Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
75/17.3YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DE CONTENCIOSO
Relator: JOSÉ RAÍNHO
Descritores: PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
PROCESSO EQUITATIVO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
ANULAÇÃO DO PROCESSADO
Data do Acordão: 05/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTENCIOSO
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS / ASSOCIAÇÕES SEM PERSONALIDADE JURÍDICAS E COMISSÕES ESPECIAIS / ORGANIZAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 195.º.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 176.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 6.º, N.º 1.
Sumário :

I - Pese embora o art. 176.º do EMJ não comande a notificação às partes do parecer do MP aí mencionado, é de considerar que direito a um processo equitativo (n.º 1 do art. 6.º da CEDH) o impõe, em ordem a viabilizar o eventual e subsequente contraditório do arguido e não obstante o facto de a intervenção do MP se circunscrever à defesa da legalidade.
II - Não tendo a recorrente sido notificada do parecer do MP, é de concluir pela ocorrência de nulidade processual (art. 195.º do CPC) com a consequente anulação do processado subsequente à junção de alegação do MP e com a realização do ato omitido.
Decisão Texto Integral:

Recurso de Contencioso (art. 168º do EMJ)

Incidente de reclamação


                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (Secção de Contencioso):

A Recorrente AA, notificada que foi do acórdão proferido por este Tribunal e que julgou improcedente o seu recurso, vem, entre o mais que expende ao longo de 99 páginas, arguir a nulidade processual decorrente da omissão da notificação à Arguida da alegação que foi produzida pelo Ministério Público ao abrigo do art. 176º do EMJ.

Sustenta que tal notificação se impunha, na medida em que goza do direito de contraditar o pronunciamento do Ministério Público. Argumenta, a propósito, que é princípio basilar do direito punitivo que o arguido “deverá ser sempre o último a falar, ou a ser ouvido”.

Conclui pela anulação do processado e, como assim, do acórdão proferido.

O Recorrido Conselho Superior da Magistratura respondeu à arguição, concluindo pelo seu indeferimento.

Decidindo:

É verdade que a alegação do Ministério Público não foi notificada à Recorrente, que, deste modo, não teve oportunidade de se pronunciar sobre ela.

Mas devia a Recorrente ter sido notificada dessa alegação e ser admitida a exercer contraditório?

Face ao processamento do recurso tal como estabelecido no EMJ (art.s 176º e 177º) a resposta é negativa.

Tão pouco essa possibilidade decorre da aplicação subsidiária (ex vi do art. 178º do EMJ) das normas que regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo interpostos para o Supremo Tribunal Administrativo. Sobre isto importa dizer, em breve nota, que quando o EMJ foi publicado essa remissão entendia-se feita para o denominado Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (aprovado pelo DL nº 41.234), que, a despeito de prever a intervenção do Ministério Público em moldes semelhantes aos constantes do EMJ, não determinava, contudo, qualquer contraditório (a ideia subjacente era que a intervenção do Ministério Público se fundava exclusivamente na defesa da legalidade, não sendo ele parte processual e, deste modo, não sendo a sua atividade passível de contraditório). A lei sucedânea (DL nº 267/85, “Lei de Processo nos Tribunais Administrativos”) de igual forma não previa a possibilidade de contraditório relativamente aos pareceres do Ministério Público. Atualmente valem subsidiariamente as normas constantes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovado pela Lei nº 15/2002), que encara a impugnação contenciosa de atos administrativos como ação administrativa, não prevendo qualquer intervenção do Ministério Público em termos paralelos aos estabelecidos no EMJ ou no citado Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, senão apenas nos termos, muito diferentes, fixados no respetivo art. 85º.

Porém, cremos que a Recorrente tem razão quando vem argumentar que a orientação das supra aludidas normas do EMJ no sentido da não notificação ao arguido da alegação do Ministério Público, com a consequente supressão de um eventual contraditório subsequente do arguido, não está em linha com a regra do direito a um processo equitativo, como preconizado pelo art. 6.º, § 1º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Em situação processual diferente, mas com razões que não deixam de valer para a hipótese presente, já o Tribunal Constitucional considerou, no seu acórdão proferido no processo nº 412/2000 (em parte com reporte para o decidido anteriormente no processo nº 345/99 do mesmo Tribunal), citado pela Recorrente, o seguinte:

«”A partir do acórdão Lobo Machado contra Portugal de 20 de Fevereiro de 1996 (…) o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem firmou uma jurisprudência segundo a qual o direito a um processo equitativo inclui ‘o direito a um processo contraditório. Este implica em princípio a faculdade para as partes de um processo, penal ou civil, de tomar conhecimento de, e de discutir, todo o elemento ou observação apresentado ao juiz, mesmo por um magistrado independente, tendo em vista influenciar a decisão’ (…). Tal direito teria sido violado no caso pela impossibilidade para o interessado de tomar conhecimento e de responder ao parecer do procurador-geral-adjunto anterior ao julgamento do recurso na secção social do Supremo Tribunal de Justiça — parecer que foi de apoio à decisão recorrida — (…) e também pela presença daquele magistrado no julgamento, onde teve oportunidade de se pronunciar novamente no sentido do anterior parecer — pelo que a aparência de imparcialidade do Tribunal, ao dispor-se a ouvir de novo apenas uma das opiniões em confronto, também seria afectada (…). Esta jurisprudência foi confirmada uniformemente em acórdãos posteriores (…).

Com esta jurisprudência obtida por unanimidade, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirmou uma viragem de jurisprudência da Comissão dos Direitos do Homem, que na sua decisão de 9 de Dezembro de 1986 (…) tinha entendido que a intervenção do ministério público belga junto da Cour de Cassation, não sendo ele parte no processo e tendo por função exclusiva a defesa da legalidade, intervenção essa sem possibilidade de resposta do recorrente, não ofendia o artigo 6º, § 1, da Convenção. (…)

Em face das razões invocadas pelos órgãos jurisdicionais da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e da clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição, há que rever a jurisprudência anterior à revisão constitucional de 1997.

Ora o Tribunal Constitucional já se pronunciou em sessão plenária, no sentido de que, ‘se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem’ (Acórdão nº 150/93). Em face da nova redacção do nº 4 do artigo 20º da Constituição, há que alargar esta jurisprudência, em função das normas em cada caso questionadas.

Quanto ao artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 299/96, de 29 de Novembro, há que julgá-lo inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 20º da Constituição, uma vez que não permite às partes tomar conhecimento e discutir qualquer elemento da intervenção do Ministério Público no processo que possa influenciar a decisão. Não tem cabimento qualquer restrição aos casos de pronúncia possivelmente desfavorável.

Mesmo quando o Ministério Público nada diga na sessão de julgamento, basta a possibilidade de dizer sem controlo do facto pela parte para tornar a intervenção inadmissível, em face das exigências de transparência ligadas ao correcto entendimento do princípio do contraditório, implicado pelo n.o 4 do artigo 20º da Constituição. (…)”

As razões que levam o Tribunal a confirmar aquele julgamento de inconstitucionalidade radicam, desde logo, no facto de não poder ser indiferente à circunstância — sublinhada no citado Acórdão nº 345/99 — de a introdução, em 1997, da referência expressa ao direito a um processo equitativo no artigo 20º, nº 4, da CRP ter obedecido ao confessado propósito de proceder a uma «transposição explícita do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (…), sendo certo que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem entendendo que mesmo «qualquer elemento oferecido por uma entidade independente e objectiva (por exemplo, pareceres do Ministério Público) deve ser comunicado às partes a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele se pronunciar» …). E isto, independentemente da adopção da denominada teoria das aparências, já que, apesar de  não invocada, por exemplo, no Acórdão Van Orshoven, como se salienta nalguns dos votos de vencido a ele apostos, tal não obstou a que o Tribunal Europeu aí mantivesse o entendimento de que as partes tem direito, para «as discutir», a «tomar conhecimento de todas as peças ou observações apresentadas ao juiz», ainda que pelo Ministério Público.

De todo o modo, o que se afigura decisivo, no caso dos autos, é o modo e o momento em que se processa a intervenção do Ministério Público, cujo conteúdo as partes ficam a desconhecer e não podem minimamente controlar. Com efeito, o respeito por um processo equitativo supõe a criação de condições objectivas que permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando um elemento exterior ao colégio de juízes, que tem por missão decidir a controvérsia, pode participar na discussão e assistir à deliberação, em sessão sujeita ao regime de segredo, numa fase em que qualquer intervenção se apresenta como particularmente decisiva porque antecede imediatamente a tomada de decisão.»

Este conjunto de razões – conquanto, repete-se, se reportem a uma situação processual diferente daquela que aqui estamos a equacionar, e que, aliás, já nem tem paralelo na lei atual – não deixa de valer mutatis mutandis para o caso vertente. Na verdade, no caso vertente coloca-se a mesma problemática - intervenção incidental (em defesa da legalidade) do Ministério Público no âmbito de impugnação judicial de ato administrativo disciplinar e exigência ou não de se garantir um contraditório sobre essa intervenção - que se colocava naqueles casos sobre que incidiram os vereditos do Tribunal Constitucional.

Sendo aquele o entendimento já avançado pelo Tribunal Constitucional (ainda que, verdade seja dita, com votos de vencido que se nos afiguram de valia), e não se antolhando motivo decisivo para não o subscrever, segue-se que se impõe facultar à Arguida a possibilidade de exercer contraditório sobre a alegação que foi produzida pelo Ministério Público.

Donde, tendo sido omitida a notificação dessa alegação, quando, pelo contrário, se exigia que tivesse sido feita, procede a arguição de nulidade processual em causa, com a consequente anulação do processado subsequente à junção da alegação do Ministério Público (art. 1º do CPTA e art. 195º do CPCivil) e com a realização do ato omitido.

A procedência desta nulidade, pois que regressando o processo à fase das alegações, prejudica o conhecimento das demais questões colocadas na reclamação.

Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a arguição de nulidade decorrente da não notificação da alegação do Ministério Público à Recorrente, e em consequência:

- Anulam o processado subsequente à junção da alegação do Ministério Público;

- Determinam que se proceda à notificação da alegação do Ministério Público à Recorrente, aguardando os autos por 10 dias o exercício de eventual contraditório;

- Julgam prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas na reclamação.

                                                           ++

Lisboa, 16 de Maio de 2018

José Raínho (Relator)

Roque Nogueira
Abrantes Geraldes
Raul Borges
Ribeiro Cardoso
Isabel São Marcos
Olindo Geraldes
Salazar Casanova (Presidente)