Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2943/13.2TBLRA.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DÍVIDAS DE CÔNJUGES
PROVEITO COMUM
INTERESSE MORAL
INTERESSE DIRECTO
QUALIDADE DE COMERCIANTE
GERENTE DE SOCIEDADE
Data do Acordão: 12/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CÔNJUGES.
DIREITO COMERCIAL - COMERCIANTES.
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA.
Doutrina:
- Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol., IV, 2.ª ed., pp. 331, 334.
- Cassiano Santos, Direito Comercial Português, vol. I, p. 113.
- Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, p. 565.
- Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I vol., 2.ª ed., pp. 412, 413.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1690.º, 1691.º, Nº 1, ALS. C) E D), Nº 2, AL. D), Nº 3.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGOS 13.º, 15.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 252.º, N.º1, 260.º, 261.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-10-07, EM WWW.DGSI.PT (NO MESMO SENTIDO O ACÓRDÃO, DE 23-7-70, IN BMJ, 195º/241.
Sumário :
1. Embora qualquer dos cônjuges tenha legitimidade para contrair dívidas (art. 1690º do CC), a comunicabilidade ao outro cônjuge depende da verificação de alguma das situações previstas no art. 1691º do CC.

2. A não ser nos casos que a lei prevê, o proveito comum do casal não se presume, cabendo ao credor o ónus da prova dos factos de que possa resultar essa qualificação (art. 1691º, nº 3, do CC).

3. O proveito comum do casal pode fundar-se não apenas num interesse económico, mas também num interesse moral ou intelectual, devendo resultar directa e imediatamente da actuação do cônjuge.

4. Revela-se insuficiente para a existência de proveito comum do casal a prova de que uma determinada quantia recebida por um dos cônjuges através de um contrato de mútuo foi, em parte, utilizada na construção de uma moradia destinada ao filho do casal e, na parte restante, foi utilizada pelo cônjuge na construção de uma vivenda para a sociedade de é o sócio-gerente.

5. O facto de o cônjuge devedor exercer a função de gerente da sociedade não o qualifica como comerciante, impedindo a invocação da presunção de comunicabilidade da dívida emergente do art. 1691º, nº 2, al. d), do CC.

Decisão Texto Integral:
I - AA veio intentar acção declarativa contra BB e mulher CC pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 150.000,00, com juros de mora à taxa legal desde a citação.

Alegou que em emprestou aos RR. € 150.000,00, tendo ficado acordado que estes restituiriam tal quantia logo que vendessem uma moradia que tinham em construção.

Embora já tenham vendido a moradia e tenham pago os juros acordados até 2012, não restituíram ainda a quantia mutuada, não obstante as várias interpelações que o A. lhes efectuou.

Ainda que o aludido mútuo seja nulo, porque celebrado verbalmente, os RR. estão obrigados a restituir ao A. a quantia mutuada.

A R. veio contestar, impugnou os factos alegados, negou que o A. lhe tenha emprestado a aludida quantia e alegou desconhecer se a emprestou ou não ao R., sendo certo que já não é casada com este.

O R. contestou, aceitou o mútuo que é alegado pelo A. e alegou já ter pago – de forma faseada como havia sido acordado e até finais de 2012 – o valor total de € 106.312,11.

Conclui pela sua absolvição do pedido na parte em que excede o valor confessado na contestação.

O A. apresentou réplica, dizendo que, aquando do empréstimo, os RR. eram casados e que o empréstimo foi concedido a ambos, mais alegando que o R. nada pagou a título de capital, já que todos os pagamentos efectuados se reportavam aos juros que, conforme acordado, eram devidos à taxa de 8%, ou seja, € 1.000,00 por mês, alegando ainda que um dos pagamentos invocados pelo R. – efectuado em 4-9-06 – não diz respeito a este empréstimo mas sim a um empréstimo anterior.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou os RR. solidariamente a pagar ao A. a quantia de € 150.000,00, acrescida de juros de mora, desde a citação até pagamento, à taxa de 4%.

Os RR. recorreram e a Relação julgou a apelação parcialmente procedente, absolvendo a R. do pedido, mantendo unicamente a condenação do R. nos termos da sentença de 1ª instância.

O A. interpôs recurso de revista em que pretende que a R. seja condenada a satisfazer a quantia mutuada, considerando que a dívida é comum.

Para o efeito alega que o R. é comerciante, na medida em que é sócio-gerente de uma sociedade comercial, auferindo rendimentos que aproveitaram a ambos os cônjuges e que foi nessa qualidade que pediu ao A. dinheiro para acabar a casa do seu filho e para construir uma vivenda da sociedade.

A dívida contraída presume-se, assim, comum do casal e o seu pagamento é da responsabilidade de ambos os cônjuges.

A R. contra-alegou, defendendo a conformação do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. Os RR. casaram um com o outro em 1-8-76, o qual foi dissolvido por divórcio decretado a 3-7-12.

2. No dia 22-8-06 o A. emprestou ao 1º R. BB a quantia de € 150.000,00.

3. O empréstimo foi concedido ao 1º R. para este acabar a construção da casa do filho DD e ainda para acabar a construção de vivenda da empresa (de que o 1º R. era gerente) que estava a ser construída no Lugar da ….

4. Das funções exercidas pelo 1º R. na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal.

5. Aquando do empréstimo acima referido, o 1º R. comprometeu-se a pagar juros todos os meses, à taxa de juro de 8%, acordando o pagamento mensal de € 1.000,00, quantia que foi pagando todos os meses ao A., sempre a título de juros.

6. Ficou acordado que a quantia acima mencionada (€ 150.000,00) seria restituída ao A. logo que fosse vendida uma vivenda pertencente aos RR. que estava em construção no Lugar da …, que se previa acontecer dentro de um ano e meio.

7. Para garantir tal empréstimo, o 1º R. sacou e entregou ao A. dois cheques sacados sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de …, datados de 22-8-06, mas ficou acordado que o A. não apresentava os referidos cheques a pagamento ao banco.

8. O 1º R. tem vindo a pagar os juros até Junho de 2013, data a partir da qual nada mais pagou.

9. O 1º R. entregou ao A., desde Setembro de 2006, até Junho de 2013, a quantia global de € 106.312,11, sendo a quantia de € 81.312,11 correspondente ao pagamento dos referidos juros acordados e a quantia de € 25.000,00 correspondente à restituição de um primeiro empréstimo que este fizera àquele em 2-3-06.


III – Decidindo:

1. No recurso de revista é simplesmente questionada a absolvição da R. CC do pedido que contra si foi formulado, no pressuposto de que a dívida que foi contraída pelo seu ex-marido, o co-R. BB, era comunicável, atento o disposto no art. 1691º, nº 1, als. c) e d), do CC.

Para sustentar a sua pretensão o A. usa argumentos que não encontram sustentação na matéria de facto alegada e provada, designadamente que o divórcio de ambos foi feito por conveniência, tendo em vista furtar-se ao cumprimento da dívida, que os bens do casal foram adjudicados à R. e que de seguida foram doados ao filho de ambos.

Esta alegação não pode ter qualquer influência no juízo decisório. Se o A. pretendia impressionar este Supremo Tribunal no sentido de alcançar a condenação solidária da R., deveria ter alegado oportunamente esses ou outros factos, submetendo-os ao contraditório, em vez de os guardar para as alegações do recurso de revista cuja apreciação depende praticamente em exclusivo dos factos consignados pelas instâncias.


2. Nos termos do art. 1691º, nº 1, al. c), do CC, a comunicabilidade da dívida contraída pelo R. poderia decorrer do facto de este, agindo como administrador, ter visado o proveito comum do casal.

Os RR. foram casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, como decorre da certidão de fls. 80 e 81.

Nos termos do art. 1690º do CC, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro cônjuge, não existindo qualquer obstáculo suscitado pelo facto de o contrato de contrato de mútuo nulo, de que emerge a obrigação de restituição da quantia recebida do A., ter sido outorgado apenas por um dos cônjuges.

Trata-se apenas de assegurar se por via directa ou presumida tal obrigação foi constituída em proveito comum do casal.


3. O proveito comum do casal apenas se presume nos casos previstos na lei, recaindo sobre o credor, nos demais casos, o ónus da prova dessa circunstância que rodeia a constituição da obrigação (art. 1691º, nº 2, do CC).

O proveito comum deve verificar-se relativamente ao casal. Não tem que assumir necessariamente reflexos de ordem económica ou financeira na esfera, sendo susceptíveis de integrar o mesmo regime benefícios de ordem moral ou intelectual (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I vol., 2ª ed., pág. 412, Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, pág. 565, e Antunes Varela, CC anot., vol, IV, 2ª ed., pág. 334). Engloba ainda os encargos pecuniários que são da responsabilidade de ambos os cônjuges, como ocorre com as despesas domésticas e as despesas com alimentos para os filhos (Antunes Varela, ob. e loc. cit.).

Por outro lado, é jurisprudência e doutrina corrente que o proveito comum deve resultar da própria constituição da dívida e não ser um efeito meramente mediato ou reflexo (cfr. neste preciso sentido Antunes Varela, ob. cit., pág. 331, e Pereira Coelho, ob. cit., pág. 413). Conclusão que tem sido extraída de situações com alguma identidade com a que está sob análise em que a dívida emerge da prestação de garantias de favor (avales) prestadas pelo cônjuge que é sócio ou gerente da sociedade avalizada.


4. A quantia que foi entregue pelo A. ao R. serviu para acabar a construção de uma moradia para o filho do casal e ainda para a construção de uma moradia para a sociedade de que o R. era gerente.

Como já se disse, o proveito comum do casal, seja qual for a sua perspectiva, não se presume, cabendo ao credor, no seu interesse, alegar os factos que sirvam para o caracterizar, o que nem sequer foi procurado pelo A. no caso concreto.

Ora, não se comprova tal qualificação relativamente a uma dívida que, como ocorreu no caso, foi contraída pelo ex-marido da R., em parte, para assegurar a construção de uma moradia para um filho do casal, sem qualquer alegação complementar sobre as circunstâncias que a isso conduziram e sobre a natureza do interesse que realmente foi prosseguido pelo cônjuge que assumiu a dívida.

Tão pouco preenche esse condicionalismo o facto de a outra parcela da quantia recebida ter sido aplicada na construção de uma moradia da sociedade de que o R. era gerente.

A sociedade comercial tem autonomia jurídica relativamente aos detentores do respectivo capital social ou aos gerentes. Os actos praticados em benefício da sociedade só por via indirecta se podem repercutir na esfera dos demais interessados, maxime do gerente, seja este ou não simultaneamente sócio da mesma sociedade.

Não cumpre o desiderato do proveito comum do casal a constituição de uma dívida que aproveita directamente a uma sociedade de que o cônjuge é gerente, sendo indiferente para o caso, por revelar um interesse meramente reflexo ou mediato, o facto de tal dívida representar um incremento na actividade da sociedade, com efeitos reflexos na futura distribuição de dividendos pelos sócios ou na capacidade da sociedade para suportar a remuneração atribuída ao cônjuge na sua qualidade de gerente.

A este respeito o A. praticamente se limitou a alegar que o R. era gerente da sociedade, entidade que foi a real beneficiária de uma parcela da verba entregue pelo A., alegação que, reflectindo-se na matéria de facto apurada, se revela insuficiente para assentar a verificação do proveito comum no acto de constituição da dívida perante o A.


5. Advoga o A. que a comunicabilidade da dívida advém ainda do facto de o R. ser comerciante (mais concretamente “empresário”), atenta a sua qualidade de gerente da sociedade.

Também este argumento não procede.

Nos termos do art. 1691º, nº 1, al. d), do CC, com ressalva do regime de separação de bens, presume-se o proveito comum na contracção de dívidas efectuada por qualquer dos cônjuges actuando no exercício do comércio. E, nos termos do art. 15º do Cód. Com., presumem-se contraídas no exercício do comércio as dívidas comerciais do cônjuge comerciante.

Para se extrair, por via de presunção legal, o proveito comum do casal seria imprescindível que pudesse afirmar-se que o desempenho pelo R. do cargo de gerente da sociedade por quotas o transformava em comerciante, conclusão que não encontra sustentação, como já se decidiu no Ac. do STJ, de 11-10-07, em www.dgsi.pt (no mesmo sentido o Ac. do STJ, de 23-7-70, BMJ, 195º/241).

Assim se concluiu ainda no acórdão recorrido, com citação de Cassiano Santos, segundo o qual “só o exercício em nome próprio é susceptível de tornar um sujeito comerciante. Os actos praticados em nome de outrem repercutem-se na esfera jurídica do representado ou mandatário ou, em qualquer caso, e na falta de relação jurídica que funde um tal resultado, não produzem efeitos na esfera do sujeito que actua, e não conduzem por isso à aquisição da qualidade de comerciante por quem os pratica – poderão é, se se verificarem os respectivos pressupostos, ser aptos para tornar comerciante o sujeito em cuja esfera vão ter eficácia” (Direito Comercial Português, vol. I, pág. 113).

A enunciação dos comerciantes consta do art. 13º do Cód. Com., abarcando, para além das sociedades comerciais, as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem disso profissão.

Tal não ocorre com os gerentes de sociedades por quotas. Quem deve ser qualificado como comerciante é a sociedade, não havendo base legal para considerar que, pelo facto de alguém exercer o cargo de gerente, está, ipso facto, a exercer, de forma profissional, a actividade de comerciante.

Os gerentes de sociedades por quotas exercem uma função de representação da sociedade, nos termos do art. 252º, nº 1, do CSC, vinculando a sociedade pelos actos que praticam em seu nome, nos termos dos arts. 260º e 261º, mas tal não permite concluir que, por esse facto, se transformem em comerciantes.

A representação da sociedade não constitui, por si, o exercício do comércio, improcedendo, por isso, a argumentação do recorrente.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do recorrente.

Notifique.

Lisboa, 10-12-15

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo