Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2682/16.2T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES
NEXO DE CAUSALIDADE
ABUSO DO DIREITO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / CUSTAS, MULTAS E INDEMNIZAÇÃO / CUSTAS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- C. A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição, 2005, p. 444;
- J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, Estudos, 2009, p. 116 a 121 e 131 a 133;
- JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, 1999, p. 351;
- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 2007, 4.ª Edição, p. 545 a 554.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.ºS 1 E 2, 238.º E 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 527.º, N.ºS 1 E 2, 682.º, N.º 3 E 683.º, N.º 1.
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS, APROVADO PELO DL N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 01-03-2016, PROCESSO N.º 1/12.6TBALD.C1.S1;
- DE 10-03-2016, PROCESSO N.º 137/11.0BAL.C1.S1;
- DE 08-03-2018, PROCESSO N.º 907/15.0T8PTG.E1.S2, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Sendo o contrato de seguro um negócio jurídico formal e de natureza facultativa, a sua interpretação está sujeita, por um lado, às regras gerais dos negócios jurídicos consagradas nos arts. 236.º e 238.º do Código Civil, e, por outro, porque contempla também cláusulas contratuais gerais, ao regime específico aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25 de outubro.

II. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

III. Um declaratário normal, identificado como alguém normalmente diligente, sagaz e experiente, colocado perante a declaração negocial e aquilo que podia conhecer da intenção da seguradora, não podia deixar de entender que, verificando-se o circunstancialismo de facto descrito na declaração negocial, nomeadamente quando o segurado acusasse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe fosse detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro, encontrava-se excluída a cobertura do sinistro.

IV. Assim, não é exigível o nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes ou a posse de certo grau de alcoolémia e o sinistro, para a exclusão da cobertura do risco do contrato de seguro.

V. Se tais substâncias, comprovadamente, não tiverem qualquer influência no sinistro, poderá afirmar-se que a defesa da exclusão do risco constituirá abuso do direito, nos termos do disposto no art. 334.º do Código Civil.  

VI. Existe a necessidade de ampliação da matéria de facto, quando esta, alegada nos articulados, não foi objeto de prova e constitui fundamento para a aplicação do direito definido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


     AA e BB, menores, representados pela mãe, CC, instauraram, em 10 de outubro de 2016, nos Juízos Centrais Cíveis de …, Comarca de Faro, contra DD - Companhia de Seguros, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhes as indemnizações previstas nos contratos de seguro, celebrados pelo seu pai, relativas à liquidação integral do montante de € 324 569,66, que, à data da sua morte, em 9 de março de 2015, estaria em dívida à Caixa EE, decorrente dos financiamentos efetuados para aquisição de imóveis para habitação e investimento não especificado em imóvel, as quantias mensais que, desde 9 de março de 2015, pagaram à Caixa EE, no montante de € 7 578,92, relativas às amortizações dos empréstimos concedidos, bem como as que, até efetivo e integral pagamento das indemnizações referidas, tiverem de suportar; e ainda os juros de mora, desde 9 de março de 2015, à taxa legal de 4 %, até efetivo e integral pagamento, sobre a quantia acabada de referir.

Para tanto, alegaram, em síntese, que são os únicos e universais herdeiros de seu pai, FF, tudo apontando para a morte por suicídio; em maio de 2004, FF e a então sua mulher celebraram um contrato de compra e venda, com hipoteca e fiança, tendo por objeto um prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em …, para o que contraíram um empréstimo, no valor de € 73 000,00, na Caixa EE (EE), a amortizar no prazo de trinta cinco anos, através de prestações mensais; em julho de 2010, FF e a então sua mulher celebraram um contrato de compra e venda, com hipoteca e fiança, tendo por objeto um prédio urbano, destinado a habitação, sito também em …, contraindo um empréstimo, no valor de € 260 000,00, na EE, a amortizar no prazo de quarenta e cinco anos, através de prestações mensais; na mesma data, FF e a então sua mulher contraíram ainda um mútuo, com hipoteca e fiança, no valor de € 15 000,00, na EE, para investimentos não especificados em bens imóveis; para a contração desses empréstimos, FF e a mulher celebraram, com a R., três contratos de seguros de vida e de incapacidade permanente; por efeito desses contratos, a R. está obrigada a pagar as prestações vencidas depois do falecimento de FF.

Contestou a R., alegando, em síntese, que a causa da morte foi o suicídio, acusando então o falecido vestígios ativos de canabinóides no sangue, causa de exclusão da garantia das apólices de seguro, e concluindo pela sua absolvição do pedido.

Realizou-se uma audiência prévia, durante a qual foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 24 de março de 2017, sentença, na qual se julgou a ação totalmente procedente.

Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de …, que, por acórdão de 8 de fevereiro de 2018, confirmou a sentença.


Ainda inconformada, a Ré recorreu, mediante revista excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça, e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:


a) O Tribunal a quo interpretou incorretamente a alínea b) do n.º 5.1 do art. 2.º das condições gerais da apólice.

b) O seguro contratado é facultativo, subordinado ao princípio da liberdade contratual.

c) É um contrato formal escrito, cuja interpretação está subordinada às regras simultaneamente dos arts. 236.º e 238.º do Código Civil.

d) O texto da cláusula em causa refere a situação de exclusão, não especificando qualquer condição nem contendo sequer qualquer expressão que sugira a dependência da exclusão também de uma terceira condição, constituída pelo nexo de causalidade entre o consumo do estupefaciente e o resultado da ação da pessoa segura.

e) Ao abrigo do disposto nos arts. 236.º e 238.º do CC, é ilegítima a interpretação de tal cláusula no sentido de que a exclusão só opera se se verificar o nexo de causalidade entre o consumo de estupefaciente e o resultado da ação da pessoa segura, não decorrendo da vontade das partes que tenha sido a de subordinar a exclusão também a essa condição, que não tem no texto qualquer expressão que a sugira.

f) A cláusula deve ser, por isso, interpretada no sentido literal.

g) Assim, tem sido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos processos 1/12.6TBALD.C1.S1, 137/11.0TBALD.C1.S1 e 907/15.0T8PTG.E1.S2.

h) Foi violada a disposição do artigo 2.º, n.º 5.1, alínea b), das condições gerais da apólice.  


Com a revista, a Ré pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que a absolva do pedido.


Contra-alegaram os Autores, no sentido de não ser admitida a revista excecional ou, então, ser negado provimento ao recurso.


Por acórdão de 28 de junho de 2018, a Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), admitiu a revista excecional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1, do art. 672.º do CPC, nomeadamente pela “repercussão do problema jurídico em causa e respetiva solução na sociedade em geral, para além daquela que sempre terá, em maior ou menor grau, no interesse das partes no processo”.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Nesta revista excecional, está em discussão, essencialmente, a interpretação da cláusula geral do contrato de seguro, que exclui a responsabilidade civil da seguradora pelo sinistro.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos:


1. Os Autores são os únicos e universais herdeiros de FF, falecido em …, em 9 de março de 2015, de quem eram filhos.

2. Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, outorgada a 6 de maio de 2004, FF e CC, então sua esposa, adquiriram a propriedade da fração autónoma designada pela letra ‘M’, correspondente ao terceiro andar esquerdo, destinada a habitação, integrada no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no gaveto da Rua … e Rua …, designado por Lote n.º 4, na freguesia e concelho de .., descrita na Conservatória do Registo Predial de Olhão, sob o n.º 6…1/19…7-M, tendo-lhes sido concedido um empréstimo de € 73 000,00 pela Caixa EE, sendo a sua amortização e respetivos juros feita no prazo de 35 anos, através de prestações mensais e constituindo obrigação dos mutuários a realização e manutenção de um seguro de vida que assegurasse o regular serviço do empréstimo em caso de morte ou invalidez permanente e poder ser a entidade credora paga da integralidade do montante em dívida à data do eventual sinistro.

3. Por compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, outorgada em 19 de julho de 2010, FF e a sua então mulher CC adquiriram a propriedade do prédio urbano, destinado a habitação, sito na Horta …, designado por Lote n.º 10 da Rua …, na freguesia de …, do concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º 1…, tendo a compra sido efetuada com recurso a um empréstimo concedido pela EE, num montante de € 260 000,00, convencionando-se a sua amortização e juros respetivos no prazo de 45 anos, sendo parte (€ 182 000,00) através de prestações mensais constantes de capital e juro e outra parte (€ 78 000,00) em conjunto com a última das prestações de capital e juros, constituindo obrigação dos mutuários a realização e manutenção de um seguro de vida que garantisse o regular serviço do empréstimo em caso de morte ou invalidez permanente e poder ser a EE paga da integralidade do montante em dívida à data do sinistro.

4. Nessa mesma data, foi outorgado o mútuo, com hipoteca e fiança, pelo qual a EE emprestou também a FF e CC a quantia de € 15 000,00, para investimentos não especificados em bens imóveis, garantindo o seu pagamento também por hipoteca voluntária sobre o mesmo prédio urbano e por prestação de fiança, convencionando-se a sua amortização e respetivos juros no prazo de 45 anos, sendo parte (€ 10 500,00) através de prestações mensais constantes de capital e juro e a parte restante (€ 4 500,00) em conjunto com a última das prestações de capital e juros, estipulando-se aos mutuários a obrigação de realização e manutenção dum seguro de vida para assegurar o regular serviço do empréstimo em caso de morte ou invalidez permanente e poder ser a EE paga da integralidade do montante em dívida à data do eventual sinistro.

5. Para a obtenção desses empréstimos, FF e CC celebraram com a R., por indicação e exigência da EE, três contratos de seguro de grupo ramo vida denominados “Seguro Vida Grupo – Temporário Anual ­Renovável”, com as apólices n.º s 11…68, de 6 de maio de 2004, 11…84 e 11…85, ambos de 19 de julho de 2010, que garantiam, em caso de morte ou invalidez total e permanente do segurado, que os valores dos empréstimos ainda em dívida à EE seriam pagos integralmente à instituição bancária, constando das condições gerais dos mesmos, na cláusula constante do artigo 2.º, n.º 5: “5.1 Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações: a) Ações ou omissões dolosas ou grosseiramente negligentes praticadas pela pessoa segura, tomador do seguro ou beneficiário, bem como por aqueles que sejam civilmente responsáveis; b) Ações ou omissões praticadas pela pessoa segura, quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro” (…).

6. Mensalmente, FF pagava à R., por débito em conta bancária sua, os montantes dos prémios que eram apresentados à instituição credora e beneficiária, sem nunca ter ficado em falta o pagamento de qualquer prémio.

7. No dia 9 de março de 2015, cerca das 21:30 horas, FF, por ter decidido voluntariamente por termo à vida, foi trucidado sobre o troço da via férrea, situado na Rua …, em …, por uma composição ferroviária que efetuava o trajeto Olhão-Vila Real de Santo António, causando-lhe morte imediata devida a decapitação e múltiplas lesões traumáticas.

8. No momento do óbito, FF apresentava no sangue periférico tetra-hidrocanabinol (THC) – princípio ativo da canábis – de 3,5 ng/ml, THC-COOH de 10ng/ml e 11-OH-THC de 09 ng/ml, fora de prescrição médica.

9. À data do óbito de FF, dos montantes dos empréstimos referidos, estava em dívida, relativamente ao empréstimo de 6 de maio de 2004, a quantia de € 61 420,2 e, no que concerne aos mútuos contratados em 19 de julho de 2010, as quantias de € 250 013,81 e € 13 135,64.

10. Por três cartas de 26 de agosto de 2015 (uma por cada contrato), a R. comunicou aos herdeiros de FF que não pagaria as indemnizações por considerar que o sinistro não se enquadrava nas condições das apólices e fez acompanhar essas cartas com as “condições gerais” dos seguros contratados, tendo assinalado, como causa de exclusão de cobertura “ações ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora da prescrição médica, bem como quando lhe for detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro”.

11. Com a recusa da R. em assumir aquele pagamento, têm sido os AA. que, desde março de 2015 até ao presente, tem vindo a pagar à EE, para amortização dos empréstimos acobertados por aqueles contratos de seguro, as prestações mensais devidas, tendo já pago a quantia total de € 7 578,92.

2.2. Delimitada a matéria de facto, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente a interpretação a atribuir à cláusula geral do contrato de seguro, que exclui a responsabilidade da seguradora.

O acórdão recorrido, confirmando a sentença, concluiu que a cláusula do contrato de seguro, exigindo o nexo de causalidade entre o consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica e a morte do segurado, que não foi provado, não excluiu a responsabilidade civil da seguradora.

Esta, porém, mais uma vez, insiste na exclusão da responsabilidade civil, por a cláusula do contrato de seguro, quando interpretada, nos termos do disposto nos arts. 236.º e 238.º do Código Civil (CC), não exigir tal nexo de causalidade.

Identificada, sumariamente, a controvérsia jurídica emergente dos autos, importa então conhecer da questão, nomeadamente à luz do direito aplicável.


A exclusão do evento do âmbito da cobertura do contrato de seguro celebrado depende da interpretação conferida à correspondente cláusula geral, sendo certo que a exclusão, por efeito do suicídio, está afastada, para além de não constituir objeto do recurso.

As instâncias, como se referiu, coincidiram no entendimento da necessidade de prova do nexo de causalidade entre o consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica e a morte do segurado, realçando o acórdão recorrido tal ser “importante e decisivo para o equilíbrio das posições dos respetivos contraentes e, portanto, para a própria justiça do caso concreto”.

Na verdade, tal nexo de causalidade não resultou provado, atendendo à resposta negativa aos factos suscetíveis de o tipificarem, nomeadamente as alíneas c) e d) dos factos declarados não provados.


O problema, no entanto, é outro e mais vasto, designadamente o de saber se é exigível tal nexo de causalidade.

A questão, na verdade, não é nova e tem vindo a originar entendimentos diversos na jurisprudência, embora a mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, citada pela Recorrente, se venha a afirmar no sentido de, para a exclusão da cobertura do seguro, não ser exigível o nexo de causalidade.

A solução da questão passa, decisivamente, pela interpretação da cláusula contratual geral do contrato de seguro, facultativo, celebrado.

No contrato de seguro outorgado, estabelece-se nas suas condições gerais, nomeadamente no artigo 2.º, n.º 5:


5.1 Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações: a) (…); b) Ações ou omissões praticadas pela pessoa segura, quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro”.


Sendo o contrato de seguro um negócio jurídico formal, e, no caso dos autos, de natureza facultativa, a sua interpretação está sujeita, por um lado, às regras gerais dos negócios jurídicos consagradas nos arts. 236.º e 238.º do CC, e, por outro, porque contempla também cláusulas contratuais gerais, ao regime específico aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25 de outubro (J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro – Estudos, 2009, págs. 116 a 121 e 131 a 133, e JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, 1999, pág. 351).

Tendo em consideração este contexto jurídico, desde logo, fica afastada a interpretação segundo o critério da vontade real do declarante, visto esta ser desconhecida, como é natural suceder com as cláusulas contratuais gerais, como é o caso da cláusula destacada. Por isso, não é aplicável o critério subjetivo, consagrado no art. 236.º, n.º 2, do CC, para se encontrar o sentido normal da declaração negocial consubstanciada no contrato de seguro. 

Por sua vez, fazendo uso do critério objetivo de interpretação, inscrito no art. 236.º, n.º 1, do CC, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Trata-se, com efeito, da expressão normativa da chamada teoria da impressão do destinatário (C. A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2005, pág. 444, e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 2007, 4.ª edição, págs. 545 a 554).

Deste modo, um declaratário normal, identificado como alguém normalmente diligente, sagaz e experiente, colocado perante a declaração negocial e aquilo que podia conhecer da intenção da seguradora, não podia deixar de entender que, verificando-se o circunstancialismo de facto descrito na declaração negocial, nomeadamente quando o segurado acusasse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe fosse detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro, encontrava-se excluída a cobertura do sinistro.

Com efeito, percebe-se, sem esforço, o efeito perturbador e, por vezes, mesmo devastador, que o consumo de tais substâncias pode provocar, designadamente na vontade de quem as consome, compreendendo-se, por isso, a cautela da seguradora na assunção do risco em tais circunstâncias.

Compreendida a razão da exclusão do risco, carece de sentido a exigência do nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes ou da posse de certo grau de alcoolémia e o sinistro, para a exclusão da cobertura do risco do contrato de seguro, sufragando-se assim também a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente a dos acórdãos de 8 de março de 2018 (907/15.0T8PTG.E1.S2), 10 de março de 2016 (137/11.0BAL.C1.S1) e 1 de março de 2016 (1/12.6TBALD.C1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Por outro lado, a interpretação feita harmoniza-se ainda com o princípio geral de interpretação das cláusulas contratuais gerais, consagrado no art. 10.º do seu regime jurídico, e que remete para as regras gerais dos negócios jurídicos, já aludidas, sem prescindir do contexto de cada contrato singular em que se incluam as cláusulas contratuais gerais.

Neste âmbito, ao contratar o seguro, o segurado podia compreender que a cobertura do risco estava excluída, nomeadamente quando acusasse o consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe fosse detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro. Prevenia-se, assim, a cobertura de sinistro que, de algum modo, pudesse ter origem no indevido consumo de estupefacientes ou álcool em excesso, por poderem constituir circunstâncias potenciadoras da verificação de risco e a seguradora não o pretender assumir.


Evidentemente, se tais substâncias, comprovadamente, não tiveram qualquer influência no sinistro, poderá, então, afirmar-se que a defesa da exclusão do risco constituirá um caso de abuso do direito, nos termos do disposto no art. 334.º do CC.   

Com efeito, neste caso, sendo tais circunstâncias completamente alheias à produção do risco previsto no contrato de seguro, estar-se-ia a exceder, de um modo manifesto, os limites impostos, designadamente pelo fim social do contrato, e em particular quanto à exclusão da cobertura do risco. E, assim sendo, seria ilegítima a alegação da exclusão da cobertura do risco, quando o sinistro não fosse devido a qualquer das circunstâncias previstas nas causas de exclusão.

Com isto não se está afirmar a necessidade de um nexo de causalidade, já rejeitado antes, mas, diversamente, a exclusão do nexo de causalidade atribuída às circunstâncias de facto que, nos termos do contrato, excluíam a cobertura do risco, o que corresponde a uma questão distinta da do nexo de causalidade entre tais circunstâncias de facto e o sinistro.

Todavia, no âmbito da matéria da prova, apenas se considerou a materialidade suscetível de consubstanciar o nexo de causalidade entre tais circunstâncias de facto e a morte por suicídio do segurado (fls. 196), que não logrou ficar provado, como se declarou na sentença (fls. 237 e 238).

No entanto, na petição inicial, os Recorridos alegaram que “a quantidade detetada no exame toxicológico efetuada é considerada pelos especialistas médicos reduzida e insignificante, que nunca poderia gerar obnubilação do discernimento ou qualquer mínima propensão para o ato fatal praticado” (artigo 48.º) e que “no caso em apreço a quantidade de canábis detetada no sangue (…) era tão reduzida que nunca poderia ter determinado, por si, a ação verificada que lhe causou a morte” (artigo 51.º).

Esta materialidade, a provar-se, implica que as circunstâncias que poderiam excluir a cobertura do seguro seriam completamente estranhas à verificação do risco.  

Ocorrendo essa situação, então, a seguradora não tem legitimidade substantiva para invocar a exclusão da cobertura do seguro, nos termos em que alegou, por tal representar um abuso do direito e, como tal, uma defesa ilegítima, que o direito, justamente, não pode sufragar.

Nesta perspetiva, existe a necessidade de ampliação da matéria de facto, sendo certo que foi alegada nos articulados, como se especificou, por constituir fundamento para a aplicação do direito definido.

Assim, definido o direito aplicável, importa proceder à ampliação da matéria de facto, para então se julgar novamente a causa, em harmonia com tal direito, pelos mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, sendo possível, nos termos do disposto nos arts. 682.º, n.º 3, e 683.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC).

A necessidade de ampliação da matéria de facto, para a aplicação do direito definido, determina a anulação do acórdão recorrido.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. Sendo o contrato de seguro um negócio jurídico formal e de natureza facultativa, a sua interpretação está sujeita, por um lado, às regras gerais dos negócios jurídicos consagradas nos arts. 236.º e 238.º do Código Civil, e, por outro, porque contempla também cláusulas contratuais gerais, ao regime específico aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25 de outubro.

II. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

III. Um declaratário normal, identificado como alguém normalmente diligente, sagaz e experiente, colocado perante a declaração negocial e aquilo que podia conhecer da intenção da seguradora, não podia deixar de entender que, verificando-se o circunstancialismo de facto descrito na declaração negocial, nomeadamente quando o segurado acusasse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe fosse detetado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro, encontrava-se excluída a cobertura do sinistro.

IV. Assim, não é exigível o nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes ou a posse de certo grau de alcoolémia e o sinistro, para a exclusão da cobertura do risco do contrato de seguro.

V. Se tais substâncias, comprovadamente, não tiverem qualquer influência no sinistro, poderá afirmar-se que a defesa da exclusão do risco constituirá abuso do direito, nos termos do disposto no art. 334.º do Código Civil.  

VI. Existe a necessidade de ampliação da matéria de facto, quando esta, alegada nos articulados, não foi objeto de prova e constitui fundamento para a aplicação do direito definido.

2.4. O pagamento das custas ficará a cargo da parte vencida, a final, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Anular o acórdão recorrido, de modo a proceder-se à ampliação da matéria de facto, nos termos especificados, e a novo julgamento, em harmonia com o direito definido neste acórdão.


2) Condenar a parte vencida, a final, no pagamento das custas, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


Lisboa, 18 de setembro de 2018


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira