Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
108/08.4TBMCN.P1.S1-A
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SÉRGIO POÇAS
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORTE
CULPA
CULPA EXCLUSIVA
SEGURO OBRIGATÓRIO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÔNJUGE
DESCENDENTES
Data do Acordão: 06/05/2014
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, 129, 08.07.2014, P. 3728 - 3744; REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDÊNCIA 144 / NOV. - DEZ. 2014 - ANOT. P. 158 - 188; CADERNOS DE DIREITO PRIVADO, Nº 48 (OUT./DEZ. 2014 - ANOT. P. 17-40
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: NEGADA A REVISTA / UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática: DIREITO CIVIL - FONTES DAS OBRIGAÇÕES - RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL - ACIDENTE DE VIAÇÃO – CULPA – DIREITO À INDEMNIZAÇÃO – DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Doutrina: Baptista Machado, «Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador», 18.ª reimpressão, pág. 183;
Santos Justo, «Introdução ao Estudo do Direito», 4.ª edição, pág. 339;
Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, «O contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil», pág. 14.
Legislação Nacional: DL 522/85, DE 31-12 (NA REDACÇÃO DADA PELO DL 130/94): ARTS. 1.º, N.º 1, 5.º, AL. A), 7.º, N.º 1 E N.º 2, AL. D) E 8.º, N.º 1;
DL 291/2007 DE 21-08: ART. 14.º
CÓDIGO CIVIL: ARTS. 483.º, 496.º E 570.º, N.º 2.
Legislação Comunitária: DIRECTIVA 72/166/CEE DE 24-04-1972;
DIRECTIVA 84/5/CEE DE 30-12-1983;
DIRECTIVA 90/232/CEE DE 14-05-1990;
DIRECTIVA 2000/26/CE DE 16-05-2000;
DIRECTIVA 2005/14/CE DE 11-03-2005;
DIRECTIVA 2009/103/CE DE 16-09-2009
Jurisprudência Nacional: AC. STJ DE 08-01-2009, PROC. 08B3796;
AC. STJ DE 14-02-2013, PROC 705/08, 2.ª SECÇÃO
AC. STJ DE 08-01-2009 – 08B3722, 2.ª SECÇÃO
Jurisprudência Internacional: AC TJUE DE 23-10-2012, PROC. MARQUES ALMEIDA;
AC. TJUE DE 30-06-2005, PROC. CANDOLIN
AC. TJUE DE 09-06-2011, PROC. AMBRÓSIO LAVRADOR
AC. TJUE DE 19-04-2007, PROC. ELAINE FARRELL

Sumário :

No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do art. 496.º do CC não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte.

Decisão Texto Integral:

         Acordam em pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça.

I. Relatório

AA, BB e CC intentaram acção declarativa de condenação na forma ordinária contra a Companhia de Seguros DD tendo pedido a condenação da Ré a pagar as quantias de € 19.000,00 à viúva, BB; € 15.000,00 a cada um dos filhos a título de danos não patrimoniais.

O Tribunal de 1ª instância julgou a acção improcedente in toto absolvendo a Ré do pedido contra ela formulado.

Os AA. recorreram da decisão tendo a Relação do Porto julgado parcialmente procedente a apelação e revogando nessa medida a sentença recorrida, condenou a Ré DD Portugal Lda., a pagar a cada um dos AA.  o montante de € 10.000,00, em virtude da morte do seu familiar no acidente de viação dos autos, acrescida de juros de mora contados desde a citação da Ré até integral pagamento à taxa legal.

Inconformada com o decidido recorreu de revista a Ré DD tendo pedido a sua absolvição do pedido.

Por acórdão deste Supremo Tribunal inserto a fls. 194 ss a 24/2/2011, foi concedida a revista e assim absolvida a Ré do pedido que contra a mesma era formulado.

Inconformados recorrem agora os AA. para o Pleno deste STJ para uniformização de jurisprudência (Acórdão-Fundamento deste Supremo Tribunal de 8/1/2009, nº 08B3796) tendo pedido que se revogue o acórdão recorrido, o qual deverá ser substituído por outro em que se decida a questão controvertida.

Os recorrentes concluíram do modo seguinte:

1) De acordo com o disposto no artigo 7º nº 2 alínea d) do DL 522/85 de 31/12 com a redacção do DL 130/94 de 19/5, excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões materiais causados ao cônjuge e descendentes entre outras pessoas.

2) O facto de a exclusão contida no nº 2 alínea d) se limitar à indemnização pelos danos decorrentes de lesões materiais significa que o legislador não terá querido excluir os danos próprios de natureza não patrimonial sofridos pelo cônjuge e filhos do condutor do veículo decorrentes da sua morte consistentes no sofrimento desgosto e tristeza que essa mesma morte lhes provocou.

3) Este entendimento parece reforçado no confronto com o nº 3 do mesmo artigo 7º onde se exclui especificamente qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais.

4) Na verdade tendo os AA. direito a serem indemnizados pelos danos não patrimoniais sofridos nos termos do disposto no artigo 496º nº 3 do Código Civil e não estando tal direito de indemnização excluído no artigo 7º do DL 522/85, teremos de concluir que os AA. têm direito a ser indemnizados na qualidade de terceiros que efectivamente são pelos danos próprios sofridos com a morte do seu marido e pai.

Contra-alegou a Ré DD Seguradora concluindo que os danos sofridos pelo condutor de uma viatura automóvel, designadamente em consequência de acidente que lhe seja imputável a título de culpa não se encontram abrangidos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil a ela respeitante nem, em caso de morte daquele, tal seguro abrange os danos não patrimoniais que desse facto – morte – possa advir para os familiares.

        

O MP apresentou parecer no qual concluiu: «No caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, não se verifica o direito à reparação dos danos não patrimoniais provenientes daquela morte, por parte das pessoas designadas no nº 2 do artigo 496º do Código Civil, ficando prejudicada a subsequente questão respeitante à cobertura de tais danos em vista do disposto no artigo 7º do DL 522/85 de 31 de Dezembro na redacção do DL 130/94 de 19 de Maio”.

A fls. 78 ss foi formulado pedido de decisão prejudicial, nos termos do artigo 234° CE, apresentado por este Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, tendo por objecto a interpretação dos artigos 1º, nº 1 e 3º da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983 e artigo 1º da Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativas à aproximação das legislações dos Estados Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis.

Concretamente formulava-se a seguinte questão prejudicial:

“Devem os artigos 1º, nº 1 e 3º da 2ª Directiva e o artigo 1º da 3ª Directiva conjugadamente ser interpretados no sentido de que se opõem a que a legislação nacional tenha por excluído o direito à reparação dos danos não patrimoniais dos membros da família do condutor decorrentes da morte do mesmo quando o acidente se tenha ficado a dever a culpa exclusiva dele próprio”?

Aquele Tribunal remeteu fotocópias de decisões proferidas em casos semelhantes.

Perguntou ainda se perante o conteúdo das aludidas decisões, ainda interessava que o Tribunal da União Europeia se pronunciasse especificamente sobre a questão em causa, ao que foi respondido de forma negativa.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Sem prejuízo do conhecimento oficioso que em determinadas situações se impõe ao tribunal, o objecto e âmbito do recurso são dados pelas conclusões extraídas das alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC).

Nas conclusões, o recorrente – de forma clara e sintética, mas completa – deve resumir os fundamentos de facto e de direito do recurso interposto. 

Face ao exposto e às conclusões formuladas importa resolver:
a) se os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do condutor que veio a falecer em consequência de acidente, que lhe seja imputável a título de culpa, se encontram a coberto do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil;
b) se, a responder-se afirmativamente à questão anterior, deve ser arbitrada indemnização por  danos  sofridos pelos autores (viúva e filhos) com a morte do condutor EE.   


                                                       

II. Fundamentação.

II.I. De Facto

O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,

1.1. No dia 19 de Novembro de 2006, cerca das 11.15, na EN nº 211, Km 8,50, Fornos, Marco de Canaveses, ocorreu um embate em que foram intervenientes os veículos ligeiros de passageiros de matrícula ...-CX, conduzido por EE e o de matrícula ...-EH, propriedade e conduzido por FF;

1.2. Por contrato de seguro para o efeito celebrado, válido e eficaz na data do acidente, EE havia transferido a responsabilidade civil emergente de circulação rodoviária do veículo ...-CX para a Companhia de Seguros DD Portugal, S.A., aqui Ré, contrato esse titulado pela apólice nº ...;

1.3. Por contrato de seguro para o efeito celebrado, válido e eficaz na data do acidente, FF havia transferido a responsabilidade civil emergente de circulação rodoviária do veículo ...-EM para a Companhia de Seguros “GG Seguros”, contrato esse titulado pela apólice nº ...;

1.4. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionados, o condutor do CX seguia na referida EN, no sentido Soalhães/Porto;

1.5. Por sua vez o EM seguia em sentido contrário, ou seja, no sentido Porto/Soalhães;

1.6. Ao Km 8,50, na localidade de Fornos, Marco de Canaveses, a via tem duas faixas de rodagem, uma em cada sentido;

1.7. O condutor do CX, ao descrever uma curva à sua esquerda, atento o sentido que seguia, perdeu o controlo do veículo e entrou em despiste invadindo a faixa do sentido oposto e foi embater no EM;

1.8. A faixa de rodagem da E.N. 211 tinha a largura de cerca de 7,30 metros;

1.9. O pavimento era em asfalto e em bom estado de conservação;

1.10. No momento do embate o tempo era bom e o pavimento estava seco;

1.11. Em resultado directo do embate acima descrito, o condutor do CX, EE, veio a falecer;

1.12. EE era casado com BB, aqui Autora, sob o regime da comunhão geral de bens;

1.13. Desse casamento nasceram dois filhos CC e AA, aqui Autores;

1.14. Os Autores sentiram desgosto com a morte do falecido EE;

1.15. O veículo CX foi adquirido na constância do matrimónio entre a Autora BB e o falecido EE;

1.16. O falecido EE era um homem digno, sendo o enlevo dos Autores;

1.17. Entre o falecido e os Autores existia uma ligação sentimental, sendo forte e recíproca a afeição que mutuamente nutriam;

1.18. Os Autores sentiram a morte do falecido com dor, desgosto e abalo psicológico;

1.19. Os Autores eram amigos do falecido EE, estando a ele ligados por laços de afeição, amor e carinho;

1.20. O falecido era pessoa forte e saudável e nunca padeceu de qualquer deformidade ou enfermidade.

II.II. De Direito                                                 

1.A primeira questão:

Os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do condutor que veio falecer em consequência de acidente que lhe seja imputável a título de culpa encontram-se a coberto do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil?

2. Como se sabe, o Supremo Tribunal de Justiça não tem dado resposta uniforme à questão formulada, de que são exemplo [2]o acórdão fundamento e o acórdão recorrido em análise no presente recurso.  

Assim sobre a problemática escreve-se no acórdão fundamento de 08/01/ 2009, Proc. 08B3796, designadamente:

«A al. d) do nº 2 do citado art. 7º [do DL 522/85, na redacção do DL 130/94] exclui o cônjuge e descendentes do condutor de serem ressarcidos dos danos sofridos decorrentes de lesões materiais.

Mas as autoras vêm aqui reclamar o ressarcimento dos danos próprios de natureza não patrimonial que padeceram com a perda de seu marido e pai.
Em primeiro lugar, elas não estão a reclamar o ressarcimento de danos emergentes de lesões materiais. E, em segundo, não estão a reclamar a indemnização de qualquer direito que existisse na titularidade das relações jurídicas patrimoniais do seu familiar, condutor do veículo, mas sim de um direito próprio, estranho a esse seu familiar, embora originado na consequência funesta que lhe adveio com o acidente.

A garantia de seguro já não exclui os danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos pelo cônjuge e filhos do condutor do veículo decorrentes da sua morte, consistentes nos sofrimentos, desgosto e tristeza que essa mesma morte lhes provocou.

E este entendimento até aparece reforçado no confronto com o nº 3 do mesmo art. 7º onde se exclui especificamente qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais. Se houve a intenção explícita de não conferir ao condutor o direito a indemnização por este tipo de danos, é porque a exclusão contida na aludida al. d) do nº 2 se limita à indemnização pelos danos decorrentes de lesões materiais.

O ressarcimento dos danos reclamados pelas autoras não está excluído da garantia do seguro e, como tal, está a ré seguradora obrigada a indemnizá-las dos danos não patrimoniais que lhes provocou a morte de seu marido e pai» (sublinhado nosso).

Por sua vez no acórdão recorrido escreve-se, designadamente:

«No caso 'sub-judice', … o acidente, que determinou as lesões causadoras da morte do marido e pai dos AA., ficou a dever-se a culpa daquele, condutor da viatura no momento do acidente, sendo-lhe, assim, imputável a verificação do dano morte, dano este que, enquanto vítima (lesado), não era susceptível de originar uma obrigação de indemnizar na medida em que era resultante de actividade do próprio e violadora do seu direito - cfr. arts. 483° e 570°, n° 2 do CCivil.

Daí que, inexistindo a obrigação de indemnizar o dano morte por este não resultar da violação ilícita de um direito de outrem, princípio este transversal a todo o regime da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos, soçobre qualquer obrigação de indemnizar decorrente desse facto originário – morte, na medida em que ela resulta de conduta culposa e lesiva do direito à vida do próprio, e a indemnização prevista no art. 496° do CCivil, por danos não patrimoniais dos familiares da vítima, por maior que tenha sido o seu padecimento, independentemente de poder ser considerado dano próprio ou não, não deixa de ser um dano indirecto que exige a verificação de indemnizar[i]por outrem que não da própria vítima (lesado).

Assim, haver-se-á de concluir pela inexistência da obrigação de indemnizar pela Ré Seguradora, no âmbito do contrato de seguro celebrado e accionado, enquanto seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por, no caso, inexistir obrigação de indemnizar os familiares da vítima em consequência de lesão provocada por si e sobre si mesmo, sendo que tal obrigação de indemnizar, e que veio de ser accionada, salvo melhor entendimento, não resulta, portanto, do regime jurídico do seguro obrigatório automóvel previsto no Dec. Lei nº 522/85, de 31/12»[3]

3.É assim nítida (aliás neste particular não há dissenso) a oposição de julgados: se no acórdão recorrido se decide pela inexistência da obrigação de indemnizar pela Ré Seguradora, no âmbito do contrato de seguro celebrado e accionado enquanto seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por, no caso, inexistir obrigação de indemnizar os familiares da vítima em consequência de lesão provocada por si e sobre si mesmo; no acórdão fundamento decide-se precisamente em sentido contrário, ou seja, pela existência da referida obrigação de indemnizar. 

4.Parece não oferecer discussão que a solução da questão (se os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do condutor que veio a falecer em consequência de acidente, causado por culpa, se encontram a coberto do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil, recorde-se) há-de ser encontrada nas normas do direito interno.
Neste sentido aponta a resposta dada pelo TJ ao pedido – pedido que não chegou a conhecer, note-se – de reenvio prejudicial formulado nestes autos, aliás de acordo com o que vem sendo a sua jurisprudência[4].
Sobre esta questão, escreve-se no Ac. identificado na nota 3 «Na verdade, se assiste aos familiares do condutor falecido qualquer direito, ele há-de ser encontrado nas normas internas.

No fundo, estamos aqui perante o princípio de que, se não tiver de ser acautelado o efeito útil das directivas – que pode, aliás, como vimos chegar até à sua aplicação directa – é no direito interno que se encontra a estatuição referente aos pressupostos da responsabilidade civil e – embora isso aqui não interesse – a relativa ao nível indemnizatório».  
No mesmo sentido se pronuncia o MP nestes autos. Com efeito escreve: «A determinação do regime de responsabilidade civil e os respectivos termos de aplicação competem à lei interna dos diversos Estados-membros – indo, obviamente, ressalvado que as normas de direito interno não podem privar as disposições comunitárias do seu «efeito útil»: questão expressamente referida na última parte do considerando 15º da 5ª Directiva, acima transcrita»[5].

Sufragamos a posição acima expressa, posição esta que se mostra de acordo com as Directivas Comunitárias e a jurisprudência do TJ (atente-se no conteúdo da nota 4).     

Na verdade, tal como o TJ tem vindo a decidir, o regime da responsabilidade civil, acautelado o efeito útil das directivas, compete à lei interna de cada um dos Estados-membros.

Aliás sobre este ponto não há divergência entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido, uma vez que ambos resolvem a questão na interpretação e aplicação das normas de direito interno.

Assente que a questão deve ser apreciada na interpretação do direito interno, vejamos então.

5. Como é patente na respectiva fundamentação (atente-se nomeadamente na parte acima transcrita), o acórdão fundamento sustenta a sua decisão no disposto na alínea d) do nº 2 e no nº 3 do artigo 7º do DL nº 522/85 de 31/12, na redacção dada pelo DL nº 130/94 de 19/05[6].

Vejamos então as normas expressamente convocadas nesta decisão:

«Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões materiais causados às seguintes pessoas:

d) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) e b) do nº 1, assim como outros parentes ou afins até ao 3º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando com elas coabitem ou vivam a seu cargo;» (alínea d) do nº 2 do identificado artigo 7º)
«3 – No caso de falecimento, em consequência do acidente, de qualquer das pessoas referidas nas alíneas d) e e) do número anterior,
é excluída qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais» (nº 3 do mencionado artigo 7º) 

Na verdade argumenta-se (atente-se no trecho citado): se na norma (o referido corpo do nº 2) se refere expressamente a exclusão dos danos decorrentes de lesões materiais, é porque são só estes que estão excluídos e não também os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas indicadas na referida alínea d). Aliás este entendimento sairia reforçado no estatuído no nº 3, acrescenta-se.

De facto, escreve-se: «E este entendimento até aparece reforçado no confronto com o nº 3 do mesmo art.7º onde se exclui especificamente qualquer indemnização ao responsável culposo de onde se exclui especificamente qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais. Se houve a intenção explícita de não conferir ao condutor o direito a indemnização por este tipo de danos, é porque a exclusão contida na aludida al. d) do nº 2 se limita à indemnização pelos danos decorrentes de lesões materiais».

Discorda-se deste entendimento.

Fundamentemos:

Em primeiro lugar e salvo o devido respeito, parece que a interpretação das normas invocadas (nºs 2 e 3 do artigo 7º) não pode ser feita isoladamente mas dentro de todo o quadro normativo pertinente.[7] Assim e desde logo importa analisar as normas dos artigos 1º, nº 1, 5º, alínea a) e 7º, nº 1 e 8º, nº 1 do mencionado DL 522/85.

Estatui-se no primeiro preceito indicado: «Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por seguro que garanta essa mesma responsabilidade».

Por sua vez, dispõe-se naquele artigo 5º, alínea a):

«O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 1º abrange:
a) Relativamente a acidentes ocorridos no território nacional referido na alínea a) do nº1 do artigo 4º, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil até ao montante do capital obrigatoriamente seguro, por sinistro e por veículo causador e relativamente aos danos emergentes de acidente não excepcionados no presente diploma».

Finalmente diz o nº 1 do artigo 7º «Excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro» (sublinhado nosso).

Face às normas citadas, parece claro que a questão da obrigação de indemnizar pela seguradora tem de ser analisada no quadro dos pressupostos da responsabilidade civil para o qual as normas citadas expressamente remetem.[8]     

Sendo assim as coisas, como são, para o caso que nos ocupa, importa ter presente nomeadamente o disposto nos artigos 483º[9] e 496º, nº 2 do CC[10].

O caso:

Se o marido e progenitor causou por culpa sua (sobre este ponto não há discussão) a própria morte, claramente não existe um terceiro a quem imputar este resultado (morte).

Ora não havendo este terceiro responsável pela morte do condutor, como não há, os danos sofridos pelos filhos e viúva em consequência desta morte não são indemnizáveis, melhor, compensáveis.

Na verdade (como resulta dos normativos citados), só havendo um terceiro que se houvesse constituído na obrigação de indemnizar o marido e progenitor é que os danos sofridos pelos filhos e viúva poderiam ser compensáveis.

Como se sabe, o sofrimento dos filhos e viúva só é indemnizável reflexamente, isto é, desde que o seu progenitor seja lesado.

Ora, no caso, o condutor, marido e pai, porque causador com culpa da produção do acidente, não foi lesado (vítima) de conduta ilícita de outrem, como se reconhecerá.

Finalmente importa ter presente que o disposto no nº 2 do artigo 496º não é fonte autónoma de obrigação de indemnizar. A obrigação de indemnizar há-de estar já reconhecida de acordo com os requisitos do artigo 483º [11].

Na verdade, naquele normativo (496º, nº 2) visa-se tão só determinar a titularidade do direito à indemnização ali prevista.

Assim, pelo que temos vindo a expor, e salvo o devido respeito, não se nos afigura fundada a posição (sustentada designadamente no acórdão fundamento) que alicerça a obrigação de indemnizar da seguradora na norma do nº 2, alínea d) e do nº 3 do citado artigo 7º e aparentemente desconsiderando o quadro normativo respeitante aos pressupostos da responsabilidade civil (o contrato de seguro obrigatório automóvel é um seguro de responsabilidade civil e não de danos próprios, sabe-se)
Face à argumentação do acórdão fundamento, diga-se ainda: se o nº 1 do artigo 7º
exclui da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro, logo se vê que a questão dos danos decorrentes de tais lesões corporais – e os danos não patrimoniais sofridos por causa da morte sofridos pela viúva e filho são danos decorrentes daquelas lesões – estava ali contemplada e daí que não tivesse de ser tratada no nº 2 do referido preceito[12].

(Note-se que no artigo 14º do actual diploma, DL nº 291/2007 de 21/08, se dispõe:  

Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles)

Como nos parece nítido, se a exclusão estava expressamente prevista no nº 1, não tinha que ser repetida no nº 2.

Como parece claro, se a norma do nº 1 do artigo 7º se refere a danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles, já a alínea d) do nº 2 refere-se a danos próprios, directos dos familiares do segurado.

Depois a norma do nº 3 («No caso de falecimento, em consequência do acidente, de qualquer das pessoas referidas nas  alíneas d) e e) do número anterior, é excluída qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais) e salvo o devido respeito, não parece que reforce a posição do acórdão fundamento. O que aqui se diz claramente é que na situação ali descrita ao responsável pelo acidente é excluída qualquer indemnização por danos não patrimoniais (o que aliás já resultava claro, salvo melhor opinião do nº 1 do referido artigo 7º) É destes danos não patrimoniais que a norma trata e não de quaisquer outros[13].

 Mas se os danos não patrimoniais que temos vindo analisar (e que estão em causa nos autos) estão excluídos, como estão, da garantia de seguro obrigatório, haverá danos não patrimoniais – os materiais estão expressamente excluídos – sofridos pelas pessoas indicadas na referida alínea d) do nº 2 incluídos na referida garantia de seguro?
A resposta é afirmativa.
Parece-nos que aquela alínea abarca os casos em que as pessoas ali referidas são terceiros face ao condutor causador do acidente e seu familiar. Por exemplo, se o cônjuge que é passageiro do veículo conduzido pelo marido condutor causador do acidente sofre ferimentos, os danos não patrimoniais daqui resultantes não estão excluídos da garantia de seguro obrigatório, seja por força do nº 1, seja por força da alínea d) do nº 2 do referido artigo 7º.
Na verdade se a norma exclui expressamente os danos materiais, já não exclui aqueles danos não patrimoniais (próprios e directos), normalmente de gravidade maior quando comparados com os materiais.   

Em suma, e pelo que se expôs, para o que se remete, parece claro, e salvo o devido respeito, que a posição do acórdão fundamento não é de sufragar. Ao contrário, deve ser mantida a decisão do acórdão recorrido que nenhuma censura merece.  

De facto o tribunal recorrido tem inteira razão quando conclui: «Daí que, inexistindo a obrigação de indemnizar o dano morte por este não resultar da violação ilícita de um direito de outrem, princípio este transversal a todo o regime da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos, soçobre qualquer obrigação de indemnizar decorrente desse facto originário – morte, na medida em que ela resulta de conduta culposa e lesiva do direito à vida do próprio, e a indemnização prevista no art. 496° do CCivil, por danos não patrimoniais dos familiares da vítima, por maior que tenha sido o seu padecimento, independentemente de poder ser considerado dano próprio ou não, não deixa de ser um dano indirecto que exige a verificação de indemnizar por outrem que não da própria vítima (lesado). (sublinhado nosso)

Assim porque o acórdão recorrido se mostra devidamente fundamentado, no respeito do quadro normativo do direito comunitário, do texto constitucional e das normas pertinentes do direito interno, designadamente o disposto nos artigos 1º, 5º, 7º, nºs 1, 2 e 3 e 8º, todos do DL 522/85 e nos artigos 483º e 496º nº 2 do CC, o recurso improcederá.

A inquestionável função social e económica do contrato de seguro obrigatório automóvel, no actual quadro normativo, não afasta, pelo contrário exige, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil, todos e não apenas o dano.  

Improcedendo como improcede a primeira questão, fica prejudicado o conhecimento da segunda - a concreta indemnização pedida.

III. Decisão

Assim e pelas razões expostas, decide-se:

a) negar a revista e manter a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes

c) Uniformizar a Jurisprudência nos seguintes termos:

No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no nº 2 do artigo 496º do Código Civil não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte.

Em Lisboa, 05 de Junho de 2014
Sérgio Poças (Relator)

Fernandes do Vale
Gabriel Catarino
Silva Gonçalves
Abrantes Geraldes
Ana Paula Boularot
Pinto de Almeida
Azevedo Ramos
Nuno Cameira
Pires da Rosa
Bettencourt de Faria
Sousa Leite
Salreta Pereira
Pereira da Silva
João Bernardo
João Camilo
Paulo Sá
Fonseca Ramos
Garcia Calejo
Serra Baptista
Helder Roque
Lopes do Rego
Orlando Afonso
Granja da Fonseca (vencido, subscrevendo a declaração de voto do Cons. Álvaro Rodrigues)
Fernando Bento (vencido subscrevendo a declaração de voto do Cons. Álvaro Rodrigues)
João Trindade (vencido de acordo com a declaração de voto do Cons. Álvaro Rodrigues)
Tavares de Paiva (vencido, conforme declaração de voto do Cons. Álvaro Rodrigues)
Maria Clara Sottomayor (vencida, conforme declaração de voto do Cons. Távora Vítor)
Sebastião Póvoas (vencido nos termos da declaração junta)
Moreira Alves (votei vencido, conforme declaração que junto)
Alves Velho (vencido, subscrevendo a declaração de voto do Exmo. Cons. Moreira Alves)
Maria dos Prazeres Beleza (vencida, nos termos da declaração que junto)
Oliveira Vasconcelos (vencido de acordo com a declaração do Cons Távora Victor)
Salazar Casanova (vencido com declaração de voto que junto)
Álvaro Rodrigues (votei vencido, de acordo com a declaração de voto que junto)
Távora Victor (com a declaração de voto que junto)
Henriques Gaspar (Presidente) - (tem voto de conformidade do Senhor Conselheiro Serra Baptista, que não assina por neste momento não estar presente)

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[1] Relator por vencimento- Sérgio Poças.
[2] Na linha do acórdão fundamento, entre outros, o AC de 14/02/2013, proc.705/10.8, relatado pelo Conselheiro Álvaro Rodrigues e acessível na internet (dgsi); na linha do acórdão recorrido, entre outros, o AC deste Tribunal de 08/01/2009, proc. 08B3722, relatado pelo Conselheiro João Bernardo e acessível na internet (dgsi).  
[3]Esta decisão insere-se na linha do Ac. deste Tribunal de 08/01/2009, relatado pelo Conselheiro João Bernardo e melhor já identificado na nota anterior. 

4 O TJ fez acompanhar a resposta dada de algumas decisões por si proferidas, designadamente a de 23/10/2012 na qual declarou: «Em circunstâncias como as dos processo principal o artigo 3º, n º 1, da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, o artigo 2º, nº 1, da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e o artigo 1º da Terceira Directiva 90/232 /CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a disposições nacionais que, no caso de colisão entre dois veículos automóveis que tenha causado danos corporais ao passageiro de um desses veículos, sem que seja possível imputar a culpa aos condutores dos referidos veículos, permitam limitar ou excluir a responsabilidade civil dos segurados” (sublinhado nosso).
No acórdão identificado na nota anterior, dando conta dessa reiterada jurisprudência, escreve-se: «Tal tem vindo a ser afirmado pela jurisprudência do TJ (Acórdão Mendes Ferreira já citado, Candolin – de 30/06/2005 transcrito  na CJ STJ XII,II, 7 e Elaine Farrel já referido e veio a ser vertido no nº16 dos fundamentos da 5ª Directiva (2005/14/CE do Parlamento e do Conselho, de 11/05/2005), esta quando, a propósito dos danos pessoais e materiais sofridos por peões ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, refere que esta disposição não condiciona a responsabilidade civil nem o nível de indemnização por um acidente específico, ao abrigo da legislação nacional».
Igualmente o MP no seu parecer identifica diversas decisões no mesmo sentido do TJ.        

[5]A respeito de acidentes estradais em matéria de seguro foram já emitidas pela Comunidade Europeia cinco Directivas, a saber:

nº 72/166/CEE de 24/4/1972  (primeira directiva);

nº 84/5/CEE  de 30/12/1983 (segunda directiva);

nº 90/232/CEE de 14/5/1990 ( terceira directiva);

nº 2000/26/CE de 16/05/2000 (quarta directiva);

nº 2005/14/CE de 11/03/2005(quinta directiva).

Posteriormente foi publicada a Directiva nº2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009 que consolidou e substituiu as directivas acima identificadas. 
[6] Ao caso, como aliás é pacificamente aceite, designadamente pelas partes, é aplicável o DL nº 522/85, na redacção dada pelo DL nº 130/94 na decorrência da Directiva nº 90/232CEE. 
[7]Como escreve Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18.ª Reimpressão, pág. 183:

«O elemento sistemático "compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o "lugar sistemático" que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário».

 Ainda a ter em atenção os ensinamentos  de Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 4.ª edição, pág. 339.

«O elemento racional (ou teleológico) "constitui a ratio legis, ou seja, a razão-de-ser, o fim ou objectivo prático que a lei se propõe atingir. A ratio legis revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma jurí­dica disciplina e, sendo o intérprete um colaborador do legislador, a sua importância é fundamental.»
[8]Neste sentido, quando trata da interpretação do artigo 7º do DL 522/85, escreve-se no AC. deste Tribunal de 08/01/2009 já identificado na nota 3: «Ora vê-se da evolução histórica da redacção do artigo 7º do mencionado Decreto-Lei que não está em qualquer dos preceitos a ter em conta protecção especial dos familiares, mormente os familiares do condutor. O que está em tais normativos é antes a sua não discriminação quanto aos danos pessoais, o afastamento da sua exclusão por terem tal qualidade. Assim como não está qualquer protecção a tais familiares pelo facto de o condutor ser uma pessoa que transitava no veículo. O normativo não preenche o que as directivas deixaram em vazio quanto à favorabilidade dos familiares. Relativamente a estes valem também as disposições do artigo 1º, nº 1e 8º, nº 1 ainda do mesmo Decreto-Lei que remetem para o regime da responsabilidade civil.
Ganham, pois, relevo os pressupostos desta fixados no artigo 483º do Código Civil, mormente o relativo à culpa na violação de direitos de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Ora foi o próprio condutor e vítima quem agiu com culpa…» (sublinhado nosso).          

[9]Dispõe-se «Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
[10]Doravante se o contrário não foi dito os preceitos citados integram o Código Civil.
[11]Assim e salvo o devido respeito, não parece que a solução da questão pudesse passar por uma interpretação actualista do nº 2 do artigo 496º.
[12]Como escreve (embora já sobre o regime da Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto) quando trata da questão das “Exclusões”, Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro in «O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil» pág. 14. «Quer significar esta disposição que estão abrangidas pelo contrato os danos indirectos sofridos por outrem como consequência das lesões corporais do condutor, nomeadamente pelo cônjuge e pelos descendentes ou ascendentes, mas apenas quando aquele não seja o responsável pelo acidente» (sublinhado nosso).

[13]Como se escreve no Acórdão recorrido: «Na realidade, afigura-se-nos, salvo o devido respeito pela opinião contrária, que do previsto no art.7º do Dec. Lei n° 522/85, de 31/12, se não poderá extrair qualquer argumento, designadamente 'a contrario sensu', no sentido da ressarcibilidade de tal dano no âmbito de tal regime jurídico; aliás, o n° 3 do citado normativo, conduzirá, salvo melhor opinião, a entendimento contrário, na medida em que o legislador teve o cuidado de afastar expressamente uma situação de possível ressarcibilidade de danos advindos, em consequência da morte de outrem, para o responsável culposo do acidente, isto é, de danos para si resultantes em consequência de conduta culposa sua, portanto, afastando uma possível obrigação de indemnizar nos termos dos arts. 483º e 496º do CCivil, já que se configuraria, originariamente, a violação ilícita do direito de outrem - direito à vida - gerador, por razões indirectas, de direito a indemnização do próprio lesante, ou seja, do autor da violação ilícita».(sublinhado nosso)

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Declaração de voto

Não acompanho o Acórdão ora votado, designadamente o seu segmento uniformizador, por, além do mais, me parecer poder ser interpretado como colidindo com o do Acórdão Uniformizador de 16 de Janeiro de 2014 – 6430/07.0TBBRG.S1.

Receio, assim, que fique frustrado o escopo primeiro desse tipo de jurisprudência, que é o evitar, ou pelo menos contribuir, para que no futuro não ocorram oposições de julgados.

Vejamos, então.

1- O aresto citado assim concluiu:

“Os artigos 483.º n.º 1 e 496.º n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.

Ou seja, foi entendido que em acidente de viação que não causou a morte da vítima o seu cônjuge tem direito a ser indemnizado dos danos “não patrimoniais particularmente graves” por si sofridos, desde que aquele tenha sido atingido “de modo particularmente grave”.

Em voto de vencido demarquei-me desta conclusão por, sobretudo, ter entendido que a interpretação alcançada não cabia na letra, ou no espírito, do n.º 1 do artigo 496.º CC e que a indemnização por lesão corporal da vítima (que não morte) apenas lhe caberia em sede de dano não patrimonial próprio, já que “a única excepção para o dano não patrimonial ocorre no caso de morte da vítima, sendo a sua reparação exigida por direito próprio, pelas pessoas taxativamente indicadas no n.º 2 do citado artigo 496.º”.

E continuei: “Do que se expôs, resulta que o legislador não admitiu o ressarcimento dos danos não patrimoniais conexos ou reflexos sofridos pelo cônjuge do lesado, excepto se este perder a vida em consequência da lesão”.

2- Somos agora confrontados com o seguinte segmento uniformizador:

“No caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação, causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte.”

Notam-se as seguintes diferenças entre os dois segmentos uniformizadores:

– No primeiro não ocorre a morte da vítima, enquanto no segundo esta morre no acidente;

– No primeiro não é feita qualquer referência à culpa na produção do evento, enquanto no segundo se refere que a vítima é o exclusivo culpado;

– No primeiro refere-se apenas o cônjuge da vítima sobrevivente, mas no segundo as pessoas do elenco do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil;

– Finalmente, no primeiro, ao contrário do segundo, não é feita qualquer referência ao seguro de responsabilidade civil.

3-1- Perante o que agora se expôs, é certo que tratando-se de acidente mortal as pessoas elencadas no n.º 2 daquele artigo 496.º sempre terão direito a serem indemnizadas, sendo que é caso – por se tratar de perda de vida em consequência da lesão – o cônjuge tem direito ao ressarcimento dos danos não patrimoniais conexos ou reflexos.

3-2- De outra banda, não me parece de acolher, como determinante, o argumento de ter a vítima sido exclusivamente culpada na produção do evento lesivo.

Movemo-nos no âmbito dos artigos 483.º (que dispõe a obrigação do dever de indemnizar) e 496.º, também do Código Civil (que se limita a elencar os titulares do direito à indemnização pelos danos não patrimoniais).

O artigo 483.º (cujo n.º 1 do Anteprojecto do Prof. Vaz Serra dispunha: “Aquele que, com dolo ou culpa, viola antijuridicamente os direitos de outrém constitui-se na obrigação de indemnizar ao lesado os anos resultantes dessa violação”, sendo que o n.º 2 presumia “antijurídico” a “lesão de direitos ou de disposições de protecção de interesses de outrém”) [BMJ – 92 – 134 e 101 – 112 e 334], estabelece hoje que quem “com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrém ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Ora, conjugando este preceito com o artigo 486.º CC (“… havia por força de lei, ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido”) pode, com certa ousadia, concluir-se que a vítima causadora do evento, dissolveu culposamente o casamento e deixou de cumprir, entre outros, o dever de coabitação (artigo 1672.º CC) que, também, inclui a companhia, o afecto presente e o débito conjugal.

E essa omissão culposa gerou um dano não patrimonial próprio ao cônjuge, considerando a matéria de facto (v.g. afectos e ligação sentimental) que as instâncias deram por assente.

Assim, entendo que irreleva nesta sede, a culpa da vítima.

4- Também, e como o seguro de responsabilidade civil – obrigatório – tem por escopo garantir a responsabilidade do lesante para com terceiros, é importante que se caracterize o conceito de terceiro nesta área.

Para tal acolhe-se sem reserva o entendimento do Prof. Diogo P. Leite de Campos que refere serem “terceiros em relação a um contrato todos aqueles que por si, ou por intermédio de outrem, não participem na sua celebração”, ou seja, todos os que não possam ser classificados de parte” (apud “Seguro de Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação – Da Natureza Jurídica”, p. 66).

Adianto, desde já, que a cônjuge demandante é, nesta perspectiva, terceiro em relação ao contrato de seguro “sub judicio”.

E pede tão somente, o ressarcimento dos danos não patrimoniais próprios, que não surgidos “jure hereditário” por não ser adquirente “mortis causa”.

Ora, os danos morais não são provenientes desse tipo de transmissão por, como acima se acenou, serem próprios da demandante, embora decorrentes da morte da vítima.

O vigente regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio e revogou o Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro) só exclui da garantia do seguro os “danos materiais” causados, além de outros, ao cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c) do artigo 14.º daquele Decreto-Lei n.º 291/2007.

Ficam, assim excluídos os danos patrimoniais causados ao condutor responsável pelo acidente, ao tomador do seguro e a todos cuja responsabilidade esteja garantida pelo contrato.

Porém, os danos não patrimoniais próprios dos familiares consequentes da morte do condutor responsável pelo acidente são indemnizáveis, de acordo com o artigo 1.º da 3.ª Directiva Automóvel.

5- Finalmente, e com todo o respeito os dois últimos pontos terão de ser vistos numa perspectiva de compatibilização dos dois Acórdãos Uniformizadores.

6- Eis porque me demarco do Acórdão votado acolhendo, no eventualmente omisso (designadamente na parte referente ao seguro) e que não colida com o que expus, as declarações de voto dos Excelentíssimos Conselheiros Távora Vítor e Álvaro Rodrigues

Lisboa, 5 de Junho de 2014

Sebastião Póvoas

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Votei vencido.


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Os A.A. não peticionam indemnização por qualquer eventual direito consolidado na esfera jurídica do condutor culpado (seu familiar), como seria, por exemplo, o dano morte em si mesmo considerado ou sofrimento que antecedeu o momento morte, nem por danos decorrentes de lesões materiais.

O que peticionam é a indemnização por em dano próprio (o sofrimento, desgosto e tristeza que a morte do seu marido e pai lhes provocou), nascido na sua esfera jurídica individual, o qual por isso, embora originado no falecimento do condutor, seu familiar, tem autonomia em relação a esse facto.

Tratar-se-á, ao que me parece, de um dano directo.

Não há aqui confusão entre lesante e lesado, sendo os A.A. terceiros em relação ao facto que lhes causou o dano.

O direito de serem indemnizados por danos morais próprios (sofridos directamente) é-lhes reconhecida pelo Artº 496º nº3 (parte final) do C.C. e o Artº 7º do D.L. 522/85 em parte alguma exclui tal direito à indemnização (quanto à interpretação do referido Artº 7º, confr. o acórdão de 21/10/2003, do qual fui relator).

De todo o modo, não se vê por que teriam os A.A. direito a serem indemnizados, pelos danos morais resultantes de ferimentos que porventura sofressem, caso fossem passageiros do veículo sinistrado, apesar de o acidente ser imputado a título de culpa exclusiva ao respectivo condutor (seu marido e pai), como parece reconhecer o acórdão, e já não têm direito a serem indemnizados pelos danos morais sofridos em consequência da morte daquele seu familiar, por ter sido ele o único culpado do acidente.

É que, ao que me parece, em ambas as situações, estamos em presença de danos não patrimoniais próprios e directos.


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Portanto, uniformizaria jurisprudência no sentido de que, no caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação causada por culpa exclusiva do mesmo, existe direito à reparação dos danos não patrimoniais próprios, provenientes daquela morte, em favor das pessoas designadas no nº 2 do Artº 496º do C.C.

Subscreve-se, porém, o voto de vencido do Exmº Conselheiro Álvaro Rodrigues.

Lisboa, 5/6/2014.

Moreira Alves

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Votei vencida, no sentido do projecto apresentado pelo Senhor Conselheiro Távora Vítor, em cuja declaração de voto, naturalmente, me revejo.

Apenas acrescento as seguintes notas:

1ª – Suponho que a evolução do regime do seguro por acidentes de viação evidencia uma preocupação crescente de garantia da indemnização das vítimas e que essa preocupação deve ser ponderada na interpretação da lei. Pense-se na imposição do seguro obrigatório ou na criação do Fundo de Garantia Automóvel, chamado a indemnizar mesmo quando se torna impossível aferir da verificação de todos os pressupostos clássicos da responsabilidade civil, maxime por se ignorar a identidade do causador do acidente;

2ª – Tal como observei em declaração aposta ao Acórdão de Uniformização nº 6/2014, de 1 de Junho deste ano (www.dgsi.pt, proc. nº 6430/07.0TBBRG.S1), penso que não se trata, no caso, de um (eventual) direito de indemnização por danos reflexos; ao definir o âmbito subjectivo do direito à indemnização por danos não patrimoniais, na responsabilidade civil extra-contratual, no nº 2 do artigo 496º do Código Civil, a lei escolheu pessoas cuja relação familiar com uma vítima de um acto ilícito permite identificar um feixe de direitos e deveres recíprocos cuja afectação lhes confere, directamente, o direito a ser indemnizadas;

3ª – Verificando-se a previsão do nº 2 do artigo 496º do Código Civil, seria necessário que resultasse do regime legal aplicável (em especial, do artigo 7º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 130/94, de 19 de Maio, a exclusão dos autores, para que lhes pudesse ser negado o direito à indemnização. Enquanto subscritora do acórdão de 8 de Janeiro de 2009, proc. nº 08B3796, agora invocado como fundamento da oposição de julgados, mantenho a interpretação ali desenvolvida para aquele preceito legal, e que, no caso, deveria conduzir ao provimento do recurso.

(Maria dos Prazeres Pizarro Beleza)

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A jurisprudência do Supremo Tribunal iniciou há algum tempo um percurso interpretativo visando tutelar o interesse da vítima de sinistros rodoviários, atenuando a relevância do elemento subjetivo culpa ao admitir, em certas circunstâncias, a concorrência da culpa com o risco; recentemente proferiu-se A.U.J. em que se alargou
o âmbito da proteção de terceiro, não sinistrado mas deste familiar, indemnizando-o pelos danos não patrimoniais próprios resultantes de acidente em que a vítima ficou gravemente ferida, mas não sucumbiu (Ac. do S.T.J. n.º 6/2014, DR, I Série, n.º 98 de 22-5-2014) apesar de o artigo 496.º /2 do Código Civil literalmente
conferir o direito à indemnização aos familiares apenas por morte da vitima.

Trata-se agora de saber se o familiar de condutor que morreu em acidente por si causado culposamente, familiar que não foi ele próprio vítima do acidente tal como sucedeu no mencionado caso do A.U.J., tem direito a ser indemnizado também por danos não patrimoniais próprios - diversos do dano de morte ou dos danos não
patrimoniais da vítima - por se entender que o seguro obrigatório de responsabilidade civil não exclui a indemnização por tais danos ou , pelo contrário, apesar de se reconhecer que tais danos existem e estão conexionados como sinistro atenta a ligação da vítima aos familiares, deve excluir-se a indemnização porque foi culpada a vítima do sinistro.

Tal como no A.U.J. reconhece-se a existência de danos pessoais, reconhece-se que tais danos atingem os familiares da vitima de sinistro, reconhece-se que tais danos provêm do sinistro e que os familiares dele não foram diretamente vítimas só que ali o sinistrado é vítima sendo outro o responsável pelo acidente ao passo que aqui o sinistrado é vítima e simultaneamente o responsável pelo acidente.

A razão da exclusão reside essencialmente no entendimento de que os familiares da vítima não têm direito à indemnização porque a nenhuma indemnização tinha direito a vítima. A culpa da vítima afasta o direito a qualquer indemnização por danos próprios desses
familiares.

Tais danos são, como se disse, danos pessoais - danos não patrimoniais - ou seja, danos que afetam a integridade própria desses familiares e que emergem da sua ligação familiar com a vítima. Essa ligação impõe aos familiares direitos e deveres.

A sua natureza não se modifica, não obstante não decorrerem diretamente do sinistro por não serem os familiares passageiros; a sua ressarcibilidade tem por causa a morte ( e também a lesão grave) da vítima do sinistro e funda-se nessa ligação familiar, não se justificando que seja afastada pelo facto de a vítima ter sido culpada do acidente.

A meu ver o seguro obrigatório de responsabilidade civil não exclui tais danos no artigo 7.º/2, alínea d) do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro nem tão pouco o artigo 496.º/2 do Código Civil restringe a vitima ao lesado não culposo; remetemos, nesta parte por razões de brevidade, para as considerações dos demais votos de vencido.

A uniformização em sentido contrário prosseguiria o caminho iniciado por este Supremo Tribunal no sentido da tutela mais efetiva dos direitos das vitimas de sinistros rodoviários e da restrição dos casos de exclusão de indemnização em razão da culpa.

A tutela indemnizatória dos familiares por danos próprios não seria negada; mas seria sempre ponderado o direito à indemnização em razão da gravidade dos danos, tal como se decidiu no mencionado A.U.J. e , antes disso, ponderar-se-ia sempre o próprio reconhecimento desses danos que se justificaria em razão de uma efetiva conexão entre a vitima e os familiares, não sendo suficiente a objetiva ligação familiar.

Não se vê, assim sendo, que os custos resultantes da tutela indemnizatória assim reconhecida fossem excessivos ou desproporcionados, a jurisprudência portuguesa prosseguiria o rumo encetado, harmonizar-se-ia com vários dos direitos nacionais europeus e não puniria os familiares da vitima, subtraindo-lhes o direito a qualquer indemnização tanto por danos materiais, quanto a estes resultando a exclusão expressamente da lei, como por danos morais apenas e tão somente porque a vitima foi exclusiva culpada do sinistro.

5-6-2014

Salazar Casanova

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                        DECLARAÇÃO DE VOTO

            Votei vencido, não obstante toda a consideração e respeito que indiscutivelmente merece a tese que fez vencimento, porque não acompanho a referida posição pelos motivos que, aliás,  já havia explanado, com o devido desenvolvimento, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Fevereiro de 2013, de que tive a honra de ser Relator (Pº 705/10.8TBPFR.P1.S1 in www.dgsi.pt) e ora se alinham de forma brevitatis causa mais sintetizada.

Antes do mais , há que vincar que os Autores, ora recorrentes, apenas pedem compensação pelos danos não patrimoniais próprios por eles directamente sofridos, embora decorrentes, sem dúvida, da morte do seu marido e pai.

É sabido que o nº 3 do artº 7º do DL 522/85 exclui qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente, pelo que os seus sucessores não terão qualquer direito à indemnização por via da transmissão mortis causa.

Da mesma forma, também por danos patrimoniais a si causados, o condutor não receberia qualquer indemnização se vivo fosse, ainda que não fosse culpado, pois o seguro obrigatório tem como objecto garantir a responsabilidade em relação a terceiros.

Como escreveu o ilustre Prof. Diogo Leite Campos, num seu estudo, digno de referência, intitulado «Seguro de Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação (da Natureza Jurídica)»[1], pode dizer-se que, «de uma maneira muito geral e modo muito sumário, são terceiros em relação a um contrato, todos aqueles que, por si, ou por intermédio de outrem, não participem na sua celebração. Ou seja, todos os que não possam ser qualificados de parte».

In hoc sensu, é obvio que os demandantes nos presentes autos são terceiros em relação àquele contrato que está em causa na presente acção.

Na sua qualidade de terceiros, apenas peticionam compensação por danos não patrimoniais próprios, isto é, cujo direito a tal compensação não lhes foi transmitido por via sucessória, mas nasceu na sua própria esfera jurídica (jure proprio) e tal não se acha excluído da garantia do seguro de responsabilidade obrigatória.

Porém, importa salientar – ainda na linha do pensamento do ilustre jurisconsulto que venho de citar – que os demandantes, embora sejam herdeiros do falecido condutor responsável, não estão qua tale na presente acção, isto é, como adquirentes mortis causa de um direito deste, já que, ainda nas palavras de Leite de Campos, o sucessor surge como adquirente de um direito de outrem, substitui-se a outrem (autor causante, causam dans), explicitando que «a aquisição do direito pelo sucessor é acompanhada da extinção subjectiva do direito do anterior titular, havendo entre os dois fenómenos um nexo causal. O sucessor  ocupa em relação a esse direito a posição jurídica do autor».[2]

Aliás, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por isso que se trata de um seguro de responsabilidade e não de um seguro de danos, como escreveu, na obra citada, Diogo Leite de Campos, é evidente que «sendo o condutor beneficiário da garantia do seguro para com terceiros lesados não pode simultaneamente ser beneficiário da indemnização, isto é terceiro, para efeito de receber ele próprio, qualquer indemnização»[3].

Nessa medida, é patente que estariam excluídos quaisquer danos que tivessem advindo ao condutor, por este ter sido o único responsável pelo dito acidente.

Porém, já assim não acontece relativamente aos danos não patrimoniais (ditos, também, danos morais) reclamados, que não são provenientes de qualquer transmissão mortis causa, do desditoso condutor para os seus familiares, ora demandantes, sendo antes danos próprios destes, isto é, gerados na esfera jurídica de cada um destes impetrantes que, embora decorrentes da morte do referido condutor, não se confundem com o dano morte ou dano de perda do direito à vida, pois não é este direito que está aqui em causa.

Destarte, tem aqui inteira aplicação a argumentação expendida, designadamente, no Acórdão de 8-01-2009 (Cons. Alberto Sobrinho) com particular ênfase no segmento que aqui, de novo, se recorda pela sua manifesta relevância:

«A al. d) do n° 2 do citado art. 7° exclui o cônjuge e descendentes do condutor do  ressarcimento pelos danos sofridos decorrentes de lesões materiais.

Mas as autoras vêm aqui reclamar o ressarcimento dos danos próprios de natureza não patrimonial que padeceram com a perda de seu marido e pai.

Em primeiro lugar, elas não estão a reclamar o ressarcimento de danos emergentes de lesões materiais.

E, em segundo, não estão a reclamar a indemnização de qualquer direito que existisse na titularidade das relações jurídicas patrimoniais do seu familiar, condutor do veículo, mas sim de um direito próprio, estranho a esse seu familiar, embora originado na consequência funesta que lhe adveio com o acidente.

A garantia de seguro já não exclui os danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos pelo cônjuge e filhos do condutor do veículo decorrentes da sua morte, consistentes nos sofrimentos, desgosto e tristeza que essa mesma morte lhes provocou.

E este entendimento até aparece reforçado no confronto com o nº 3 do mesmo art. 7º onde se exclui especificamente qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais.

Se houve a intenção explícita de não conferir ao condutor o direito a indemnização por este tipo de danos, é porque a exclusão contida na aludida al. d) do n° 2 se limita à indemnização pelos danos decorrentes de lesões materiais. O ressarcimento dos danos reclamados pelas autoras não está excluído da garantia do seguro e, como tal, está a ré seguradora obrigada a indemnizá-las dos danos não patrimoniais que lhes provocou a morte de seu marido e pai» ( Pº 08B3796, in www.dgsi.pt).

No mesmo sentido se pronunciou, outrossim, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-10-2003, relatado doutamente pelo Exmº Juiz Conselheiro, Moreira Alves[4], do qual, pelo seu inegável relevo, se destaca a seguinte passagem:

«Na verdade, tendo os A.A. direito a serem indemnizados pelos danos não patrimoniais sofridos nos termos do disposto no art. 496° n° 3 do CC, o art. 7° do DL 522/85 em parte alguma exclui tal direito à indemnização.

A exclusão contida no n° 2 d), limita-se à indemnização pelos danos decorrentes de lesões materiais, o que pode significar que o legislador não quis excluir a indemnização a título de danos não patrimoniais.

Aliás, no mesmo sentido vai a interpretação que se colhe do n° 3 do mesmo dispositivo, o qual exclui da indemnização de danos não patrimoniais o responsável culposo do acidente, no sentido do aqui perfilhado (cf. Ac. do S.TJ. de 18/3/97 - Col J/ST J. 1997-1 - 163 e segs»  (destaque nosso).

 

Note-se, em reforço do quanto dito ficou, que no actual regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, através do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, cujo artº 94º, nº 1, al. a) revogou o  DL 522/85, de 31/12, não é substancialmente diferente o regime legal quanto à questão concreta que ora nos ocupa.

Com efeito,  o artº 14º do falado Decreto-Lei 291/2007 exclui da garantia do seguro, pela alínea e) do seu nº 2, «quaisquer danos materiais  causados ao cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c), assim como outros parentes ou afins até ao 3º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou vivam a seu cargo».

Como judiciosamente observa Maria Manuela Sousa Chichorro, na sua obra «O Contrato de Seguro Obrigatório Automóvel»[5], no que tange às lesões materiais,  ficam excluídos os que forem causados ao condutor responsável pelo acidente, ao tomador do seguro, a todos aqueles cuja responsabilidade esteja garantida pelo contrato, nomeadamente aos cônjuges, ascendentes, descendentes e adoptados a que se reporta o sobredito preceito legal, explicando tal exclusão do seguinte modo:

«Está subjacente a estas exclusões a ideia de compropriedade e co-responsabilidade traduzida em ambos os casos num interesse directo no seguro, embora este não seja aquele que é primeiramente tutelado pelo contrato, mas apenas de modo mediato».

E a referida autora acrescenta: «dado que o referido interesse tem uma natureza patrimonial, não faria sentido que os danos patrimoniais sofridos pelas mencionadas pessoas pudessem ser ressarcidos por um contrato que visa ressarcir os danos de terceiros e não daqueles que de alguma forma, poderão vir a ter que responder concomitantemente ou subsidiariamente com o condutor».[6]

 Com efeito, verifica-se no caso sub judicio violação ilícita do direito de outrem, sendo que a ilicitude reside na conduta, proibida por lei, por parte do malogrado condutor, cônjuge e pai dos ora Autores.

Tal ilicitude emerge directamente da conduta violadora dos preceitos legais que disciplinam a circulação rodoviária.

Ora, como é consabido, a ilicitude, como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual comporta duas variantes ou formas, que são a violação de um direito de outrem e a violação de uma norma legal destinada a proteger interesses alheios, como comanda o artº 483º, nº 1 do C.Civil.

 Ninguém duvidará que as normas que disciplinam a circulação rodoviária, designadamente as do Código da Estrada, como a que foi infringida, visam prevenir não só o dano da vulneração da vida e da integridade física dos que circulam nas estradas com todo o inexorável e indissociável cortejo dos sofrimentos dos familiares das vítimas, além da depreciação e/ou destruição ou depreciação de bens materiais.

Nesta conformidade, torna-se dificilmente sustentável a exclusão destes específicos danos do círculo ou âmbito ou círculo de tutela de tais normas.

Verificou-se, destarte, uma conduta ilícita que produziu o efeito morte no desditoso condutor e, por força desta morte, surgiram os sofrimentos dos ora Autores, descritos na factualidade provada como danos não patrimoniais.

Como é bem sabido, as directivas comunitárias, se bem que não tiveram por escopo um regime de protecção especial aos familiares mais próximos do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer pessoa responsável, tiveram o louvável objectivo de lhes proporcionar uma tutela «comparável à de outros terceiros vítimas, pelo menos no que respeita aos danos corporais» como se lê nos considerandos da Directiva da 2ª Directiva Automóvel [ (85/5/CEE), sendo nosso o sublinhado].

A finalizar, permitimo-nos transcrever as palavras do Prof. Calvão da Silva no seu comentário ao Acórdão deste Supremo Tribunal, de 4 de Outubro de 2007, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência[7], que, embora escrito já no domínio da actual lei do seguro de responsabilidade civil obrigatório, têm plena aplicação relativamente ao quadro legal à luz do qual se decide da presente acção:

«...Exclusão conforme ao direito comunitário, desde a Directiva 84/5/CEE (2ª Directiva Automóvel), cujo art. 3º reza deste modo:

            Os membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente de um sinistro se encontre coberta pelo seguro mencionado no nº 1 do artigo 1º não podem, por força desse parentesco, ser excluídos da garantia do seguro, relativamente aos danos corporais sofridos. 

Protecção esta, a dos familiares, clara e inequivocamente abrangida na formulação ampla do citado artº 1º da 3ª Directiva Automóvel: indemnização dos danos pessoais de todos os passageiros, com excepção do próprio condutor.

Logo, os danos pessoais (próprios) dos familiares são indemnizáveis, incluindo os danos não patrimoniais sofridos pelos mes­mos em consequência da morte do condutor (v. g. pai) responsável pelo acidente e da morte de outro familiar (v. g. mãe) nesse mesmo acidente; já não são compensáveis os danos não patrimoniais sofridos pelo próprio condutor responsável pelo acidente, incluindo o dano da sua morte (artº. 14.°, n° 1,  do Decreto-lei nº 291/2007), razão pela qual os mesmos não podem transmitir-se «jure hereditario» aos familiares referidos no nº 2 da artº 496º.

Já no caso de falecimento, em consequência do acidente, de um desses familiares (v. g., mulher), é excluída qualquer indemnização ao marido condutor responsável pelo acidente (artº, n° 3, do Decreto-lei n° 291/2007)» (destaque e sublinhado nossos).

Quanto ao direito comunitário, não vislumbro qualquer inciso normativo em sentido contrário à posição aqui defendida.

Por todo o exposto e na esteira da jurisprudência e doutrina citadas, reconheceria aos autores, no caso sub judicio, o direito à compensação por danos não patrimoniais próprios traduzidos no sofrimento  que provado ficou, e uniformizaria jurisprudência em consonância com o entendimento que aqui deixo plasmado.

 Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Junho de 2014

Álvaro Rodrigues

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[1] Diogo Leite Campos, «Seguro de Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação ( da Natureza Jurídica)», Livraria Almedina, 1971, pg. 66.
[2] Idem, pg. 67.
[3] Cfr. também Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-10-2013, doutamente relatado pelo Cons. Moreira Alves (Pº03A2664 in www.dgsi.pt)
[4] 03A2664, disponível in www.dgsi.pt
[5] Mª Manuela R. Sousa Chichorro, O Contrato de Seguro Obrigatório Automóvel, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pg. 142 e segs.
[6] Idem, pg. 144.
[7] Calvão da Silva, in RLJ, ano 137º ( Setembro-Outubro de 2007), nº 3966.


 

Declaração de voto:

 

 Verificados os pressupostos da responsabilidade civil, a saber culpa/dolo violação do direito de outrem, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano coloca-se o problema do ressarcimento dos danos causados.

Para além do dano material perfila-se como indemnizável o dano moral ou não patrimonial que resulta da ofensa de bens de carácter espiritual ou morais, e que não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, podem todavia ser compensados pelo sacrifício imposto no património do lesante).

A indemnização tem sido efectivada, nomeadamente no direito infortunístico estradal, entre outros expedientes, através do mecanismo do seguro obrigatório da responsabilidade civil cuja abrangência tem vindo a ser ampliada ao logo dos anos, à medida que se vem acentuando a socialização do risco, facto a que não tem sido estranho o princípio da publicização do direito privado. Nesta senda aliás foi ultrapassada pela positiva a problemática do ressarcimento/ não ressarcimento dos danos não patrimoniais com consagração expressa no artigo 496.° do Código Civil [1].

No entanto a densificação do tráfego automóvel, potenciadora de acidentes, veio acentuar a necessidade de socialização do risco, transferindo o acento tónico do segurado para a condução em sentido lato. Acresce também que integração no espaço comunitário mais vasto trouxe também consigo, a par da consciencialização das populações quanto aos seus direitos, o ensaio de uma tendência uniformizadora de procedimentos em matéria do direito estradal, concretizada nomeadamente através das Directivas Comunitárias a que alude o artigo 288.° [2] do Tratado da União Europeia. Tais Directivas, de natureza genérica, vinculam o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, por norma às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios a seguir [3]. Estatui a tal respeito o artigo 8.°, n.° 3, da Constituição da República que "as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte, vigoram directamente na ordem interna, ainda que sem a mediação do Estado interno[4], desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos" [5].

O acórdão proferido nos presentes autos propõe-se uniformizar a jurisprudência quanto a esta questão fundamental:

Os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do condutor que veio a falecer em consequência de acidente, que lhe seja imputável a título de culpa, encontram-se a coberto do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil?

Esta problemática tem suscitado posições desencontradas contra e a favor da aludida cobertura e que designaremos respectivamente por tese excludente e não excludente.

Contra o nosso primitivo projecto como relator que ia no sentido da 2ª posição, acabou por encontrar acolhimento maioritário no Colectivo a primeira tese, que, numa visão mais restrita, respondeu negativamente à problemática enunciada.

Não convencidos da bondade da tese que fez vencimento passaremos a expor sumariamente as nossas razões:

I- O Diploma de direito interno aplicável ao caso em análise, em matéria de seguros, é, atenta a data do acidente, 19 de Novembro de 2006, o DL 522/85 de 31 de Dezembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 130/94 de 19 de Maio, importando destacar, pelo seu relevo no caso em análise, as modificações operadas ao artigo 7.°. As referidas alterações vieram consagrar o regime previsto no Direito Comunitário, desde logo atento o previsto no artigo 1.° ns.° 1 e 2 da Directiva n.° 90/232/CEE de 14 de Maio de 1990 bem como a Decisão 91/323/CEE da Comissão, de 30/5/91, prevendo o primeiro Diploma que o seguro obrigatório cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros além do condutor [6].

O DL 522/85 em análise, após ter haver estabelecido a obrigação quase universal de segurar - bem como os respectivos sujeitos - artigos 1.° e 2.° - enumera no artigo 7.° vários  casos de  exclusão da  cobertura do  seguro.

II - O Código Civil Português trata também a problemática dos "danos não patrimoniais" no artigo 496.° na redacção aplicável,   onde  se pode  ler:

"1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens è aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. (...) ".

As normas supra-apontadas são aquelas cuja interpretação têm registado maior controvérsia face a casos semelhantes ao que analisamos, não congregando também uma resposta unânime a questão fundamental versada nesta revista e que se traduz em indagar, se, face à lei vigente, terá cabimento a indemnização de terceiros pelos "danos não patrimoniais" decorrentes da morte da vítima, quando foi a mesma que causou de forma culposa o acidente.

No Direito comparado europeu não há unanimidade no que concerne à indemnização iure proprio, ou seja a reparação do dano moral que sofrem os familiares e (ou amigos) da vítima com a sua morte, aqui se podendo também encontrar:

a) Uma primeira corrente que rejeita a indemnização pelos danos morais sofridos por familiares e amigos da vítima, a saber a Alemanha, a Áustria e a Holanda;

b) E a corrente que aceita tal indemnização, representada pela Bélgica, França, Espanha. Reino Unido e Itália [7];

Exaradas estas considerações, detenhamo-nos maxime sobre o que a nível interno se passa a este propósito com interesse para o caso vertente.

Para os seguidores da tese excludente e à luz da interpretação que os seus mentores fazem do artigo 7.° n.° 1 do DL 522/85 de 31/12/85 não são abrangidos pela garantia do seguro os danos sofridos pelo condutor do veículo decorrentes de lesões corporais, quando ele é o causador do mesmo. Quanto ao "dano da morte" se a vítima é o próprio tripulante e sendo-lhe imputável o decesso, estará assim excluído da garantia do seguro obrigatório, sendo certo que à mesma solução se chegaria através da análise do artigo 483.° do Código Civil, cujo n.°1 estatui que "1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". Por outro lado, tendo o condutor da viatura garantida contratualmente a sua responsabilidade em relação a terceiros, não pode, ao mesmo tempo, ser considerado terceiro para se ver ressarcido por danos sofridos com o acidente. O mesmo se passa quanto à impossibilidade de indemnizar a pessoa que, mau grado não tenha intervindo no acidente, é a tomadora do seguro, uma vez que é impossível reunir numa única pessoa tal qualidade e a de terceiro. Previamente às normas do Seguro obrigatório haverá que indagar da ressarcibilidade dos danos à luz do direito civil interno, já que excluído o direito de indemnização em sede geral, não há que indagar concretamente em que termos é que o mesmo vem equacionado em matéria daquele seguro. E sendo o condutor culpado no acidente que o vitimou, não há lugar a qualquer indemnização em virtude dos seus danos próprios. É esta exclusão da indemnização pela morte do condutor do veiculo considerado como culpado no acidente que o vitimou, que afasta também qualquer indemnização por tais danos aos respectivos cônjuge e descendentes, ainda que terceiros, já que os mesmos não podem ser herdeiros de uma indemnização que não se constituiu na esfera pessoal da vitima. Resulta da lei - artigo 495.° ns.° 1 e 2 do Código Civil, que só é lesado, em principio, o que foi atingido de forma directa com o acidente e a indemnização a terceiros só é prevista no n.° 3, de forma restrita, no que concerne àqueles que podiam exigir alimentos do lesado ou a quem o mesmo os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.


*

            A tese anterior e que logrou vencimento, a tradicional, não é todavia a única resposta dada à problemática em análise, desde logo pela Doutrina e Jurisprudência, nomeadamente a deste Supremo Tribunal de Justiça. Regista-se na verdade um outro entendimento não excludente que sustenta a ressarcibilidade de "danos não patrimoniais" provocados a terceiros em virtude de um acidente mortal imputável à própria vítima [8].

Tal indemnização não radica na esfera jurídica do culpado no acidente, mas antes na das pessoas com as quais aquela tinha uma relação de proximidade e afecto e cujo decesso foi causa de profundo desgosto e pesar para as mesmas, devendo ser passíveis de indemnização, mau grado a culpa do acidentado/vítima. É claro que os danos decorrentes do sinistro para o condutor lesado não poderão ser ressarcidos nomeadamente os decorrentes de lesões corporais; sendo ele o beneficiário dessa garantia, não pode ao mesmo tempo ter a qualidade de terceiro - artigo 8.° do DL 522/85. Claro que tal não impede todavia que os danos do condutor possam ser cobertos pela seguradora, mas através de contrato facultativo com a mesma, que vá além da protecção do seguro obrigatório. E tal sucede com muita frequência já que através de cláusulas adicionais se contemplam no contrato os danos sofridos pelo condutor da viatura ou tomador do seguro.

Os danos de que esta última orientação, "não excludente", se ocupa, são, em suma, danos próprios de "natureza não patrimonial" não transmitidos pela vítima mau grado com ela conexionados e ligados ao acidente por nexo de causalidade. Estão pois em causa danos a cuja indemnização os familiares do condutor da viatura se arrogam como sendo próprios. Estes últimos não são excluídos pela garantia do seguro aplicável - artigo 7.° n.° 3 do DL 522/85 o qual só afasta especificamente qualquer indemnização ao condutor da viatura - perfilando-se a alteração ao normativo citado como decorrência da transposição da 3a Directiva n.° 90/232/CEE para o âmbito da responsabilidade civil por acidente de viação. Aliás, sabendo que esta problemática se levantava, também o DL 291/2007, que introduziu um novo regime ao seguro obrigatório) exclui da garantia no artigo 14.° alínea e) do n.°2 quaisquer danos materiais causados ao cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c) , assim como outros parentes ou afins até ao 3.° grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou vivam a seu cargo. A insistência no afastamento dos danos materiais é, pois, um elemento interpretativo que reforça a ideia de que não foi intuito do legislador excluir os danos não patrimoniais de terceiros da protecção do seguro, mesmo em caso de culpa da vítima que subscreveu o contrato.

A "tese excludente" é tributária do ideário inicialmente adoptado pelo Código Civil, reflectindo a posição então dominante segundo a qual não há responsabilidade civil sem culpa, dolo ou risco, devendo o ressarcimento ter lugar perante aquele que foi a vítima directa do acidente - sendo os danos não patrimoniais previstos no artigo 496.° do Código Civil, interpretado estritamente à letra. Sucede, porém, que já no próprio Anteprojecto de lei (Vaz Serra) esteve projectado para esta norma um n.° 2 com a seguinte redacção: "No caso da morte de uma pessoa pode ser concedida aos parentes afins ou cônjuge dessa pessoa satisfação pelo dano não patrimonial que a morte dela lhe causou, desde que, quanto àqueles, pela proximidade do parentesco ou afinidade seja de presumir tivessem pelo falecido uma afeição tal que justifique a mesma satisfação. Esta é de excluir se se mostrar que os referidos cônjuges parentes ou afins não tinham a dita afeição".

Com o devido respeito não acompanhamos a posição descrita. Sabido que a legislação respeitante a seguros em acidente de viação só tem, em princípio, sentido quando a lei interna a convoca para cobrir os danos cujo ressarcimento está previsto na mesma e considerando a redacção final do artigo 496.° do Código Civil, vejamos até que ponto caberá na interpretação daquela norma a indemnização pelos "danos não patrimoniais", aos familiares da vitima acidentada  por  culpa  própria.

A redacção final do normativo supracitado acabou, como vimos, por apresentar a formulação que, na sua redacção primitiva ditava que:

"1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.°; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior".

 

Só que, tal como já deixámos entrever, não pode esquecer-se que a interpretação da lei não se esgota na simples literalidade e expedientes lógicos próximos, para a realização do escopo que está vocacionada a perseguir, sob pena de não alcançar a justiça material adequada aos casos concretos. E isto é tanto mais pertinente quanto é certo que a norma supracitada tem mais de 40 anos de vigência, período durante o qual se assistiu a profundas alterações sociais e, consequentemente, a um alargar da abrangência das hipóteses indemnizatórias e o número dos respectivos titulares, entendido que foi merecerem a tutela do direito; o crescendo progressivo da complexidade das relações laborais e sociais evidenciou facetas que antes não suscitavam dúvidas ao nível do direito e nomeadamente no que concerne à responsabilidade civil. O ordenamento jurídico dispõe, como não podia deixar de ser, de expedientes para ultrapassar este tipo de situações, desde logo a consideração da occasio legis e a interpretação actualista e que encontram aliás guarida no artigo 9° do Código Civil:

"1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

No normativo em análise cabem pois todos os requisitos da interpretação actualista, sendo certo que "uma lei só tem sentido quando inserida num ordenamento vivo e muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na "unidade do sistema jurídico". A norma por último citada rejeita, à partida, a interpretação puramente historicista relegada para a posição de simples elemento auxiliar, ao mandar ter em linha de conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Efectivamente a moderna metodologia da interpretação jurídica coloca o seu acento tónico na realização da justiça material do caso concreto, "acentuando assim, ao arrepio de um positivismo legalista estreito, a actividade criadora da jurisprudência, a sua permanente conformação e desenvolvimento do direito que se vai por si continuamente realizando, a law em acção". Esta é a função da jurisprudência e particularmente a dos Supremos Tribunais. É que, na verdade, mais do que o Legislador, os Tribunais sentem, pelo seu quotidiano, o primeiro embate com a realidade, o pulsar da vida em concreto e assim a reacção que aplicação da lei vai suscitando ao longo da sua vigência, atenta a natural evolução das estruturas e conjunturas sócio-económicas que se vão sucedendo no tempo. Numa vigência longa, são as instâncias judiciais as primeiras a contribuir para a conformação da lei às novas realidades que se sucedem, com vista à realização da justiça material dentro dos princípios basilares norteadores da aplicação da lei. As orientações jurisprudenciais no tocante a matérias controversas constituem o melhor método de testar a bondade da norma que as regula, alertando ainda o legislador para proceder à respectiva alteração quando a mesma se torna obsoleta ou incapaz de dar resposta à realidade que a ultrapassou, esgotados que sejam todos os expedientes interpretativos que é lícito ao Juiz lançar mão [9].

 

É nesta medida que a tese "não excludente", por último aludida, se apresenta, a nosso ver, como a mais razoável, considerando a evolução e o alargamento da cobertura dos riscos pelo seguro obrigatório, surgido já após o início da vigência do Código Civil de 1966, havendo ainda que atentar posteriormente, no papel desempenhado pelas Directivas Comunitárias na sua função de fixar as traves mestras a que deverão obedecer as leis dos Estados-Membros com vista a conseguir uma aproximação das mesmas num espaço europeu alargado. Detectando e assumindo a realidade e simultaneamente virada para o futuro, conforma-se a tese adoptada perfeitamente com a moderna teoria de interpretação da lei, não beliscando a unidade do sistema jurídico e acima de tudo não desconhecendo as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (no fundo a historicidade do Direito em todas as suas implicações). Passível da interpretação actualista nos moldes supra -expostos, já o artigo 496.° não se mostra antinómico da legislação comunitária publicada, a qual se perfila harmonicamente como um prolongamento evolutivo da lei interna.

A propósito de acidentes estradais e matéria de seguro com os mesmos relacionada foram já emitidas pela Comunidade Europeia as seguintes Directivas, a saber:

-n.° 72/166/CEE do Conselho de 24/471972 - Primeira Directiva Automóvel:

-n.° 84/5/CEE do Conselho de 30/12/1983 - Segunda Directiva Automóvel;

-n.° 90/232/CEE do Conselho de 14/5/1990 - Terceira Directiva Automóvel.

-n.° 2005/14/CE do Conselho do Parlamente Europeu e do Conselho de 11/5/2005 - Quinta Directiva Automóvel (A quarta do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/5/2000 - 2000/26/CE.

-n.° 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Setembro de 2009 relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade.

O Diploma de direito interno aplicável em matéria securitária ao caso em análise é, atenta a data do acidente, 19 de Novembro de 2006, o DL 522/85 de 31 de Dezembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 130/94 de 19 de Maio, importando destacar pelo seu relevo, no caso sub iudice as modificações operadas ao artigo 7.° pelo último Diploma citado.

O DL 522/85 em análise, após ter haver estabelecido a obrigação quase universal de segurar - bem como os respectivos sujeitos - artigos 1° e 2° - enumera no artigo 7° vários casos de exclusão da cobertura do seguro, a saber:

1- Excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro.

2- Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões materiais causados às seguintes pessoas:

a) Condutor do veículo e titular da apólice;

b) Todos aqueles cuja responsabilidade é, nos termos do n.° 1 do artigo 8° garantida, nomeadamente em consequência da compropriedade do veiculo seguro;

c) Sociedades ou representantes legais das pessoas colectivas responsáveis pelo acidente, quando no exercício das suas funções;

d) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.° 1, assim como outros parentes ou afins até ao 3.° grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando com elas coabitem ou vivam a seu cargo;

e) Aqueles que, nos termos dos artigos 495.°, 496.° e 499.° do Código Civil, beneficiem de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma das pessoas referidas nas alíneas anteriores;

f) A passageiros, quando transportados em contravenção às regras relativas a transporte de passageiros constantes do Código da Estrada.

3- No caso de falecimento, em consequência do acidente, de qualquer das pessoas referidas nas alíneas d) e e) do número anterior, é excluída qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais

4- Excluem-se igualmente da garantia do seguro:

a) Os danos causados no próprio veículo seguro;

b) Os danos causados nos bens transportados no veículo seguro, quer se verifiquem durante o transporte, quer em operações de carga e descarga;

c) Quaisquer danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga;

d) Os danos devidos, directa ou indirectamente, a explosão, libertação de calor ou radiação, provenientes de desintegração ou fusão de átomos, aceleração artificial de partículas ou radioactividade;

e) Quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respectivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguros celebrados ao abrigo do artigo 9°.

5 - Relativamente ao transporte colectivo de mercadorias, não é aplicável o disposto na alínea b) do número anterior.

Excluída a transmissão do direito a qualquer indemnização conexionada com o sinistro, preexistente na esfera jurídica do falecido - atenta a sua culpa bem como o estatuído no artigo 505.° - e, bem assim, a indemnização por "danos patrimoniais" sofridos pelo mesmo, cabe pois indagar se face aos normativos citados e demais legislação pertinente, os AA. têm direito à indemnização a que se arrogam pelos "danos não patrimoniais" sofridos com a morte de FF seu marido e pai. A Ré DD responde negativamente a esta questão. É bem certo que, de harmonia com o artigo 5.° alínea a) do DL 522/85, o seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 1.°, abrange a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil até ao montante do capital obrigatoriamente seguro por sinistro e por veiculo causador relativamente aos danos não excepcionados no mesmo Diploma. E, segundo a Ré, haverá que concluir pela inexistência de obrigação de indemnizar a luz do citado artigo 7.° do Diploma em análise; o n.° 3.° do mesmo normativo legal reforça, segundo a Ré, "o entendimento contrário, na medida em que o legislador teve o cuidado de afastar expressamente uma situação de possível ressarcibilidade de danos advindos em consequência da morte de outrem para o responsável culposo no acidente afastando assim uma obrigação de indemnizar nos termos dos artigos 483.° e 496.° do Código Civil, já que se configuraria originariamente a violação ilícita do direito de outrem - direito à vida - gerador por razões indirectas de direito a indemnização do próprio lesante ou seja do autor da violação ilícita". Aliás quando o DL em análise entrou em vigor, encontravam-se de há muito vigentes as normas de direito civil interno, nomeadamente os artigos 483.° ss que, sem prejuízo do artigo 570.° do Código Civil, excluem a indemnização em caso de culpa do  lesado.

No entanto, a problemática, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode ser vista de uma forma tão singela. Se é verdade que a indemnização que os AA. pedem se limita aos "danos não patrimoniais", dentre estes haverá que distinguir entre os danos sofridos pela própria vitima e os que foram causados a terceiros, como é o caso dos impetrantes; e se os primeiros estão excluídos, porque a vítima foi a responsável pelos mesmos, já a estes não poderão ser equiparados os sofridos pelos familiares próximos do condutor culpado 'no acidente para fins indemnizatórios. Estas pessoas, terceiros no acidente[10], frisamos, sofreram, em virtude do mesmo, danos não patrimoniais graves, atentos os estreitos laços que as ligavam à vítima, desde logo o desgosto e tristeza que o infausto acontecimento lhes causou [11]. Ora nesta parte a garantia do seguro não afasta os danos próprios de natureza não patrimonial sofridos pelo cônjuge e pelos filhos da vítima.

Aliás a interpretação do n.° 3 do artigo 7.° do Diploma citado até abona este entendimento, já que ao referir que em caso de falecimento, em consequência do acidente, de qualquer das pessoas referidas nas alíneas d) e e) - aqui se incluindo o cônjuge e os filhos da vitima - é excluída qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais o que inculca que já o mesmo se não verificará quanto aos familiares supra-apontados.

Mau grado seja aplicada, in casu, a regulamentação do Seguro obrigatório prevista no DL 522/85, de 31 de Dezembro, há, todavia, quem perante a tese favorável à indemnização dos familiares do sinistrado, pretenda ver no artigo 14.°, n.° 1 do DL 291/2007, hoje vigente em matéria de Seguro obrigatório, uma norma interpretativa do artigo 7.° do Diploma que o precedeu. As normas interpretativas, previstas genericamente no artigo 13.° do Código Civil, são as "que intervêm para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida, consagrando um entendimento a que a jurisprudência pelos seus próprios meios poderia ter chegado. Ora, a questão que se coloca, é precisamente a de indagar se existe na nova Lei de Seguro Obrigatório, desde logo ao nível das exclusões de cobertura, alguma norma que aponte para a conclusão de ter havido, já no âmbito do DL 522/85, o intuito de afastamento da indemnização aos familiares do cônjuge culpado por danos não patrimoniais próprios. O artigo 14.°, n.° 1, do DL 291/2008, conteria uma norma interpretativa no apontado sentido, onde pode ler-se "Excluem-se da Garantia do Seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável assim como os danos decorrentes daqueles" (sublinhado nosso).

Vejamos: Um dos requisitos mais importantes de uma lei interpretativa é a sua clareza e ausência de ambiguidade... Todavia em vão se procurará no artigo 14.° n.° 1, em análise, esteio para concluir que o Legislador pretendeu, através desta norma, impedir a compensação por "danos não patrimoniais" a qualquer terceiro, antes parecendo fluir do normativo em análise (cuja redacção, aliás, não é exemplar) que a exclusão indemnizatória por parte do seguro se reporta ao próprio condutor, quer por danos patrimoniais quer a título de danos não patrimoniais. Por outro lado, o artigo em análise, é parcialmente o decalque do que o DL 522/85 estatuía no seu artigo 7.° n.° 1… referindo-se este preceito indiscutivelmente ao condutor do veiculo, sendo certo que o n.° 2 alínea a) do último normativo citado completa o n.° 1, afastando a indemnização por lesões materiais, aliás como sucede no regime de seguro hoje vigente.

O seguro obrigatório contempla como vimos apenas os danos causados a terceiros, não fazendo sentido que o responsável pelo acidente e simultaneamente contratante do seguro fosse considerado terceiro para efeitos de indemnização; estaríamos pois em caso de entendimento em contrário, perante uma incongruência do sistema. Na perspectiva do tomador do seguro este contrato assume-se como sendo de responsabilidade civil e não de danos; "e são excluídos os danos resultantes de lesões materiais causados ao condutor do veículo e tomador do seguro, a familiares seus (ao cônjuge e certos parentes ou afins deles, àqueles cuja responsabilidade é garantida nos termos do artigo 8.° n.° 1, aos representantes legais das pessoas colectivas ou sociedades responsáveis pelo acidente quando no exercício das suas funções e a quem nos termos do artigos 495.° e 496.° do Código Civil beneficie de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma dessas pessoas. A cobertura dos danos próprios do culpado que deu causa ao acidente "é facultativa podendo ser convencionada livremente com a seguradora" [12].

O afastamento expresso da indemnização à vítima culpada permite, em nossa óptica, inferir a contrario que não foi intuito do legislador vedar o ressarcimento dos familiares pelos danos supra-aludidos, cabendo a solução que preconizamos dentro da lei e espírito do sistema.

Aliás, também o direito interno, desde logo o artigo 496.° n.° 3 do Código Civil, como já demos a entender, reforça este entendimento quando não exclui os danos próprios de natureza não patrimonial sofridos pelo cônjuge e filhos menores, pelo que poderemos com facilidade concluir pela indemnização dos danos morais sofridos pelos AA., em consequência  da morte  do  seu  falecido pai  e  cônjuge [13].

Revertendo ao caso em análise diremos, à partida, que não se levantam problemas de maior quando se trata de o enquadrar dentro dos pressupostos da responsabilidade civil -artigos 483.° ss, assentes no que toca à ilicitude e culpa. A infeliz vítima e condutor do CX ao Km 8,50, na localidade de Fornos, Marco de Canaveses - onde a via tem duas faixas de rodagem, uma em cada sentido - ao descrever uma curva à sua esquerda, atento o sentido que seguia, perdeu o controlo do veículo e entrou em despiste, invadindo a faixa do sentido oposto e foi embater no EM. Violou destarte o artigo 13.° ns.° 1 e 4 do Código da Estrada e agiu de forma imprudente;

No caso sub iudice, do embate resultou a morte do condutor do CX, EE, a qual como vem referido no ponto 2.1.11., teve como causa adequada o comportamento estradai do próprio. Por seu turno o decesso da vítima provocou danos não patrimoniais próprios aos AA que são ressarcíveis à luz do direito aplicável, como acima deixámos dito. E deve aliás frisar-se que os danos sofridos são graves, o que é bem patenteado nas consequências concretas que resultaram para Autores, a saber o desgosto e abalo psicológico com a morte do falecido EE, já que existia entre este último e aqueles uma ligação sentimental sendo forte e recíproca a afeição, amor e carinho que mutuamente nutriam. Este desgosto é tanto maior quanto é certo que o falecido era pessoa forte, saudável e nunca padeceu de qualquer deformidade ou enfermidade [14]. Justifica-se assim a cobertura pelo Seguro Obrigatório de tais danos.

Cabe agora fixar aos AA a indemnização pelos "danos não patrimoniais próprios sofridos com o acidente".

Nos termos do preceituado no artigo 496.° n.° 2 do Código  Civil,   já  citado:

"2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem".

Por seu turno o n.° 4 do mesmo Diploma Legal estatui que "4. O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.°; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores".

É pacífico que na fixação da indemnização deverão ponderar-se as circunstâncias de cada caso, nomeadamente a situação económica do lesado e titular do direito à indemnização, não esquecendo nunca a gravidade do dano, o tempo em que o acidente decorreu e a data em que a indemnização é fixada [15].

Os danos supra-apontados são de natureza "não patrimonial" e passíveis de indemnização; e não se tratando de restituir os lesados a situação anterior, o que aliás não é possível, têm aqueles direito a uma indemnização de natureza meramente compensatória, fixada com recurso à equidade, estando em causa a atribuição aos lesados de determinadas importâncias em dinheiro, o que, se não elimina a perda sofrida com a morte da vítima, é contudo susceptível de lhes proporcionar algumas utilidades com vista a atenuá-la. Tem sido entendimento pacífico que o Juiz ao arbitrar a indemnização nos termos do preceituado no artigo 496.° n.° 2, deverá indicar separadamente a parte que corresponde a cada um dos lesados.

Os AA solicitavam que a título de dano não patrimonial próprio fosse a indemnização repartida pelo seguinte modo:

- € 19.000,00 para a viúva do falecido, AA e

- € 15.000,00 para cada um dos filhos, BB e CC.

A 2ª instância entendeu atribuir aos lesados a importância de 10.000,00 a cada um, em critério não actualista e sem qualquer discriminação. Na verdade para além de não existirem nos autos minimamente elementos palpáveis que nos permitissem ín casu diferenciar entre os danos sofridos pelo cônjuge e pelos filhos da vítima, acresce que as importâncias em causa propriamente ditas não foram objecto de recurso por parte dos AA., não podendo ser alteradas, nomeadamente para mais.


*

Resulta assim do exposto que concederíamos a revista e, revogando o Acórdão de fls. condenaríamos a Ré DD Seguradora a pagar aos Autores a título de danos não patrimoniais próprios por eles sofridos com a morte do seu marido e pai a importância de € 10.000,00 [16] a cada um, acrescido de juros à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.

Uniformizaríamos a Jurisprudência nos seguintes termos:

= No caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, verifica-se o direito à reparação dos danos não patrimoniais próprios provenientes daquela morte, às pessoas designadas no n.° 2 do  artigo  496.° do Código  Civil.=

(Vencido como relator e revendo a posição que tomámos no acórdão fundamento).

5-VI-2014.

Paulo Távora Victor

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[1] Cfr. Antunes Varela "Das Obrigações em Geral", I, Almedina, Coimbra 6ª Edição, pág. 595.

[2] Antes artigo 249°.
[3] cfr. Mota Campos, "Manual de Direito Comunitário", FCG, 2000, págs 307 e ss; Miguel Gorjão Henriques "Direito Comunitário" 4ª Edição, págs 279 e ss. Sob este aspecto e na Jurisprudência cfr. por todos Acs. deste STJ (P. 54/02.5EACBR) (Henriques Gaspar); e também com algum interesse, cfr. Ac. do S.T.J. (P. 210/07.OTBCDN.C1.S1) (Garcia Calejo) in site da DGSI.

[4] A aplicação da norma independentemente de mediação do Estado interno radica no caso Van Duyn (Ac. 4-12/1974)

[5] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira "Constituição da República Portuguesa Anotada" Almedina, Coimbra 4ª Edição, 1º Volume em anotação ao artigo 8, págs. 263 r ss. Miguel Gorjão Henriques "Direito Comunitário" citado, págs 279.

[6] Na sequência do que já se previa de algum modo no artigo 1º da segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983.

[7] Apud Armando Braga "A Responsabilidade pelo dano corporal na responsabilidade civil Extracontratual", págs. 314 e ss.

[8] É o que se verifica para além do Acórdão Fundamento citado, com os Acs. deste STJ de 14-2-2013 in Revista n° 705/10.8 (Álvaro Rodrigues); 8-1-2009 Alberto Sobrinho in Revista n° 3796/08; 21-10-2003 (Moreira Alves), todos in Bases da DGSI.

A nível das Relações apontamos no mesmo sentido os Acs. da RP de 12-5-2008 e 8-7-2010, ambos nas Bases da DGSI.

[9] Neste sentido vai também Castanheira Neves, desde logo em "o actual problema metodológico da realização do direito", págs 277, quando refere a dada altura "a norma texto será apenas um elemento - um elemento necessário mas insuficiente para a concreta realização jurídica - já que essa realização exigirá que para além da norma e em função agora do caso concreto (do problema especifico do quadro concreto se elabore já "a normativa concretização", já a especifica norma do caso (...). No mesmo sentido e dentro da mesma orientação poderemos encontrar Arthur Kaufmann "Filosofia do Direito" Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004, págs. 82 ss;

[10]  Seguindo o entendimento de Diogo Leite de Campos in "Seguro da Responsabilidade Civil" Almedina, Coimbra págs 66, para quem "pode dizer-se que são terceiros em relação a um contrato, todos aqueles que por si ou por intermédio de outrem não participem na sua celebração.

Ou seja todos os que não possam ser qualificados de parte". É que também eles, radicando no acidente, são objecto de uma protecção autónoma.

[11] Ainda com referência ao estudo referido na nota 17, impressivamente refere Leite de Campos que o sucessor surge como adquirente do direito de outrem (autor causante causam dans) referindo que "a aquisição do direito do sucessor é acompanhada da extinção subjectiva do anterior titular, havendo entre os dois fenómenos um nexo causal". Só que nada disto se passa no caso que analisamos onde os AA. não substituem quem quer que seja - o que aliás seria inviável, dado a culpa do falecido no acidente mas antes fazem valer um direito próprio.

[12] Neste sentido expressamente Cons. Moreira Alves in acórdão supracitado

[13] "O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494°; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores". A favor da indemnização pelos danos não patrimoniais dos familiares do acidentado como danos próprios e não iure hereditatis cfr. ainda Reglero Campos, "Tratado de Responsabilidade Civil" 2002, Aranzadi, págs. 258.
[14] Cfr. as judiciosas considerações do Cons. Abrantes Geraldes in "Ressarcibilidade dos Danos não Patrimoniais de Terceiros" apud "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles" IV, Coimbra, Almedina, págs. 264 ss, nomeadamente onde se escreve a fls. 277 "dificilmente se pode imputar ao ordenamento jurídico, cada vez mais enriquecido com a tutela de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente protegidos, uma resposta negativa que passe por desconsiderar, como se não o merecessem, danos suportados por aqueles que vêem radicalmente modificado o seu modo de vida sujeitos a estados de angústia ou de desespero incomensuráveis (...)". De igual forma o Prof. Calvão da Silva ín RLJ 137 n° 3966 excluindo a indemnização ao condutor que por sua culpa veio a falecer e danos não patrimoniais sofridos pelo mesmo, aceita porém o ressarcimento dos aludidos danos como próprios dos familiares por virtude da morte da vítima à face do artigo 7° do Código Civil.
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" I, Coimbra Editora, 4ª Edição, 1987, págs 499 ss; Antunes Varela, 6ª edição, Almedina, Coimbra, pags, 595. Menezes Leitão "Direito das Obrigações I, 5ª Edição págs. 332 ss. Almeida Costa "Direito das Obrigações" 8ª Edição Almedina, Coimbra págs 439; Ribeiro de Faria "Direito das Obrigações I, Almedina, Coimbra págs 488 ss. Galvão Telles "Direito das Obrigações, Coimbra Editora 6a Edição, Revista Actualizada, págs 373 ss. Vão no mesmo sentido as considerações de Vaz Serra in RLJ Ano 113, págs 104.
[16] Trata-se de indemnizações que não andam longe de outras que têm sito atribuídas por este STJ a saber: Acs. 09-09-2008, revista n° 1995/08 – 1ª Secção- 16-10-2008, revista n° 2697/08 - 7.a Secção-. 9-03-2009, revista nº 3007/08 – 7ª Secção.