Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09A144
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
RESIDÊNCIA PERMANENTE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ2009021201441
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. O conceito de residência permanente pressupõe uma permanência estável e duradoura no local, com instalação do lar, logística e economicamente organizado para centro de vida do próprio e do seu agregado familiar.

2. A admissão de dupla residência permanente – ou de residências alternadas – supõe a necessidade de ambas por ponderosas razões profissionais ou sociais e que, em qualquer delas, se desenvolva, estável e continuadamente, a actividade inerente à vida doméstica e familiar.

3. Se a arrendatária, viúva, tem 78 anos de idade, não tem autonomia de locomoção, a audição só é possível com próteses e todo o seu agregado familiar próximo vive no norte do País, e ela aí se instala na Primavera, Outono e Inverno, aí recebendo o seu correio e daí pagando a renda, não se pode afirmar que tenha residência permanente no locado, onde só se desloca no verão.

4. Ademais, constituiria abuso de direito – por atentar manifestamente contra os limites do fim social e económico do arrendamento, pretender manter um arrendamento de habitação andar com oito divisões, em zona nobre de Lisboa e com renda mensal de cerca de 100 euros, apenas ocupado durante cerca de dois meses por ano.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou acção de despejo contra BB alegando ter dado de arrendamento, ao marido da Ré, em 24 de Maio de 1963, o 3.º andar do seu prédio n.º 173-175 da Av. ..., em Lisboa; que o arrendamento foi destinado a habitação e, posteriormente, transmitido à Ré; que esta deixou de habitar o arrendado há mais de um ano estando, desde Novembro de 2004, a residir na Póvoa de Varzim; que a retenção do andar sem o utilizar tem prejudicado a autora, no mínimo, em 1250,00 euros por mês.

A Ré contestou, alegando, nuclearmente, que tem a sua residência permanente no arrendado mas que, como enviuvou, se ausenta várias vezes ao ano, por períodos de uma a duas semanas, para visitar as suas irmãs e filhos.

A autora faleceu entretanto tendo disso habilitados como seus herdeiros CC, DD, EE, FF, GG e HH.

Na 13.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa a acção foi julgada procedente, na parte referente à resolução do contrato de arrendamento e à consequente condenação da Ré a despejar o locado.

No mais (indemnização), foi absolvida do pedido.

Inconformada apelou para a Relação de Lisboa que confirmou o julgado.

Vem, agora, pedir revista, concluindo, em síntese, as suas alegações:

- Com os factos provados, a sentença deveria ter sido tomada em sentido contrário;

- Conforme é entendimento do Prof. Antunes Varela, ao afastar o direito o direito de resolução do arrendamento na desabitação do prédio por mais de um ano ou na falta de residência permanente do inquilino no prédio destinado a habitação, sempre que o facto atribuído ao arrendatário resulte de caso de força maior ou de doença, a lei quer efectivamente abranger os casos em que a desabitação ou a falta de residência permanente se torna compreensível, aceitável, perfeitamente explicável.

- Ora, é precisamente isto que acontece no presente caso.

- A arrendatária tem 78 anos, e suas ausências do locado devem-se à circunstância de se encontrar debilitada fisicamente, tendo dificuldades de locomoção e de audição, encontrando-se mais acompanhada quando permanece em casa dos filhos e irmãs no Norte do País.

- Todavia, regressa habitualmente ao arrendado em causa já que não tem qualquer casa própria ou, por si, arrendada .

- E, tanto aí regressa (costume adoptado desde a morte do S/marido e primitivo arrendatário e do conhecimento da primitiva Autora), que, foi dado como provado que a Ré só abre a porta de entrada do 3º andar referido a quem a visita, na sequência de um prévio contacto para o telemóvel daquela.

- No locar arrendado a aqui Recorrente tem todos os seus pertences, móveis, fotografias, recordações, vestuário, toma as suas refeições, recebe aí a sua família e amigos e toda a sua correspondência.

- Pelo que se pode afirmar, sem mais, que o arrendado em causa é o local onde a arrendatária tem organizada a sua vida familiar e a sua economia doméstica.

- A Recorrente tem, portanto aí a sua residência habitual e não possui qualquer outro local a que chame casa pois, repita-se, durante parte do ano, está em diversos locais.

Culmina, com a citação de vária jurisprudência, a pedir a revogação do aresto sob revista.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

- Pela Ap. 29 de 1999/03/30, encontra-se inscrita na 9ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a aquisição a favor da autora, por sucessão e partilha, dó prédio urbano sito na Avenida ..., nos 173 e 175, São Sebastião da Pedreira, Lisboa – (A);

- Por acordo escrito realizado em 24 de Maio de 1969, com início a 1 de Junho do mesmo ano, a autora declarou dar de arrendamento ao marido da autora, MS, que declarou tomá-lo de arrendamento, para habitação, pelo prazo de seis meses, sucessivamente renovado por iguais períodos, mediante a renda mensal de 2.800$00, o 3º andar do prédio identificado em 1. – (B);

- A ré é, presentemente, a inquilina do 3º andar referido em 2. – (C);

- À presente data a renda mensal ascende a € 103,47 - (D);

- A renda referente ao mês de Novembro de 2004 foi paga à ré através do cheque nº 690000000, sacado pelo ilustre advogado subscritor da contestação, Dr. Luís ..., com escritório no Porto, sobre a conta nº 0021000000, de que este é titular no Millenium BCP – (E);

- A partir de Novembro de 2004 o valor correspondente a cada uma das rendas mensais referentes ao 3º esquerdo passou a ser enviado à autora através de vales de correio, neles figurando como remetente o nome da ré, a partir do balcão dos CTT da Praia, Póvoa do Varzim – (F);

- Em 13 de Julho de 2005 a autora enviou à ré, registada e com aviso de recepção, a carta que se encontra a fls. 31, da qual consta o seguinte:

“Como V. Exa sabe o andar que lhe foi arrendado é para a sua residência permanente. Há mais de um ano que Vª Exa não habita o arrendado, por isso não fazendo dele a sua residência permanente, pelo que este facto é motivo de despejo. Além disso, consta no contrato de arrendamento que V. Exa enquanto arrendatária é obrigada a fazer o pagamento da renda em minha casa ou no banco que lhe for indicado.

Apesar disso, V. Exa insiste em não habitar o arrendado nem pagar a renda conforme o estipulado. Por isso venho informá-la, que não aceito o pagamento da renda através de vale postal, e dado que não habita o arrendado, me devolva o mais breve possível as chaves, entregando-me o andar que se encontra vago a fim de evitar a acção de despejo” – (G);

- A carta referida em 7. não foi recebida pela ré, tendo sido devolvida à autora com a indicação de “não reclamada” – (H);

– Em 9 de Agosto de 2005 a autora enviou à ré, registada e com aviso de recepção, uma carta com teor idêntico à referida em 7. – (I);

- A carta referida em 9. não foi recebida pela ré, tendo sido devolvida à autora com a indicação de “não reclamada” – (K);

– Em 01.03.2006 e 02.05.2006 o filho da ré, MS, enviou à autora cartas expedidas da Estação da Praia dos CTT, Póvoa do Varzim, pelas quais indicava datas alternativas para esta examinar o 3º andar referido em 2. – (L);

– As cartas cujas cópias constam de fls. 39 e 41 foram subscritas pelo ilustre advogado identificado em 5. – (M);

- O 3° esquerdo referido em 2. tem oito divisões – (N);

– Em 13.03.2006 a falecida autora AA enviou à ré, para a Avenida ..., nº 173, 3º, em Lisboa, a carta cuja cópia se encontra a fls. 37, da qual consta, além do mais, o seguinte: “Venho por este meio comunicar que, nos termos da alínea b) do art. 1038° do C.C., vou fazer uma visita ao andar de que lhe está arrendado, no dia 28 do corrente mês de Março, pelas 18 horas” – (1º);

- À data indicada na carta referida em 14. a ré não se encontrava no 3° andar referido em 2. – (2º);

- Além do que já consta, a 10., em Outubro e Novembro de 2005 e em Fevereiro de 2006, a autora enviou à ré, para a morada referida, cartas registadas com aviso de recepção, cujos avisos de recepção foram assinados por pessoa que não a ré – (3°);

- A partir de Novembro de 2004 o filho da autora, EE, deslocou-se por diversas vezes ao andar referido em 2. – (4º);

- E nunca ali foi atendido por quem quer que fosse, mesmo após tocar à campainha – (5º);

- Nem detectou sinais da presença de qualquer pessoa no interior do 3º esquerdo — (6º);

- O valor da renda mensal do 3º andar referido em 2., em 1 de Novembro de 2004, caso o mesmo se encontrasse desocupado de pessoas e bens, era de € 500,00 a € 600,00 – (7º);

- A ré tem dificuldades de locomoção pelos seus próprios meios – (8º);

- Por carta de 11.10.2004, a ré, através do ilustre advogado, Dr. Luís ...., solicitou à autora a indicação do NIB da sua conta bancária para passar a efectuar através de transferência bancária, o pagamento das rendas referentes ao andar referido em 2. – (9º);

- A autora não forneceu à ré o NIB da sua conta bancária – (10º);

- Em consequência do que o filho da ré passou, ele próprio, a proceder ao pagamento das rendas através dos vales de correio referidos em 6. – (11º);

- O filho da ré reside na Póvoa do Varzim – (12º);

- As cartas dirigidas à ré e enviadas para o 3º esquerdo referido em 2. são enviadas para a Póvoa do Varzim, a pedido do filho da ré, mediante a utilização de um serviço dos CTT denominado “Siga” – (13º);

- Além do que já consta em 11., era intenção do filho da ré ali identificado, estar presente no 3º andar referido em 2., na altura em que o filho da autora visitasse o imóvel — (14°);

— A ré ausenta-se do 3.º andar referido durante as estações da Primavera, Outono e Inverno, apenas ali passando os meses de Verão – (15º);

- Nos períodos em que se ausenta do 3º andar, a autora permanece em casa de filhos e irmãs, na zona Norte do País – (16º);

- A ré tem dificuldades de audição, usando dois aparelhos auditivos – (17º);

- A ré só abre a porta de entrada do 3º andar referido em 2. a quem a visita, na sequência de um prévio contacto para o telemóvel daquela – (19º e 20º);

- A ré nasceu no dia 29 de Abril de 1930 – documento de fls. 566.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1. Falta de residência permanente.
2. Conclusões.

1 – Falta de residência permanente

1.1- A limitação do objecto do recurso, a nível do concluído pela recorrente, conduz a que a única – e “pulcra quaestio” – se resuma à não verificação do fundamento de despejo, falta de residência permanente no locado.

Na ponderação da data de instauração da lide, é aplicável o Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 31 de Outubro), que não a nova regulamentação da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.

“In casu”, tratando-se de arrendamento para habitação, foi invocada como causa de pedir a alínea i), do n.º 1 do artigo 64.º, daquele diploma: falta de “residência permanente”, independentemente de o arrendatário habitar “ou não, outra casa própria e alheia”.

Trata-se, no essencial, do fundamento que antes constava da alínea h) do artigo 1093.º do Código Civil.

Para alcançar o respectivo conteúdo legal há que abordar a dogmática do conceito de residência permanente.

O Prof. Alberto dos Reis (in R.L.J. 79.º, 118) equiparava a residência permanente à residência habitual e estável, considerando, contudo, não ser exigível que a pessoa viva sempre numa casa, podendo ter outra onde se passe um, dois ou três meses por ano, por exemplo uma casa de campo ou de praia onde se instale durante o verão.

É, no entanto, essencial, que o centro de permanência estável e duradoura se situe num determinado local, que aí esteja instalado o seu lar, organizada a sua logística, onde convive, e da qual, sempre que se ausenta, o faz a titulo transitório, ou temporário, e com o propósito de regressar com estabilidade, por lá permanecer a sua economia doméstica e o seu agregado familiar.

A propósito, o Conselheiro Pais de Sousa (apud, “Extinção do Arrendamento Urbano”, 1980, 235), escreveu: “Assim, por motivos profissionais, são legítimas as ausências temporárias do arrendado (…). Entendemos, porém, que as ausências não podem ser demasiado prolongadas.” E referindo-se a um aresto da 2.ª instância que “sentenciou que tinha residência permanente a arrendatária que passava sensivelmente metade do ano noutra localidade em casa de familiares seus, e a outra metade na casa arrendada, onde mantinha o recheio da casa e para onde se deslocava, com aqueles familiares, em muitos fins de semanas e férias”, afirmou conter “doutrina muito discutível” por entender que “quem distribui o seu tempo, em partes mais ou menos iguais por duas ou mais casas, não terá residência permanente em nenhuma”. (cf., também, neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 1972 – BMJ 217-92; e de 5 de Março de 1985 – BMJ 345-372 – a conceptualizar a residência permanente como “a casa em que o arrendatário tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica.”)

Mais recentemente – Acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Dezembro de 2007 – 07 A4127 – decidiu que “residência permanente não significa residência única, sendo possível uma pessoa ter residências alternadas, onde vive interpoladamente, face a exigências da vida, desde que o faça com carácter de habitualidade e estabilidade.”

Já o Acórdão de 10 de Outubro de 2002 – P.º, n.º 2062/06 – julgara que a mesma pessoa pode ter residências alternadas que sejam residências permanentes. Para existirem essas residências permanentes alternadas torna-se necessário que, em relação a alguma delas, se verifique o condicionalismo previsto para o conceito de residência permanente: estabilidade, habitualidade, continuidade e efectividade de estabelecimento em determinados locais do centro de vida familiar.”

Assim é que a alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU pressupõe uma situação de residência estável e continuada com o desenvolvimento de toda uma actividade inerente à economia doméstica e familiar.

Aqui chegados, e convictos de ter elaborado o conceito – na esteira, “inter alia”, do Conselheiro Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, 4.ª ed., 64 e 360; Prof. Pereira Coelho – “Arrendamento”, Coimbra, 1988, 286; Prof. Antunes Varela – RLJ 123, 155 e com o Prof. Pires de Lima – “Código Civil Anotado”, 3.ª ed., II, 549; Conselheiro Pinto Furtado, “Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculisticos”, 2.ª ed., 509 e Profs. Almeida Costa e Henrique Mesquita, C.J., IX, I, 15 ss – passemos à subsunção da conduta da Ré.

1.2- Trata-se de uma senhora com 78 anos de idade, com dificuldades de locomoção pelos seus próprios meios, quase só ouve com próteses auditivas, viúva do primitivo arrendatário (em cujo arrendamento sucedeu).

Tem os seus familiares próximos (filhas e irmãs) a residirem no norte do país (o filho que gere o pagamento das rendas, na Póvoa do Varzim).

E é no norte que passa a Primavera, Outono e Inverno, com seus familiares, apenas passando os meses de verão no locado, em Lisboa, o qual mantém desocupado durante o resto do ano.

É, assim, fora de dúvida que deixou de ter a sua residência permanente em Lisboa, onde, aliás, com a sua situação de dependência física, muito difícil seria permanecer desacompanhada.

Nem se trata, sequer, de duas residências alternadas – ou de dupla residência permanente – pois tal pressupõe a verificação de exigências de vida profissional ou social e que a permanência em ambas seja feita em paridade e com carácter de estabilidade, habitualidade e manutenção da economia doméstica.

Ora, até as rendas são pagas por um filho, a partir da Póvoa do Varzim e a correspondência endereçada para o locado vem devolvida, ou é reenviada para aquela cidade por ausência do destinatário.

Como se diz no aresto recorrido, mais parece que o arrendado se tornou numa “casa de férias”.

Ademais, trata-se de um amplo andar (com oito divisões), notoriamente situado em zona nobre de Lisboa (Av. ...) com uma renda mensal de 103,47 euros.

Pretender mantê-la desocupada cerca de dez meses por ano sempre representaria o exercício ilegítimo do direito, por exceder manifestamente os limites do seu fim social e económico (artigo 334.º do Código Civil), abuso de conhecer “ex officio”.

Isto ainda que se desconsiderasse a notória desabitação do andar.

Improcede, em consequência, a revista.

2- Conclusões:

Pode, assim, concluir-se que:

a) O conceito de residência permanente pressupõe uma permanência estável e duradoura no local, com instalação do lar, logística e economicamente organizado para centro de vida do próprio e do seu agregado familiar.

b) A admissão de dupla residência permanente – ou de residências alternadas – supõe a necessidade de ambas por ponderosas razões profissionais ou sociais e que, em qualquer delas, se desenvolva, estável e continuadamente, a actividade inerente à vida doméstica e familiar.

c) Se a arrendatária, viúva, tem 78 anos de idade, não tem autonomia de locomoção, a audição só é possível com próteses e todo o seu agregado familiar próximo vive no norte do País, e ela aí se instala na Primavera, Outono e Inverno, aí recebendo o seu correio e daí pagando a renda, não se pode afirmar que tenha residência permanente no locado, onde só se desloca no verão.

d) Ademais, constituiria abuso de direito – por atentar manifestamente contra os limites do fim social e económico do arrendamento, pretender manter um arrendamento de habitação andar com oito divisões, em zona nobre de Lisboa e com renda mensal de cerca de 100 euros, apenas ocupado durante cerca de dois meses por ano.

Acordam, em consequência, negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2009



Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho