Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B84
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR COSTA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PRESSUPOSTOS
ERRO GROSSEIRO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
ESTADO
Nº do Documento: SJ2008012900847
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. O erro significa o engano ou a falsa concepção acerca de um facto ou de uma coisa, distinguindo-se da ignorância porque esta se traduz essencialmente na falta de conhecimento.
2. O erro grosseiro de facto e ou direito na apreciação judicial dos pressupostos de facto da prisão preventiva é o indesculpável ou inadmissível, porque o juiz podia e devia consciencializar o engano que esteve na origem da sua decisão que a determinou.
3. A circunstância de o recorrente ter sido absolvido a final por falta de prova do cometimento do crime por que foi pronunciado é insusceptível, só por si, de revelar o referido erro.
4. Inverificado o facto lícito da prisão preventiva, não incorre o Estado em responsabilidade civil extracontratual no confronto de que quem a ela foi sujeito.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentou, no dia 1 de Julho de 2003, contra o Estado Português, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 121 600 acrescidos de juros à taxa legal desde a citação, com fundamento nos prejuízos decorrentes de prisão preventiva, durante 370 dias, derivada de erro grosseiro.
O réu, na contestação, negou que a prisão preventiva do autor tivesse derivado de erro.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 6 de Janeiro de 2007, por via da qual o réu foi absolvido do pedido.
Apelou o autor, e a Relação, por acórdão proferido no dia 18 de Setembro de 2007, negou provimento ao recurso.

Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o fundamento da absolvição foi a falta de prova cabal de que o recorrente tivesse intervindo na prática do crime, que incumbia a quem o acusou, e não o conseguiu;
- o arguido presume-se inocente durante o processo e esteve muito tempo preso preventivamente;
- a sua prisão preventiva assentou em factos que a final se concluiu não serem verdadeiros;
- nenhuma prova o incriminava, senão teria sido condenado, pelo que foi preso preventivamente por erro grosseiro e dever ter-lhe sido aplicada diversa medida de coacção;
- foram violados os artigos 22º, 27º nº 5 e 28º da Constituição, 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 225º do Código de Processo Penal, 342º, nº 1, 350º e 562º do Código Civil e 668º do Código de Processo Civil;
- deve ser indemnizado em conformidade com o pedido.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão de alegação:
- o acervo factual apurado não revela qualquer erro na apreciação dos pressupostos de facto da prisão preventiva aplicada ao recorrente no âmbito do processo penal;
- não foram desrespeitados os preceitos legais indicados pelo recorrente ou quaisquer outros.

II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. O autor foi detido no dia 11 de Dezembro de 2000 pela Polícia Judiciária, Departamento de Aveiro, tendo sido imediatamente apresentado a interrogatório no âmbito do processo nº 23/00. OJAVR, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
2. No dia 12 de Dezembro de 2000 foi deduzida acusação contra o autor, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
3. No dia 22 de Dezembro de 2000, foi interposto recurso pelo autor do despacho que lhe fixou a prisão preventiva, solicitando a revogação desta medida de coacção, que foi admitido por despacho de 29 de Dezembro de 2000.
4. O referido recurso foi apreciado pelo Tribunal da Relação de Coimbra no dia 7 de Fevereiro de 2001, que manteve a prisão preventiva do autor, e, no dia 7 de Março de 2001, foi reapreciada e mantida aquela medida.
5. No dia 23 de Maio de 2001, no âmbito da instrução requerida por um outro arguido, foi proferido despacho de pronúncia do autor pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, mantendo-se em prisão preventiva, que no dia 7 de Junho de 2001 foi reapreciada e mantida.
6. O autor foi posto em liberdade no dia 17 de Dezembro de 2001, aquando da leitura do primeiro acórdão proferido no processo, no qual foi absolvido por não se ter provado que tivesse, por qualquer forma, intervindo na execução dos factos.
7. Do referido acórdão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que este Tribunal julgou nulo, determinando a sua substituição por outro, e foi proferido novo acórdão no dia 8 de Julho de 2002, no qual o autor foi absolvido com o mesmo fundamento do anterior.
8. No âmbito das escutas telefónicas não foi feita, nem sequer ordenada, qualquer intercepção a telefone do autor ou na sua posse.
9. O autor dormia numa cela conjuntamente com demais indivíduos, com os quais era obrigado a repartir as instalações sanitárias, comia obrigado o que lhe era imposto e não podia conviver com a sua família, máxime com os seus filhos menores.
10. Não podia conviver e copular regularmente com a sua esposa nem conviver com os amigos.
11. Sofreu forte desgosto com o facto de ter sido forçado a viver na cadeia privado de liberdade.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrente tem ou não direito à indemnização que peticiona no confronto do recorrido.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação do recorrente e do recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- o regime legal especial de indemnização pela perda de privação de liberdade dos cidadãos;
- os pressupostos da responsabilidade civil envolvente e o ónus de prova;
- ocorrem ou não no caso-espécie os referidos pressupostos?
- medida da indemnização devida pelo recorrido no confronto do recorrente;

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pelo regime legal especial de indemnização pela perda de privação de liberdade dos cidadãos.
Expressa a Constituição, por um lado, que todos tem direito à liberdade e que ninguém pode ser total ou parcialmente privado dela, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança (artigo 27º nºs 1 e 2).
E, por outro, que se exceptua desse princípio a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, além do mais, no caso de detenção em flagrante delito ou de detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos (artigo 27º, nº 3, alíneas a) e b)).
Finalmente, expressa que a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer (artigo 27º, nº 5).
A prisão preventiva tem natureza excepcional, não devendo ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei (artigo 28º, nº 2, da Constituição).
O artigo 27º, nº 5, da Constituição alarga a responsabilidade civil do Estado a factos decorrentes do exercício da função jurisdicional, para além do erro judiciário ou condenação injusta.
Também a Convenção Europeia do Direitos do Homem expressa que toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança, e que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo, além do mais, de acordo com o procedimento legal, se for preso ou detido quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou houver motivos razoáveis para crer ser necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido (artigo 5º, nº 1, alínea c)).
A nossa Constituição conforma-se com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sendo que a primeira remete, essencialmente, para o Código de Processo Penal e para o Código Civil.
É aplicável no caso vertente, tendo em conta a sucessão da lei no tempo, o regime da lei ordinária que, nesta matéria, vigorava ao tempo dos factos, ou seja, antes da alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto (artigo 12º, nº 1, do Código Civil).
A prisão preventiva pode ser judicialmente ordenada quando houver fortes indícios de prática de crime doloso com pena de prisão de máximo superior a três anos, se o juiz considerar inadequadas ou insuficientes as medidas coacção termo de identidade e residência, caução, apresentação periódica, suspensão do exercício de profissão, função, actividade ou direitos, proibição e imposição de condutas ou permanência na habitação (artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal).
O artigo 225º do Código de Processo Penal estabelece, por seu turno, por um lado, que quem tiver sofrido prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade (nº 1).
E, por outro, que isso se aplica a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo legal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependa, e que se ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro (nº 2).
Assim, a lei distingue entre a prisão preventiva ilegal e a legal injustificada, derivada de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que a fundamentam.

2.
Continuemos com a breve análise dos pressupostos da responsabilidade civil em causa.
Tendo em conta o que se prescreve no nº 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, são pressupostos da obrigação de indemnização com fundamento na referida responsabilidade civil extracontratual, por um lado, o facto ilícito consubstanciado na injustificada prisão preventiva por erro grosseiro na apreciação judicial dos pressupostos de facto de que dependa.
E, por outro, os factos relativos ao dano patrimonial ou não patrimonial sofridos e no nexo de causalidade adequada entre este e aquele (artigo 225º, nº 2, do Código de Processo Penal, 483º, nº 1, 562º, 563º e 566º do Código Civil).
O erro tem o sentido de engano ou falsa concepção acerca de um facto ou de uma coisa, distinguindo-se da ignorância porque esta se traduz essencialmente na falta de conhecimento.
O erro grosseiro é o erro indesculpável, inadmissível, porque se podia e devia consciencializar o engano que esteve na origem da decisão.
A conclusão sobre a existência ou não de erro grosseiro de que resultou a prisão preventiva tem necessariamente de derivar dos factos indiciários existentes ao tempo do despacho que ordenou ou manteve a prisão preventiva.
Não se podem ignorar, nesta matéria, as vicissitudes da instrução do processo penal, desde a denúncia, passando pelo inquérito e pala instrução e terminando na audiência de julgamento.
Nesse quadro de vicissitudes, a existência de indícios da prática do crime no início e durante o processo pode não ser confirmada, por virtude da contingência das provas produzidas, na audiência de julgamento, o que é normal face ao princípio da presunção de inocência.
Mas é a esse conjunto de factos indiciários iniciais ou subsequentes que se deve atender, e não apenas a uma ou outra diligência, designadamente à de escuta telefónica, ou da sua não realização, que aqui está provada no que concerne a telefone do recorrente ou na sua disponibilidade.
A circunstância de o recorrente ter sido absolvido por falta de prova do cometimento do crime por que foi pronunciado é insusceptível, como é natural, de revelar o erro grosseiro de quem ordenou a prisão preventiva.
O ónus de prova dos referidos pressupostos do direito de indemnização incumbe, como é natural, ao autor, no caso ao recorrente (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Em sede de julgamento da matéria de facto, a dúvida sobre a verificação dos mencionados factos é resolvida contra o recorrente porque eles lhe aproveitam (artigo 516º do Código de Processo Civil).

3.
Atentemos, ora, se ocorrem ou não no caso espécie os referidos pressupostos de facto em que o recorrente fundamenta, no confronto do recorrido, o seu direito de indemnização.
Os factos provados apenas revelam, por um lado, que, no âmbito das escutas telefónicas realizadas não foi ordenada alguma intercepção a telefone do recorrente ou na sua posse, e que, na sequência do interrogatório por um juiz, lhe foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva e que foi acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
E, por outro, que ele recorreu, sem êxito, do despacho que lhe fixou a prisão preventiva, a qual lhe foi mantida em subsequente despacho de apreciação, que depois disso foi pronunciado pela prática do crime por que foi acusado, e que se manteve a mesma medida de coação em posterior despacho de apreciação.
Finalmente, revelam os factos, por um lado, ter o arguido sido absolvido do crime pelo qual foi pronunciado por virtude de se não ter provado que tivesse intervindo, por qualquer forma, na sua prática.
Assim, o que resulta dos factos provados é que o recorrido foi preso preventivamente com fundamento em indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual foi acusado e pronunciado, e do qual foi absolvido com base na falta de prova de que o tivesse cometido ou participado de algum modo na sua execução.
Não resulta, assim, dos factos provados, desde logo, que, face aos indícios existentes ao tempo do despacho que estabeleceu a prisão preventiva em causa, esta não fosse justificada.
Não tem fundamento legal a alegação do recorrente no sentido de ser lógico e evidente o erro grosseiro por virtude de a final se ter verificado que tais factos não eram verdadeiros.
Na realidade, a final o que se apurou não foi que tais factos não eram verdadeiros, mas tão só que não foi apurado que o fossem.
Isso significa, tal como foi considerado nas instâncias, não verificado o primeiro pressuposto da responsabilidade civil extracontratual do recorrido a que a lei se reporta, ou seja, a prisão preventiva decidida pelo magistrado que a determinou por erro sobre os pressupostos de facto de que dependia, o que exclui a sua qualificação legal de grosseiro.

4.
Vejamos, ora, a medida da indemnização devida pelo recorrido no confronto do recorrente.
A conclusão a que se chegou acima no sentido de que se não verifica o primeiro pressuposto da obrigação do recorrido no âmbito da responsabilidade civil extracontratual – prisão preventiva do recorrente motivada por erro grosseiro do juiz -, prejudicada está a análise da problemática do dano invocado pelo recorrente e do respectivo nexo de causalidade (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2 e 726º do Código de Processo Civil).
Inexiste, por isso, fundamento legal para que se analise nesta sede a problemática do cálculo da indemnização que o recorrente pretendeu fazer valer na acção no confronto do recorrido.

5.
Finalmente a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Os factos provados não revelam que a prisão preventiva do recorrente tenha sido determinada por erro grosseiro do Juiz na apreciação dos pressupostos de facto e de direito de que dependia.
O recorrente não cumpriu o ónus de prova do mencionado pressuposto, pelo que se não verifica o imprescindível elemento base da responsabilidade civil extracontratual que ele fez valer na acção no confronto do recorrido.
Fica, por isso, prejudicado o conhecimento da problemática do dano invocado pelo recorrente no pressuposto de que ocorria o mencionado facto fonte da responsabilidade civil extracontratual.
O acórdão recorrido não infringiu o disposto nos artigos 22º, 27º, nº 5 ou 28º da Constituição, no artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 225º do Código de Processo Penal, 342º, nº 1, 350º, 562º do Código Civil ou 668º do Código de Processo Civil.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Janeiro de 2008


Salvador da Costa (Relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luís