Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1988
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: CONTRATO PROMESSA
COMPRA E VENDA
PRÉDIO
POSSE
INVERSÃO DO TITULO DE POSSE
Nº do Documento: SJ200809090019886
Data do Acordão: 09/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :



I – A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio .

II – O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador .

III – Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário .

IV- Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente perante o promitente alienante .

V – A posse em nome próprio do promitente comprador pressupõe a prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que terá de ser efectuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome próprio não ter sido originariamente conferida aos autores .

Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 24-3-95, AA e mulher BB instauraram a presente acção ordinária contra CC(entretanto falecido na pendência da causa e representado pelo seus herdeiros DD e Outros, identificados a fls 84 do apenso de habilitação de herdeiros), EE, FF e mulher GG, HH e Outros, devidamente id. a fls. 2, pedindo :
- seja constituído o regime de propriedade horizontal sobre o prédio urbano identificado na petição, nos termos que enunciam;
- se fixe o valor relativo de cada uma das fracções;
- se declare serem os autores, por os haverem adquirido por usucapião, proprietários e legítimos possuidores do segundo andar esquerdo do referido prédio e da arrecadação da cave que lhes foi prometido vender;
- se ordene que se proceda na Conservatória do Registo Predial competente aos necessários registos e averbamentos.

Alegaram, em síntese, que por contrato – promessa celebrado em 24 de Abril de 1964 o falecido II, e os réus CC e FF prometeram vender ao autor marido e este prometeu comprar o 2º andar esquerdo do prédio identificado na petição inicial e uma arrecadação na cave, tendo-se ajustado o preço de 540.000$00.
Como sinal e principio de pagamento, entregou o autor aqueles a quantia de 200.000$00, no acto da assinatura do contrato, acordando nos demais termos e actos daquele contrato constantes, tendo ainda entregue, em Outubro de 1964, a quantia de 150.000$00.
Em 30 de Maio de 1964 os promitentes vendedores entregaram ao autor as chaves do andar e arrecadação, para que este para aí fosse viver e utilizasse a dita arrecadação, sem qualquer contrapartida monetária, tendo os autores nesse mesmo dia mudado para a fracção e começado a utilizar a arrecadação.
Desde então e até ao presente, sempre os autores ai viveram, usaram e fruíram do andar e arrecadação, instalando e organizando a sua vida familiar, social e doméstica.
A escritura pública nunca se veio a celebrar, porquanto, os promitentes vendedores nunca criaram as necessárias condições, tendo-se desentendido entre eles e desinteressando-se do contrato celebrado com o autor, não tendo, por isso, o autor pago o 2º reforço do sinal e o remanescente do preço ajustado.
O autor desde que foi viver para o andar em questão sempre participou no pagamento das despesas com as partes comuns do prédio – electricidade, ordenados da porteira, descontos desta para a segurança social, pagamento da contribuição predial e autárquica, em conjunto com os outros moradores do prédio, foi administrador do prédio, etc. – bem como contratou o abastecimento de água e luz ao seu andar e procedeu ao pagamento dos respectivos recibos.
Porque considerava segura a outorga da escritura pública, o autor desde o momento em que o andar e arrecadação lhe foi entregue, sempre se julgou seu dono e actuou em conformidade, ao longo de todos estes anos, sem oposição dos réus ou do falecido II, com conhecimento de todos, devendo, por isso, declarar-se que o andar e arrecadação foram adquiridos por usucapião.
Caso assim não se entenda, invocam os autores a inversão do titulo da posse, que teria ocorrido no momento em que decorreram 30 dias sobre o acordo celebrado entre os réus, no sentido de diligenciarem as necessárias licenças indispensáveis à outorga da escritura pública definitiva de venda do andar, sem que nada tivesse sido feito.
Devidamente citados, apresentaram os réus a sua contestação, excepcionando a ilegitimidade dos autores quanto ao 1º pedido formulado, por estarem desacompanhados dos restantes “ condóminos “.
Quanto ao mais alegado, dizem os réus que os factos articulados pelos autores não são por si reveladores da actuação daqueles como proprietários do andar, sendo, como são, possuidores precários do dito andar.
Acresce que, a não regularização da situação do prédio se deveu ao facto de alguns promitentes compradores não terem procedido ao reforço do sinal, impedindo os promitentes vendedores de solucionarem alguns problemas técnicos que constituíam obstáculo à concessão da licença camarária.
Houve réplica .
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No despacho saneador, afastou-se a invocada excepção, considerando-se gozarem os autores de legitimidade.
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Por decisão de fls 432, foi rejeitada a junção do articulado superveniente de fls 402 e segs, de que os réus interpuseram recurso de agravo, admitido com subida diferida .
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Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que decidiu :

A) constituir em regime de propriedade horizontal o prédio urbano, sito em Lisboa, na Rua General Pimenta de Castro, nº ... (antigo Arruamento Projectado à Rua José Malhoa, na Quinta, dos Lagares de El Rei, Lote...), na freguesia de Alvalade, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo nº 562, com seguinte individualização das suas fracções, e condenar-se os réus a tal reconhecer:
- Fracção “A”-rés-do-chão, direito com cinco divisões, cozinha, duas casas de banho e arrecadação na cave, que estava destinada a este rés–do–chão, direito, a primeira à esquerda de quem desce a escada, do lado das traseiras do prédio;
- Fracção “B” – rés-do-chão esquerdo, com três divisões, cozinha, casa de banho e arrecadação na cave, que estava destinada a este rés-do-chão, a primeira à direita de quem desce a escada, do lado das traseiras do prédio;
- Fracção “C” primeiro andar direito com quatro divisões, cozinha, duas casa de banho, e arrecadação na cave, destinada a este primeiro o andar, a segunda à direita de quem desce a escada, do lado das traseiras do prédio e a seguir à do rés-do-chão, esquerdo;
- Fracção “D”, primeiro andar esquerdo com cinco divisões, cozinha, duas casas de banho e arrecadação na cave; destinada ao segundo na andar, esquerdo, a primeira à esquerda e à ponta, de quem desce a escada, do lado da frente do prédio;
- Fracção “E” - segundo andar, direito, com quatro divisões, cozinha, duas casas de banho e arrecadação na cave, que estava destinada a este andar, situada em frente da arrecadação do primeiro andar, direito, do lado da frente do prédio;
- Fracção “F” - segundo andar esquerdo, com cinco divisões, duas casas de banho e arrecadação na cave, que estava destinada ao primeiro andar, esquerdo, situada à esquerda da arrecadação do rés-do-chão, direito, do lado traseiro do prédio;
- Fracção “G” – terceiro andar, direito, com quatro cozinha, duas casas de banho e arrecadação na cave, que estava destinada a este andar e situada em frente da arrecadação do rés-do-chão, esquerdo, e da escada;
-Fracção “H” – terceiro andar esquerdo, com cinco divisões, cozinha, duas casas de banho e arrecadação na cave, destinada a este andar e situada em frente da arrecadação do rés-do-chão direito,
Com as seguintes partes comuns:
-Habitação da porteira, sita no quarto andar, composta de duas divisões, cozinha e casa de banho;
-Elevador e
- As outras partes integrantes e pertenças especificadas no artigo 1.412º, nºs 1 e 2 do Código Civil.
Valor relativo das fracções, em percentagem:
Fracção A: 13,95%;
Fracção B: 9,31%;
Fracção C: 11,63%;
Fracção D: 13,95%;
Fracção E: 11,63%;
Fracção F: 13,95%;
Fracção G: 11,63%;
Fracção H: 13,95%.

B) declarar que os autores, por o haverem adquirido por usucapião, são proprietários e legítimos possuidores do segundo andar esquerdo do prédio id. em A) e respectiva arrecadação – fracção F -, e comproprietários das partes comuns e condenar os réus a tal reconhecer;

C) ordenar que se proceda na CRP competente aos necessários registos e averbamentos, nos termos indicados a fls. 14 v. dos autos.

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Apelaram os réus, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 17-1-08, negou provimento ao agravo, bem como à apelação e confirmou o despacho e sentença recorridos .

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Continuando inconformados, os réus FF e Outros recorreram de revista, onde resumidamente concluem :
1- A resposta ao quesito 35º da base instrutória deve ser tida por não escrita, nos termos do art. 646, nº4 do C.P.C.
2 – Existe contradição entre a resposta dada aos nºs 35 e 39 da base instrutória, contradição que deve ser sanada, nos termos do art. 729, nº3, do C.P.C.
3 – O exercício dos poderes de facto que decorre da mera traditio da coisa que foi objecto do contrato promessa de compra e venda não reúne os elementos necessários a que seja qualificada como pura posse, que exige o corpus e o animus possessórios .
4 – Ainda que se possa subscrever o entendimento de alguns autores e de alguma jurisprudência que admitem que, em circunstâncias excepcionais, o animus possa existir na sequência da tradição da coisa em contrato promessa, esse não é o caso dos autos .
5 – Com efeito, nem a coisa foi entregue ao comprador como se fosse sua já, nem este, nesse estado espírito de proprietário, praticou sobre a coisa entregue actos materiais correspondentes ao direito de propriedade ,
6 – Em primeiro lugar, não se vislumbram circunstâncias excepcionais que justifiquem a consagração de excepção à regra da qualidade de mero detentor do promitente comprador . O preço não foi pago na totalidade, não houve pagamento da sisa, era propósito das partes celebrar o contrato definitivo quando celebraram o contrato promessa .
7 – Em segundo lugar, a coisa não foi entregue ao promitente comprador como se fosse coisa sua já . O recorrido não tinha pago o preço, Como é que os promitentes vendedores poderiam entregar a coisa, de modo a que o promitente comprador a julgasse sua, se ainda a não tinha pago ?.
8 – Em terceiro lugar, a posse dos recorridos foi sempre exercida com referência ao contrato promessa, por cujo cumprimento os recorridos aguardaram e reclamaram, tendo eles inclusivamente feito a notificação judicial avulsa dos promitentes vendedores, em data posterior à entrega das chaves, interpelando-os para a outorga do contrato prometido .
9 – Em momento algum os recorridos manifestaram aos recorrentes ou aos promitentes vendedores qualquer atitude que fosse reveladora da sua intenção ou vontade de considerarem o andar como seu, opondo o seu direito ao direito dos recorrentes .
10 - Não colhe o argumento de que os promitentes compradores consideravam segura a celebração do contrato definitivo, face às circunstância factuais dadas como provadas : insistências pela celebração da escritura; notificação judicial avulsa ; falta de reforço do sinal, por não ter sido feito registo provisório ; inexistência de registos prediais ou de licenças .
11 – Não foi feita inversão de título da posse, que teria de ser efectuada por oposição ao detentor do direito, traduzida em actos positivos, inequívocos e praticados na presença ou com o consentimento dos recorrentes .
12 – A pretensa posse dos recorridos seria de má fé, porque não poderiam ignorar que lesariam os direitos dos recorrentes, ao pretenderem fazer seu um andar e arrecadação pelo qual pagaram apenas parte do preço convencionado .
13 – Essa posse também é de má fé, por se ter iniciado em 1964, na vigência do Código Civil de 1867, que exigia a existência de justo título para que a posse fosse de boa fé, o que a sentença ignorou .
14- Ora, a posse dos recorridos carecia de justo título, que era a outorga da escritura de compra e venda pelo que, se até à entrada em vigor do novo Código era de má fé, assim continuou a ser .
15 – Posse titulada é aquela que é fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, sendo que o título necessário para adquirir o direito sobre o andar seria o contrato de compra e venda, que não existe .
16- Consideram violados os arts 1251, 1253, 1287, 1251, 1259, 1260 e 1290 do C.C. , devendo a acção ser julgada improcedente .
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Os autores contra-alegaram em defesa do julgado .
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Corridos os vistos, cumpre decidir .

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Vêm provados os factos seguintes :

1- CC, II e FF adquiriram em 1963 o lote de terreno para construção com o número ... no Arruamento Projectado à Rua José Malhoa, na Quinta dos Lagares de El – Rei, hoje Rua General Pimenta de Castro, nº ....

2- CC, II e FF construíram no dito lote edifício destinado ao regime de propriedade horizontal.

3- O edifício é composto de cave, rés – do – chão e quatro andares.

4- E está inscrito em nome de CC, II e FF na matriz predial urbana da freguesia de Alvalade sob o art. 562º

5- Um terço do prédio pertence em parte iguais a CC e EE.

6- CC, II e FF prometeram vender, livre de ónus e encargos, a AA e este prometeu comprar-lhes o segundo andar esquerdo do prédio referido, através de escrito assinado a 24/04/64.

7- Na dita promessa foi incluída a compra e venda das partes de uso comum e de uma arrecadação na cave.

8- O montante acordado para a venda foi de 540.000$00.

9- E como sinal e princípio de pagamento AA entregou a CC, II e FF, no acto da assinatura a quantia de 200.000$00.

10- E estes comprometeram-se a pagar a sisa, os encargos relativos ao prédio existentes até à escritura de venda e as despesas desta.

11- Ficou acordado que o AA efectuaria os seguintes reforços de sinal : 150.000$00 até fim de Julho de 1964 ; 150.000$00 aquando da efectivação do registo provisório a seu favor ; 40.000$00 no acto da escritura de venda ( alínea L) da especificação )

11A- Em 21 de Outubro de 1964 o autor entregou àqueles o primeiro dos indicados montantes de 150.000$00 ( alínea L1da especificação ).

12 – Também ficou estabelecido que a escritura se realizaria no local, dia e hora em que os promitentes acordassem, ou na ausência de acordo, em cartório de Lisboa, na data e hora indicados pelo AA, mas nunca antes de CC, II e FF estarem munidos da licença de habitabilidade do prédio e demais documentação exigível.

13- CC, II e FF não requereram para o edifício a licença de utilização, habitação e ocupação.

14- Em auto de conciliação lavrado em 7/04/70 que pôs termo a uma acção, os réus CC, II e FF comprometeram-se a promover, no prazo de 30 dias, as diligências necessárias para a obtenção das licenças de habitação indispensáveis para a outorga das escrituras definitivas de venda dos andares do prédio, às quais se devia proceder proceder imediatamente a seguir à constituição do regime de propriedade horizontal.

15 - O rés – do – chão do edifício e cada um dos três andares destinavam-se a terem duas habitações por piso.

16- E estes são servidos por escada interior e por ascensor.

17 - E o rés – do – chão tem vestíbulo de acesso à escada, ao elevador e à cave.

18 - E a cave era destinada a oito arrecadações, correspondendo uma a cada uma das ditas habitações.

19 - E o quarto andar destinava-se a habitação da porteira.

20- E este e as restantes habitações têm acesso às escadas e ao elevador.

21 - E bem assim as arrecadações.

22 - A 29/12/65 foi realizada vistoria para a constituição da propriedade horizontal.

23 - A 30/05/64 CC, II e FF entregaram a AA as chaves do referido segundo esquerdo e da arrecadação.

24 - A fim de que este fosse para lá viver com a família e passasse a usar a arrecadação.

25 - E isto sem qualquer contrapartida monetária.

26 - E nesse dia AA mudou para o segundo esquerdo passando a usá-lo e à arrecadação.

27 - E aí passou, com a sua família, a preparar as refeições e a comer.

28- E a dormir.

29 - E a receber a correspondência.

30- E a receber amigos e conhecidos.

31 - E aí foram criadas as duas filhas.

32 - E aí tem organizada a sua vida.

33 - E nunca CC, II e FF exigiram qualquer quantia em contrapartida pelo aproveitamento referido.

34 - CC, II e FF não registaram o prédio em seu nome.

35 - E não instituíram sobre aquele o regime da propriedade horizontal.

36 - Desde que a porteira do prédio passou a receber ordenado, em Janeiro de 1966, que AA comparticipou.

37 - E bem assim no pagamento da água e electricidade da habitação da porteira.

38 - E quando a porteira passou a descontar, a partir de Maio de 1973, que AA comparticipou nos montantes relativos às respectivas contribuições.

39 - Desde Janeiro de 1966 que AA comparticipa nas despesas de electricidade gasta no elevador, na escada, na entrada e no patamar do prédio.

40- E nas despesas com a manutenção do elevador do prédio.

41- E na conservação e reparação do edifício.

42- E, em função do rendimento colectável do segundo andar esquerdo, (i) nas quantias respeitantes às contribuições predial e autárquica de 1974 em diante.

43 - E também no pagamento das taxas de conservação e esgotos do prédio.

44- Desde 1987 AA vem sendo administrador do prédio.

45 - E foi ele quem em 1964 acordou com a Epal o abastecimento de água ao segundo esquerdo.

46 - E quem então vem suportando os custos dos correspondentes fornecimentos.

47 - E foi ele quem em 1964 acordou com a EDP o abastecimento de electricidade e gás ao segundo esquerdo.

48 - E quem desde então vem suportando os custos dos correspondentes fornecimentos.

49 - O autor desde 30/05/1964 que passou a conduzir-se como se o andar e a arrecadação fossem seus e julgando-se dono dos mesmos ( resposta ao quesito 35º)

50- Os réus e os habitantes do prédio sempre souberam da utilização que AA e família faziam do andar e da arrecadação.

51- E a tal nunca ofereceram qualquer oposição.

52- Em acção especial de divisão de coisa comum que correu termos pela 1ª secção do 8º juízo deste Tribunal o 2º andar esquerdo foi adjudicado a II e mulher e FF e mulher, em comum e partes iguais.

53- Os autores em 02/08/1966 notificaram CC, II e FF para comparecerem em cartório em 15/12/66 a fim de outorgarem a escritura de venda ( resposta ao quesito 39º) .

54 - Os autores foram notificados pela ré EE, invocando a respectiva qualidade de dona de metade de um terço indiviso do prédio, em 25/07/79 para lhe enviarem o contrato promessa e para esclarecerem se estavam na disposição de outorgar a escritura de compra e venda.

55 - Os autores nunca responderam à dita solicitação.

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Face às conclusões das alegações, são três as questões a decidir:
1- Se a resposta ao quesito 35º da base instrutória deve ser considerada não escrita, por ser conclusiva .
2- Se há contradição entre as respostas aos quesitos 35º e 39º .
3- Se o exercício dos poderes de facto decorrente da mera traditio da coisa que foi objecto do ajuizado contrato promessa de compra e venda reúne os elementos necessários para ser qualificada como verdadeira posse, com corpus e animus possessórios .

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Vejamos :

1.

A resposta ao quesito 35º :

O quesito 35º tem a seguinte redacção :
“O autor desde 30-5-1964 que passou a conduzir-se como se o andar e a arrecadação fossem seus e julgando-se dono dos mesmos “ ?
Tal quesito mereceu resposta de “ provado “.
Entendem os recorrentes que tal resposta é conclusiva e, por isso, deve ser considerada não escrita, nos termos do art. 646, nº4, do C.P.C.
Ora, apreciando tal resposta, dir-se-á que ela é parcialmente conclusiva, no segmento em que refere que “o autor, desde 1964, passou a conduzir-se como se o andar e a arrecadação fossem seus “.
Com efeito, é manifesto que se trata de uma conclusão que só poderá ser extraída de determinados factos materiais que se encontrem provados .
Por isso, nesta parte, tal resposta é de considerar, como se considera, não escrita, por analogia com o disposto no art. 646, nº4, do C.P.C.
Mas deve manter-se a restante matéria provada do referido quesito, ou seja, o segmento de que “o autor, desde 1964, passou a julgar-se dono da mesmo andar e arrecadação “.
Aqui trata-se de apurar a convicção pessoal do autor, que cabe no domínio da matéria de facto, pois a vasta categoria dos factos processualmente relevantes abarca não apenas os acontecimentos do mundo exterior, como também os eventos do foro interno, da vida psíquica ou sensorial do indivíduo .

2.

A resposta ao quesito 39º :

Através da resposta ao quesito 39º ficou provado que “os autores em 2-8-1966, notificaram os réus CC, II e FF para comparecerem em cartório em 15-12-66, a fim de outorgarem a escritura de venda “.
Tal resposta inculca que os autores, na mencionada data, ainda não eram donos do andar e arrecadação, mas é compatível com a parte subsistente da resposta ao quesito 35º.
Na verdade, o julgar-se dono de uma coisa não é o mesmo que já estar provado ser-se dono dela, pelo que não há contradição entre a referida matéria dos mencionados quesitos.

3.

Natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda :

A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art. 1251 do C. C.
Na análise de uma situação de posse distinguem-se dois momentos : um elemento material ( corpus ), que se identifica com os actos materiais de detenção e fruição praticados com o exercício de certos poderes sobre a coisa ; um elemento psicológico ( animus ) que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados .
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação : é o que se chama a usucapião – art. 1287 do C.C.
A verificação da usucapião depende de dois elementos : da posse e do decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa .
Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características : ser pública e pacífica .
Os restantes caracteres ( boa ou má fé, titulada ou não titulada) influem apenas no prazo .
A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio .
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., págs 6/7 ) , “ o contrato promessa de compra e venda não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador .
O contrato promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador . Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário .
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo ( a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade .
Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real .
O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse“ .
Trata-se de posição que tem sido sufragada pela doutrina ( Antunes varela, R.L.J. Ano 124º- 348 ; Vaz Serra, R.L.J. Ano 109º-314 e Ano 114º-20, Calvão da Silva, BMJ nº 349-86, nota 55), bem como pela jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça (Ac. do S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 118; Ac. S.T.J. de 19-11-96, III, 3º, 96; Ac. S.T.J. de 11-3-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, 137; Ac. S.T.J. de 23-5-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 2º, 97, este também relatado pelo ora relator ) .
Pois bem .
No nosso caso concreto, apurou-se ter sido celebrado, em 24-4-1964, um contrato promessa, através do qual os réus CC, FF e CC prometeram vender ao autor AA e este prometeu comprar àqueles, o segundo andar esquerdo do referido prédio, com uma arrecadação, pelo preço de 540.000$00.
Como sinal e princípio de pagamento, o AA entregou aos réus, no acto da assinatura do contrato promessa a quantia de 200.000$00.
Ficou acordado que o AA efectuaria os seguintes reforços de sinal : 150.000$00 em fim de Julho de 1964; 150.000$00 aquando da efectivação do registo provisório a seu favor ; 40.000$00 no acto da escritura de compra e venda .
Todavia, o AA apenas veio a pagar o primeiro reforço do sinal, no indicado montante de 150.000$00 .
Também ficou estabelecido que a escritura de compra e venda se realizaria no dia, hora e local em que os promitentes acordassem ou, na ausência de acordo, em cartório notarial de Lisboa, na data e hora indicados pelo AA, mas nunca antes dos réus CC, II e FF estarem munidos da licença de habitabilidade do prédio e demais documentação exigível .
Em 30-5-64, os réus CC, II e FF entregaram ao autor as chaves do indicado segundo andar esquerdo e da arrecadação, permitindo que este fosse para lá viver com a família e passasse a usar a arrecadação, tudo sem qualquer contrapartida monetária .
Os promitentes vendedores comprometeram-se a pagar a sisa, os encargos relativos ao prédio existentes até à escritura de venda e ainda as despesas desta.
Em auto de conciliação lavrado em 7-4-70, que pôs termo a uma acção, os réus CC, II e FF comprometeram-se a promover, no prazo de 30 dias, as diligências necessárias para a obtenção das licenças de habitação indispensáveis para a outorga das escrituras definitivas de venda dos andares do prédio, às quais se devia proceder imediatamente a seguir à constituição do regime de propriedade horizontal .
Aconteceu, porém, que os réus não registaram o prédio em seu nome, não instituíram o regime da propriedade horizontal, não pagaram a sisa, nem requereram para o edifício a licença de utilização, habitação e ocupação .
Os autores também não chegaram a pagar a restante parte do preço em dívida, no valor de 190.000$00, só tendo entregue os mencionados 350.000$00.
A escritura de compra e venda nunca foi outorgada, mas a verdade é que o contrato promessa nunca foi resolvido por qualquer das partes .
Assim sendo, é bom de ver que não resultaram provadas quaisquer daquelas circunstâncias excepcionais que permitam concluir que possa existir o animus da posse, por parte do promitente comprador, em resultado da tradição da coisa que lhe foi facultada pelos promitentes vendedores, na sequência da celebração do contrato promessa de compra e venda .
Com efeito, nem a coisa foi entregue ao promitente comprador como se sua fosse já, nem este nesse estado de espírito ( de proprietário ) podia praticar sobre a coisa entregue actos materiais correspondentes ao direito de propriedade, pois era propósito das partes celebrar o contrato definitivo de compra e venda, quando foi outorgado o contrato promessa, sendo certo, por outro lado, que o preço não estava pago na totalidade e que não houve pagamento da sisa .
A posse do promitente comprador foi exercida com referência à traditio da coisa decorrente do contrato promessa, por cujo cumprimento os próprios autores chegaram a reclamar em 2-8-66, quando notificaram os promitentes vendedores para comparecerem em cartório notarial no dia 15-12-66, a fim de outorgarem a escritura de compra e venda .
Não se vislumbram, assim, circunstâncias excepcionais que justifiquem a consagração de uma excepção à regra da qualidade de mero detentor do promitente comprador .
Já vimos que o contrato promessa celebrado não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador .
Com a entrega do andar e da arrecadação, antes da outorga da escritura de compra e venda do contrato prometido, o promitente comprador adquiriu o corpus possessório, mas não adquiriu o animus, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário .
Ao conferirem a posse precária aos recorridos, sem dúvida que os recorrentes queriam autorizar que aqueles usassem a arrecadação e fossem habitar, com a sua família, para o andar prometido vender, que lá preparassem e tomassem as suas refeições, que ali dormissem, recebessem a correspondência, amigos e conhecidos e lá organizassem a sua vida .
Corolário dessa autorização seria também que os recorridos contratassem os fornecimentos de água, electricidade e gás, indispensáveis ao uso e fruição do andar consentido pelos promitentes vendedores, e suportassem os custos dos respectivos fornecimentos .
E, tendo sido celebrado contrato promessa de compra e venda, que definiu as prestações recíprocas das partes, nada se pode concluir do facto de não ser exigida qualquer contrapartida pela utilização do andar .
Relativamente ao facto de os recorridos terem comparticipado em outras despesas do andar e até do prédio, há que referir que nada mais se apurou para além dessa comparticipação, designadamente quanto a saber a que título foi feita, em que medida e porque razão .
Tais actos traduzem o corpus da posse, que os recorrentes não contestam, sem que tenham a virtualidade de reflectir, necessariamente e de forma inequívoca, quanto aos mesmos recorrentes, o animus possidendi .
A tradição da coisa, realizada a favor do promitente comprador, no caso de promessa de compra e venda sinalizada, não investe o promitente comprador na qualidade de verdadeiro possuidor da mesma coisa .
Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente perante o promitente alienante .
Por outro lado, cumpre ainda salientar que, embora se tivesse apurado que, desde 30-5-64, o autor se passou a julgar dono do andar e da arrecadação, o certo é que não basta tal estado psicológico de convicção interior, nem o facto do mesmo, desde 1966, ter comparticipado em certas despesas do andar e do prédio ou de ter pago a contribuição autárquica, a partir de 1974, pois não foi feita prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que teria de ser efectuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome próprio não ter sido originariamente conferida aos autores .
Nos termos do art. 1265 do C.C., a inversão do título da posse só pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, pág. 30 ) “torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía .
Nesse sentido pode dizer-se que ainda se mantém a regra “nemo sibi causam possessionis mutare potest “.
Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título ( depósito, mandato, usufruto a termo, etc) que lhe servia de base .
O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente ) a sua intenção de actuar como titular do direito “.
Para ser eficaz, a inversão da posse tem de traduzir-se “em actos positivos ( materiais ou jurídicos ) inequívocos ( reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que até então considerava pertencente a outrem ) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem ( Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pág. 98) .
Ora, desde a outorga do ajuizado contrato promessa, os autores tiveram muitas oportunidades para inverterem o título da posse precária em que estavam investidos, levando ao conhecimento dos réus ( ou dos seus herdeiros ), quer judicial ou extrajudicialmente, a sua intenção de actuar como titulares do direito de propriedade sobre os mencionados andar e arrecadação .
Mas nunca o fizeram, designadamente quando foram notificados pela ré EE, em 25-7-79, para lhe enviarem o contrato promessa e para esclarecerem se estavam na disposição de outorgar a respectiva escritura de compra e venda .
E apenas se provou que os réus sempre souberam e nunca se opuseram à utilização que os autores faziam do andar, por eles expressamente consentida mediante a entrega das chaves, na sequência da celebração do contrato promessa, nada se tendo apurado quanto ao conhecimento, pelos réus, da mudança da convicção pessoal dos autores, nem quanto ao conhecimento do pagamento dos aludidos encargos que estes passaram a efectuar.
Em face do exposto, não operou a aquisição, por usucapião, do andar e arrecadação, a favor dos autores, não obstante o largo período de tempo decorrido sobre a outorga do contrato promessa de compra e venda, nem pode ser declarado constituído o pretendido regime de propriedade horizontal .
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Termos em que, concedendo a revista, revogam o Acórdão recorrido e, com ele, a sentença da 1ª instância, julgam a acção improcedente e absolvem os réus do pedido .
Custas pelos recorridos, quer no Supremo, quer nas instâncias .

Lisboa, 9 de Setembro de 2008

Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira