Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
492/20.1PAMGR-C.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: HABEAS CORPUS
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
REENVIO PARCIAL
NOVO JULGAMENTO
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 09/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Existindo condenação, a anulação do acórdão não implica o regresso do processo à fase anterior. A anulação não significa que a condenação deixe de ter existido, não equivalendo a nulidade a inexistência.

II. Embora não tenha transitado em julgado, foi proferida uma condenação em 1ª instância.

III. A alínea c) do nº 1 do art. 215.º do C.P.P. não se refere a sentença definitiva (a esse momento processual refere-se a alínea seguinte) nem cuida das vicissitudes por que eventualmente passe, depois de proferida pelo tribunal competente. Tem em vista apenas um determinado patamar do iter processual e esse foi alcançado.[1]

IV. Tendo sido proferido acórdão condenatório em 1.ª instância, sujeito, embora a reenvio parcial para novo julgamento, o prazo de prisão máxima da prisão preventiva não é de 1 ano e 6 meses, previsto no art. 215.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal, como vem invocado pelo peticionante, mas antes o de 2 anos, por referência ao art. 215.º, n.ºs 1, alínea d) e 2, do Código de Processo Penal.

____

[1] 03-02-2022, no processo1325/19.7PFLRS-D.S1

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, de 36 anos, arguido no processo n.º 492/20.1PAMGR-C, do Juízo Central Criminal de Leiria  – J..., e aí melhor identificado, alegando encontrar-se em situação de prisão ilegal, por se mostrar ultrapassado o termo do prazo máximo de prisão preventiva a que se encontra sujeito, vem, nos termos do art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 222.º, n.º 2, als. a) e c), do Código de Processo Penal, intentar providência de habeas corpus, nos seguintes termos: (transcrição)

“1.   A providência de Habeas corpus constitui incidente que se destina a assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido — arts. 27.°, n.° 1 e 31.°, n.° 1. da CRP — e visa pôr termo às situações de prisão ilegal, efectuada ou determinada por entidade incompetente, motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou mantida para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial — art 222.°. n.°s 1 e 2. als. a) a c), do CPP.

2.    O Arguido encontra-se preso preventivamente à ordem dos presentes autos.

3.    Tendo sido ouvido em interrogatório e decretada a prisão preventiva no dia 24 de Fevereiro de 2020.

4.    Nos termos da al. c) do n° 2 do art. 222° do CPP. a medida de coacção de prisão preventiva não pode exceder os prazos legalmente previstos ou judicialmente determinados.

5.    Diz-nos o art. 215° n° 1 al. c) n° 2 do CPP que a prisão preventiva tem como tecto máximo 1 ano e 6 meses.

6.    Foi proferido acórdão em 09 de Fevereiro de 2022.

7.    Tendo o mesmo sido objecto de recurso.

8.     Em 12 de Julho de 2022, o Tribunal da Relação de Coimbra, pronunciou-se seguinte forma: "Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em:

• determinar o reenvio para novo julgamento, relativamente às questões aludidas em III.3 do recurso dos arguidos BB, CC e AA, cf Artigo 426° do CPP - por Tribunal com a competência fixada nos termos do 426° A do CPP."

9.    Ao decidir determinar o reenvio para novo julgamento, considerou estarem prejudicadas as restantes questões alegadas nos recursos interpostos.

10.    Efectivamente foi proferida decisão de primeira instância.

11.    Tendo esta decisão transitado em julgado.

12.    No entanto, ao ser a mesma anulada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, reenviando o processo para novo julgamento fez com que esse acórdão decisório perdesse a sua validade.

13.   Uma vez que, no momento em que for realizado novo julgamento, será elaborado um novo acórdão o qual será novamente na sua integralidade objecto de recurso.

14.     Pelo que, a primeira decisão no momento em que é anulada e os autos reenviados para novo julgamento não volta a mesma a produzir efeitos.

15.     Pelo que, não pode a mesma produzir efeitos só para efeitos de manutenção da prisão preventiva. enquanto é completamente inexistente para tudo o resto, o que é altamente penalizador do Direito à liberdade protegido Constitucionalmente no art. 27° da CRP

16.      Uma Lei quando é revogada, não deixa de existir, mas a verdade é que deixa de produzir efeitos a não ser que seja mais favorável ao Arguido o que não é de todo o caso.

17.      Neste caso, a verdade é que o acórdão não deixou de existir, mas ao ser anulado deixou de poder produzir os efeitos como se não tivesse sido anulado.

18.      A interpretação de que o acórdão não deixou de existir e por isso mantém-se os seus efeitos, além de não ser verdade, uma vez que, os efeitos são selectivos à Medida de Coacção é uma interpretação altamente violadora dos Direitos Constitucionais

19.      Sendo que a decisão de manter a prisão preventiva por considerar que o acórdão anulado não deixou de existir pelo que se mantêm os prazos de prisão preventiva não existindo qualquer excesso de prisão preventiva é inconstitucional nos termos dos arts.0 27, 29, n.° 1, 2, 3 e 4, 31° e art.° 32 da C.R.P., o que desde já se alega por ser uma violação do direito à liberdade e uma violação clara das garantias de defesa.

20.     Ao arguido foi decretada a prisão preventiva em 24 de Fevereiro de 2020.

21.    No dia 24 de Agosto de 2022, fez 1 anos e 6 meses de prisão preventiva.

22.    A decisão da 1ª Instancia foi a 09 de Fevereiro de 2022.

23.    A decisão do Tribunal da Relação a anular a decisão e a reenviar os autos para novo julgamento foi a 17 de Julho de 2022.

24.    A qual transitou em julgado.

25.    Tal decisão deixou de poder produzir efeitos, o que se sublinha, uma vez que as outras questões sobre o resto do acórdão agora anulado ficaram prejudicadas como é reconhecido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

26.    A verdade é que a decisão não mais vai voltar a ser objecto de apreciação.

27.    Se o Arguido não colocar novamente em causa, as questões já levantadas em Recurso a nova decisão transita em julgado, uma vez que, o recurso anteriormente interposto não produz efeitos nesta nova decisão.

28.    Será feito novo julgamento sobre algumas questões e será elaborado novo acórdão sobre a integralidade dos autos, o qual terá que ser novamente objecto de recurso.

29.     Pelo que, no caso em concreto o acórdão foi anulado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, pelo que os seus efeitos não se podem manter para efeitos de prazo de prisão preventiva.

30.    Neste momento e tendo em conta a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra o prazo máximo de duração da medida de coacção de prisão preventiva a aplicar terá que ser o previsto no art. 215o n° 1 al. c) n° 2 do CPP.

31.   Encontra-se assim excedido o prazo de 1 ano e 6 meses a que alude o art.0 215.°, n.° 1 al. c) e 2 do C.P.P.. aplicável ao caso concreto sob pena de violação da lei fundamental, arts.° 27, 29, n.° 1, 2, 3 e 4, 31° e art.º 32 da C.R.P.

Termos em que se requer a V.ª Exa.:

a)    A concessão da providência do "Habeas Corpos, art.°222.º n.°2 al. c) do C.P.P.:

b)    Seja declarada ilegal a prisão do requerente, e por esse motivo o mesmo restituído à liberdade. (art° 223. n.°4 al. d) do C.P.P.).”


A Sra. Juíza titular prestou a Informação a que se refere o n.º 1, do art 222º do Código de Processo Penal: (transcrição):

“Por despacho proferido no dia 24.02.2021, em sede de primeiro interrogatório judicial, foi aplicada ao arguido, ora requerente AA a medida de coação de prisão preventiva.

Nessa decisão, fundamentou-se a aplicação de prisão preventiva como sendo esta a única medida de coação necessária, adequada e bastante à salvaguarda das exigências cautelares do caso concreto, nomeadamente dos “perigos de continuação de atividade delituosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, na vertente de alarme social” (cfr. Auto de Primeiro Interrogatório Judicial com a Ref.ª 96109949, de 24-02-2022).

No dia 09.02.2022, foi proferido douto acórdão, ainda não transitado em julgado, nos termos do qual foi o arguido AA condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22/01, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão (cfr. Acórdão com a Ref.ª 99330740, de 09-02-2022).

Por despacho proferido no dia 06.05.2022, procedeu-se ao reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA determinando-se a respetiva manutenção (cfr. despacho com a Ref.ª 100232484, de 06-05-2022).

Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 12.07.2022, foi determinado o reenvio parcial dos autos, para novo julgamento, relativamente aos arguidos BB, CC e AA (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com a Ref.ª 10359599, de 13-07-2022).

Por despacho proferido no dia 03.08.2022, procedeu-se ao reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA determinando-se a respetiva manutenção (cfr. despacho com a Ref.ª 101076423, de 03-08-2022).

O arguido, ora requerente da presente providência de “Habeas Corpus”, funda a sua pretensão, no facto de que, com a prolação da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, o prazo máximo de duração da medida de coação de prisão preventiva ser o previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. c) e n.º 2 do CPP, o qual é de 1 ano e 6 meses, o qual, no entender, do ora requerente, já se mostra esgotado.

Contudo, e salvo melhor entendimento, afigura-se-nos que, em face dos elementos acima indicados constata-se que a prisão preventiva é legal, pois que:

- foi ordenada por entidade competente (pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal),

- o crime em apreço admite a prisão preventiva (crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22/01), e

- a prisão preventiva mantém-se dentro do prazo legal, não se mostrando excedido qualquer prazo de duração da mesma. Com efeito, não obstante o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07-2022, entendemos que, o prazo máximo da prisão preventiva é o previsto no artigo 215.º, n.º 1 e n.º 2, al. d) do CPP (o de 2 anos) e não o previsto no artigo 215.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) do CPP, como defende o ora requerente.

A este respeito, conforme referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-04-2016 (Proc. 403/12.8JAAVR-H.S1, in www.dgsi.pt) “(…) «A anulação da sentença, ainda que total, não determina a inexistência do acto, mas apenas a não produção de efeitos. O mesmo sucede com o reenvio (total ou parcial) para novo julgamento. Por isso, o prazo da prisão preventiva é o previsto na alínea d) do n.º 1. Com efeito, mesmo quando total, a anulação ou o reenvio não determinam a irrelevância da actividade processual desenvolvida, consequência que o vício da inexistência envolve.». Com a prolação de decisão condenatória em 1.ª instância, o processo entra na fase de recurso, justamente a fase a que se refere a alínea d) do n.º 1 do artigo 215.º, e a circunstância de essa decisão condenatória vir a ser anulada não afecta o prazo de duração máxima da prisão preventiva que foi logo alargado por força de o processo ter entrado na fase de recurso (já ter havido condenação em 1.ª instância, embora “sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado”)(…)”. Em idêntico sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-2021 (Proc. 80/20.2PAENT-B.S1, in www.dgsi.pt).

Termos em que, salvaguardando-se o devido respeito por posição contrária, entendemos que o prazo máximo da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao ora requerente, não se mostra integralmente decorrido.”


A providência vem instruída com os elementos pertinentes.


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensor do Requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):


II. Fundamentação

a. Factos:

Dos elementos que instruem o processo, com interesse para a decisão do pedido de habeas corpus, extraem-se os seguintes:

- Por despacho proferido no dia 24.02.2021, foi aplicada ao arguido, ora peticionante a medida de coação de prisão preventiva

- No dia 09.02.2022, foi proferido acórdão, ainda não transitado em julgado, nos termos do qual foi o arguido condenado, pela prática, em coautoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22/01, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão (cfr. Acórdão com a Ref.ª 99330740, de 09-02-2022).

- Por despacho proferido no dia 06.05.2022, procedeu-se ao reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido, determinando-se a respetiva manutenção (cfr. despacho com a Ref.ª 100232484, de 06-05-2022).

- Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 12.07.2022, foi determinado o reenvio parcial dos autos, para novo julgamento, relativamente aos arguidos BB, CC e AA (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com a Ref.ª 10359599, de 13-07-2022).

- Por despacho proferido no dia 03.08.2022, procedeu-se ao reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA determinando-se a respetiva manutenção (cfr. despacho com a Ref.ª 101076423, de 03-08-2022).

b. Do Direito

A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31° da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220° e 222° do CPP, que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.

No caso, importa o artigo 222° do CPP que se refere aos casos de prisão ilegal e em cujos termos a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a mesma

- ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

- ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

- ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222° do CPP.

A providência em causa, com previsão constitucional no art. 31.º, assume, assim, uma natureza excecional, constituindo o remédio a ser utilizado quando falham as demais garantias de defesa do direito de liberdade, consagrado este nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, para pôr termo a situações de detenção ou de prisão ilegais.

Em jurisprudência constante, tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência, perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, não se mostra numa relação de continuidade com os recursos admissíveis que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

Como este tribunal tem reafirmado, «(…) a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei.» [acórdão de 19.0.22, no proc. n.º 57/18.8JELSB-D.S1; e também, entre outros, os acórdãos de 02.02.22, no proc. 13/18.6S1LSB-G, de 04.05.22, no proc. 323/19.5PBSNT-A.S1, 02.11.2018, de 04.01.2017, no proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, no proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

Como se tem sublinhado, «no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe julgar e decidir sobre a discussão que os actos processuais possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)»; na providência de habeas corpus «não se pode decidir sobre actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação, pois que «a medida não pode ser utilizada para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação» (acórdão de 5 de maio de 2009, proc. n.º 665/08.5JAPRT-A.S1, citado no acórdão de 26.07.2019, proc. n.º 2290/10.1TXPRT-M.S1).

Os motivos de ilegalidade da prisão, como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se afirmou, entre outros, no acórdão de 22.1.2020 (proc. 4678/18.0T8LSB-B.S1, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/02/criminal_sumarios-2020.pdf), o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar:

- se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível,

- se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e

- se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr. também, os acórdãos de 26.07.2019 e de 09.01.2019, proc. n.º 589/15.0JALRA-D.S1, em www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/criminal_ sumarios_ janeiro_ 2019 .pdf).

c. No caso


Pretende o arguido que o reenvio parcial dos autos para novo julgamento, decidido, em sede de recurso, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, tem como efeitos a inexistência do acórdão condenatório e a aplicação aos prazos de prisão preventiva do disposto no n.º 2, por referência à al.c) do n,º 1 do art. 215.º do CPP.

Não tem sido esse o entendimento deste tribunal, e não é, igualmente a nossa interpretação.

Com efeito, existindo condenação, a anulação do acórdão ou do julgamento, não implica o regresso do processo à fase anterior. A anulação não significa que a condenação deixe de ter existido, não equivalendo a nulidade a inexistência.

Embora não tenha transitado em julgado, foi proferida uma condenação em 1ª instância.

Ora, a alínea c) do nº 1 do art. 215.º do C.P.P. não se refere a sentença definitiva (a esse momento processual refere-se a alínea seguinte) nem cuida das vicissitudes por que eventualmente passe, depois de proferida pelo tribunal competente. Tem em vista apenas um determinado patamar do iter processual e esse foi alcançado.[2]

Tendo sido proferido acórdão condenatório em 1.ª instância, sujeito, embora a reenvio parcial para novo julgamento, o prazo de prisão máxima da prisão preventiva não é de 1 ano e 6 meses, previsto no art. 215.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal, como vem invocado pelo peticionante, mas antes o de 2 anos, por referência ao art. 215.º, n.ºs 1, alínea d) e 2, do Código de Processo Penal.

Como refere Maia Costa “A anulação da sentença, ainda que total, não determina a inexistência do ato, mas apenas a não produção de efeitos. O mesmo sucede com o reenvio (total ou parcial) para novo julgamento. Por isso, o prazo da prisão preventiva é o previsto na al. d) do nº 1. Com efeito, mesmo quando total, a anulação ou o reenvio não determinam a irrelevância da atividade processual desenvolvida, consequência que só o vício da inexistência envolve.”[3]

Como, se refere em acórdão de 18-01-2018[4]:

“I - A anulação de acórdão condenatório proferido em 1.ª instância, com remessa do processo para suprimento de nulidade e elaboração de nova decisão, não torna o acórdão condenatório de nenhum efeito. Só o acto inexistente se mostra desprovido de qualquer efeito jurídico, sendo que o acto nulo, conquanto não possa produzir os efeitos para que foi criado, não deixa de ter existência processual.

II - Enquanto o acto inexistente nem sequer pode ser reconhecido como acto e, como tal, ter vida jurídica, o acto nulo, ainda que imperfeito, existe.

III - O que releva para efeitos da aplicação do prazo previsto naquela al. d), do art. 215.º, n.º 1, do CPP é a mera verificação daquele concreto acto processual (decisão condenatória), ou seja, independentemente da sua validade intrínseca (independentemente de se tratar de uma boa ou má decisão).

IV - Aquilo que o legislador pretendeu evitar ao fixar os prazos de duração máxima da prisão preventiva é que o arguido esteja preso preventivamente por mais de determinado tempo sem nunca ter sido condenado por um tribunal, ou seja, sem que um tribunal, após contraditório pleno, haja considerado o arguido culpado.

V - Já não assim quando houve uma condenação, não obstante a sentença ou o julgamento tenham sido anulados, consabido que uma sentença condenatória, ainda que anulada, não se pode considerar um acto inexistente. “

No mesmo sentido, o acórdão de 23-04-2014[5]:

“I - O habeas corpus constitui uma providência urgente e expedita, com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários, destinada a responder a situações de gravidade extrema e que visa reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal.

II - O STJ tem vindo a decidir, sem discrepância, no sentido de que tendo sido anulada uma condenação proferida por tribunal de 1.ª instância, muito embora não possa produzir os efeitos que lhe são próprios, não se pode afirmar que inexistiu essa decisão.

III - Como produz efeitos a sentença condenatória da 1.ª instância, ainda que tenha sido anulada em recurso, essa anulação não determina o encurtamento do prazo de duração máxima da privação preventiva, como se aquela condenação não tivesse ocorrido.

IV - Por isso, nestes casos, não é de convocar o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 215.º do CPP, mas sim a al. d) do mesmo preceito.”[14]

Ainda o acórdão de 29-09-2010[6]:

(…)

IV - Os requerentes consideram que o prazo máximo de duração da prisão preventiva é de 1 ano e 6 meses, previsto na al. c) do n.º 1, e no n.º 2 do art. 215.º do CPP, por a decisão de 1.ª instância ter sido anulada por acórdão da Relação. No entanto, esse entendimento não pode proceder.

V - A existência de condenação em 1.ª instância, ainda que posteriormente anulada pelo Tribunal da Relação, tem reflexos no prazo máximo de duração da prisão preventiva.

VI - O acto nulo, com efeito, não se confunde com o acto inexistente, pois apesar da nulidade o acto foi praticado e existe, e apesar de não produzir ou poder produzir os efeitos que constituem a sua finalidade última, pode ter e tem outros efeitos processuais que decorrem da mera circunstância de ter sido produzido e que ocorrem no momento e em consequência directa da mera produção.

VII - A decisão de 1.ª instância produziu efeitos processuais pelo simples facto de ter sido proferida, nomeadamente, como resulta directamente da lei, o fazer passar o prazo de prisão preventiva do campo de aplicação da al. c) para o âmbito da al. d) do n.º 1 do art. 215.º do CPP.

VIII - E este efeito produziu-se e esgotou-se pelo simples facto de ter sido proferida uma decisão condenatória em 1.ª instância (haver «condenação em primeira instância»), valendo, consequentemente, no processo a partir desse momento, com todas as consequências em tal âmbito de regulação. Tal efeito constituiu-se e fixou-se no processo a partir desse momento, reordenando os prazos máximos da prisão preventiva fixados no art. 215.º do CPP. A produção de efeitos para o futuro – a mudança de fase e de regra processual sobre a duração da prisão preventiva – não é, por isso, retroactivamente afectada pela anulação da decisão da 1.ª instância e a consequente reformulação. “[15] [16]

Também o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 404/2005, de 22-07-2005, proferido no processo n.º 546/2005 (in DR, II Série, de 31-03-2006), decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do art. 215.º, n.º 1, al. c), com referência ao n.º 3, do CPP, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação.

O que atesta da bondade da interpretação quase constante deste Tribunal, face aos princípios constitucionais e à constituição processual penal.

Assim sendo, uma vez que o arguido se encontra sujeito à medida de prisão preventiva desde 24 de fevereiro de 2021, tendo ocorrido a sua condenação em primeira instância, eleva-se para dois anos o prazo da prisão preventiva a que se encontra sujeito, por força do disposto no artigo 215º nº 1, alínea d) e nº 2, do CPP, pelo que a medida de coação que lhe foi aplicada só se extinguirá em 24 de fevereiro de 2023, se entretanto não ocorrer o trânsito em julgado.

Em suma, a prisão preventiva a que o requerente se encontra sujeito foi aplicada por entidade competente - o juiz do processo - por facto permitido pela lei, mantendo-se a medida de coação dentro do prazo máximo de duração, atenta a fase em que o processo ora se encontra, pelo que não se verifica qualquer excesso de prazo.

Os fundamentos invocados pelo requerente, como supra se referiu não cabem na previsão normativa do art. 222º, nº 2, do CPP, e designadamente não se verifica o fundamento de habeas corpus, a que alude a alínea c) do n.° 2 do artigo 222º do CPP, subjacente aos motivos invocados pelo requerente.


IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a petição de habeas corpus por falta de fundamento bastante, nos termos do artigo 223º, nº 4. al. a), do CPP.

Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 06 de setembro de 2022

Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)


______

[1] 03-02-2022, no processo1325/19.7PFLRS-D.S1
[2] 03-02-2022, no processo1325/19.7PFLRS-D.S1
[3]  Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 3.ª Edição Revista, 2021, Pág. 835.
[4] Processo nº 234/15.3JACBR.S1, relator Oliveira Mendes.
[5] Proc. n.º 21/11.8SMLSB-C. S1 - 3.ª Secção, relator Pires da Graça.
[6] Proc. n.º 139/10.4YFLSB.S1 - 3.ª Secção, relator Henriques Gaspar.