Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10000/19.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
QUESTÃO NOVA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
VIOLAÇÃO
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Não ocorre ‘dupla conforme’ obstativa da revista nos termos gerais se, não obstante tais decisões coincidiram na decisão de improcedência da acção, a 1ª instância fundar a decisão na autoridade de caso julgado e a Relação na excepção de caso julgado.
II. É que, embora correspondendo a diferentes perspectivas do mesmo instituto jurídico, a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado gozam de autonomia conceptual e diferenciação de requisitos e efeitos, pelo que haverá de considerar que há uma diferença essencial entre elas enquanto fundamento de idêntica decisão.
III. Ademais, as situações de dúvida quanto à verificação de fundamentação essencialmente diferente devem ser resolvidas por aplicação do brocardo ‘odiosa restringenda, favorabilia amplianda’.
IV. Invocando o executado na oposição que deduz à execução não só a ocorrência de circunstâncias relacionadas com a relação processual da instância executiva, susceptíveis de levar à extinção da mesma, mas também circunstâncias relacionadas com a vertente substantiva da obrigação exequenda, a decisão de mérito proferida nesse processo, para além dos efeitos sobre a instância executiva constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (artigo 732º, nº 5, do CPC).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA


ENTRE


TERRIMINAS – SOCIEDADE INDUSTRIAL DE CARVÕES, SA
(aqui patrocinada por AA, adv.)

Autora / Apelante / Recorrente

CONTRA


EDP – GESTÃO DE PRODUÇÃO DE ENERGIA, SA
(aqui patrocinada por BB, adv.)

Ré /Apelada / Recorrida



I – Relatório

A Autora intentou a presente acção pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 2.205.865,96 €, a título de juros de mora comerciais, desde 12FEV2012 até 25OUT2017, relativos à quantia em que a mesma foi condenada em anterior sentença arbitral.

 A Ré contestou invocando a impossibilidade legal de cumulação de actualização do capital e juros moratórios; e excepcionando o caso julgado e a prescrição.

Foi proferido saneador-sentença que, «considerando que a decisão arbitral determinou, em conformidade com o pedido deduzido no processo arbitral pela aqui Autora, o critério de atualização das quantias em cujo pagamento a aqui Ré foi condenada até ao momento do pagamento, nunca este tribunal poderia condenar a Ré no pagamento de juros de mora, a contar do trânsito em julgado da sentença arbitral até ao pagamento, calculados entre 03/12/2012 e 12/05/2017, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal comercial, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, sob pena de se verificar uma duplicação de indemnização pelo mesmo dano decorrente do atraso na entrega das quantias em que a Ré foi condenada», julgou verificada a excepção da autoridade do caso julgado e, em consequência, absolveu a Ré da instância.

 Inconformada, apelou a Autora concluindo, em síntese, estar a sentença arbitral destituída de autoridade de caso julgado relativamente à obrigação de juros de mora por não ter decidido essa questão e por relativamente a tal ser totalmente omissa a sua fundamentação.

 A Relação, considerando ocorrer excepção de caso julgado uma vez que a questão “relativa à actualização e a sua incompatibilidade com o arbitramento de juros de mora” se encontrar já apreciada e decidida na sentença proferida nos autos de oposição à execução da sentença arbitral, julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

 Irresignada, vem a Autora interpor recurso de revista (subsidiariamente, revista excepcional) concluindo, em síntese, por estar vedado à Relação conhecer da excepção de caso julgado, quer por violação do contraditório quer por se tratar de questão nova, e por erro de julgamento uma vez que se não verificam as invocadas excepções de autoridade de caso julgado e de caso julgado.

 Houve contra-alegação onde se propugnou pela inadmissibilidade da revista (nos termos gerais e excepcional) e pela manutenção do decidido.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

 O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

 Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC.

 A dupla conformidade decisória é, nos termos do art.º 671º, nº 3, do CPC, obstativa do recurso de revista, a menos que a fundamentação das decisões conformes seja essencialmente diferente.

De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação no iter jurídico que suporta o acórdão da Relação em confronto com a sentença de 1.ª instância, sendo antes indispensável que, naquele aresto, ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa. Assim, na formulação do Acórdão do STJ de 20FEV2020 (proc. 1003/13.0T2AVR.P1.S1), “só pode considerar-se estarmos perante uma fundamentação essencialmente diferente quando ambas as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão, mostrando-se o mesmo decisivo para a solução final: ou seja, se o acórdão da Relação assentar num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na sentença de 1.ª instância. Ou, dito ainda de outro modo: quando o acórdão se estribe definitivamente num enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado do perfilhado na 1.ª instância” (pode consultar-se resenha jurisprudencial sobre a matéria em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2021/01/dupla-conforme.pdf).

No caso dos autos, embora o enquadramento normativo se refira a um mesmo instituto – o caso julgado – o certo é que ele foi considerado em diferentes perspectivas desse mesmo instituto – a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado – que gozam de autonomia conceptual e diferenciação de requisitos e efeitos, pelo que se haverá de considerar que há uma diferença essencial entre elas, e, consequentemente, não há impedimento à admissibilidade da revista nos termos gerais.

E ainda que se entendesse não ser claro estarmos perante uma fundamentação essencialmente diferente sempre se haveria de resolver essa dúvida por recurso ao brocardo ‘odiosa restringenda, favorabilia amplianda’.

Dessa forma o acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

 Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

Destarte, o recurso de revista nos termos gerais merece conhecimento (ficando prejudicada a apreciação da admissibilidade da subsidiária revista excepcional).

 Vejamos se merece provimento.

           


-*-


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

 De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

 Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

  Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- do excesso de pronúncia da Relação ao conhecer de questão nova;

- do excesso de pronúncia da Relação por ter decidido sem contraditório;

- da ocorrência de caso julgado.


III – Os factos

Das instâncias vem fixada a seguinte factualidade:

           

1. Por sentença arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial ... em 02/12/2012, no Processo nº 11/..., em que foi demandante a aqui Autora e foi demandada a aqui foi proferida decisão nos seguintes termos:
«1) Declarar parcialmente procedente o pedido (€6.472.108,77) da Autora, ao pagamento dos diferenciais de preços do carvão e dos custos com serviços complementares, e condenar a Demandada a pagar-lhe a quantia de € 1.070.031,99 (um milhão setenta mil trinta e um euros e noventa e nove cêntimos) referente ao ano de 1985 e a quantia de € 258.848,78 (duzentos e cinquenta e oito mil oitocentos e quarenta e oito euros e setenta e oito cêntimos) referente ao ano de 1986, quantias essas atualizadas segundo os índices de preços (sem habitação) no consumidor publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, até à data do seu efetivo pagamento.
2) Declarar improcedente o pedido da Autora ao pagamento do montante de subsídios à produção dados pelo Estado à ECD – Empresa Carbonífera do Douro.
3) Os encargos da arbitragem, que incluem honorários para árbitros e encargos administrativos, calculados nos termos do Regulamento de Arbitragem, serão repartidos em 60% para a Autora 40% para a Demandada».

2. No requerimento de arbitragem deduzido no processo identificado no facto anterior a aqui Autora pediu a condenação da aqui Ré a pagar-lhe:
«a) A quantia de € 6.472.108,77, atualizada de acordo com o fator de atualização monetária, de acordo com o índice publicado pelo Instituto Nacional de Estatística para os preços no consumidor, sem habitação (ou com outro critério que o Tribunal repute adequado), desde os anos a que as prestações se reportam, até ao momento da conversão no ato de pagamento; e
b) Quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente ao montante dos subsídios à produção doados pelo Estado à E.C.D., cujo montante exato a Demandante desconhece neste momento».

3. Em 12/02/2013, a Autora instaurou ação executiva da sentença arbitral identificada no facto provado nº 1, que correu termos no Juízo de Execução ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 2455/13.....

4. Na ação executiva identificada no facto anterior, a Autora incluiu no requerimento executivo a quantia de € 4.776.248,14, a título de juros de mora comerciais desde 2005 até 28/02/2013.

5. A aqui Ré deduziu oposição à execução identificada nos dois factos anterior, tendo sido proferida sentença em 27/05/2015 no apenso de Oposição à Execução nº 2455/13...., nos termos da qual decidiu:
«a. julgar a oposição parcialmente procedente por provada e, em consequência, julgar extinta a execução no que respeita ao pedido de juros e de fixação de sanção pecuniária compulsória;
b. julgar, no mais, a oposição improcedente, por não provada».

6. A sentença identificada no facto anterior foi objeto de recurso junto do Tribunal da Relação ..., o qual proferiu Acórdão em 14/04/2016, que decidiu «julgar improcedente o recurso principal, confirmando-se a decisão recorrida e procedente o recurso subordinado, revogando-se a última parte da alínea a) do dispositivo da sentença recorrida, por ser devida a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do art.º 829º-A do Código Civil».

7. O acórdão identificado no facto anterior foi objeto de recurso de revista para o Supremo no qual «decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido», transitado em julgado em 11/09/2017.

8. Na presente ação instaurada em 13/05/2019, a Autora pede a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 2.205.865,96, a título de juros de mora calculados entre 03/12/2012 (dia seguinte ao trânsito em julgado da sentença arbitral identificada no facto provado nº 1) e 25/10/2017 (data do efetivo e integral pagamento), acrescida de juros de mora calculados à taxa legal comercial, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, e invoca a falta de pagamento atempado pela Ré à Autora das quantias em que foi condenado pela sentença arbitral identificada no facto provado nº 1.

A essa factualidade haverá de acrescentar, ao abrigo do disposto nos artigos 679º, 663º e 607º do CPC e em função do acesso através do CITIUS ao processo de oposição à execução 2455/13....:

9. A aqui Ré alegou como fundamentos da oposição referida em 5: i) a inadmissibilidade de cumulação de actualização monetária e juros moratórios; ii) a inexistência de título executivo quanto aos juros moratórios; iii) erro de cálculo na liquidação quer da actualização monetária quer dos juros moratórios; iv) a invalidade do título executivo; v) não haver lugar à aplicação da peticionada sanção pecuniária compulsória.

10. Em particular, e no que se refere aos dois primeiros apontados fundamentos, a aqui Ré exprimiu-se da seguinte forma:

63º
Face a tudo quanto se deixou exposto, conclui-se que, ao peticionar o valor de €4.776.248,14 a título de juros de mora vencidos desde 2005, a Exequente pretende obter um benefício ilegítimo, traduzido numa atribuição patrimonial injustificada, o que não poderá deixar de lhe ser negado por este Tribunal.
64º
Tratar-se-ia, com efeito, de um verdadeiro enriquecimento sem causa da Exequente.
65º
Nessa medida, deve a presente execução ser extinta na parte em que se refere aos juros moratórios por os mesmos não serem devidos, quer à luz do direito substantivo, quer à luz do próprio título executivo que serve de base à presente execução, como veremos de seguida.
[…]
88º
Do exposto resulta, com clareza, que o suposto crédito de juros moratórios reclamado pela Exequente se encontra desprovido de título executivo porquanto o mesmo está manifestamente fora do âmbito da sentença arbitral que serve de base à presente execução. pelo que, também por esta razão, deve a presente acção executiva ser extinta na parte em que se refere aos juros de mora.

11. Na sentença referida em 5. identificou-se como objecto do litígio:
«- o regime legal aplicável à oposição à execução;
- da admissibilidade, em face do regime aplicável, dos fundamentos de anulação da decisão dada à execução e da respetiva procedência;
- se são devidos os juros peticionados e a sanção pecuniária compulsória.»

12. Na sentença referida em 5. Foi expendida a seguinte a fundamentação referente à questão dos juros moratórios:
IV.2.6. Dos Juros.
Resta por apreciar a oposição no que concerne ao pedido de juros moratórios e de sanção pecuniária compulsória.
Conforme se referiu já, na decisão exequenda, o Tribunal Arbitral, julgando a pretensão da ali Autora parcialmente procedente, condenou a ora Executada no pagamento dos diferenciais de preços do carvão e dos custos com serviços complementares, no valor de €1.070.031,99 (um milhão setenta mil, trinta e um euros e noventa e nove cêntimos) referente ao ano de 1985, e na quantia de €258.848,78 (duzentos e cinquenta e oito mil, oitocentos e quarenta e oito euros e setenta e oito cêntimos), referente ao ano de 1986, quantias estas atualizadas segundo os índices de preços (sem habitação) no consumidor, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, até à data do seu efetivo.
É sabido que nos termos do artigo 45º do CPC em vigor à data da propositura da execução e, atualmente, do disposto no artigo 10º, n.º 6 do NCPC, toda a execução tem por base um título executivo pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
Ao liquidar a quantia exequenda, a ora Exequente para além de ter procedido à atualização dos montantes em que a ora Executada foi condenada de acordo com os índices de preços (sem habitação) no consumidor publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, calculou juros sobre as mesmas quantias vencidos desde a data da citação da ora Executada no âmbito da ação n.º 1538/0... que correu termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal ....
Manifestamente, e como, de resto, acabou por reconhecer, não podia cumular a atualização com os juros, por tal consubstanciar uma duplicação da indemnização pelo mesmo dano, carecendo de título para pedido de juros.
Vejamos.
A questão da aplicação simultânea do artigo 566º, n.º 2 do Código Civil e do artigo 805º, n.º 3 do mesmo diploma foi objeto do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09.02.2002, publicado no Diário da República n.º 146, de 27.06.2002.
No referido acórdão afirmou-se, além do mais que aqui não releva, que o valor da compensação a título de danos não patrimoniais havia sido atualizado à data da sentença em conformidade com o disposto no artigo 566º, nº. 2, do Código Civil, e que a questão de direito a resolver se prendia com a determinação do momento do início da contagem de juros de mora sobre os quantitativos da indemnização arbitrada a título de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, designadamente os respeitantes a danos não patrimoniais.
Entendeu-se ser necessário interpretar a segunda parte do nº. 3 do artigo 805º na sua ligação sistemática com o artigo 566º, nº. 2, ambos do Código Civil e que, conforme se adotasse uma ou outra das orientações em confronto, adquirida que estivesse a atribuição de uma indemnização atualizada, ou seja, objeto de correção monetária, o sentido do primeiro dos referidos normativos, na sua necessária articulação com o segundo, teria de ser objeto de interpretação literal ou restritiva.
Colocando em confronto a orientação que entendia a compatibilidade dos mencionados normativos, ou seja, da acumulação de juros de mora desde a citação com a atualização da indemnização em função da taxa da inflação fundada no argumento do distinto objeto e da diversa natureza que preside à atualização da expressão monetária da indemnização entre as datas da citação e da decisão atualizadora, e a da não cumulatividade de juros de mora desde a
citação com a atualização da indemnização, fundada no facto de ambas as providências influenciadoras do cálculo obedecerem à mesma finalidade de fazer face à erosão do valor da moeda entre o evento danoso e a satisfação da obrigação indemnizatória, concluiu-se que se o juiz fizer apelo ao critério atualizador previsto no artigo 566º, nº. 2, do Código Civil, atribuindo a indemnização monetária aferida pelo valor da moeda à data da sentença da primeira instância, não pode, sem se repetir, mandar acrescer a tal montante juros de mora desde a citação por força do nº. 3 do artigo 805º daquele diploma.
Salientou-se ainda, por um lado, que a intenção do legislador de 1983 só foi a de compensar o prejuízo da inflação relativamente ao que falhava na previsão do nº. 2 do artigo 566º do Código Civil quando, por efeito da inflação, o valor do pedido se depreciava em termos tais que a atualização com referência à data da sentença conduzia a um valor superior ao do pedido que o tribunal não podia considerar, atenta a limitação decorrente do artigo 661º, nº. 1, do Código de Processo Civil.
E, por outro, expressou-se que no caso de o juiz não poder valer-se do nº. 2 do artigo 566º do Código Civil, por o pedido estar muito desatualizado e não ter sido ampliado, os juros de mora podiam e deviam ser contados desde a citação, por aplicação do nº. 3 do artigo 805º daquele diploma.
Ora, no caso dos autos o Tribunal Arbitral definiu com clareza o critério de atualização da indemnização que fixou, tendo, de resto, tido em consideração o pedido formulado pela ali Demandante. Note-se que a ora Exequente ali peticionou precisamente que a indemnização fosse atualizada “de acordo com o fator de atualização monetária, de acordo com o índice publicado pelo Instituto Nacional de Estatística para os preços no consumidor, sem habitação (ou com outro critério que o Tribunal repute adequado), desde os anos a que as prestações se
reportam, até ao momento da conversão no ato do pagamento”
Ora, tendo a decisão dada à execução definido que a atualização do valor indemnizatório seria realizado segundo os índices de preços (sem habitação) no consumidor, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, até à data do seu efetivo pagamento, dúvidas não restam de que não haverá lugar ao pagamento de juros – no momento do pagamento far-se-á a atualização das quantias indemnizatórias daquela forma.
Sendo embora certo que a jurisprudência maioritária vem entendendo que sempre que a indemnização pecuniária tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do art. 566.º, vencerá juros de mora desde a decisão atualizadora, e não a contar da citação, certo é que no caso concreto, a decisão não apenas determinou o critério de atualização da indemnização até à sua prolação, como indicou a forma como o montante deveria ser atualizado até ao momento do pagamento, pelo que no caso dos autos, não haverá que proceder ao cálculo de juros, já que os mesmos não são devidos, sob pena de se verificar, como se referiu, uma duplicação de indemnização pelo mesmo dano decorrente do atraso na entrega da indemnização.


IV – O direito

 Segundo a Recorrente a Relação teria cometido excesso de pronúncia ao conhecer da excepção de caso julgado por se tratar de questão nova, não abordada anteriormente nos autos.

 Desde logo se nos afigura que a diferenciação entre o efeito positivo ou negativo do caso julgado não tem virtualidade para constituir uma diferenciação de ‘questões’, mas apenas relevará como qualificação jurídica (dando azo a diferenciação de fundamentação) de situações que respeitam, ainda, a uma mesma ‘questão’ – as consequências a extrair de anterior intervenção judicial sobre a matéria do litígio ou com ele relacionada.

 Por outro lado, haverá de não esquecer que na contestação foi expressamente invocada a excepção de caso julgado formado pela sentença proferida na oposição à execução. Para além de essa mesma sentença ser expressamente invocada na petição inicial (cf. itens 13 a 23 desse articulado). Pelo que carece de fundamento a consideração da excepção de caso julgado como questão inovadora.

 Por último, ainda, importa referir que se encontram excluídas da aplicação do princípio do dispositivo as questões de conhecimento oficioso, entre as quais se encontra a excepção dilatória de caso julgado (artigo 578º do CPC).

  Donde se concluiu não ter a Relação incorrido em excesso de pronúncia ao apreciar da excepção de caso julgado.

 Como também não incorreu nesse excesso com o alegado fundamento do desrespeito do contraditório.

 É que, como já se referiu, não só o litígio – a dívida de juros moratórios - vinha desde a petição inicial enquadrado no circunstancialismo da execução, devendo as partes considerar que daí pudessem ser tiradas consequências considerando a repercussão da execução na presente acção, como na contestação foi expressamente invocada a excepção de caso julgado derivada do decidido na oposição á execução (itens 7 a 32 do referido articulado), sobre a qual a Recorrente teve oportunidade de se pronunciar (réplica apresentada em 17NOV2019, sob a ref.ª ...04[...32], constante de fls. 145 dos autos em papel), não podendo invocar qualquer surpresa na eventualidade do conhecimento dessa excepção.

 É manifesto, em face do teor do respectivo articulado, que a Ré na oposição que deduziu à execução não só invocou a inexistência de título executivo relativamente a juros moratórios mas também que, de um ponto de vista substantivo, não havia direito a esse tipo de juros; ou seja, a sua pretensão não se limitava à extinção da instância executiva por falta de título executivo, pretendendo, também, a apreciação de um ponto de vista substantivo da existência do direito a juros moratórios, da exigibilidade dessa obrigação exequenda.

 Como manifesto é que foi com essa amplitude que essa oposição foi entendida e apreciada.

 Ora tendo a Ré impetrado a apreciação da obrigação de juros naquelas duas vertentes – processual e substantiva – estão reunidos os requisitos para a aplicação do disposto no artigo 732º, nº 5, do CPC: “a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda” (cf. RUI PINTO, A Acção Executiva, 2018, pgs. 432 a 436; LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva à luz do CPC de 2013, 7ª ed., 2017, pgs. 218 a 223).

 Sendo que no caso se verificam os requisitos gerais da excepção de caso julgado (artigo 581º do CPC), uma vez que entre a presente acção e aquela oposição à execução ocorre identidade de sujeitos (as mesmas partes), de causa de pedir (obrigação de indemnização decorrente da sentença arbitral) e pedido (enquanto efeito útil pretendido; (in)existência de juros moratórios).

 Pelo exposto nenhuma censura há a apontar ao acórdão recorrido.           

           


V – Decisão

Termos em que se nega a revista confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Fixa-se a taxa de justiça global devida pela apelação e pela revista (atenta a complexidade da causa, a prolixidade das peças processuais, a conduta processual das partes e a capacidade tributária evidenciada) em 15.000 € (quinze mil euros), dispensando-se do demais remanescente.

Lisboa, 05MAI2022

Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista