situação clínica" quem declara são os médicos – o 3 .º Recorrido e o Interveniente /Recorrido – e não o aqui Recorrente.

2 . Nessas declarações os médicos "confirmam que explicaram ao doente". Assim os documentos de fls. 77 e 78, nesta parte, configuram depoimentos de parte do Recorrido DD e do Interveniente Dr. EE, por escrito sobre factos favoráveis. O que é manifestamente ilegal, face ao disposto no Artigo 352.º do Código Civil e Artigo 456.º do Cpc.

3 . Na parte dos documentos de fls. 77 e 78, compreendida entre as palavras "Por favor" até "este documento" existe uma espécie de alerta aos doentes, trecho este, que por isso, não composta qualquer declaração.

4 . No parágrafo dos documentos de fls. 77 e 78 compreendido entre as palavras "Declaro que concordo" e "razões clínicas" é de facto o subscritor dos documentos que declara. Não obstante, como o documento não refere o que foi proposto e explicado pelos médicos, ficamos sem saber com o que é que concordou o doente. Sendo certo que neste parágrafo, o subscritor não declara concordar com a gravação em vídeo da imagem do doente.

5 . Neste parágrafo o trecho compreendido entre as palavras "bem como" até "razões clínicas" é um "consentimento em branco" passados aos médicos. A Lei das "Cláusulas Contratuais Gerais", Dec. Lei nº 446/85 de 25 de Outubro aplica-se aos formulários de fls. 77 e 78 e impõe limites ao conteúdo desses documento sendo proibidas as cláusulas que contenham um “consentimento em branco", que por isso são nulas.

6 . Da análise dos documentos das fls. 77 e 78 resulta claramente que os mesmos foram assinados em "branco" pelo Recorrente e depois preenchidos conforme as vontades únicas e exclusivas dos 3.º Recorrido e Interveniente/Recorrido.

7 . Do documento de fls. 77 resulta que o aqui Recorrente assinou um documento (em branco) denominado "consentimento", 38 dias antes do Dr. EE ter confirmado que deu a explicação ao Recorrente bem como o documento de fls. 78 que o Recorrente assinou (em branco) 89 dias antes do Dr. DD ter confirmado que deu a explicação ao Recorrente sem que naturalmente lhe tivesse sido explicado o que quer que fosse pelo médico.

8 . Resulta portanto não ter havido sequer consentimento prestado pelo Recorrente.

9 . Mesmo que por hipótese académica se entenda ter havido consentimento, jamais o mesmo poderá ser considerado um consentimento informado, senão vejamos:

10 . A Declaração de Lisboa sobre os Direitos do Doente da Associação Médica Mundial, o Artigo 5.º do Capítulo II da Convenção de Oviedo subscrita e ratificada pelo Estado Português, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o art. 25.º da Constituição da Republica Portuguesa, o artigo 70.º do Código Civil, a Lei de Bases da Saúde, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, impõem aos profissionais de saúde que previamente a qualquer tratamento ou intervenção médica informem o paciente e obtenham o seu consentimento informado,

11 . A finalidade fundamental do esclarecimento deve ser a de permitir que o paciente, com base no seu sistema de valores, possa determinar se deseja ou não consentir na intervenção que lhe é proposta. A informação é o pressuposto de um consentimento informado; e este é necessário para satisfazer o direito à autodeterminação do doente nos cuidados de saúde.

12 . Quanto ao conteúdo da informação a prestar ao doente, no Relatório Final de Maio de 2009 sobre o Consentimento Informado da Entidade Reguladora da Saúde disponível on line entendeu-se que: "Deve-se usar o critério do "paciente concreto", isto é, dar as informações que aquele concreto paciente precisa de saber ou desejaria conhecer para tomar a sua decisão, com a sua personalidade e capacidade cognitiva.

13 . Com o respeito pelo direito à autodeterminação é a que manda revelar tudo, salvo se o paciente mostrar que não quer saber, ou quando se verificarem os pressupostos do privilégio terapêutico. Nesse sentido, a tendência da jurisprudência francesa vai no sentido de passar a exigir que os médicos informem os pacientes dos riscos graves, mesmo que estes sejam hipotéticos ou de frequência excepcional.

14 . Por outro lado, a doutrina portuguesa dominante concorda que o ónus da prova da existência de esclarecimento recai sobre o médico ou sobre a instituição de saúde. Entendem que o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude, pelo que "a prova dos factos impeditivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação feita", isto é, o ónus da prova do consentimento, como causa de exclusão da ilicitude, cabe ao médico (Artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil). As razões desta posição tem a ver com prova de factos negativos se trata de uma prova diabólica. Tendo em conta o princípio do equilíbrio processual, da impossibilidade da prova do facto negativo, a facilidade relativa da prova para o médico ( já que este é um perito e o paciente é um leigo) e os exemplos do direito estrangeiro, nomeadamente as recentes evoluções nos países latinos, entendo, com Orlando de Carvalho, Figueiredo Dias, Sinde Monteiro, Costa Andrade e Capelo de Sousa que o onus probandi do cumprimento do dever de informar e do dever de obter o consentimento recai sobre o recorrido/médico.

15 . Podemos estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de informação ou o esclarecimento defeituoso ou incompleto e o dano causado ao paciente pela concretização de um risco ou pela verificação de um efeito adverso da intervenção médico-cirúrgica, sempre que se esteja perante as violações graves do dever de informar.

16 . Deve entender-se por ocorrerem violações graves do dever de informar sempre que existe negligência grosseira ou dolo por parte do médico, quando existe violação de formalidades essenciais, quando nem sequer há consentimento e quando são omitidas informações fundamentais para que o doente decida.

17 . É de presumir que o doente não teria consentido caso lhe tivessem sido prestadas todas as informações. Caberá ao médico provar que mesmo que tivesse prestado as informações devidas o doente teria consentido. O médico deve suportar o ónus do consentimento hipotético.

18 . A falta ou a insuficiência de informações gera responsabilidade civil (Artigos 485.º e 486.º Código Civil). A falta ou a insuficiência de informações (que tornam o consentimento inválido), ou a falta do consentimento, transformam a intervenção numa ofensa corporal não consentida (Artigo 340.º Código Civil) e geram uma responsabilidade civil ainda mais ampla.

19 . No caso presente não se provou ter o Recorrente sido informado dos riscos das intervenções cirúrgicas que lhe foram efectuadas, tão pouco que tivesse prestado o seu consentimento informado. O tipo de complicações sofridas pelo Recorrente surge, maior parte das vezes, após um gesto cirúrgico e sobretudo no membro superior, muito mais frequentemente. O Recorrente desenvolveu o síndroma algoneurodistrófico, isto é, teve uma complicação gravíssima que pode acontecer, e que portanto é evidente que a função da mão ficou pior do que antes do doente ser operado.

20 . Não teria o Recorrente consentido nas intervenções cirúrgicas, caso lhe tivessem sido prestadas todas as informações, facto que de resto é de presumir face à gravidade das sequelas que apresenta.

21 . Revogando-se o acórdão recorrido e proferindo-se Acórdão que acolha as Conclusões precedentes e condene os Recorridos no pedido, se fará JUSTIÇA!

Contra-alegaram os recorridos HPP, DD e EE, rebatendo longamente a argumentação da contraparte.

12 . Ante as conclusões das alegações, importa tomar posição sobre se foi violado, pelos réus, o dever de informação, se não teve lugar consentimento válido para a intervenção cirúrgica e, na hipótese afirmativa, relativamente a qualquer destes itens, se se verificam os demais pressupostos da responsabilidade civil, em ordem a ser proferida a condenação pretendida.

13 . Vem provada a seguinte matéria de facto:

1 - O autor sofreu na mão esquerda ferida lácero-contusa com lesão dos nervos colaterais do polegar – al. A), da matéria de facto assente.

2 - A partir de 16/12/2004, o A. passou a ser tratado clinicamente nos HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF, Porto, um dos Hospitais propriedade da 2ª Ré – al. B), da matéria de facto assente.

3 - Todo o tratamento clínico, cirurgia, cuidados médicos e medicamentosos, e recuperação do A. passou a ser acompanhado a partir dessa data pelo HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF – al. C), da matéria de facto assente.

4 – No HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF, o A. foi assistido em diversas consultas da especialidade designadamente de Ortopedia e Cirurgia – al. D), da matéria de facto assente.

5 - Em 02 de Março de 2005, após a realização de um exame EMG a pedido da 2ª Ré, concluiu-se que o A., em consequência do acidente, padecia de uma lesão de axonotmesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo, mais intensa, dos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar, com incapacidade e abdução do polegar – al. E), da matéria de facto assente.

6 - Numa das múltiplas consultas de ortopedia efectuadas no Hospital da 2ª Ré levadas a cabo pelo Dr. EE, médico contratado e ao serviço da 2ª Ré, este transmitiu ao A. que a lesão de que este padecia ao nível do nervo mediano esquerdo e dos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar, só seria atenuada ou curada com uma intervenção cirúrgica, pelo que o A. teria de ser operado – al. F), da matéria de facto assente.

7 - Em 5 de Maio de 2005, o A. foi submetido a intervenção cirúrgica no HPP - HOSPITAL PRIVADO DOS FF, levada a cabo pelo interveniente Dr. EE como cirurgião principal e o 3º Réu como cirurgião ajudante – al. G), da matéria de facto assente.

8 - A referida intervenção cirúrgica, consistiu numa “oponentoplastia”, isto é, transferência do extensor radial do carpo – al. H), da matéria de facto assente.

9 - Nessa conformidade, o A. foi imobilizado com tala gessada – al. I), da matéria de facto assente.

10 - Em 17 de Junho de 2005 o A. foi reenviado para MFR no sentido da recuperação funcional da mão esquerda – al. J), da matéria de facto assente.

11 - O A. nasceu em … de Janeiro de 1974 – al. K), da matéria de facto assente.

12 - No âmbito do processo por acidente de trabalho nº 2435/05.3 TTPNF que correu seus termos no Tribunal do trabalho de Penafiel foi fixado ao A. um coeficiente global de incapacidade de 50% com incapacidade para a profissão habitual de marceneiro – al. L), da matéria de facto assente.

13 - Naquele processo por acidente de trabalho foi a 1ª Ré condenada a pagar ao A.:

a) A pensão anual de € 3.592,62, vitalícia e actualizável, a ser paga mensalmente, até ao 3º dia de cada mês, no domicilio do A. devida a partir de 03/02/2006, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsidio de férias e de natal, no valor de 1/14 da pensão anual, no valor 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de Maio e Novembro de cada ano, respectivamente.

b) A quantia de € 3.071,04, a titulo de subsidio de elevada incapacidade.

c) A quantia de € 22,00 a titulo de despesas com deslocação a tribunal – al. M), da matéria de facto assente.

14 - A sociedade “Móveis GG, Ldª”, tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a 1ª Ré COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., através da Apólice nº 1230853. (doc.s 1 e 2) – al. N), da matéria de facto assente.

15 - No dia 23 de Novembro de 2004, cerca das 16 horas, quando o A. se encontrava a manusear uma máquina, foi atingido por esta na mão esquerda – resposta ao art. 1.º da base instrutória.

16 - Esse acidente ocorreu nas instalações da sociedade “Móveis GG, Ldª.”, trabalhando o A. por conta desta empresa, onde exercia as funções de marceneiro de 2ª categoria com o salário mensal de € 388,80 (retribuição) x 14 + € 49,50 (sub. alimentação ) x 11 meses – resposta ao art. 2.º da base instrutória.

17 – Na sequência deste acidente, o A. foi de imediato assistido no Hospital HH – …. e, após ter sido observado e radiografado, foi então suturado, tendo tido alta clínica no mesmo dia – resposta ao art. 3.º da base instrutória.

18 - Entre 24/11/2004 e 15/12/2004 o A. efectuou curativos no Centro de Enfermagem de …. – resposta ao art. 4.º da base instrutória.

19 - Os tratamentos referidos nas alíneas B) e C) dos factos assentes foram efectuados nos HPP- Hospital Privado dos FF, Porto, por conta da 1ª Ré – resposta ao art. 5.º da base instrutória.

20 - Em termos práticos a lesão referida na alínea E) dos factos assentes traduzia-se para o A. numa situação de anestesia e rigidez acentuada do polegar – resposta ao art. 6.º da base instrutória.

21 - Na data de 2 de Março de 2005, o A. possuía mobilidade nas restantes articulações do membro superior esquerdo – resposta ao art. 7.º da base instrutória.

22 – (emergente da alteração levada a cabo pela Relação em resposta ao ponto 11.º da base instrutória) "O A. que até então apenas padecia de uma sequela de anestesia do polegar com alteração de sensibilidade também do indicador com rigidez acentuada do indicador e polegar, após a intervenção cirúrgica e consequência directa desta, ficou a padecer de: - limitação da mobilidade do dedo polegar (da qual já sofria antes da cirurgia); - rigidez discreta do cotovelo: flexo de 10 a 15º; flexão de 120º; - limitação da supinação; - retracção isquémica de Volkmann relativamente à mão esquerda; -contractura na flexão do punho; - rigidez de todos os dedos da mão esquerda e impossibilidade de usar esta mão, quer em movimentos de manipulação quer em movimentos de preensão; - rigidez não significativa do ombro esquerdo; -incapacidade total para posicionar a mão esquerda no espaço; - incapacidade para comunicar gestualmente com a mão esquerda.

23 – O A. não possui quaisquer conhecimentos de técnica cirúrgica e, durante a operação, estava em estado de inconsciência devido à anestesia que lhe foi administrada – resposta ao art. 13.º da base instrutória.

24 - Fruto da incapacidade permanente parcial para o trabalho de que é portador, bem como da incapacidade para a profissão habitual de marceneiro, aliado ao facto de ter sido marceneiro, sem formação profissional para qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, o A. tem dificuldades na obtenção de um trabalho remunerado – resposta ao art. 15.º da base instrutória.

25 - Não fora o acidente e sequelas com que ficou, desde a data da alta -2/2/2006 até Setembro de 2007 inclusive - da sua profissão de marceneiro, o A. poderia ter auferido mensalmente o equivalente ao salário mínimo nacional, mais subsídio de férias e de Natal – resposta ao art. 16.º da base instrutória.

26 - As sequelas de que padece causam-lhe dores, tristeza, ansiedade, revolta e medo do futuro – resposta ao art. 17.º da base instrutória.

27 - O A. padece de dores – resposta ao art. 18.º da base instrutória.

28 - Pessoa outrora alegre, sociável e bem disposto, está hoje o A. transformado num ser deprimido, triste e isolado – resposta ao art. 19.º da base instrutória.

28.º (acrescentado pela Relação) - Tais males são advindos da cirurgia, sem prejuízo dos inerentes à lesão resultante do acidente de trabalho.

29 (na redação conferida pela Relação à resposta ao ponto 21.º da BI) – O A. padece de atrofia dos músculos do antebraço, punho em flexão, dedos em garra e alterações tróficas na mão e o dano estético permanente fixável no grau 4 numa escala de 7

30 - Inclusivamente, o A. separou-se da sua cônjuge – resposta ao art. 22.º da base instrutória.

31 - O A. subscreveu as declarações de consentimentos constantes de fls. 77 e 78, do p.p., nos termos que delas consta e que aqui se dão por integralmente reproduzidas – resposta ao art. 23.º da base instrutória.

32 - A oponentoplastia com transferência do extensor radial do carpo é um procedimento adequado à recuperação funcional da mão, em casos, como o dos autos, em que existe incapacidade de abdução do polegar provocada por uma lesão de axonotmesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo e dos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar – resposta ao art. 24.º da base instrutória.

33 - A cirurgia descrita no quesito anterior é, inclusive, uma opção indicada pelo saber médico actualizado para a obtenção do resultado pretendido: a oponência do polegar – resposta ao art. 25 .º da base instrutória.

34 - Nenhum outro elemento do quadro clínico do autor desaconselhava a intervenção cirúrgica adoptada – resposta ao art. 26 .º da base instrutória.

35 - A execução daquele acto médico decorreu sem qualquer percalço – resposta ao art. 27 .º da base instrutória.

36 - No registo referente à intervenção médica do dia 10.11.2005, consta que foi feita manipulação ao autor sob anestesia, ficando o punho em posição neutra, com mobilidade completa e as MCF e IF sem limitação da mobilidade – resposta aos arts. 28 .º, 29.º e 30.º, da base instrutória.

37 - Ocorreu, em 02.11.2005, observação médica do A. e bem assim que a Dra. II, médica fisiatra, acompanhou o tratamento de fisioterapia do autor – resposta ao art. 31.º da base instrutória.

38 - O autor sofreu fractura do colo do úmero esquerdo no decurso do período de reabilitação, entre 17.06.2005 e 22.07.2005, num período fulcral da sua recuperação – resposta ao art. 32 .º da base instrutória.

39 - O tratamento desta fractura implica a imobilização do membro superior com o ombro em adução e rotação interna, e com o cotovelo em flexão, tendo tido este facto necessariamente um impacto prejudicial na recuperação funcional do membro superior esquerdo e no resultado da cirurgia efectuada – resposta ao art. 33 .º da base instrutória.

40 - O 3º Réu e o Interveniente Dr. EE fizeram o diagnóstico completo da lesão do A., confirmado pelos meios complementares de diagnóstico suficientes para a situação – resposta ao art. 35 .º da base instrutória.

41 - Tiveram em conta as necessidades individuais do doente – resposta ao art. 36 .º da base instrutória.

42 - Foi escolhida a técnica cirúrgica julgada adequada para tentar diminuir a deficiência do A., que executaram sem percalços – resposta ao art. 37.º da base instrutória.

43 – O A. foi acompanhado no período pós-operatório, tentando a sua reabilitação – resposta ao art. 38 .º da base instrutória.

44 - Em Abril de 2005, quando o Interveniente Dr. EE examinou pela primeira vez o A, este referia que estava incapacitado de exercer as suas funções laborais em virtude do deficiente funcionamento e alterações da sensibilidade do seu polegar esquerdo – resposta ao art. 39 .º da base instrutória.

45 - Apresentava atrofia tenar da mão esquerda, deficiência postural em supinação do polegar e incapacidade de efectuar movimentos de oposição – resposta ao art. 40 .º da base instrutória.

46 -A dificuldade em segurar e agarrar objectos de grande e pequeno volume era óbvia devido à incapacidade de oponência do polegar – resposta ao art. 41.º da base instrutória.

47 - As lesões do A. resultam de características de uma lesão axonotemesis parcial do ramo tenar do nervo mediano esquerdo e mais intensa dos ramos colaterais sensitivos deste nervo para o polegar – resposta ao art. 42 .º da base instrutória.

48 - É tendo em conta este quadro clínico que é proposta ao A uma operação para tentar diminuir a sua incapacidade funcional – resposta ao art. 43 .º da base instrutória.

49 – A operação proposta (e depois executada) consistia em cirurgia de transferência do “extensor carpi radialis longus” (oponentoplastia) – resposta ao art. 44.º da base instrutória.

50 – O resultado da operação estava dependente não apenas da técnica cirúrgica, mas também da motivação e cooperação do próprio doente na sua recuperação – resposta ao art. 45 .º da base instrutória.

51 - A unidade músculo-tendinosa escolhida para a transferência foi o músculo “extensor carpi radialis longus” ( ECRL) – resposta ao art. 46 .º da base instrutória.

52 - A unidade motora escolhida pode ser utilizada para recuperar a mobilidade do polegar em doentes com perda de função/paralisia do nervo mediano – resposta ao art. 48 .º da base instrutória.

53 - Outras técnicas podem ser utilizadas, entre as quais se contam, entre outras, a oponentoplastia com flexor “digitorum superficialis” com diferentes modificações, a oponentoplastia com extensor indicis proprius, a oponetoplastia com abdutor digiti minimi e a oponentoplastia com palmaris longus – resposta ao art. 49 .º da base instrutória.

54 - Em consulta/manipulação sob anestesia, o polegar ficava em oponência – resposta ao arts. 56º, 57º e 58º da base instrutória.

55 – A técnica cirúrgica utilizada foi a descrita no art. 44.º supra – resposta ao art. 68 .º da base instrutória.

56 - Ocorreu traumatismo do colo do úmero esquerdo numa fase fulcral do tratamento e reabilitação do A. com influência negativa no resultado final – resposta ao art. 72 .º da base instrutória.

14 . O presente recurso gira em torno de duas figuras, cuja interpenetração é manifesta:

O dever de esclarecimento do doente;

O seu consentimento para atos médicos que o visem.

Perante a revelação das atrocidades nazis sobre experiências médicas em seres humanos, veio a lume, em 1947, o Código de Nuremberga, cujo primeiro princípio logo dispunha que “o consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isto quer dizer que a pessoa implicada…  deve ter conhecimento suficiente e compreensão do assunto nos seus vários aspetos para que possa tomar uma decisão consciente.”

Este código serviu como ponto de partida para inúmeros diplomas que foram sendo publicados, quer na ordem interna de cada um dos países, quer na ordem internacional.

Considerando-se o direito que vimos referindo, quer como integrado noutos de conteúdo mais abrangente, quer tutelado expressamente.

Relativamente aos vigentes em Portugal, trazemos para aqui os seguintes textos:

Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana…

A integridade moral e física das pessoas é inviolável

Todos têm direito à liberdade… – artigos 1.º, 25.º, n.º1 e 27.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa;

1 . Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental.

2 . No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente:

a) O consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei…  artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada… artigo 8.º da CEDH (considerando a integração do consentimento informado no âmbito da vida privada, conforme jurisprudência do TEDH, podendo ver-se, por todos, no sítio do próprio Tribunal, o Ac. de 7.10.2008, Bogumi contra Portugal):
Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido.
Essa pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos.
A pessoa em questão pode, em qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento. – artigo 5.º da Convenção Para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, vulgarmente conhecida por “Convenção de Oviedo” ou “CDHBio”, de 4.4.1997, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º1/2001, de 3.1 e pela Resolução da Assembleia da República n.º1/2001, da mesma data.         

A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. – artigo 70.º, n.º1 do Código Civil.

1 –  Os utentes têm direito a:

e) Ser informados sobre a situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado – Base XIV da Lei de Bases da Saúde (n.º 48/99, de 24.8, alterada pela Lei n.º 27/2002de 8.11);
1 . As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente, serão punidas com prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 . O facto não é punível quando o consentimento:
a) Só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde; ou
b) Tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio de evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde;

E não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado. – artigo 156.º do Código Penal.
Para efeito do disposto no artigo anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica. – artigo 157.º do Código Penal.  
O doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença.
Só é válido o consentimento do doente se este tiver capacidade de decidir livremente, se estiver na posse de informação relevante e se for dado na ausência de coacções físicas ou morais. – artigos 44.º, n.º1 e 45.º, n.º1 do “Código Deontológico” da Ordem dos Médicos (publicado como “Regulamento” no Diário da República, 2.ª série, de 13.1.2009, sendo certo que, já mesmo relativamente a factos anteriores, sempre releva “o seu valor prático com efeitos jurídicos, servindo de auxiliar decisivo para apreciar uma conduta médica, num tribunal ordinário” – Guilherme de Oliveira, RLJ n.º 3923, 34 e seguintes). 

15 . Destes textos – e outros o confirmariam, se necessário –emerge logo uma ideia incontornável: é o doente que está no centro referencial dos atos médicos.

A prevenção de doenças suas e o seu tratamento constituem um escopo que supera tudo o mais envolvido em tal atividade.

16 . Constituindo o centro referencial do ato médico, a decisão sobre o tratamento é a ele que cabe em última instância.  

Assim, está nas suas mãos ser ou não informado do diagnóstico, da previsibilidade da evolução da doença, das possibilidades de tratamento, e dos riscos associados a este. Continuando nas suas mãos a decisão final sobre o que deve ser feito (cfr-se Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 399 in fine e Sérgio Deodato, Direito da Saúde, 42).

Decerto que esta afirmação não pode ser absoluta, mas não nos interessam, para aqui, os casos de ressalva em que o doente por idade, moléstia ou outras razões não está em condições de apreender o que se passa ou de decidir.

17 . O supra referido texto criminal contém ressalvas, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia remete para a “lei”, a Convenção de Oviedo fala em “informação adequada”, de tudo nos ficando uma situação de exigência interpretativa grande quanto ao conteúdo do dever de esclarecimento.

As ressalvas constantes do direito penal impõem-se com alguma evidência, de sorte que as vamos considerar também para aqui.

Não recusando o doente os itens referidos no número anterior, ou qualquer deles, cabe ao médico, em primeira linha, informá-lo.

Este dever de informação “não tem de obedecer a um modelo único de densidade e intensidade” (Costa Andrade, ob. e loc. citados).

Mesmo que o doente o não exclua, pode o médico excluí-lo, em nome do chamado “privilégio terapêutico”, ou seja, nos casos em que o legitimamente se aperceba que a informação pode causar um perigo para a vida ou é susceptível de causar ao doente grave dano à saúde física e psíquica.

A ação do médico visa o tratamento e não pode, ela mesma, constituir fonte de maior dano, nem colocar o clínico numa situação em que “pode ser condenado por não esclarecer e, ao mesmo tempo, poder ser também condenado pelos danos desencadeados pelo esclarecimento (violação das legis artis)” (mesmo Autor, loc. citado).

18 . Noutro prisma, há que ter sempre presente que a medicina não é uma ciência exata, não podendo o médico, em muitas ocasiões, afirmar o diagnóstico ou a evolução clínica.

Além disso, não se pode “transformar” o ato médico numa lição de medicina em que o doente passe a “saber” o que demorou anos de estudo ao clínico. Basta pensar-se que a anestesia é dirigida por um médico especialista em tal área, diferente do cirurgião, e não será razoável impor que cada doente que vai ser anestesiado saiba antes tudo o que pode ter lugar como consequência do anestésico e até as reações clínicas que, em cada caso, se podem impor.

Estamos, pois, com Álvaro Rodrigues (A Responsabilidade Médica em Direito Penal, 41) quando afirma:

“O que por todos é aceite é que em caso algum estará o médico obrigado a discutir todos os detalhes possíveis inerentes à execução de qualquer tratamento médico cirúrgico.

Não se requer da parte do médico, uma discussão técnico-científica sobre a moléstia e o tratamento do paciente, nem é aconselhável o uso de terminologia técnica ou uma linguagem hermética inacessível à generalidade das pessoas.”

19 . Especificamente, no que respeita à informação dos riscos, não podemos impor a transformação do ato médico num ato eivado de envolvimento jurídico, em ordem a perder-se de vista o objetivo fundamental do tratamento. Conforme afirma André Pereira (O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Centro Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 11, página 457):

“Podemos constatar que houve durante a última década uma clara evolução no sentido da proteção do consentimento informado e da autonomia do paciente. Recentemente, porém, alguns autores e tribunais têm assinalado que a hipertrofia do direito à informação está a criar um fenómeno de medicina defensiva, de burocratização da relação médico-paciente e de alguma desconfiança ou mesmo crispação entre médicos e pacientes que se deseja sejam parceiros na actividade médico-terapêutica.”

Além disso, um simples tratamento, com o mais vulgar dos medicamentos, pode levar a consequências muito graves que nem o próprio médico legitimamente pensou (Repare-se na dispensa de esclarecimento afirmada por Costa Andrade, ob. e loc. citados, relativamente aos “tratamentos de rotina”).

Na verdade, um mínimo de risco é inerente à quase totalidade dos atos médicos.

A exigência para além dum plano de razoabilidade, pode levar, outrossim, à renúncia, por parte do médico, relativamente a certos tratamentos, despindo a ciência médica dum elemento que, sempre dentro de parâmetros de razoabilidade, a caracteriza que é a assunção deste risco (Cfr-se, a este propósito, Rute Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico Reflexões Sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, in Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 15, página 440).

20 . Mantendo-se sempre a obrigação de informação, mas assim pensada, não fica, nem poderia ficar clara a linha delimitativa que, perante cada caso, deve distinguir entre o que o médico deve dizer ao doente (podendo ser responsabilizado se o não disser) e o que o médico não carece de abordar.

André Pereira, no seu citado Estudo, dá-nos conta da evolução em França. A Cour de Cassation terá decidido que o médico não fica dispensado de indicar ao doente os riscos pelo facto de estes só se realizarem excecionalmente (Acórdão de 7.10.1998), entendimento também subscrito pela jurisdição administrativa, mas tal levou a que a responsabilidade médica por violação dos deveres de informação se tenha tornado demasiado pesada “tendo começado a sentir-se uma forte carga indemnizatória quer sobre a clínica privada, quer sobre a medicina em hospitais públicos.” Os Tribunais - segundo afirma – continuam tal entendimento, apesar da vinda a lume, entretanto, da Lei de 4.3.2002 que alude apenas a riscos frequentes ou os riscos graves normalmente previsíveis, ignorando os riscos graves de verificação excecional.

O Supremo Tribunal Alemão, no seu Acórdão de 22.12.2010 3StR 239/10[1], com citação abundante da sua própria jurisprudência, que mantém constante, reafirmou o entendimento de que deve ser prestada ao paciente informação base (“Grundaufklärung”) em termos “gerais e completos” (“Grossen und Ganzen”), com inclusão das chances e riscos da intervenção, nestes se compreendendo todos os riscos graves ligados à operação, mesmo os de verificação rara, mas sem necessidade duma descrição médica exata. 

José Lago (Consientemiento Informado y Responsabilidade Civil, Estudo inserto na revista Julgar, Número Especial de 2014, 163) dá-nos conta de que a Sala Civil do Tribunal Supremo Espanhol vem distinguido consoante se trate de intervenções de medicina curativa ou necessária ou apenas “satisfactiva, reparadora o no necessária”. Neste segundo caso, as exigências relativas ao conteúdo informativo são mais rigorosas, do que no primeiro, tendo em conta “a necessidade de evitar que se silenciem os riscos excecionais ante cujo conhecimento o paciente poderia subtrair-se a uma intervenção não necessária ou de uma necessidade relativa.”

Entre nós, Álvaro Rodrigues (ob. citada, 346) defende que:

“Quanto aos efeitos secundários, sequelas e riscos do tratamento a doutrina recomenda o esclarecimento daqueles que se verificam com frequência, não havendo necessidade de focar os riscos de carácter excepcional na sua verificação.

Mais uma vez, aqui, como em tudo na vida, o melhor critério será o da ponderação dos interesses em jogo, mediante uma atitude ética e conscienciosa, que procurando devolver a saúde ao doente, tenha sempre no horizonte o direito deste à sua liberdade de decisão convenientemente esclarecida.”

Também André Pereira, no seu apontado Estudo, após incursão detalhada pela jurisprudência e doutrina estrangeiras, escreve (página 478):

“Assim, partindo da constatação de que a medicina é uma actividade que gera riscos, na tarefa da imputação objectiva dos danos, devemos destrinçar quais os riscos que a ordem jurídica pretende que sejam suportados pelo doente e quais devem ser suportados pelo médico. Os últimos devem ser comunicados ao paciente, para que este, em liberdade e em consciência decida sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo; não sendo esclarecidos, o médico deverá compensar do doente pelos danos causados. Os primeiros (os que deve ser suportados pelo paciente) por motivos vários como a extrema raridade, a sua imprevisibilidade, o conhecimento comum, entre outros motivos, não carecem de ser transmitidos; se se verificarem deverá ser o paciente a suportá-los: casum sentit dominus.”

21 . Em Portugal o esclarecimento médico está numa fase embrionária. Procura do médico como elemento “tranquilizador” e não “assustador”, baixo nível cultural dos doentes, principalmente dos idosos, algum “doutorismo” ou distanciação por parte de alguns médicos, ideia assente de que o doente, já fragilizado pela doença, não está interessado em acumular a revelação dos riscos à sua própria fragilidade, tradição de pouca atenção à envolvência jurídica dos atos médicos até algo correr mal e outras razões levam a que, por regra, os atos não preencham os requisitos que as jurisprudência francesa e alemã vêm exigindo.

A interpretação da lei não pode nem deve abstrair da realidade social que visa disciplinar. De outro modo, pode abrir-se um caminho de ressarcimento, praticamente ilimitado e desadequado face à nossa realidade social, sempre que algo corre mal nos atos médicos. Não tendo havido negligência, o doente teria ao seu alcance, na esmagadora maioria dos casos, a deficiente informação médica. “O incumprimento de qualquer um destes deveres [de esclarecimento e de obtenção do consentimento esclarecido] tem servido, como veremos, de artifício para se alcançar a tutela do doente em situações em que dificilmente ele obteria o ressarcimento de danos sofridos aquando da prestação de assistência médica deficiente. Serviu para fundar o fenómeno ressarcitório em situações em que se constatava a produção de um dano por ocasião da prestação debitória do médico, mas em que não era possível identificar um comportamento desvalioso por parte daquele profissional. Tal aproveitamento ínvio permitiu um funcionamento eficaz do sistema de responsabilidade civil, em casos perante os quais ele, à primeira vista, sucumbiria.” – Rute Pedro, ob. citada, página 79.

No outro prato da balança, o Direito não pode deixar de ser aplicado, encerrando também um efeito disciplinador.

Na interpretação dos textos legais supra citados, hão-de os tribunais tudo ponderar em ordem a se situarem no ponto de equilíbrio dos interesses em jogo. 

Noutro prisma, a imposição da revelação de todos os riscos da intervenção médica, incluindo os de verificação rara ou excecional, determinaria a abertura dum leque de tal modo vasto que desembocaria na “lição” de medicina que supra afastámos e transcenderia até os conhecimentos necessários ao desempenho das próprias funções do médico que leva a cabo a essência do tratamento. Numa intervenção cirúrgica, como exemplo mais frequente, teria o doente de ser esclarecido primeiro pelo anestesista sobre as possíveis complicações da anestesia e sua probabilidade de não serem controladas, depois, pelo cardiologista, sobre o que pode acontecer a tal nível, depois, pelo pneumologista sobre os riscos da “respiração induzida” e aí por diante.

E a prova de que assim é reside no facto de, perante complicações sérias emergentes dum tratamento, mormente duma cirurgia, o cirurgião se socorrer de colegas de outras especialidades. Havendo até casos de doentes que, perante tais complicações, são transferidos de hospital porque só o segundo está vocacionado para tratar o que, na visão mais abrangente, seriam riscos a comunicar ao doente antes da intervenção.

22 . Deste modo, ponderando tudo o que acaba de se escrever e sempre tendo em conta apenas o que pode interessar para a solução deste caso, cremos poder assentar nas seguintes ideias:

Com ressalvas que aqui não importam, o doente tem direito a ser informado, pelo médico, em ordem a poder decidir sobre se determinado ato médico que o vise deve ou não ser levado a cabo;

Tal direito é disponível;

O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação;

Abrange, salvo ressalvas que aqui não interessam e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento;

Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo tratamento e aos seus riscos;

Não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe;

Nem a referência aos riscos de verificação excecional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento. 

23 . Aqui chegados, podemos atentar diretamente no caso presente.

O recorrente subscreveu as declarações de consentimento de folhas 77 e 78.

Pretende que as mesmas tenham a natureza de cláusulas contratuais gerais em ordem a beneficiar do regime de ónus de prova constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10.

Ainda que o artigo 1.º deste normativo não esteja redigido em termos claramente definitórios, temos que as ccg se caracterizam pela pré-elaboração, generalidade e aceitação sem negociação.

Como consta do Acórdão deste Tribunal de 10.5.2007, processo n.º 07B841, com texto disponível em www.dgsi.pt:

“As ccg são aquelas que, numa realidade contratual, tiverem aquelas categorias e, sendo-o, regem-se pelo Decreto-Lei n.º 446/85. Mas, para se aferir se as têm ou não, já temos que atentar no regime deste normativo no que concerne ao ónus de prova. Ou seja, se, depois de atento tal regime, virmos que o proponente das cláusulas demonstrou que houve negociação prévia, por exemplo, as cláusulas deixam de ter tal natureza e afastado fica o normativo que já antes se aplicara. Aplicou-se e, depois, não podia ter-se aplicado. Um “non sense”.

Da imposição, à cabeça, dos ónus de prova acabados de referir pode resultar ainda uma violência que o julgador/intérprete não pode cobrir. Em todas as cláusulas contratuais, a parte a quem não agradasse o respectivo cumprimento, invocava que as cláusulas dum contrato que lhe não convinham haviam sido rígidas, sem negociação prévia e com características de indeterminação e, só por aí, atirava para cima da contraparte ónus de prova terríveis, cominados com o afastamento das mesmas cláusulas. Na prática, um modo fácil de não cumprir, legalmente, contratos. O que também é inaceitável.

Desta problemática deram conta os Acórdãos deste tribunal de 24.2.2005 e de 25.5.2006, cujos textos se podem ver em www.dgsi.pt., nos quais se decidiu que, previamente à demonstração a que os ónus de prova se reportam, teria de haver a demonstração, a cargo da parte que quer beneficiar da invalidade das cláusulas contratuais gerais, de que estamos em terreno próprio destas.”

Escrevendo Menezes Cordeiro que “a exigência da falta de prévia negociação é um elemento necessário e autónomo, que deve ser invocado e demonstrado” (Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, I, Tomo I, 429).

Ora, vem apenas demonstrado que o recorrente subscreveu os ditos documentos. Nada mais se tendo provado – ainda que agora alegado – que possa integrar os conceitos de pré-elaboração, rigidez e indeterminabilidade.

Pelo contrário, consta do texto de tais documentos a alusão ao diagnóstico, ao tratamento médico proposto e a alusão a que o subscritor não deve hesitar “em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido”.    

Não pode, pois, ele beneficiar do regime próprio das ccg.

24 . É, assim, fora deste regime que temos de nos situar para tomarmos posição sobre se os ditos documentos são suficientes para preencherem o que a lei impõe no domínio do consentimento esclarecido.

Foram subscritos pelo ora recorrente.

Tem entendido este Tribunal que os documentos particulares subscritos por uma parte não fazem prova plena da exatidão das declarações neles insertas (por todos o Ac. de 23.11.2005, processo n.º 5B3318, com texto disponível no mesmo sítio).

Mas, nos termos do artigo 376.º, n.º2 do Código Civil, fazem prova plena, contra o confitente e nas relações declarante/declaratário, de que as declarações ali referidas foram efetivamente prestadas.

Não colhe, pois, agora a alegação da não comunicação ou da assinatura em branco, aliás, sem qualquer correspondência nos factos provados.

25 . O documento de folhas 77 – dos dois o único elaborado antes da intervenção cirúrgica referida em 22.º e 28.º do elenco factual – está redigido em termos vagos e conclusivos na parte que importa.

Refere que “confirmo que expliquei ao doente… de forma adequada e inteligível…assim como os riscos e complicações e as alternativas possíveis à situação clínica.”

Inexistem elementos donde se possa aferir se a explicação foi, efetivamente, adequada e inteligível e, fundamentalmente, não se referem quais os “riscos e complicações” que poderiam advir ao doente.

No entanto, dali consta, na parte relativa ao ora autor:

“Leia com atenção o conteúdo de todo este documento.

Não hesite em solicitar mais informações ao médico, se não estiver completamente esclarecido.

Verifique se todas as informações estão correctas.”   

Com esta referência, o hospital e o médico colocaram nas mãos do doente o caminho para todos os esclarecimentos. Se ele se limitou a assinar, sem o percorrer, tem de se considerar que abdicou dum direito que, como dissemos supra, era inteiramente disponível.

Decerto que poderia o documento estar redigido em termos muito mais claros e concludentes quanto à iniciativa do médico. Mas referindo-se que lhe foram explicados, de forma adequada e inteligível, os riscos e que lhe foi solicitada a assinatura do documento, no qual estava escrito que não hesitasse em solicitar mais informações ao médico se não estivesse completamente esclarecido, é de assacar ao próprio doente eventual falta de alusão aos riscos concretos, mormente àquele que incluía as sequelas que vieram a ter lugar.

É sabido que, como deixámos dito em 21, com frequência, nada se cumpre como consta dos documentos. Recorre-se, num contexto emotivo de ida para uma intervenção cirúrgica, ao “assine aqui”, com uma explicação levada a cabo por um funcionário e totalmente eivada de laconismo ou mesmo inexistente.

Só que, nestes casos existe uma grande responsabilização de quem assim subscreve um documento. Além do mais, terá de fazer valer em tribunal tudo aquilo que, de viciante, poderá ter estado na base da subscrição.

O que aqui não ocorre.

Acresce que, apesar de a Relação ter fixado que as sequelas foram consequência direta da intervenção cirúrgica (ponto 22.º), não deixou de ficar nos factos que o autor sofreu fratura do colo do úmero esquerdo num período fulcral da sua recuperação, com influência negativa no resultado final (pontos 38.º e 56.º).

26 . Finalmente não se provou que as sequelas correspondessem a riscos normais e não raros ou excecionais da cirurgia.

Também não se provou o contrário, pelo que se levantaria aqui a discussão sobre o ónus de prova, prejudicada atento o que se referiu no número anterior (sendo certo que, no Acórdão deste Tribunal de 18.3.2010, processo n.º 301/06.4TVPRT.P1.S1, disponível no aludido sítio, se entendeu impender sobre a doente a demonstração de que “outros especiais riscos podiam ocorrer”). 

27 . Face a todo o exposto, nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 9.10.2014

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista

______________________

[1] Com acesso fácil, introduzindo no motor de busca da internet “Bundesgerichtshof.de”, depois, “Entscheidungen” e, depois, a data.