Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17893/17.5T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
DESISTÊNCIA DO RECURSO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
TRÂNSITO EM JULGADO
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
ANALOGIA
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Não pode, cum summo rigore, falar-se de inutilidade superveniente da lide quando esta mantém, objetivamente, a sua utilidade, apesar da prolação de acórdão que considere improcedente a apelação dos Autores e absolva a Ré dos pedidos, assim como de despacho que, em virtude da verificação de dupla conformidade, não admita o recurso de revista, também interposto pelos Autores. Na verdade, se o Supremo Tribunal de Justiça viesse a decidir que os tribunais portugueses eram internacionalmente incompetentes para julgar a ação, estar-se-ia perante uma incompetência absoluta (art. 96.º, al. a), do CPC), que gera a absolvição do réu da instância - exceção dilatória (art. 278, n.º 1, al. a), do CPC) que obsta à apreciação do mérito da causa.

II. Não pode falar­se de verdadeira inutilidade superveniente da lide quando a pretensão de tutela judiciária formulada pela Ré/Recorrente – a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses – não foi obtida por outro meio nem pôde deixar de o ser. A lide mantém, objetivamente, a sua utilidade.

III. A situação em que, no momento desse trânsito em julgado da sentença final, ainda se encontram pendentes recursos interpostos de decisões interlocutórias não é subsumível ao art. 644.º, n.º 4, do CPC, e não encontra qualquer regulamentação na lei.

IV. Conforme o art. 10.º, n.º 3, do CC, não existindo na lei norma que regule um caso análogo, a lacuna tem de ser integrada através da elaboração de norma ad hoc, i.e., de regra criada pelo intérprete dentro do espírito do sistema. Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a competência internacional dos tribunais portugueses para proferir a decisão final, esta decisão não pode transitar em julgado.

V. Não resultando a extinção da instância recursiva nem de inutilidade superveniente da lide em sentido próprio e nem de desistência também em sentido próprio, aplica-se a regra geral em matéria de custas, plasmada no art. 527.º, n.º 1, do CPC, e não as regras especiais consagradas nos arts. 537.º e 538.º do mesmo corpo de normas.

VI. O art. 6.º, n.º 7, do RCP confere ao Tribunal a possibilidade de dispensar as partes de tal pagamento.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça,


I - Relatório

1. AA e BB intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, sob a forma única, contra Novo Banco, S.A., Haitong Investiment Ireland p.l.c. (anteriormente denominada Espírito Santo Investment p.l.c.), com sede em …, …, Dublin …, Ireland, Haitong Bank, S.A. (anteriormente denominada Banco Espírito Santo de Investimento, S.A.), com sede no Edifício Quartzo, Rua …, …, … Lisboa, e Citibank Europe p.l.c., autorizada pelo regulador financeiro irlandês sob o número C26…3, com sede em …, Dublin, 1, Ireland, pedindo:

a) a condenação solidária das Rés no pagamento de indemnização aos Autores no montante de 2.418.588,27 €, acrescido dos juros remuneratórios vencidos no valor total de 192.000,00 €, sendo que a esses montantes deve ser deduzida a quantia de 571.733,34 € respeitante ao crédito da 1ª Ré sobre os Autores pelo pagamento dos cupões fixos, para o que desde já se invoca a compensação de créditos nos termos dos arts. 847.° e 848.° do CC, devendo assim as Rés ser condenadas a pagar aos Autores a quantia de 2.038.854,93 €;

Caso assim não se entenda, e sem conceder:

b) a anulação da declaração negocial emitida pelos Autores a 26 de junho de 2013, por feita com erro sobre o objeto, com a consequente condenação na restituição, aos Autores, do montante de 2.418.588,27 €, acrescido dos juros remuneratórios vencidos no valor total de 192.000,00 €, sendo que a esses montantes deve ser deduzida a quantia de 571.733,34 €  respeitante ao crédito da 1ª Ré sobre os Autores pelo pagamento dos cupões fixos, para o que desde já se invoca a compensação de créditos nos termos dos arts. 847.° e 848° do CC, devendo assim a Iª Ré ser condenada a pagar aos Autores a quantia de 2.038.854,93 €;

Ainda que assim não se entenda, sempre sem conceder;

c) a condenação das Rés, na qualidade de intermediários financeiros, no pagamento de indemnização aos Autores por violação dos deveres e obrigações que sobre si impendia, pelo prejuízo sofrido no montante de 2.418.588,27 €, acrescido dos juros remuneratórios vencidos no valor total de 48.000,00 € e dos juros de mora que, calculados até esta data, ascendem a 80.310,38 €, o que perfaz o valor de 2.546.898,65 €;

Ainda que assim não se entenda, sempre sem conceder;

d) a condenação do Novo Banco, S.A., 1ª Ré, na qualidade de intermediário financeiro e comercializador dos produtos, no pagamento de indemnização aos Autores, por violação dos deveres e obrigações que recaem sobre os intermediários financeiros, pelo prejuízo sofrido no montante de 2.418.588,27 €, acrescido dos juros remuneratórios vencidos no valor total de 48.000,00 € e dos juros de mora que, calculados até esta data, ascendem a 80.310,38 €, o que perfaz o valor de 2.546.898,65 €;

Em qualquer caso;

e) a condenação das Rés no pagamento aos Autores de juros de mora à taxa legal sobre as quantias peticionadas, desde a data da citação das Rés até integral pagamento.

2. Alegaram, em síntese, que são titulares da Conta de Depósito à Ordem n.º DO …07 no balcão de Private Banking Lisboa I, do então Banco Espírito Santo, S.A., que têm perfil de investidor “moderado”; que a 26 de junho de 2013 subscreveram dois produtos Financeiros Complexos: um referente ao produto financeiro complexo identificado como “3Y FTD Portugal 7,15% Junho 2013”, com o código ISIN XS0948084305, e outro referente ao produto financeiro complexo identificado como “3Y FTD Portugal Itália 5,65% Junho 2013”, com o código ISIN XS0948081202; que esses produtos financeiros foram contratados com as seguintes entidades financeiras: i) Banco Espírito Santo, S.A., na qualidade de comercializador dos produtos; ii) Espírito Santo Investment p.l.c., atualmente Haitong Investment Ireland p.l.c., na qualidade de emitente das obrigações (issuer); iii) Banco Espírito Santo de Investimento, S.A., atualmente Haitong Bank, S. A., na qualidade de agente de cálculo (Calculation Agent), entidade comercializadora (Dealer) e entidade pagadora ou depositária (Paying Agent); iv) Citibank Europe p.l.c., na qualidade de entidade pagadora ou depositária; que, embora não conste dos documentos constitutivos dos produtos, nomeadamente do Prospeto, como devia, a entidade depositária dos produtos é a Citibank Europe p.l.c.; que o capital investido pelos Autores em cada um dos produtos financeiros foi de 1.500.000,00 €; que na data da maturidade dos produtos – 20 de setembro de 2016 - os Autores receberiam 100% do valor nominal investido, a não ser que alguma das Entidades de Referência sofresse um evento de crédito; que o património detido pelos Autores junto do Banco Espírito Santo, S.A., em que se incluem os Produtos Financeiros sobre que versa a presente ação, passou a integrar o património dos Autores junto do Novo Banco, S.A., 1ª Ré ; que aquando da subscrição dos produtos foram apresentados aos Autores pela 1ª Ré, para esse efeito, os seguintes documentos: (i) formulários das operações, designados “Operações sobre instrumentos financeiros”, (ii) Fichas Técnicas dos Produtos e (iii) os prospetos, designados por Applicable Final Terms; que, na data da maturidade, os Autores receberiam 100% do valor nominal investido, a não ser que alguma das Entidades de Referência sofresse um Evento de Crédito, nomeadamente, insolvência (Bankruptcy), falha no pagamento (Failure to pay) e restruturação dos termos originais contratualizados de obrigações, créditos ou empréstimos (Restructuring); que relativamente às Entidades de Referência, as empresas do Produto Financeiro com o código ISIN XS0948084305 são a Brisa, a EDP e a Portugal Telecom e as empresas do Produto Financeiro com o código ISIN XS0948081202 são a Telecom Itália, a ENEL e a Portugal Telecom; que a PT ali identificada, por confronto com os próprios gráficos de evolução dos spreads onde é expressamente referida a Portugal Telecom, não pode deixar de ser a Portugal Telecom nacional; que as “Applicable Final Terms” correspondem ao Prospeto, tal como definido e regulado na Diretiva 2003/71/EC, alterada pela Diretiva 2010/73/EC, transposta para o ordenamento jurídico português pelo DL n.º 18/2013, de 6 de fevereiro, que alterou o CVM; que, de acordo com o estabelecido nas Fichas Técnicas dos Produtos, o país que podia influenciar as obrigações subscritas através do Produto Financeiro com o código ISIN XS0948084305 era Portugal, e os países que podiam influenciar as obrigações subscritas através do Produto Financeiro com o código ISIN XS0948084305 eram Portugal e Itália; que, além dos Impressos intitulados “Operações Sobre Instrumentos Financeiros”, das Fichas Técnicas dos Produtos e dos “Applicable Final Terms”, nenhum outro documento foi entregue aos Autores; que a 6 de julho de 2016 - dois meses antes da maturidade dos produtos - a Haitong Investment Ireland p.l.c. notificou o Citibank Europe p.l.c. da ocorrência de um Evento de Crédito de Insolvência na Portugal Telecom International Finance BV; que, em consequência, se deu o reembolso antecipado dos Produtos Financeiros, tendo sido creditada na conta dos Autores, no dia 2 de agosto de 2016, a quantia de 290.642,73 €, no âmbito do Produto Financeiro com o código ISIN XS0948084305 e, a 3 de agosto de 2016, a quantia de 290.769,00 €, no âmbito do Produto Financeiro com o código ISIN XS0948081202, pelo que, do total investido de 3.000.000,00 €, os Autores apenas foram reembolsados da quantia de 581.411,73 €; que aquele evento surgiu na sequência do pedido de recuperação judicial apresentado pelas empresas do Grupo OI - do qual, aparentemente, a Portugal Telecom International Finance BV faria parte, no Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil; que, face às informações transmitidas aos Autores, a entidade de referência que aparecia identificada como PT ou Portugal Telecom era a Portugal Telecom nacional, empresa com atividade em Portugal, e os países que podiam influenciar as obrigações subscritas eram apenas Portugal e Itália; que os Autores subscreveram as aplicações financeiras na profunda convicção de que só os eventos ocorridos em Portugal, na Portugal Telecom nacional, poderiam influenciar as obrigações em questão; que o art. 135.º, n.º 1 do CVM estabelece que “O prospeto deve conter informação completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, que permita aos destinatários formar juízos fundados sobre a oferta, os valores mobiliários que dela são objeto e os direitos que lhe são inerentes, sobre as caraterísticas específicas, a situação patrimonial, económica e financeira e as previsões relativas à evolução da atividade e dos resultados do emitente”; que não é verdade que as entidades intervenientes nas operações financeiras aqui em apreço sejam as que vêm identificadas nos Prospetos; que a entidade comercializadora não foi o Banco Espírito Santo de Investimento, S.A., atualmente Haitong Bank, S.A, mas sim o Banco Espírito Santo, S.A. e a entidade depositária não foi o Banco Espírito Santo de Investimento, S.A., mas sim o Citibank Europe p.l.c.; que as informações indicadas nos Prospetos estavam erradas ou eram falsas ou foram posteriormente alteradas por alguma das Rés, unilateralmente, e sem qualquer notificação prévia aos Autores; que todas as Rés são intermediários financeiros, na medida em que todas elas efetuaram atividades de investimento nos instrumentos financeiros subscritos pelos Autores; que, enquanto intermediários financeiros, as Rés estão adstritas ao cumprimento de regras respeitantes a conflitos de interesses; que, no caso em apreço, o Banco Espírito Santo, S.A. vendeu produtos financeiros emitidos pela Haitong Investment Ireland p.l.c. (anteriormente Espírito Santo Investment p.l.c.), 2ª Ré, fazendo ambos parte do mesmo grupo empresarial: o Grupo Espirito Santo (GES); que o Banco Espírito Santo, S.A. vendeu obrigações de uma entidade (a Portugal Telecom International Finance BV) em que detinha uma participação qualificada; que os intermediários financeiros estão adstritos à observância de deveres de informação pré-contratual, nos termos previstos nos arts. 312.° e ss do CVM, constituindo sua obrigação, neste âmbito, prestar todas as informações necessárias para que os clientes possam tomar decisões de investimento esclarecidas e fundamentadas; que as Rés são responsáveis pelos prejuízos sofridos pelos Autores, nos termos do art. 149.° do CVM: a 1ª Ré Novo Banco, S.A. enquanto oferente do produto (ou comercializador) e intermediário financeiro, a 2ª Ré Haitong Investment Ireland p.l.c., na altura denominada por Espírito Santo Investment p.l.c., enquanto entidade emitente do produto, a 3ª Ré Haitong Bank, S.A., na altura denominado Banco Espírito Santo de Investimento, S.A., enquanto agente de cálculo, responsável, de acordo com o Prospeto, pelos cálculos e pagamentos e a 4º Ré Citibank Europe p.l.c. enquanto entidade depositária.

3. Os Réus contestaram, tendo a Ré Citibank Europe p.l.c. invocado a exceção da incompetência internacional do tribunal, alegando  que tem sede na Irlanda; que o presente litígio versa sobre matéria civil/comercial, subsumindo-se ao Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial; que de acordo com o n.º 1 do art. 4.º deste Regulamento as pessoas domiciliadas num Estado Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado Membro, pelo que a 4ª Ré deveria ter sido demandada junto dos tribunais irlandeses; que, nos termos do n.º 1 do art. 25.° do mesmo Regulamento, as partes podem, ao abrigo do princípio da autonomia privada, convencionar os tribunais competentes para decidir os seus litígios; que o prospeto em que se baseiam as relações de intermediação em apreço nestes autos foi aprovado pelo regulador irlandês competente - o Banco Central Irlandês; que, apesar de a 4ª Ré não ser parte no contrato, todas as relações constituídas com base no instrumento financeiro em causa terão como suporte esse prospeto e o Direito aplicável com base neste; que o prospeto contém um pacto de jurisdição, mais concretamente na sua cláusula 20.ª, segundo parágrafo (cf. página 115 do Documento n.º 1 anexado); que este pacto de jurisdição se aplica à 4.ª Ré; que, segundo este pacto de jurisdição, que faz parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Autores, os tribunais competentes para estes litígios são os tribunais ingleses. Termina pedindo seja julgada procedente, por provada, a exceção de incompetência internacional, impondo-se, consequentemente, a absolvição da instância da 4.ª Ré Citibank Europe p.l.c., nos termos dos arts. 511.º, al. a) e 576.º, n.° 2 do CPC.

4. Os Autores responderam à matéria dessa exceção, alegando, em síntese, que se aplica ao caso em apreço o Regulamento invocado pela Ré Citibank Europe p.l.c., relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial; que o art. 7.°, n.° 1, al. a) e n.° 2 do Regulamento estabelece que: “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; (...) 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.”; que a contratação, pelos Autores, de dois produtos financeiros, teve lugar junto do Banco Espirito Santo, S.A., entidade com domicílio em Portugal, e que foi em Portugal que parte das obrigações emergentes da contratação dos produtos financeiros foi cumprida e, bem assim, que deviam (e devem) ser cumpridas as obrigações em falta; que no âmbito da contratação dos referidos produtos financeiros, as Rés não só induziram os Autores em erro, como incumpriram os deveres e obrigações legais que sobre si impendem enquanto intermediários financeiros, o que provocou sérios prejuízos aos Autores; que não subsistem, por isso, quaisquer dúvidas de que os factos da presente ação se subsumem à previsão do art. 7.°, n.° 1, al. a) e n.° 2 do Regulamento, o que significa que a Ré Citibank Europe p.l.c., embora tenha domicílio na Irlanda, pode ser demandada em Portugal; que o art. 8.º, n.º 1 do Regulamento dispõe que: “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode também ser demandada: 1) Se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer um deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente”; que no caso sub judice: a ação foi intentada contra quatro Rés, tendo duas delas domicílio em Portugal, os produtos financeiros objeto dos presentes autos foram contratados pelos Autores com as quatro Rés, na qualidade de intermediários financeiros – daí a sua responsabilidade solidária -, existindo assim, inequivocamente, uma ligação entre os pedidos formulados na ação contra todas as Rés de tal forma estreita que se impõe o julgamento simultâneo de todas elas, podendo, por isso, a 4ª Ré Citibank Europe P.L.C., apesar de ter domicílio na Irlanda, ser demandada em Portugal, com base quer no art. 7.º, n.os 1, al. a), e n.° 2 quer no art. 8.°, n.° 1, do Regulamento n.º 1215/2012, devendo, em consequência, improceder a exceção de incompetência absoluta invocada pela Ré; que o Doc. 1 se encontra redigido em língua inglesa, sem que tivesse sido junta a respetiva tradução; que o Doc. 1 consiste num documento convertido em formato pdf., facilmente alterável, que não está, sequer, assinado, carimbado ou certificado por nenhuma das entidades aí identificadas; que se trata de um documento particular que os Autores não sabem, nem têm obrigação de saber, se corresponde à realidade; que os Autores não aceitam, por isso, os efeitos jurídicos que a Ré Citibank Europe p.l.c. pretende fazer valer com a sua apresentação, nomeadamente, que tal documento possa valer como pacto atributivo de jurisdição; que a Ré Citibank Europe p.l.c. não logrou sequer fazer prova dos requisitos enunciados no n.º 1 do art. 25.° do Regulamento n.º 1215/2012, devendo, em consequência, improceder a exceção de incompetência absoluta invocada pela Ré Citibank Europe p.l.c..

5. Por despacho de 14 de janeiro de 2019, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu julgar improcedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

6. Inconformada, a Ré Citibank Europe p.l.c. interpôs recurso de apelação, pugnando pela  revogação do referido despacho e, por conseguinte, pela sua absolvição da instância nos termos dos arts. 576.º, n.º 2 e 511.º, al. a), do CPC.

7. Os Autores apresentaram contra-alegacões, sustentando a manutenção do despacho recorrido.

8. Por acórdão de 20 de fevereiro de 2020, o Tribunal da Relação ……. decidiu o seguinte:

“Pelo acima exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela apelante”.

9. De novo inconformada, a Ré Citibank Europe p.l.c. interpôs recurso de revista com as seguintes Conclusões:

(1) Através do Acórdão Recorrido, o Venerando Tribunal a quo julgou improcedente a apelação, confirmando assim o Despacho Recorrido proferido pelo Tribunal da Primeira Instância datado de 14 de janeiro de 2019.

(2) Inconformada com o teor do Acórdão Recorrido, a Recorrente vem interpor o presente Recurso de Revista para este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo dos artigos 629.º, n.º 2, alínea a), 671.º, n.º 2, alínea a) e 674.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC.

DA NULIDADE PROCESSUAL POR VIOLAÇÃO DO PODER-DEVER DE SUPRIMENTO DE IRREGULARIDADES DOS ARTICULADOS E INSUFICIÊNCIAS DE ALEGAÇÃO

(3) O Tribunal a quo confirmou o Despacho Recorrido proferido pelo Tribunal da Primeira Instância em 14.01.2019, decidindo pela improcedência da exceção de incompetência internacional arguida pela Recorrente, com base, entre outros argumentos, na não verificação dos requisitos estabelecidos do n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária.

(4) Contudo, o Tribunal de Primeira Instância nunca poderia ter conhecido da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses sem que tivesse requerido oficiosamente a tradução do documento que continha o pacto de jurisdição invocado pela Recorrente.

(5) E, sobretudo, não poderia ter decidido da exceção de incompetência absoluta sem que tivesse primeiro convidado a Recorrente a alegar que o documento de fls. 473-verso a 585 faz parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Recorridos.

(6) É o que resulta expressamente do disposto nos artigos 134.º, n.º 1 e das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 590.º do CPC.

(7) É fundamental frisar que os poderes-deveres do tribunal que constam do disposto no artigo 590.º, n.ºs 2 (alíneas b) e c)), 3 e 4 e, que foram violados pelo Tribunal de Primeira Instância e pelo Tribunal a quo, são vinculativos, uma vez que a omissão do seu cumprimento pelo Tribunal constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do CPC, e pode levar, como detalharemos infra, à nulidade da sentença por excesso de pronúncia à luz do disposto na alínea d) do artigo 615.º do CPC – vd. doutrina de ABRANTES GERALDES,MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, JOÃO CORREIA, PAULO PIMENTA, e SÉRGIO CASTANHEIRA supra citada e Exposição de Motivos do CPC de 2013 supra transcrita.

(8) É este também o entendimento largamente majoritário da Jurisprudência Superior, sendo precisamente o Acórdão sobre escrutínio uma inesperada decisão discordante – vd. Acórdãos do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO e do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES supra citados.

(9) Conclui-se que o Tribunal a quo, tal como já o tinha feito o Tribunal da Primeira Instância, violou o disposto no artigo590.º, pois nunca poderia ter conhecido da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses sem que tivesse requerido oficiosamente, e previamente, a tradução do documento que continha o pacto de jurisdição invocado pela Recorrente e sem que tivesse acautelado o suprimento das eventuais insuficiências de alegação.

(10) Note-se que a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, para além de ser nula pelos fundamentos supra mencionados, foi claramente precipitada, porquanto a tradução do documento, de onde consta o pacto de jurisdição, foi junta aos autos pela Recorrente em 05.02.2019.

(11) Se se entender que não existe uma falta de alegação, mas sim uma verdadeira falta de prova – a mencionada falta de prova de que o documento de fls. 473-verso a 585 faz parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Recorridos –, então teremos as seguintes decisões nulas:

a. O Despacho Recorrido proferido pelo Tribunal da Primeira Instância por ter sido proferido sem prévia realização da instrução e da audiência final, não permitindo a realização dessa prova no momento processual próprio, e

b. O Acórdão Recorrido por ter confirmado a decisão da primeira instância, desconsiderando o facto de o Despacho Recorrido ter sido proferido sem a prévia realização da prova por parte da Recorrente.

(12) Urge, por isso, que o Douto Tribunal ad quem julgue procedente a invocada nulidade para efeitos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC.

DOS MOTIVOS PARA A REVOGAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS: DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA E PROMOÇÃO DA UNIÃO DOS MERCADOS DE CAPITAIS

(13) Tanto o despacho proferido pelo Tribunal da Primeira Instância de 14.01.2019, como o Acórdão Recorrido colocam em causa (i) o princípio da liberdade de circulação de capitais, e (ii) o princípio da liberdade de estabelecimento, previstos nos artigos 63.º e 49.º do TFEU, respetivamente.

(14) Tais liberdades são princípios fundamentais que norteiam o ordenamento jurídico nacional e europeu e que estão na base da criação de diversas normas jurídicas, entre elas a liberdade de escolha das partes relativamente ao direito aplicável e a liberdade de escolha da jurisdição, por via de um pacto de jurisdição, sendo que qualquer limitação a essas escolhas constitui uma violação da liberdade de circulação de capitais e da liberdade de estabelecimento.

(15) O Prospeto em discussão foi aprovado pelo regulador irlandês competente – o Banco Central Irlandês, como se pode ver no 2.º parágrafo da página 2 do prospeto (documento n.º 1 junto com a Contestação), em conformidade com o disposto no artigo 20.º do Regulamento do Prospeto.

(16) O facto de o emitente – a 2.ª Ré – ser uma sociedade comercial com sede estatutária noutro Estado Membro da União Europeia (Irlanda) é revelador de que estão em jogo os princípios europeus da liberdade de estabelecimento e circulação de capitais supra referidos.

(17) Para além disso, ao abrigo da sua autonomia privada, as partes convencionaram várias leis aplicáveis ao Prospeto, sendo que, no caso em concreto, resulta do teor do próprio Prospeto que o Direito substantivo aplicável é o Direito Inglês – cf. Cláusula 20.ª, primeiro parágrafo do Prospeto - página 115 do Documento n.º 1 junto com a Contestação.

(18) E convencionaram o pacto de jurisdição, atribuindo competência para o presente litígio aos tribunais ingleses – cf. Cláusula 20.ª, primeiro parágrafo do Prospeto - página 115 do Documento n.º 1 junto com a Contestação.

(19) O facto de as partes poderem escolher a jurisdição à qual pretendem submeter os seus eventuais litígios é uma manifestação clara do princípio da liberdade de circulação de capitais e do princípio da liberdade de estabelecimento. Liberdades essas que tanto o Tribunal de Primeira Instância como o Tribunal a quo pretendem restringir de forma injustificada.

(20) É fundamental frisar que a interpretação do pacto de jurisdição que foi celebrado pelas partes atribuindo competência exclusiva aos tribunais ingleses não pode ser desligada da implementação crescente da União dos Mercados de Capitais, cujo objetivo é reforçar a proteção dos investidores e a eficiência do Mercado.

(21) A União dos Mercados de Capitais, estabelecida na comunicação da Comissão Europeia de 30 de setembro de 2015, visa ajudar as empresas a mobilizarem fontes de capital mais diversificadas em qualquer parte da União Europeia, fazer com que os mercados funcionem de forma mais eficiente e oferecer aos investidores e aforradores oportunidades adicionais de aplicarem o seu dinheiro, a fim de aumentar o crescimento e criar postos de trabalho.

(22) Tendo em conta os objetivos da União dos Mercados de Capitais, e a crescente unificação legislativa a nível europeu que existe no âmbito dos mercados financeiros, torna-se essencial frisar que os tribunais dos Estados-Membros têm de proceder a uma interpretação dos Regulamentos Europeus sistemática e cuidada, principalmente em áreas cuja regulação é bastante específica como a dos mercados de capitais.

(23) Neste sentido, no caso sub judice, os tribunais estaduais têm de conjugar a interpretação do Regulamento relativo à Competência Judiciária com as exigências que constam do novo Regulamento do Prospeto, sendo que este último constitui um passo essencial para a realização da União dos Mercados de Capitais.

DA INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES À LUZ DO REGULAMENTO RELATIVO À COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA

Da manifesta aplicabilidade do artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária

(24) Os requisitos – alternativos e não cumulativos, note-se – de validade de um pacto de jurisdição previstos n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária encontram-se preenchidos no caso sub judice.

(25) Em relação ao requisito da alínea a), resulta evidente que o pacto de jurisdição foi celebrado por escrito, e, ao contrário do que refere o Tribunal a quo, o mesmo é aplicável à ora  Recorrente.

(26) Conforme a Recorrente alertou o Tribunal a quo, o Prospeto dos autos, no qual se baseiam as relações de intermediação em apreço e no qual a ora Recorrente assumiu as funções de agente pagador internacional e de depositário do título omninus, contém um pacto atributivo de jurisdição – cf. Cláusula 20.ª (segundo parágrafo) do Prospeto – p. 115 do Documento n.º 1 junto com a Contestação.

(27) De acordo com este pacto de jurisdição estabelecido no Prospeto, que faz parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Recorridos, os tribunais competentes para dirimir este litígio, acordado entre as partes, são os tribunais ingleses.

(28) Ou seja, o pacto de jurisdição resulta de um documento escrito que é do conhecimento de todas as partes envolvidas: o Prospeto.

(29) O Prospeto em discussão nos presentes autos é um documento que contém a informação sobre todos os direitos e deveres das partes, nomeadamente contém a informação sobre o pacto de jurisdição.

(30) Recorde-se que os Recorridos deram o seu consentimento contratual, por remissão, ao Prospeto, onde estava incluído o pacto de jurisdição – vd. página 1 do Documento n.º 3 junto com a Petição Inicial.

(31) A verdade é que, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, os Recorridos tinham perfeito conhecimento das “condições da operação” e isso tem que significar também a aceitação do pacto de jurisdição – vd. entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia supra citado, bem como a doutrina de LUÍS LIMA PINHEIRO.

(32) É absolutamente falso que a alusão do Prospeto à jurisdição inglesa apenas se traduza num acordo entre a ESIP e o BESI e “nada mais do que isso”, como refere o Tribunal a quo. A informação constante do Prospeto foi – é sempre – consensualizada junto de todas as partes envolvidas na operação financeira, entre as quais a Recorrente.

(33) O Prospeto foi altamente negociado por todas as partes envolvidas na operação financeira antes de ser submetido a aprovação junto da autoridade competente – essa é a prática social uniforme em todos os mercados financeiros.

(34) O Prospeto baliza todas as condições e termos da operação, identificando os vários intervenientes financeiros. Como se poderia justificar que a Recorrente e os demais intervenientes na operação não estivessem submetidas aos termos e condições do Prospeto, nomeadamente quanto ao pacto de jurisdição?

(35) A escolha da concreta jurisdição pactuada é sempre um aspeto essencial na negociação entre as diversas as partes envolvidas na operação financeira, pois implica diferentes riscos e custos.

(36) Mais: a inexistência de um pacto de jurisdição seria inconcebível, pois implicaria que todas as partes envolvidas na operação financeira corressem o risco de ser demandadas nas mais diversas jurisdições europeias, tornando os custos e os riscos de contencioso nas diferentes geografias insuportáveis.

(37) Em suma: o pacto de jurisdição aplica-se tanto à ora Recorrente, como às demais Rés, pois todas as partes envolvidas na operação financeira se vincularam ao Prospeto.

(38) Por outro lado, não pode valer a argumentação no sentido de que os ora Recorridos não conheceram o teor do Prospeto porque o mesmo não se encontra assinado.

(39) A verdade é que, como é público e notório, os prospetos não são documentos assinados por quaisquer entidades, nomeadamente as entidades emitentes, muito menos pelos investidores.

(40) Sintomaticamente, resulta dos artigos 6.º (O prospeto) e 13.º (Informações mínimas e formato) do Regulamento do Prospeto que a assinatura por parte dos emitentes ou dos investidores não constitui condição de validade do prospeto.

(41) Para a hipótese remota do Tribunal ad quem considerar que não estão verificados os requisitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária – o que apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona –, então sempre se teria de considerar que o requisito da alínea c) se encontra preenchido.

(42) É prática comum no comércio internacional – e, em particular, do comércio na União Europeia – que estas operações financeiras incluam pactos atributivos de jurisdição.

(43) Aliás, é impensável um prospeto internacional que não inclua um pacto de jurisdição. Tal simplesmente não existe! Isto porque, como se referiu, os agentes económicos não podem ficar sujeitos a inúmeras jurisdições europeias – no limite, tantas quantas o número total de Estados-Membros da União Europeias – sempre que lançam um produto financeiro. Isso seria incomportável, inviabilizando a efetiva criação de um Mercado Único de Capitais.

(44) Ora, os mercados financeiros europeus encontram-se organizados desta forma, existindo uma uniformização da relação contratual entre as partes envolvidas, não podendo esta ser posta em causa devido à residência de um investidor, isto é, o pacto de jurisdição não pode ser alterado ou adaptado para cada investidor, pois isto poria em causa a uniformização desejada pela prática europeia.

(45) Mais: era igualmente prática comum – até há pouco tempo (Brexit) – que tais pactos de jurisdição atribuíssem competência aos tribunais ingleses, algo que era seguido pelas entidades financeiras por toda a Europa. Isto acontecia pelas características da jurisdição inglesa propícias à resolução de litígios financeiros e que faziam com que os operadores financeiros escolhessem como foro de decisão destes litígios os tribunais ingleses.

(46) A prática em causa é suficientemente conhecida para ser considerada uma prática consolidada e não é suficiente alegar – o que não é verdade – que em Portugal não existe esse uso e que, como tal, os ora Recorridos não o poderiam conhecer – vd. entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia supra citado.

(47) Não existe, por isso, margem para dúvidas: os tribunais competentes para dirimir o presente litígio contra a Recorrente são os tribunais ingleses e não os tribunais portugueses, em virtude do pacto de jurisdição acordado entre as partes, que é perfeitamente válido à luz do artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária.

(48) Uma interpretação diferente do disposto no artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária violaria, tal como supramencionado, as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais, o que seria manifestamente ilegal, por ofensa ao Direito Europeu primário.

Da não aplicabilidade do n.º 1 do artigo 8.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária

(49) Caso se conclua que no presente caso não estamos perante um pacto atributivo de jurisdição que respeite os requisitos do artigo 25.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária – o que por extrema cautela de patrocínio se equaciona –, a verdade é que, ao caso sub judice, não é aplicável o artigo 8.º do mesmo Regulamento.

0(50) Repare-se que o disposto no artigo 8.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária só se pode aplicar quando não existe um pacto de jurisdição válido ao abrigo do disposto no artigo 25.º do mesmo Regulamento – vd. acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO de 27-09-2018 citado supra.

(51) Mais: a aplicação desta competência especial prevista no artigo 8.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária só deve ter lugar em casos extremamente excecionais, na medida em que consubstancia uma derrogação da regra geral do domicílio do réu prevista no n.º 1 do seu artigo 4.º.

(52) Esta regra especial é especialmente penalizadora para os agentes económicos com domicílio fora do respetivo Estado, como é o caso da ora Recorrente, que tem que se “deslocar” do seu foro de domicílio para um foro num outro país, com todos os gastos inerentes a esta situação, tais como custos com advogados estrangeiros, traduções, etc…

(53) Ora, do citado normativo resulta, desde logo, que tem que existir um nexo especialmente estreito para que o Tribunal chame à demanda uma parte que, à partida, só poderia ser julgada no seu domicílio.

(54) A verdade é que, no caso sub judice, (i) não há qualquer nexo estreito e, simultaneamente, (ii) não existe qualquer risco de serem proferidas decisões que possam ser inconciliáveis caso as causas sejam julgadas separadamente.

(55) Desde logo, porquanto entre a Recorrente e os Recorridos não existe qualquer relação de cariz contratual.

(56) Enquanto depositário comum e agente pagador internacional, a Recorrente apenas tem um vínculo contratual com os intermediários financeiros e estes, por sua vez, é que têm uma relação contratual com os Recorridos, tendo efetivo contacto e comunicação com estes, ao contrário da Recorrente.

(57) Estando em causa, por um lado, a responsabilidade contratual dos intermediários financeiros e, por outro lado, a responsabilidade extracontratual do depositário comum e agente pagador internacional, é claro que não existe um nexo “tão estreito”, para efeitos do artigo 8.º do Regulamento relativo à Competência Judiciária.

(58) Muito menos haverá um nexo “tão estreito” se atendermos a que os próprios Recorridos não identificam qualquer ilícito (extracontratual) praticado pela Recorrente. Nem o poderiam fazer, pois é manifesto que não houve qualquer atuação ilegal da Recorrente no exercício das suas funções de depositário comum e de agente pagador internacional.

(59) É inadmissível que os Recorridos venham demandar a Recorrente sem qualquer base factual, só porque o seu nome vem identificado no Prospeto, e depois tenham o desplante de alegar que existe um nexo estreito entre a atividade da Recorrente e a atividade dos intermediários financeiros.

(60) Por outro lado, o risco de serem proferidas decisões que possam ser inconciliáveis, caso as causas sejam julgadas separadamente, deve ser aferido de acordo com o critério definido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (seguido por LUÍS LIMA PINHEIRO): “estarmos perante a mesma situação de direito e de facto”.

(61) Em relação à situação de facto, reitere-se que a Recorrente é um mero agente pagador internacional e um depositário do título omnibus e, como tal, as suas funções são completamente distintas das dos outros Réus, visto que a sua atuação não implica qualquer contacto ou relação direta com os Recorridos, não tendo com estes qualquer relação contratual.

(62) Aliás, note-se que o próprio Tribunal da Primeira instância já veio reconhecer isto mesmo, na sentença que colocou termo ao processo em 16.09.2019.

(63) A Recorrente não é um intermediário financeiro, nem há qualquer risco de decisões contraditórias.

(64) Os instrumentos financeiros em causa nestes autos não são transacionados num sistema centralizado gerido pela portuguesa Interbolsa, mas sim em dois sistemas centralizados geridos pelo banco Luxemburguês Clearstream Bank, S.A. e a entidade de liquidação Euroclear SA/NV(as centrais de valores mobiliários internacionais, designadas em língua inglesa como ICSDs).

(65) Tal como a Interbolsa, as ICSDs são meras gestoras de sistemas centralizados de registo e depósitos de valores mobiliários, apenas assegurando a regularidade do funcionamento da infraestrutura do mercado no que diz respeito ao registo e liquidação dos valores mobiliários, não tendo quaisquer funções de aconselhamento ou intermediação junto dos investidores.

(66) Ora, enquanto que, em Portugal, estes instrumentos financeiros são paradigmaticamente emitidos em títulos individuais atribuídos a cada investidor, que os depositam junto do seu intermediário financeiro,

(67) No âmbito do mercado financeiro europeu são emitidos os chamados títulos omnibus (“global notes”, na gíria anglo saxónica), que ficam na posse de uma entidade nomeada pelas ICSDs, o depositário comum,

(68) Sendo que, num segundo momento, esses títulos omnibus são divididos (desdobrados) em títulos individuais e registados nos sistemas das ICSDs e, posteriormente, depositados nas contas dos intermediários financeiros dos investidores.

(69) Pelo que, no sistema europeu, para além do depósito dos títulos individuais junto do intermediário financeiro do investidor, existem depositários da Clearstream ou Euroclear – entidades de gestão centralizada do mercado –, que apenas exercem as funções de guarda dos títulos omnibus a favor das entidades gestoras do sistema centralizado.

(70) A Recorrente celebrou, em 12 de setembro de 2008, um contrato-quadro de depósito com a Euroclear e a Clearstream, com a função única de guarda, por conta e interesse dessas entidades, de títulos omnibus - cfr. Documento n.º 2 junto com a Contestação.

(71) No caso em apreço, a Recorrente é mera depositária, por conta e no interesse da Euroclear e ClearStream, dos títulos omnibus, não sendo depositária dos produtos financeiros dos Autores.

(72) Não havendo qualquer contrato de depósito celebrado pela Recorrente com os investidores – nem teria de haver –, nem sequer com os intermediários financeiros que comercializam tais instrumentos financeiros complexos.

(73) Como tal, os únicos deveres que a ora Recorrente podia ter era para com os ICSDs e, mesmo assim, os deveres eram apenas de mera guarda do título omnibus. Isto é, a ora Recorrente não tinha como função, entre outros, avaliar a robustez, o risco do emitente ou o risco do produto financeiro, que, aliás, desconhecia em absoluto.

(74) A Recorrente era, também, o agente pagador no instrumento financeiro em causa. Como tal, tinha a estrita função de, mediante certas e determinadas instruções (pelas quais não era responsável, apenas tendo o dever de as executar com zelo), executar determinadas ordens de pagamento dadas pelo emitente de determinados montantes indicados através de ordens da Euroclear e Clearstrem.

(75) Destas funções de mera execução dos pagamentos do Euroclear e Clearstream não resultavam quaisquer deveres da Recorrente para com os ora Recorridos.

(76) Aqui chegados, é manifesto que, no plano factual, a Recorrente não se encontra na mesma situação de facto que os demais Réus.

(77) Por outro lado, como também já tivemos oportunidade de ver, no que toca à situação de direito, é manifesto que esta é diferente da que respeita aos demais Réus.

(78) O regime de responsabilidade resultante das funções de agente pagador internacional e de depositário do título omnibus, como é o que caso do Recorrente, é completamente distinto do regime de responsabilidade dos outros Réus, que são emitentes e intermediários financeiros.

(79) Do exposto resulta que, no caso de as causas serem julgadas em separado, as decisões proferidas nunca poderão ser contraditórias, pois os Réus não estão inseridos numa mesma situação de direito e de facto.

(80) Não existe qualquer risco de virem a ser proferidas decisões inconciliáveis entre si.

(81) Assim, não se poderá impor à Recorrente a demanda num Estado Membro que não o do seu domicílio, por via do disposto no artigo 8.º, n.º 1 do Regulamento relativo à Competência Judiciária.

(82) Desta forma, se não estamos perante um caso em que sejam aplicáveis qualquer uma das competências especiais previstas na Secção 2 do Capítulo II do Regulamento relativo à Competência Judiciária, nomeadamente o seu artigo 8.º, então temos de atender à regra geral prevista no seu artigo 4.º, isto é, ao critério do domicílio do réu.

(83) A Recorrente tem sede na Irlanda, pelo que deveria ter sido demandada perante os tribunais irlandeses.

(84) Aqui chegados temos como evidente que os tribunais portugueses não são competentes para dirimir o presente litígio, sendo essa competência dos tribunais ingleses – por força do pacto atributivo de jurisdição constante do Prospeto – ou, subsidiariamente, dos tribunais irlandeses – critério do domicílio do réu.

(85) Pelo exposto, deve o Acórdão Recorrido ser revogado, devendo ser julgada procedente, por provada, a exceção               de incompetência internacional, impondo-se, consequentemente, a absolvição da instância da Recorrente, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 576.º e na alínea a) do artigo 577.º, ambos do CPC.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: NECESSIDADE DE JURISPRUDÊNCIA SUPERIOR QUE PROMOVA A UNIÃO DOS MERCADOS DE CAPITAIS

(86) O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, tem uma função nuclear de uniformização e desenvolvimento da jurisprudência. Mais do que qualquer outro tribunal, o Supremo Tribunal de Justiça deve atender aos efeitos sistémicos que as suas decisões vão provocar nas pessoas, nas empresas e nos mercados.

(87) A estipulação de pactos de jurisdição (bem como de convenções sobre o direito substantivo aplicável) nos prospetos e nos demais documentos de contratação de instrumentos financeiros é um corolário dos princípios europeus da liberdade de circulação de capitais e da liberdade de estabelecimento, essencial à implementação crescente da União dos Mercados de Capitais.

(88) Se os tribunais dos Estados-Membros da União Europeia não respeitarem os pactos de jurisdição (e as convenções sobre o direito substantivo aplicável) clausulados nos prospetos e nos demais documentos de contratação de instrumentos financeiros, estarão a inviabilizar a implementação de um mercado financeiro único na União Europeia.

(89) Se os tribunais portugueses, em particular, não respeitarem os pactos de jurisdição (e as convenções sobre o direito substantivo aplicável) clausulados nos prospetos e nos demais documentos de contratação de instrumentos financeiros, estarão a criar obstáculos a que os investidores e empresas portuguesas beneficiem desse mercado financeiro único.

(90) Decisões como a adotada pelo Tribunal a quo causam estupefação e insegurança nos agentes do mercado financeiro, com custos e incómodos inesperados e com danos reputacionais para o país.

(91) Pede-se ao Supremo Tribunal de Justiça que confirme a plena eficácia dos pactos de jurisdição (e das convenções sobre o direito substantivo aplicável) clausulados nos prospetos e nos demais documentos de contratação de instrumentos financeiros, de forma a promover a crescente implementação da União dos Mercados de Capitais.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO,

Requer-se que o presente Recurso de Revista seja admitido e julgado procedente por provado, sendo o Acórdão Recorrido revogado e, por conseguinte, a Recorrente absolvida da instância, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 576.º e na alínea a) do artigo 577.º, ambos do CPC, pois só assim se fará a costumada Justiça!”

10. Por seu  turno, os Autores/Recorridos apresentaram contra-alegações com as seguintes Conclusões:

“DA ALEGADA NULIDADE PROCESSUAL POR VIOLAÇÃO DO PODER-DEVER DE SUPRIMENTO DE IRREGULARIDADES DOS ARTICULADOS E INSUFICIÊNCIAS DE ALEGAÇÃO

1. Entende a Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal da Primeira Instância que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional arguida pela Recorrente, decisão essa confirmada pelo Venerando Tribunal a quo, padece de nulidade, por violação do dever de suprimento de irregularidades dos articulados e insuficiências de alegação, nos termos do disposto nos artigos 134.º, n,º 1 e 590.º, n.º 2, alíneas b) e c), ambos do CPC;

2. Na medida em que i) devia ter sido requerida, oficiosamente, a tradução do documento que continha o pacto de jurisdição invocado pela Recorrente; e por outro, ii) devia a Recorrente ter sido convidada ao suprimento da suposta falta de alegação de que o prospeto faz parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Recorridos;

3. Sucede que tais pretensões da Recorrente, conforme foi, aliás, decidido de forma clara, fundamentada e inequívoca pelo Tribunal da Primeira Instância, e confirmado pelo Venerando Tribunal a quo, não têm cabimento nos invocados artigos 134.º, n.º 1 e 590.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPC, além de se lhes opor o próprio princípio da autorresponsabilidade das partes, senão vejamos;

4. Relativamente à tradução do prospeto que, alegadamente, contém o pacto de jurisdição invocado pela Recorrente, não existe fundamento para que o Tribunal da Primeira Instância a tivesse convidado a proceder à junção da respetiva tradução, dado que a resposta às questões prévias (nomeadamente, saber se o prospeto faz ou não parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Recorridos e, bem assim, se foi ou não celebrado entre as Partes qualquer pacto de jurisdição) inviabiliza, prejudica e torna manifestamente inútil tal junção do prospeto traduzido;

5. Já quanto ao convite para o suprimento da suposta falta de alegação de que o prospeto faz parte integrante dos termos e condições do instrumento financeiro subscrito pelos Recorridos, parece aos Recorridos que o que a Recorrente efetivamente pretende é que lhe seja dada a oportunidade de vir, agora, invocar factos essenciais à sua causa de pedir, factos esses que devia ter invocado quando apresentou o seu articulado, mas que não fez;

6. Veja-se, quanto à impossibilidade de a Recorrente vir agora alegar factos essenciais à matéria de exceção e que foram completamente omitidos nos articulados, a doutrina de Abílio Neto supra citada e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação do Porto, igualmente supra citados;

DOS ALEGADOS MOTIVOS PARA A REVOGAÇÃO DO DESPACHO RECORRIDO CONSIDERAÇÕES INICIAIS

7. Pese embora a Recorrente afirmar que uma interpretação diferente daquela que propugna, do artigo 25.º do Regulamento, violaria as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais, o que seria manifestamente ilegal/inconstitucional, por ofensa ao Direito Europeu Primário, a verdade é que não o demonstra;

8. Assim o entendeu, e bem, o Venerando Tribunal a quo tendo ainda concluído que, em qualquer caso, não existe qualquer violação dos referidos princípios de liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais;

9. De qualquer forma, não está aqui em causa uma questão de interpretação do artigo 25.º do Regulamento, mas antes, a verificação se a factualidade alegada nos autos preenche, ou não, os requisitos enunciados no referido artigo 25.º do Regulamento;

10. E esse exercício – de verificação do preenchimento dos requisitos enunciados no artigo 25.º do Regulamento para efeitos da sua aplicação – em nada se confunde com a interpretação do artigo e nem o seu resultado pode ser considerado ou entendido como uma limitação da escolha das partes relativamente ao direito aplicável por via de um pacto de jurisdição;

11. Ou os requisitos enunciados no artigo 25.º do Regulamento estão preenchidos, ou não estão, sendo que, no caso sub judice, foi já decidido (e confirmado) que não estão preenchidos;

DA ALEGADA INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES À LUZ DO REGULAMENTO DA ALEGADA APLICABILIDADE DO ARTIGO 25.º DO REGULAMENTO

12. Efetivamente, as partes podem, nos termos do artigo 25.º do Regulamento e ao abrigo da sua autonomia privada, convencionar o tribunal competente para dirimir eventuais litígios;

13. A celebração de tal pacto, porém, deve obedecer ao disposto no artigo 25.º, n.º 1, do Regulamento, o que significa que a validade de tal pacto pressupõe o preenchimento de algum dos requisitos ali elencados, o que no caso sub judice não se verificou;

14. Desde logo, e contrariamente ao que a Recorrente invocada – sem o demonstrar – o pacto de jurisdição não foi celebrado por escrito e nem, tampouco, o prospeto que a Recorrente invoca como contendo esse pacto de jurisdição (Doc. 1 da sua contestação), foi aceite pelos Recorridos;

15. Na declaração dos Recorridos, constante da página 1 do Doc. 3 da PI, que a Recorrente invoca como prova da aceitação, pelos Recorridos, do suposto pacto de jurisdição, não é feita qualquer alusão (nem, tampouco, conhecimento e aceitação) ao prospeto junto aos autos pela Recorrente;

16. Pelo que, não se compreende de onde inferiu a Recorrente que os termos do prospeto (e do prospeto que a Recorrente, em particular, pretende utilizar) foram objeto de consentimento contratual pelos Recorridos;

17. Ademais, o prospeto junto aos autos pela Recorrente consiste num documento convertido em formato pdf., facilmente alterável, e que não está, sequer, assinado, carimbado ou certificado por nenhuma das entidades aí identificadas;

18. E trata-se, em boa verdade, de um documento particular que os Recorridos não sabem, nem têm obrigação de saber, se corresponde à realidade;

19. Tal como não sabem, os Recorridos, se é prática comum e consolidada utilizar este prospeto em particular nas operações financeiras por eles contratadas nem, tampouco, se é prática comum e consolidada escolher os tribunais ingleses para a resolução dos litígios;

20. Relembre-se, quanto a este ponto, que o Venerando Tribunal a quo entendeu que a alegada prática comum e consolidada alegada pela Recorrente, não foi invocada nos articulados e, consequentemente, que não foi provada a existência de tais usos e nem, tampouco, que os Recorridos a conhecesse ou devesse conhecer;

21. Face ao exposto, e contrariamente ao que vem invocado pela Recorrente, nem o requisito da alínea a), nem o da alínea c), ambas do referido artigo 25.º do Regulamento, se encontram preenchidos;

DA ALEGADA NÃO APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ARTIGO 8.º DO REGULAMENTO

22. Não colhe, igualmente, a argumentação explanada pela Recorrente, referente à não aplicabilidade subsidiária do artigo 8.º do Regulamento ao caso sub judice, com fundamento no facto de i) não existir qualquer nexo estreito e, simultaneamente, ii) não existir qualquer risco de serem proferidas decisões que possam ser inconciliáveis caso as causas sejam julgadas separadamente, senão vejamos:

23. Todas as Rés, nomeadamente a Recorrente, foram intervenientes nas operações financeiras contratadas pelos Recorridos, assumindo aí, quando uma delas, a qualidade de intermediárias financeiras (cfr. artigos 289.º, n.º a, al. a), 290.º, n.º 1, 291.º, a) e 293.º, n.º 1, al. a), todos do CVM);

24. E nessa qualidade, impende sobre cada uma das Rés uma série de deveres a cujo cumprimento estavam obrigadas, nomeadamente, os previstos nos artigos 135.º, n.º 1, 304.º, 309.º, 304.º, 312.º e ss, 314.º, do CVM;

25. O incumprimento desses deveres torna cada uma das Rés responsáveis pelos prejuízos causados aos Recorridos sendo que, no que concerne à violação da obrigação prevista no referido artigo 135.º do CVM, a responsabilidade das Rés é solidária, nos termos do disposto nos artigos 149.º, n.º 1 e 151.º, todos os CVM;

26. E foi, precisamente, nestes termos e com estes pressupostos que foi deduzido o pedido principal contra todos os Réus em regime de solidariedade passiva, respeitando a todos os Réus alguns dos factos alegados atinentes à violação dos deveres funcionais enquanto intermediários financeiros;

27. Ora, considerando que a competência do Tribunal, enquanto pressuposto processual, deve ser aferida em face da relação material controvertida e do pedido formulado pelos Autores na petição inicial, ter-se-á forçosamente de concluir que existe, inequivocamente, “um nexo tão estreito” que justifica que todos os Réus sejam demandados e julgados numa mesma ação, perante o domicílio de qualquer um dos Réus,nostermosdoartigo8.º do Regulamento;

28. Bem andou, por isso, o Tribunal da Primeira Instância e, posteriormente, o Tribunal a quo, ao considerar que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir o presente litigio, por força do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento;

EM SUMA, QUER ISTO DIZER, SEM SOMBRAS PARA DÚVIDAS, QUE:

29. Os tribunais portugueses são competentes para dirimir o presente litígio;

30. Não se mostram preenchidos os requisitos plasmados no artigo 25.º, n.º 1, als. a) e c) do Regulamento, o que significa que o pacto de jurisdição invocado pela Recorrente não é válido;

31. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer do pedido deduzido contra a Recorrente, em face do estatuído no artigo 8.º, n.º 1 do Regulamento;

32. Não deve o Acórdão Recorrido ser revogado, devendo ser julgada improcedente, por não provada, a exceção de incompetência internacional invocada pela Recorrente.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS, DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ:

Julgar-se o Recurso de Revista intentado pela Ré CITIBANK EUROPE PLC, ora Recorrente, improcedente por não provado, mantendo-se o Despacho Recorrido que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais português;

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!”

11. Por acórdão 21 de maio de 2020, o Tribunal da Relação ……. decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, acordam os Juízes  …. Secção Cível do Tribunal da Relação …… em julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

Custas pelo Autores/Recorrentes.

Não há lugar ao pagamento do remanescente da taxa de justiça (cfr. artigo 6.º, n.º 8, da Regulamento das Custas Processuais, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 86/2018, de 29 de Outubro).”

12. Irresignados, os Autores AA e BB interpuseram recurso de revista.

13. Por despacho de 19 de outubro de 2020, o Senhor Desembargador, com fundamento na verificação da existência de dupla conformidade, não admitiu o recurso interposto por AA e BB para o Supremo Tribunal de Justiça (art. 671.º, n.º 3, do CPC).

14. Citibank Europe p.l.c., Ré/Recorrente, a 2 de dezembro de 2020, com base tanto no trânsito em julgado do despacho do Senhor Desembargador de não admissão do recurso de revista interposto pelos Autores do acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de maio de 2020, como desta decisão, que absolveu a Ré dos pedidos contra si deduzido, requereu a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos do art. 277.º, al. e), do CPC. Requereu também que os Autores/Recorridos fossem responsáveis pelas custas, nos termos e para os efeitos do art. 536.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, porquanto a presente inutilidade superveniente da lide não é imputável à Recorrente e não se verifica nenhuma das situações previstas no art. 536.º, n.os 1 e 2, do CPC.

15. Por seu turno, os Autores/Recorridos AA e BB, ao abrigo do art. 3.º, n.º 3, do CPC, responderam, alegando que a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide, requerida pela Ré/Recorrente Citibank Europe p.l.c., não cabe em nenhuma das hipóteses previstas no art. 536.º, n.os 1 e 2, do CPC. Aplica-se, em seu entender, a regra prevista no n.º 3 do mesmo preceito, 1.ª parte, pois que assumindo a Ré/Recorrente, na presente instância recursiva, a posição de Autor, recai sobre si a responsabilidade pelas respetivas custas.

16. Ponderando-se resolver a questão em causa no presente litígio – (in)validade do pacto atributivo de jurisdição aos tribunais ingleses, na hipótese de se concluir pela sua celebração – à luz do DL n.º 446/85, de 25 de outubro (designadamente, do art. 19.º, al. g)), atendendo à redação que lhe foi dada pelo DL n.º 220/95, de 31 de janeiro e pelo DL n.º 249/99, de 7 de julho (que visaram a transposição correta e completa da Diretiva comunitária n.º 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de abril de 1993 (JO, n.º L 095, de 21 de abril de 1993, p. 29), a Relatora convidou as partes, a 18 de fevereiro de 2021, à luz do art. 3.º, n.º 3, do CPC, a dizer o que tivessem por conveniente a esse propósito da aplicação ao caso em apreço do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, no prazo legal.

17. A 18 de março de 2021, a Relatora proferiu o seguinte despacho:

Declara-se a extinção da instância recursiva com base em desistência da Ré/Recorrente Citibank Europe p.l.c., recaindo sobre esta a responsabilidade pelas respetivas custas”.

18. Nos termos e para os efeitos do art. 652.º, n.º 3, ex vi do art. 679.º, do CPC, Citibank Europe p.l.c. apresentou a sua reclamação para a conferência. Fundamenta o pedido de reforma em lapso da decisão singular, por entender que o caso em apreço não configura uma situação de desistência, mas sim de inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, devem os Reclamados ser condenados a suportar as custas processuais. Pede ainda, subsidiariamente, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art. 6.º, n.º 7, do RCP.

19. AA e BB responderam à reclamação, pugnando pela manutenção do despacho reclamado.

II – Questões a decidir

Estão em causa as questões de saber se a responsabilidade pelas custas recai, no caso de extinção da presente instância, sobre os Autores/Recorridos, AA e BB, ou sobre a Ré/Recorrente, Citibank Europe p.l.c., de um lado e, de outro, subsidiariamente, se deve dispensar-se a Ré/Recorrente do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art. 6.º, n.º 7, do RCP.

III – Fundamentação

A) De Facto

Relevam os factos mencionados supra.

B) De Direito

Inutilidade superveniente da lide/Desistência

1. O recurso interposto pela Ré era fundado no momento em que foi interposto e continuou, objetivamente, a sê-lo. Todavia, como que deixou de o ser subjetivamente para a Ré, porquanto foi, entretanto, proferido acórdão pelo Tribunal da Relação ……… que considerou improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores e absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados, assim como despacho que, em virtude da verificação de dupla conformidade, não admitiu o recurso de revista, também interposto pelos Autores.

2. Não pode, in casu, falar-se, cum summo rigore, de inutilidade superveniente da lide. É que a lide mantém, objetivamente, a sua utilidade, apesar da prolação dos referidos acórdão e despacho pelo Tribunal da Relação  …… . Na verdade, se o Supremo Tribunal de Justiça viesse a decidir que os tribunais portugueses eram internacionalmente incompetentes para julgar a presente ação, estar-se-ia perante uma incompetência absoluta (art. 96.º, al. a), do CPC), que gera a absolvição do réu da instância. Estaria em causa uma exceção dilatória (art. 278, n.º 1, al. a), do CPC) que obsta à apreciação do mérito da causa.

3. A inutilidade superveniente da lide só se verifica se, após a instauração da causa, a pretensão de tutela judicial aí formulada deixar de ter utilidade. O que não se verifica no caso em apreço, porquanto a determinação da (in)competência internacional dos tribunais portugueses não perdeu, entretanto, a sua utilidade. A Ré/Recorrente é que deixou, subjetivamente, de ter nela interesse.

4. Na verdade, a inutilidade da lide, prevista como causa de extinção da instância no art. 277.º, al. e), do CPC, ocorre quando, após a instauração da causa, sobrevêm circunstâncias que inviabilizariam o pedido, não em termos de procedência, mas por razões adjetivas de impossibilidade de realização do objetivo pretendido com a ação, por já ter sido atingido por outro meio ou já não poder sê­lo. Não ocorreu qualquer circunstância superveniente à interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pela Ré que inviabilize, por razões adjetivas de impossibilidade de alcançar a finalidade visada com o recurso (a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses), pois esse objetivo não foi atingido por outro meio nem deixou de poder ser alcançado. Não surgiu qualquer circunstância suscetível de implicar a impertinência – i.e., a desnecessidade – de sobre a lide recair pronúncia judicial, por ausência de efeito útil.

5. A determinação da competência ou incompetência internacional dos tribunais portugueses não perdeu a sua utilidade nem se tornou desnecessária, ainda que no âmbito da ação principal todas as Rés tenham sido, por outras razões, absolvidas dos pedidos contra si formulados pelos Autores/Recorridos/Reclamados.

6. Não pode, deste modo, falar­se de verdadeira inutilidade superveniente da lide, uma vez que a pretensão de tutela judiciária formulada pela Ré/Recorrente – a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses – não foi obtida por outro meio nem pôde deixar de o ser. O Supremo Tribunal de Justiça podia, objetivamente, ter apreciado a questão da (in)competência internacional dos tribunais portugueses, nomeadamente porque a declaração da incompetência preconizada pela Reclamante Citibank Europe p.l.c. não foi obtida por outro meio, nem pôde deixar de o ser. Apenas deixou de interessar subjetivamente à Ré/Recorrente a sua apreciação.

7. A lide mantinha, objetivamente, a sua utilidade.

8. Acresce que, conforme recordam os Reclamados, foi a própria Reclamante Citibank Europe p.l.c. que, no recurso de revista, pediu ao Supremo Tribunal de Justiça que confirmasse “a plena eficácia dos pactos de jurisdição (e das convenções sobre o direito substantivo aplicável) clausulados nos prospetos e nos demais documentos de contratação de instrumentos financeiros, de forma a promover a crescente implementação da União dos Mercados de Capitais”. Deste modo, também por este motivo, a lide mantinha, objetivamente, a sua utilidade.

9. De resto, foi a Recorrente/Reclamante Citibank Europe p.l.c. que, na sua contestação, invocou a exceção de incompetência internacional do Tribunal, alegando que a sua sede é na Irlanda, e preconizando a aplicação do art. 4.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2021 e, por conseguinte, a sua absolvição da instância. Foi também a Recorrente/Reclamante Citibank Europe p.l.c. que, não conformada com o despacho do Tribunal de 1ª Instância de 14 de janeiro de 2019 que decidiu julgar improcedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação …....... Foi igualmente a Recorrente/Reclamante Citibank Europe p.l.c. que, não resignada com a decisão do Tribunal da Relação ……, de 20 de fevereiro de 2020, que julgou improcedente a apelação e manteve a decisão do Tribunal de 1ª Instância, no sentido de os tribunais portugueses serem internacionalmente competentes, interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

10. Portanto, foi a Recorrente/Reclamante Citibank Europe p.l.c. que intentou e manteve – apesar das decisões, no mesmo sentido, do Tribunal da 1ª Instância e do Tribunal da Relação – a presente instância recursiva, até ao momento em que deixou de ter interesse na sua apreciação e, unilateralmente, decidiu desistir da mesma.

11. Trata-se, por outro lado, de um recurso de decisão interlocutória, interposto pela Ré à luz do art. 671.º, n.º 2, al. a), do CPC.

12. O comando contido no art. 644.º, n.º 4, do CPC, apenas cobre os recursos que a parte pretende que sejam interpostos depois do trânsito em julgado da sentença final. A situação em que, no momento desse trânsito, ainda se encontram pendentes recursos interpostos de decisões interlocutórias não é subsumível àquele preceito e não encontra mesmo qualquer regulamentação na lei[1]. Não cabendo em qualquer previsão legal, deteta-se a existência de um caso omisso, de uma lacuna da lei. O art. 8.º, n.º 1, do CC consagra a proibição da denegação de justiça, da decisão de non liquet.

13. Conforme o art. 10.º, n.º 3, do CC, não existindo na lei norma que regule um caso análogo, a lacuna tem de ser integrada através da elaboração de norma ad hoc, i.e., de regra criada pelo intérprete dentro do espírito do sistema (norma geral e abstrata que contemple o tipo de casos em que se integra o caso omisso apenas para o caso sub judice)[2].

14. No caso em apreço, o espírito do sistema não pode ser outro que não o de que uma decisão final não pode transitar em julgado enquanto se encontrar pendente a apreciação de um recurso que incide sobre uma questão como que prejudicial dessa mesma decisão[3]. Na verdade, a competência internacional dos tribunais portugueses para proferir a decisão estava dependente do sentido da decisão que viesse a ser adotada no presente recurso de revista. No caso de procedência deste recurso, os tribunais portugueses seriam internacionalmente incompetentes para proferir a decisão, sendo a Ré absolvida da instância.

15. Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a competência internacional dos tribunais portugueses para proferir a decisão final, esta decisão não pode transitar em julgado[4].

16. Assim, se o recurso interposto da decisão interlocutória for decidido contra o recorrente, a decisão final transita em julgado no momento do trânsito em julgado da decisão de recurso; se for decidido a favor do recorrente, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 195.º, n.º 2, do CPC: a procedência do recurso implica a inutilização de todos os atos que sejam afetados por essa procedência, entre os quais se encontra a decisão final[5].

17. Não restam, todavia, dúvidas sobre a perda do interesse subjetivo da Ré/Recorrente na presente instância recursiva.

18. Com efeito, havendo a ação prosseguido apesar da pendência de recurso de decisão interlocutória sobre a (in)competência internacional dos tribunais portugueses, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação …….. que considerou improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores e absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados, assim como despacho que, em virtude da verificação de dupla conformidade, não admitiu o recurso de revista, também interposto pelos Autores. Tal resultado tornou o presente recurso subjetivamente inútil para a Ré/Recorrente que, consequentemente, como que perdeu o interesse em agir.

19. Tratar-se-á, porventura, de inutilidade superveniente da lide em sentido impróprio.

20. A extinção da presente instância recursiva resulta, por conseguinte, não de inutilidade superveniente da lide em sentido próprio, porquanto foi a Recorrente/Reclamante Citibank Europe p.l.c. que deixou de se interessar pela apreciação da pretensão de tutela judiciária que ela própria formulou. Tão pouco decorre de desistência da mesma instância recursiva por parte da Ré/Recorrente – aceite pelos Autores/Recorridos, nos termos do art. 286.º do CPC – se se entender que a letra do requerimento por esta apresentado deveria refletir a vontade de desistir, apesar de a livre manifestação da vontade não se revestir da mesma importância no direito material e no direito processual. É que não conta a vontade dos efeitos jurídicos (que é requisito típico dos negócios jurídicos), mas a simples vontade do ato.

21. Não se aplica, por isso, conforme aquele mesmo entendimento, o art. 5.º, n.º 3, do CPC, (jura novit curia) e, por isso, não tem lugar uma espécie de conversão, traduzida na correção da qualificação do ato praticado pela Recorrente/Reclamante, a requalificação normativa da factualidade relevante. Não se utiliza um tipo – a extinção da instância recursiva por desistência - diverso daquele que ele originariamente se destinava a cumprir – a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

22. Não se curando, assim, nem de inutilidade superveniente da lide em sentido próprio e nem de desistência em sentido próprio, o requerimento de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, insuscetível de produzir os seus efeitos próprios, deve entender-se como requerimento de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide em sentido impróprio. Trata-se de uma ligeira requalificação do ato – como que de uma conversão do ato e não de uma conversão da vontade manifestada pela Recorrente/Reclamante. De resto, no que toca à adequação da vontade, tem-se em conta o escopo objetivo ou efeito processual do ato: a extinção da instância. Na verdade, o Tribunal respeita o pedido formulado pela Ré/Recorrente/Reclamante - a extinção da instância – e, assim, o princípio do dispositivo, limitando-se a reconduzir, em consideração da factualidade e do comportamento das partes, o respetivo fundamento a uma inutilidade superveniente da lide em sentido impróprio.

23. No exercício do poder de interpretação e de qualificação dos atos processuais, o Tribunal não está condicionado pela fórmula verbal adotada pelas partes, devendo antes ter em conta o conteúdo substancial da pretensão deduzida. Aliás, a distinção entre interpretação e qualificação surge, nesta sede, esbatida. De resto, o Tribunal não se encontra vinculado aos cânones da hermenêutica negocial (arts. 236.º e ss ex vi do art. 295.º do CC), que, em qualquer caso, sempre seriam aqueles que não pressupõem a natureza bilateral do ato a interpretar.

24. É lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter[6].

25. Não resultando a extinção da presente instância recursiva nem de inutilidade superveniente da lide em sentido próprio e nem de desistência também em sentido próprio, aplica-se a regra geral em matéria de custas, plasmada no art. 527.º, n.º 1, do CPC, e não as regras especiais consagradas nos arts. 537.º e 538.º do mesmo corpo de normas.

26. Segundo o art. 527.º, n.º 1, do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito”.

27. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento.

28. No caso sub judice, não se apurou o vencimento de qualquer das partes – pois que não se chegou a decidir a questão da (in)competência internacional dos tribunais portugueses e a Ré/Recorrente/Reclamante perdeu o interesse na sua apreciação em virtude de o Tribunal da Relação  …….. a ter, entretanto, absolvido dos pedidos contra si formulados - nem qualquer delas retirou proveito do resultado do recurso. Não se determinou o provimento ou o não provimento do recurso.

29. Consequentemente, nenhuma das partes é responsável pelas custas.

Dispensa – ou não - do pagamento do remanescente da taxa de justiça requerida pela Recorrente/Reclamante

1. O acórdão do Tribunal da Relação ……, de 21 de maio de 2020, e o despacho do Tribunal de 1.ª Instância, de 18 de janeiro de 2021, dispensaram o pagamento do remanescente da taxa de justiça na ação principal.

2. Porém, tal dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça na ação principal não é aplicável ao presente apenso, que preserva a sua autonomia perante a ação principal.

3. É sabido que o instituto da apensação de processos (arts. 267.º e ss do CPC) tem em vista a economia processual - uma vez que as ações apensadas são instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente – e a uniformidade de julgamento - porquanto a instrução, a discussão e o julgamento conjuntos garantem harmonia decisória de facto e de direito. Contudo, apesar da unificação da tramitação, as ações mantêm a sua autonomia para os restantes efeitos.

4. À luz do art. 6.º, n.º 7.º, do DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro (doravante RCP), a Recorrente/Reclamante pediu a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

5. Nos termos do art. 11.º do RCP, “A base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com os acertos constantes da tabela I, e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respetivo”.

6. Por sua vez, a  tabela I-B do RCP estabelece que a taxa de justiça devida em ações de valor superior a € 275.000,00 corresponde a 8 Unidades de Conta (“UCs”), acrescendo, a final, por cada fração de € 25.000,00 ou fração, 1,5 UCs.

7. Considerando que o valor da presente causa corresponde a € 2.038.854,93, haveria, em princípio, lugar ao pagamento do remanescente de taxa de justiça.

8. Contudo, o art. 6.º, n.º 7, do RCP confere ao Tribunal a possibilidade de dispensar as partes de tal pagamento, dispondo que “Nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

9. Atendendo à regra plasmada no art. 529.º, n.º 2, do CPC, o valor da ação não deve ser utilizado como critério autónomo. Com efeito, de acordo com esse preceito, "A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais". Correspondendo ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente, a taxa de justiça não depende da utilidade que se retira de uma ação ou recurso - i.e., com o vencimento da ação ou do recurso -, pois que a parte vencedora nem sequer a suporta, a título definitivo, já que essa taxa vai entrar em regra de custas e quem a suporta, a título definitivo, é a parte que perde o recurso - ou a ação.

10. Segundo o art. 530.°, n.° 7, do CPC, consideram-se de especial complexidade, para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, as ações que: "a) contenham articulados ou alegações prolixas; b) digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; c) impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.'"

11. No que respeita à conduta processual das partes, “(…) deverá ter-se por luz orientadora o disposto nos arts. 8º e 7º, nº 1, do NCPC, onde se estatui o dever de as partes agirem de boa fé e de cooperarem mutuamente e com o tribunal para com brevidade e eficácia se alcançar a justa composição do litígio”. A conduta processual da Recorrente/Reclamante não merece qualquer reparo ou censura, tendo-se revelado adequada e justa à defesa dos seus interesses, não tendo suscitado quaisquer questões desnecessárias e/ou feito uso de expedientes dilatórios. Não há indícios de qualquer violação dos deveres de boa-fé, cooperação, razoabilidade e prudência. Não foi apresentado, de resto, qualquer excesso ou requerimento abusivo ou injustificável.

12. Depois, a causa não se reveste de intrincada complexidade. Está em causa um recurso de uma decisão interlocutória, que corre por apenso à ação principal – de natureza mais complexa, naturalmente –, na qual foi dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça. Além de não conter alegações prolixas, respeita apenas a uma única questão - a da (in)competência dos tribunais portugueses - que, por seu turno, não se afigura de elevada especialização jurídica e especificidade técnica. Embora não se apresente como um processo dotado de especial complexidade nem tão pouco de absoluta simplicidade, a verdade é estava em causa apenas a resolução de uma única questão. Acresce que o mérito do recurso, em virtude de desistência da Reclamante/Recorrente, não chegou a ser apreciado. Acresce que se trata de um processo que não implica a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.

13. Em suma, no caso sub judice, não estamos perante uma causa dotada de especial complexidade, tanto no que respeita aos conhecimentos técnico-jurídicos exigidos como no que toca aos serviços processuais prestados. Estamos, com efeito perante uma instância recursiva de uma decisão interlocutória que tem – rectius, tinha - como única questão apreciar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir o litígio em causa na ação principal.

14. Atendendo à proporcionalidade entre os serviços prestados pelo Tribunal e a taxa suportada, a exigência do pagamento do remanescente de taxa de justiça é, in casu, manifestamente excessiva por desproporcional aos serviços concretamente prestados. A taxa de justiça já liquidada e prevista para as causas de valor igual a € 275.000,00 afigura-se suficiente, justa, proporcional e adequada para fazer face aos custos e despesas dos serviços prestados na presente causa.

15. Por conseguinte, levando em linha de conta as circunstâncias mencionadas supra, afigura-se adequado, razoável e conforme com os princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito, consagrados nos arts. 2.º, 18.°, n.º 2, e 20.° da CRP, mediante a aplicação do art. 6.º, n.º 7, do RCP, dispensar a Recorrente/Reclamante do pagamento do remanescente da taxa de justiça. Encontram-se, pois, reunidos os requisitos previstos no art. 6.º, n.° 7, do RCP, para a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, dispensando-se a Recorrente/Reclamante do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida pelo facto de o valor da causa exceder € 275.000,00. Não será, por conseguinte, devida pela Reclamante qualquer taxa de justiça para além daquelas que já foram pagas.

16. Pelas mesmas razões, dispensam-se também os Recorridos do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

IV – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em deferir parcialmente a reclamação apresentada pela Recorrente Citibank Europe p.l.c., julgando-se extinta a instância recursiva e sem custas. Dispensam-se também as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

           

Lisboa, 25 de maio de 2021.


Sumário: 1. Não pode, cum summo rigore, falar-se de inutilidade superveniente da lide quando esta mantém, objetivamente, a sua utilidade, apesar da prolação de acórdão que considere improcedente a apelação dos Autores e absolva a Ré dos pedidos, assim como de despacho que, em virtude da verificação de dupla conformidade, não admita o recurso de revista, também interposto pelos Autores. Na verdade, se o Supremo Tribunal de Justiça viesse a decidir que os tribunais portugueses eram internacionalmente incompetentes para julgar a ação, estar-se-ia perante uma incompetência absoluta (art. 96.º, al. a), do CPC), que gera a absolvição do réu da instância - exceção dilatória (art. 278, n.º 1, al. a), do CPC) que obsta à apreciação do mérito da causa. 2. Não pode falar­se de verdadeira inutilidade superveniente da lide quando a pretensão de tutela judiciária formulada pela Ré/Recorrente – a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses – não foi obtida por outro meio nem pôde deixar de o ser. A lide mantém, objetivamente, a sua utilidade. 3. A situação em que, no momento desse trânsito em julgado da sentença final, ainda se encontram pendentes recursos interpostos de decisões interlocutórias não é subsumível ao art. 644.º, n.º 4, do CPC, e não encontra qualquer regulamentação na lei. 4. Conforme o art. 10.º, n.º 3, do CC, não existindo na lei norma que regule um caso análogo, a lacuna tem de ser integrada através da elaboração de norma ad hoc, i.e., de regra criada pelo intérprete dentro do espírito do sistema. Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a competência internacional dos tribunais portugueses para proferir a decisão final, esta decisão não pode transitar em julgado. 5. Não resultando a extinção da instância recursiva nem de inutilidade superveniente da lide em sentido próprio e nem de desistência também em sentido próprio, aplica-se a regra geral em matéria de custas, plasmada no art. 527.º, n.º 1, do CPC, e não as regras especiais consagradas nos arts. 537.º e 538.º do mesmo corpo de normas. 6. O art. 6.º, n.º 7, do RCP confere ao Tribunal a possibilidade de dispensar as partes de tal pagamento.

Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Fernando Dias – que votou a decisão -, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).

Maria João Vaz Tomé (relatora)

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[1] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2016/01/recurso-de-decisao-interlocutoria-e.html.
[2] Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.200.
[3] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2016/01/recurso-de-decisao-interlocutoria-e.html.
[4] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2016/01/recurso-de-decisao-interlocutoria-e.html.
[5] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2016/01/recurso-de-decisao-interlocutoria-e.html.
[6] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de abril de 2016 (Lopes do Rego), proc. n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.