Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
047891
Nº Convencional: JSTJ00018704
Relator: VAZ DOS SANTOS
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
BURLA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
CRIME CONTINUADO
Nº do Documento: SJ199510040478913
Data do Acordão: 10/04/1995
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 409 ARTIGO 410 N2.
CP82 ARTIGO 30 N1 N2 ARTIGO 72 N1 N2 ARTIGO 78 N5 ARTIGO 228 N1 B ARTIGO 313 ARTIGO 314 C.
DL 20-A/90 DE 1990/01/15 ARTIGO 5 N1 ARTIGO 13 ARTIGO 23 N1 A N4.
DL 394/93 DE 1993/11/24.
DL 48/95 DE 1995/03/15 ARTIGO 2 N4 ARTIGO 70 ARTIGO 71 ARTIGO 77 ARTIGO 218 N2 A ARTIGO 256 N1.
L 23/91 DE 1991/07/04.
L 15/94 DE 1994/05/11 ARTIGO 8 N1 A D N3.
CONST76 ARTIGO 29 N4.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1992/02/19 IN BMJ N414 PAG73.
ACÓRDÃO STJ PROC47407 DE 1995/06/07.
Sumário : I - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado por forma essencialmente homógenea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
II - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
III - Pratica o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outras pessoas, prejuízos patrimoniais.
IV - O crime continuado é punível com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação.
V - Segundo o artigo 2, n. 4 do Código Penal ao agente aplicar-se-á sempre o regime penal que se mostre concretamente mais favorável.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. No Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, o arguido A, com os sinais dos autos, foi condenado por um crime de burla agravada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 313,
314, alínea c) e 30 n. 2 e 78, n. 5, todos do Código Penal, anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei n. 48/95, de 15 de Março (a que pertencerão os demais preceitos a citar sem menção de origem) na pena de 5 anos de prisão, de que se lhe declarou perdoado 1 ano de acordo com o artigo 8, n. 1, alínea d) da Lei n. 15/94, de 11 de Maio; foi ainda condenado a pagar ao Estado, por danos patrimoniais, a quantia de 66402233 escudos, acrescida de juros à taxa legal desde 24 de Setembro de 1994 e nas custas crime e cíveis.
Inconformado, o arguido interpôs recurso em cuja motivação concluiu:
1. O arguido comportou-se dentro de um quadro de infracção fiscal.
Não lhe era exigível conhecimento sobre os elementos de facto e de direito de um tipo de crime em que a própria jurisprudência não se tinha pronunciado e a doutrina se dividia.
O erro sobre os elementos de facto e de direito exclui o dolo ou, pelo menos, o atenua intensamente.
2. O arguido agiu num período em que a sua liberdade corria perigo em consequência dos cheques sem provisão que emitira.
O interesse liberdade estava seriamente ameaçado.
O seu comportamento aparece como desculpante, justificando que a pena seja especialmente atenuada.
3. A reduzida intensidade do dolo, a defesa do interesse liberdade, os motivos que determinaram o crime, as condições pessoais do agente, saúde, comportamento e arrependimento justificam que ao arguido seja aplicada uma pena que não exceda o mínimo legal previsto.
4. Esta pena mostra-se suficiente para promover a recuperação social do arguido e satisfaz as exigências de reprovação e prevenção do crime.
5. À pena aplicada deve aplicar-se o disposto nos artigos 14, n. 1, alínea b) da Lei n. 23/91 e 8, n. 1, alínea d) da Lei n. 15/94.
6. A decisão recorrida violou os artigos 16, 35, 71, 72 do Código Penal e 14, n. 1, alínea b) da Lei n. 23/91 termos em que deve ser alterada a pena para um ano de prisão e consequente aplicação das amnistias.
Na sua resposta, o Ministério Público sustenta que o recurso não merece provimento.
Neste Supremo Tribunal, o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido do prosseguimento dos autos para julgamento.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência de julgamento a que se procedeu com o devido formalismo.
Cumpre decidir.
2 - São os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido, que consideramos definitivamente fixados por não ocorrer nem aliás vir alegado qualquer dos vícios enunciados no n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal (C.P.P.).
A partir de 29 de Outubro de 1981, através de escritura de cessão de quotas celebrada no 2. cartório notarial desta cidade o arguido e mulher
B passaram a ser os únicos sócios e gerentes da sociedade "C Limitada", com sede em Outeiro, Arrifana, freguesia desta comarca, cujo objecto social era o de fabricação de calçado de couro e pele, nela possuindo o arguido a quota de 750000 escudos e a mulher a quota de 300000 escudos.
Em finais de 1990, como a sociedade atravessasse graves dificuldades em solver os seus compromissos, o arguido manifestou a intenção de pôr cobro à sua actividade e propôs ao filho, D que ficasse com as instalações da fábrica e passasse ele aí a laborar.
Na sequência de tal proposta, aceite pelo D, e fruto da circunstância de toda a maquinaria da fábrica ter sido vendida pelas Finanças, no dia 28 de Fevereiro de 1991, a sociedade "C Limitada" deixou de exercer qualquer actividade no local das suas instalações fabris (ou em outro local).
A partir do dia seguinte passou aí a laborar, em nome individual, com o n. fiscal 810616009, o referido D, o qual continuou a desenvolver a mesma actividade fabril.
Pese embora a cessação de facto da actividade do "C, Limitada", o arguido não comunicou ou declarou o facto à administração fiscal, designadamente para efeitos fiscais.
Como tivesse várias dívidas tituladas por cheques sem provisão para as cobrir, o arguido decidiu continuar a preencher e a remeter as declarações periódicas do IVA para efeitos de reembolso do SIVA.
Na sequência do decidido, em 9 de Abril de 1991, o arguido assinou a declaração periódica - modelo B (cuja cópia consta de folhas 29 e 30), nela constando como valor as "exportações efectuadas" pela sociedade, em Março de 1991, o valor de 36559523 escudos.
Na mesma declaração constava como valor de IVA suportado pela sociedade a quantia de 2826940 escudos (4250 escudos de IVA deduzido no imobilizado adquirido, 2713150 escudos de IVA deduzido com compras de matérias primas e 75540 escudos de IVA deduzido em outros bens ou serviços).
De seguida, remeteu tal declaração periódica aos Serviços do Imposto sobre o Valor Acrescentado (S.I.V.A.) para que estes serviços o reembolsassem do IVA respectivo.
Perante tal declaração e o desconhecimento do SIVA da inactividade da sociedade, esses serviços ordenaram a transferência da quantia de 2826940 escudos para a conta n. 02100110177 do B.N.U. da sociedade "C Limitada".
Tal verba - 2826940 escudos - foi de seguida levantada da conta pelo arguido e utilizada por ele em proveito próprio.
Em 6 de Maio de 1991, o arguido assinou nova declaração periódica para efeitos de IVA, desta feita relativa a alegadas operações comerciais do mês de Abril de 1991, nela constando como valor das "exportações efectuadas" pela sociedade o valor de 37149050 escudos e o valor de 2902770 escudos a título de IVA alegadamente suportado pela mesma em bens e serviços nesse mês de Abril.
De seguida remeteu a declaração periódica em causa (cuja cópia consta de folhas 32 e 33) ao SIVA para que este o reembolsasse do IVA suportado.
Perante tal declaração e pela razão já referida o SIVA ordenou a transferência do valor 2902770 escudos para a citada conta da sociedade.
Como se de facto continuasse a sociedade a laborar, o arguido continuou a enviar mensalmente declarações periódicas de IVA para efeitos de reembolso nelas constando sempre valores de "exportação efectuadas" e de IVA "suportado" pela sociedade, solicitando dessa forma ao SIVA as seguintes verbas, para além das já mencionadas.
Em 4 de Junho de 1991, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 35 e 36), relativa a Maio de 1991, nela constando o montante de exportações efectuadas de 39836279 escudos e o valor de 3008020 escudos como valor suportado pela sociedade de IVA de vários bens e serviços.
Em 2 de Julho de 1991, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 38 e 39) relativa ao mês de Junho de 1991, nela constando o montante de
36058500 escudos a titulo de "exportações efectuadas" e o valor e 2864630 escudos com IVA suportado pela sociedade em bens e serviços vários.
Em 2 de Agosto de 1991, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 41 e 42), relativa ao mês de Julho de 1991, nela constando o montante de 37640990 escudos de "exportações efectuadas" e
2995800 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 2 de Setembro de 1991, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 44 e 45), relativa a Agosto de 1991 nela constando o valor de 22485340 escudos de "exportações efectuadas" e o valor de 1887360 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 2 de Outubro e 1991, assinou a declaraçao (cuja cópia consta de folhas 47 e 48), relativa a Setembro de 1991 nela constando o valor de
33580670 escudos de "exportações efectuadas" e 2701179 escudos do IVA suportado pela sociedade.
Em 2 de Novembro de 1991, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 201 e 202), relativa a Outubro de 1991, nela constando o valor de
37240120 escudos de "exportações efectuadas" e 2993778 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 3 de Dezembro de 1991, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 50 e 51), relativa a Novembro de 1991, nela constando o valor de
38960290 escudos, de "exportações efectuadas" e 3261940 escudos de IVA suportada pela sociedade.
Em 3 de Janeiro de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 53, 54), relativa a Dezembro de 1991, nela constando o valor de
36540320 escudos de exportações efectuadas e 3312512 escudos de IVA suportado.
Em 2 de Fevereiro de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 153 e 154), nela constando o valor de 37763540 escudos de exportações efectuadas e 2945130 escudos de IVA suportado pela sociedade, relativa a Janeiro de 1992.
Em 3 de Março de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 56 e 57), relativa a Fevereiro de 1992, nela constando o valor de
36655384 escudos de "exportação efectuadas" e 3104550 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 3 de Abril de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 59 e 60), relativa a Março de 1992, nela constando o valor de 26173230 escudos de "exportações efectuadas" e 2596260 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 4 de Maio de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 62 e 63), relativa a Abril de 1992, nela constando o valor de 27290460 escudos de "exportações efectuadas" e 2704780 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 2 de Junho de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 65 e 66), relativa a Maio de 1992, nela constando o valor de 35779521 escudos, ou de exportações efectuadas e 2872180 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 2 de Julho de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 68 e 69, relativa a Junho de 1992, nela constando o valor de 32582480 escudos de exportações efectuadas e 2799582 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 3 de Agosto de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 71 e 72), relativa a Julho de 1992, nela constando o valor de 35430180 escudos de exportações efectuadas e 3013082 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em data próxima e anterior a 14 de Outubro de 1992 assinou as declarações (cujas cópias constam de folhas 75 e 79), relativas a Agosto e Setembro de 1992, nelas constando os valores de 32798400 escudos e 35120450 escudos de exportações efectuadas e os valores de 3000680 escudos e 3174812 escudos, respectivamente, de IVA suportado pela sociedade nesses meses, em vários bens e serviços.
Em 5 de Novembro de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 82 e 83), relativa a Outubro de 1992, nela constando o valor de
34642780 escudos de exportações efectuadas e 3165590 escudos de IVA suportado pela sociedade.
No início de Dezembro de 1992, assinou a declaração (cuja cópia consta de folha 86), relativa a Novembro de 1992, nela constando o valor de 31152640 escudos de exportações efectuadas e 3215960 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 8 de Janeiro de 1993, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 88 e 89), relativa a Dezembro de 1992, nela constando o valor de
28762590 escudos de exportações efectuadas e 3066460 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 3 de Março de 1993, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 91 e 92), relativa a Janeiro de 1993, nela constando o valor de
30914242 escudos de exportações efectuadas e 1988238 escudos de IVA suportado pela sociedade.
Em 5 de Abril de 1993, assinou a declaração (cuja cópia consta de folhas 157 e 158), relativa a Fevereiro de 1993, nela constando o valor de
36405480 escudos de exportações efectuadas e 2571692 escudos de IVA suportado pela sociedade em vários bens e serviços.
À medida que foi assinando e remetendo as declarações periódicas referidas ao SIVA, este foi ordenando a transferência dos mencionados montantes a título de reembolso de IVA para a citada conta no BNU da sociedade.
Dessa forma, entre Março de 1991 e Fevereiro de 1993, o SIVA transferiu para a conta da sociedade a quantia global de 66402233 escudos.
2826940 escudos, relativamente a Março de 1991 2902770 escudos, a Abril de 1991 3008020 escudos, a Maio de 1991 2864630 escudos, a Junho de 1991 2995800 escudos, a Julho de 1991 1887360 escudos, a Agosto de 1991 2701179 escudos, a Setembro de 1991 2993778 escudos, a Outubro de 1991 3261940 escudos, a Novembro de 1991 3312512 escudos, a Dezembro de 1991 2945130 escudos, a Janeiro de 1992 3104550 escudos, a Fevereiro de 1992 2596260 escudos, a Março de 1992 2704780 escudos, a Abril de 1992 2872180 escudos, a Maio de 1992 2799582 escudos, a Junho de 1992 3013082 escudos, a Julho de 1992 3000680 escudos, a Agosto de 1992 3174812 escudos, a Setembro de 1992 3165590 escudos, a Outubro de 1992 3215960 escudos, a Novembro de 1992 3066460 escudos, a Dezembro de 1992 1988238 escudos, a Janeiro de 1993
Todos estes valores foram sendo entretanto levantados e utilizados pelo arguido em proveito próprio e da mulher.
Agiu o arguido livre e conscientemente, sempre com intenção de alcançar para si e para a mulher as vantagens patrimoniais decorrentes dos reembolsos pagos pelo SIVA, a que sabia não ter qualquer direito (por manifesto lapso, que assim fica corrigido, escreveu-se "a que não sabia ter qualquer direito").
Para tanto fez constar em todas as supracitadas declarações operações comerciais e valores fictícios, dada a completa inactividade laboral da sociedade "C, Limitada", com o propósito de determinar o SIVA a reembolsar a sociedade do IVA supostamente suportado.
Em face de todas as declarações e no pressuposto de que nas mesmas se indicavam operações e valores reais, o SIVA efectuou o reembolso de todos os montantes solicitados, do que resultou para o Estado o citado prejuízo patrimonial de 66402233 escudos.
O arguido propunha-se continuar a remeter declarações periódicas para efeitos de "reembolso", só não o fazendo por entretanto ter sido efectuada uma fiscalização à sociedade pela Direcção Distrital de Finanças de Aveiro e ter sido detectada a actuação do arguido.
Mercê dessa fiscalização, o reembolso do IVA respeitante ao mês de Fevereiro de 1993 viria a ser suspenso pelo SIVA e não efectuado como os anteriores.
Na altura não era exigido pela administração fiscal que as declarações periódicas modelo B fossem acompanhadas de quaisquer documentos de suporte que comprovassem as operações comerciais, circunstância de que se aproveitou o arguido para melhor concretizar os seus intentos.
Tinha o arguido perfeito conhecimento do carácter ilícito do seu comportamento e sabia que, com a sua actuação, lesava patrimonialmente o Estado.
O arguido confessou a materialidade dos factos dados como provados.
Do seu registo criminal não consta qualquer condenação.
O arguido é uma pessoa doente, sofrendo de apneia obstrutiva e tendo tido, há cerca de 6 anos, uma trombose.
Declarou estar arrependido.
É tido como bem comportado no meio social em que está inserido.
E foram dados como não provados os seguintes factos: que, aquando dos factos e em consequência da apneia de que padecia, o arguido vivesse em completa sonolência e sem consciência do mundo real e dos actos que praticava; e por isso não se provou que actuasse sem consciência da ilicitude dos factos; o montante dos cheques assinados pelo arguido e se os fornecedores só vendiam mercadorias com cheques pre-datados; que tivesse sido o arguido que preencheu as declarações que ele próprio remetia ao SIVA; que tivesse sido um tal E, contabilista de profissão, que preencheu as declarações; que o arguido seja e tenha sido sempre pobre.
3. Perante os factos dados como provados haverá que concluir que a conduta do arguido preenche os elementos constitutivos dos seguintes tipos legais de crime, cometidos sob a forma continuada:
- o crime de burla agravada previsto e punido pelos artigos 313, 314 alínea c) e 30 n. 2;
- o crime de falsificação de documentos do artigo 228, n. 1 alínea b);
- o crime de fraude fiscal da previsão do artigo 23 n. 1, alínea a) do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n. 20-A/90, de 15 de Janeiro.
Com efeito, o arguido, que havia feito cessar toda a actividade laboral da sociedade comercial de que ele e sua mulher eram os únicos sócios e gerentes, para além de não ter comunicado essa ocorrência à administração fiscal, decidiu continuar a remeter ao SIVA várias declarações do IVA, por si assinadas, com o propósito de determinar aquele Serviço do Estado a "reembolsar" a empresa do arguido do IVA supostamente suportado. E a verdade é que tal Serviço, em face dessas declarações e no pressuposto de que nas mesmas se indicavam operações e valores reais, efectuou o reembolso dos montantes solicitados de que resultou para o Estado o prejuízo patrimonial de 66402833 escudos, tendo o arguido agido livre e conscientemente, com intenção de alcançar para si e para a mulher as vantagens patrimoniais decorrentes dos reembolsos a que ele sabia não ter direito.
Toda essa actividade, violadora dos referidos tipos legais de crime, foi-se desenvolvendo ao longo dos meses por forma essencialmente homogénea (mensalmente o arguido assinava e remetia as declarações correspondentes às ficcionadas exportações), no aproveitamento de uma mesma situação exterior que, proporcionando uma repetida sucumbência, mitigou, por isso, consideravelmente a culpa (o primeiro "reembolso" do IVA sugeria amplas facilidades, pela inoperância da máquina fiscal do Estado, no prosseguimento do preenchimento das sucessivas declarações periódicas, com êxito muito provável).
Trata-se de um concurso real de infracções, a punir autonomamente, face ao disposto no n. 1 do artigo 30, onde se estabelece um critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, já que são distintos os respectivos bens jurídicos protegidos e não se configura qualquer relação de especialidade, consumpção ou subsidariedade.
No crime de burla visa-se a protecção do património do burlado, enquanto que o bem jurídico tutelado no crime de falsificação é a fé pública do documento necessário à normalização das relações sociais (no sentido do concurso real ou efectivo dos dois tipos de crime, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Fevereiro de 1992, que fixou jurisprudência obrigatória - Boletim do Ministério da Justiça, n. 414 páginas 73 e seguintes.
Também a natureza dos interesses tutelados pelo mencionado ilícito fiscal não coincide com os interesses protegidos pelos crimes de burla e de falsificação de documento. O crime do artigo 23 do RJIFNA satisfaz-se com a prática dos actos que enumera, consumando-se nesse momento, independentemente da verificação de lesão patrimonial (desvalor da acção), enquanto que no crime e burla se exige uma conduta ardilosa determinante de "outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais" (desvalor de resultado).
No citado crime de fraude (ocultar ou alterar factos ou valores que devam constar das declarações que, para efeitos fiscais, o agente apresente ou preste a fim de que a administração fiscal, especificamente, determine, avalie ou controle a matéria colectável), em que os objectivos a atingir são a verdade e a transparência nas relações tributárias, a lesão do património público não constitui seu elemento constitutivo mas tão só circunstância a atender na graduação da respectiva pena, pelo que, face ao princípio ne bis in idem, deverá ser punido como se essa lesão não tivesse ocorrido sempre que a lesão efectiva daquele património já entrou em conta na punição do crime de burla.
Tal delito fiscal constitui um mais em relação ao regime punitivo geral, não pretendendo substituir-se a este, como resultado disposto no n. 1 do artigo 5 do Decreto-Lei n. 20-A/90 (o presente diploma revoga toda a legislação em contrário, sem prejuízo da subsistência dos crimes previstos no Código Penal e legislação complementar) e do artigo 13 do RJIFNA (se o mesmo facto constituir simultaneamente crime previsto nesse Regime Jurídico e crime comum, as penas previstas para ambos os crimes são cumuláveis desde que tenham sido violados interesses jurídicos distintos).
O arguido foi acusado e condenado como autor de um crime de burla agravada, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 313, 314, alínea c), 30, n. 2 e 78, n. 5. Porém, o Tribunal Superior não está impedido de, em recurso, alterar oficiosamente essa qualificação jurídico-penal, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, embora, da proibição da reformatio in pejus, como foi proclamado no acórdão deste Supremo Tribunal, de 7 de Junho de 1995, processo n. 47407, que fixou jurisprudência obrigatória.
4. Relativamente à medida das penas.
Ao crime de burla agravada corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 a 10 anos; ao de falsificação a pena de prisão até 2 anos e multa até 60 dias; ao de fraude fiscal multa até 1000 dias, que não será inferior a 700 dias se a vantagem patrimonial indevida for superior a 100000 escudos, e será até 100 dias se essa vantagem não for superior a 100000 escudos (a respeito desta última infracção, cujos factos ocorreram antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n. 394/93, de 24 de Novembro, que alterou o RJIFNA, não se aplicam as sanções introduzidas por esse diploma legal, por serem mais graves, sendo que está vedada a aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais desfavorável - cf. artigo 29, n. 4 da Constituição da República Portuguesa).
O crime continuado é punível com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação (n. 5 do artigo 78).
Como ensina Figueiredo Dias, o crime continuado não deixa de constituir numa visão material das coisas uma unidade jurídica construída por sobre uma pluralidade efectiva de crimes. Com vista à sua punição "o que o tribunal terá de fazer é, numa primeira operação, eleger a moldura penal mais grave cabida aos diversos actos singulares; eleita esta, ele irá determinar dentro dela, segundo as regras gerais, a medida da pena do crime continuado. Nada impede, pois, que valore a pluralidade de actos, se disso for caso face ao limite da culpa e às exigências da prevenção, como factores de agravação; a menor exigibilidade e a consequente diminuição da culpa que caracterizam o crime continuado já foram tomadas em conta quando a punição daquele foi subtraída às regras da pena conjunta do concurso. Na medida exposta, bem pode dizer-se ser ainda um princípio de exasperação, não de absorção, que preside à operação da medida da pena do crime continuado como unidade jurídica" (Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Noticias, páginas 296/7).
Portanto, a punição do crime continuado determina-se em função da moldura punitiva da infracção mais grave que integra a continuação, tomando-se, porém, em conta, como factos de agravação, a pluralidade e gravidade dos actos verificados, pelo que a punição terá sempre de ser mais severa do que se tratasse de um crime singelo.
No caso sub judice, no que respeita ao crime de burla, o maior valor parcelar ascende a 3312512 escudos que é, sem dúvida, consideravelmente elevado.
Nos termos do n. 1 do artigo 72, a determinação da medida da pena judicial será feita em função da culpa e das exigências de prevenção, sendo factores a ter em conta para esse efeito os descritos no seu n. 2.
No caso em exame é elevado o grau de ilicitude do facto em que os valores parcelares e total do prejuízo sofrido pelo Estado atingem somas muito significativas.
O dolo é intenso. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, não se poderá dizer ter havido da sua parte qualquer erro sobre o conhecimento dos elementos constitutivos dos crimes e do significado antijurídico da sua conduta ou que tenha actuado sem consciência ou com consciência fortemente atenuada da ilicitude. Ele apercebeu-se perfeitamente da factualidade típica, sabia ser proibido o seu comportamento e, não obstante, quis o facto; quer dizer, concorrem os elementos essenciais para a existência do dolo (elemento intelectual e elemento volitivo ou emocional).
A eventual ignorância de sua parte do rigoroso enquadramento jurídico-criminal dos factos é irrelevante, já que o dolo, no seu momento intelectual, não exige que o agente conheça a descrição do preceito legal; basta-se com o facto de o agente ter conhecimento da ilicitude da sua conduta.
É indiferente não se ter apurado quem preencheu as declarações periódicas; o arguido, obviamente com o conhecimento do seu conteúdo, assinou-as com o próprio punho, assumindo assim a respectiva autoria, tendo-as enviado para o SIVA e sido ele quem beneficiou dos "reembolsos" do IVA.
Não desculpabiliza a sua acção o facto de a sociedade de que era sócio atravessar graves dificuldades em solver os seus compromissos e ele ter várias dívidas tituladas por cheques sem provisão. Além de se desconhecer o valor destes, o processo fraudulento utilizado não tem cobertura na previsão do invocado artigo 95: a satisfação dos compromissos assumidos pela emissão dos cheques exigiria da parte do arguido comportamento diferente daquele que teve, de contrário, estar-se-ia a dar cobertura a um facto ilícito (emissão de cheques sem provisão) através de outros factos igualmente ilícitos (burla, falsificação, fraude fiscal).
O motivo determinante do crime também é altamente censurável: obter vantagens patrimoniais à custa do património do Estado, ao cabo e ao resto, à custa de todos os cidadãos contribuintes.
A confissão dos factos, restrita aliás à respectiva materialidade, tem pouco relevo, porque esta e o seu agente sempre seriam facilmente apurados.
Não se evidenciam quaisquer actos demonstrativos de sincero arrependimento, designadamente que o arguido tivesse procurado ressarcir o prejuízo suportado pelo Estado; limitou-se a declarar estar arrependido, o que é muito pouco para efeitos atenuativos.
A doença de que padece o arguido não se demonstrou que tivesse contribuído para a prática dos factos e que por isso se deva reflectir em termos de culpa; não deixará, porém, de ser objecto de ponderação na quantificação da medida da pena.
O arguido é primário e é tido no seu meio como bem comportado.
Não obstante não se evidenciar que seja portador de qualquer tendência criminosa, não deixa de chamar a atenção a sua firme determinação de, ao longo de quase dois anos, ter renovado, cada mês, a sua resolução de defraudar o Estado em quantias todas elas consideravelmente elevadas, oscilando entre 1887 e 3312 contos, propondo-se aliás prosseguir essa actividade, interrompida apenas pela intervenção da fiscalização das Finanças.
O quadro que se deixa desenhado é-lhe francamente desfavorável em termos de culpa, sendo prementes, nestes tipos de crimes ultimamente tão badalados na comunicação social, as exigências de prevenção geral.
Tudo conjugado, há que concluir que a pena aplicada pelo Colectivo relativamente ao crime de burla se mostra doseada com alguma benevolência, não podendo porém ser agora alterada para mais (proibição da reformatio in pejus - artigo 409 do Código de Processo
Penal), muito menos diminuída para um ano de prisão como pretende o recorrente.
Fixa-se em 18 (dezoito) meses de prisão e 45 (quarenta e cinco) dias de multa à razão de 3000 escudos por dia, esta em alternativa com 30 dias de prisão, a pena correspondente ao crime de falsificação de documentos.
Quanto ao crime de fraude fiscal, considerando-se ter sido já atendido na punição do crime de burla a lesão patrimonial sofrida pelo Estado, pelo que não pode agora voltar a tomar-se em conta esse prejuízo patrimonial (ne bis in idem), haverá que determinar-se a pena dentro da moldura abstracta prevista no n. 4 do artigo 23 do RJIFNA, ou seja, pena de multa até 100 dias. Assim, fixa-se a pena em 80 (oitenta) dias de multa à taxa de 3000 escudos por dia, o que perfaz a multa de 240000 escudos, ou, em alternativa, 53 dias de prisão.
Tendo presente o disposto no artigo 78, face à gravidade do ilícito global e à personalidade do arguido, aplica-se-lhe a pena única de 5 (cinco) anos e
(nove) meses de prisão, e 125 dias de multa à taxa de 3000 escudos, ou seja a multa global de 375000 escudos, ou, em alternativa desta, 83 dias de prisão.
Porém, tendo o recurso sido interposto apenas pelo arguido, não se pode agora modificar, na sua espécie ou medida, a pena constante do acórdão recorrido (artigo 409 do Código de Processo Penal) pelo que subsistirá a pena de 5 anos de prisão decretada na 1. instância.
4. A entrada em vigor em 1 de Outubro corrente do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei n. 48/95, de 15 de Março, que veio alterar as punições do crime de burla qualificada (artigo 218, n. 2, alínea a - prisão de 2 a 8 anos) e do crime de falsificação de documentos (artigo 256, n. 1 - prisão até 3 anos ou multa) implica, em observância do disposto no artigo 2, n. 4 de cada Código, a determinação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, sendo esse o aplicável.
Ora, no caso sub judice, tendo presentes os critérios orientadores dos artigos 70, 71 e 77 do novo Código, entendemos dever fixar, relativamente à burla, a pena de 5 anos de prisão, e à falsificação de documento a pena de 20 (vinte) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas penas com a pena correspondente ao crime de fraude fiscal, a pena única de 5 anos e 10 meses de prisão e 240000 escudos de multa, esta em alternativa com 53 dias de prisão.
Cotejando os dois regimes conclui-se ser mais favorável o do Código Penal anterior à revisão que por isso merece a nossa opção.
6. Amnistias
Pretende o recorrente beneficiar do perdão concedido pela Lei n. 23/91, de 4 de Julho. Trata-se de uma pretensão que não pode ser atendida porque, nos termos do artigo 14 dessa lei, só os delitos cometidos até 25 de Abril de 1991 são perdoados e, no caso sub judice, o crime consumou-se muito para além dessa data, pois a prática do último acto criminoso a que correspondeu ainda um efectivo "reembolso" ocorreu em 3 de Março de
1993.
Por outro lado, não pode manter-se o perdão de um ano de prisão decretado na decisão recorrida, sob invocação do disposto no artigo 8, n. 1, alínea d) da Lei n. 15/94. É que nos termos do n. 3 deste artigo não beneficiam do perdão os condenados pela prática de crimes contra a economia ou fiscais, de burla ou de abuso de confiança, quando cometidos através de falsificação de documentos (alínea a)), como acontece na hipótese concreta dos presentes autos.
7. De harmonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso, alterando-se, porém, a douta decisão recorrida quanto à qualificação jurídico-criminal dos factos que passa a ser a indicada em 3) supra, subsistindo, não obstante, a pena decretada naquele acórdão face às razões invocadas em 4) supra. Revoga-se o perdão concedido, e mantêm-se no mais a decisão impugnada.
O recorrente vai condenado em 10 UCs de taxa de justiça e em procuradoria que se fixa em 1/3.
Emolumento de 7500 escudos a favor do Excelentíssimo Defensor Oficioso.
Lisboa, 4 de Outubro de 1995.
Vaz dos Santos,
Silva Reis,
Costa Figueirinhas,
Pedro Marçal. (Dispensei o visto)
Decisão impugnada:
Acórdão de 21 de Novembro de 1994 do Tribunal de Santa Maria da Feira.