Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1980/11.6T2AVR-B.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DIREITO DE RETENÇÃO
SINAL
Data do Acordão: 11/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO.
Doutrina:
- Fernando de Gravato Morais, “Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor”, “CDP, nº46”, p. 32 e segs..
- Júlio Gomes, “Do direito de retenção (arcaico, mas eficaz…”) – CDP, nº11, pags. 10.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil”, Anotado, Vol. I, 4ª Ed., p. 772.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 7.º, N.º3, 217.º, N.º1, 442.º, N.º2, 755.º, N.º 1, AL. F), 808.º.
CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 102.º, 106.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 609.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-AUJ (ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA) Nº 4/2014, DE 20.03.14, PUBLICADO NO DR, 1ª SÉRIE, Nº 95, DE 19.05.14, E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Constituem pressupostos do reconhecimento do direito de retenção, previsto no art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC: a) a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; b) a entrega (ao promitente-comprador) da coisa objecto do contrato-promessa; c) a titularidade, por parte do beneficiário, de um direito de crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.

II - A recusa de cumprimento do contrato em curso, por parte do administrador da insolvência, legitima que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa, o incumprimento definitivo daquele contrato;

III - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE, reclama uma interpretação restritiva, de molde a considerar-se que o mesmo se aplica apenas às promessas não sinalizadas, devendo aplicar-se às demais – promessas sinalizadas – a disciplina civilista do art. 442.º, n.º 2.
Decisão Texto Integral:

                               Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – No apenso de verificação de créditos reclamados, no âmbito da insolvência de AA, devidamente id. nos autos e a que se reportam os autos em epígrafe, foi impugnada pela CAIXA BB (CBB) a natureza de crédito garantido por direito de retenção que pelo Sr. administrador da insolvência havia sido reconhecida ao crédito de € 100 000,00 reclamado por CC.

       Por sentença de 11.07.13, foi, além do mais, julgada improcedente tal impugnação, mantendo-se, pois, a classificação, como garantido por direito de retenção, do sobredito crédito.

       Porém, a Relação de Coimbra, por acórdão de 03.06.14 (Fls. 526 a 546), na procedência da apelação interposta pela impugnante CBB, revogou a sentença recorrida, “na parte em que julgou verificado e graduou o crédito e o direito de retenção alegado pela reclamante, CC” – há manifesto lapso na referência a “C…” em vez de “S…” – “Novo”, tendo graduado o crédito da recorrente CBB, para ser pago, relativamente ao produto da venda executiva da fracção autónoma letra H, verba nº7, em primeiro lugar.

       Daí a presente revista interposta pela apelada, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                     /

1ª – As questões de facto e de direito constantes do processo, em particular, da decisão agora recorrida, são em tudo idênticas às constantes do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2014 (publicado em Diário da República, 1ª Série - Nº 95 – 19 de maio de 2014), que veio uniformizar a jurisprudência existente acerca do direito de retenção se verificada a insolvência do promitente vendedor, perante um contrato com eficácia meramente obrigacional quando devidamente sinalizado e acompanhado de “traditio”, e, por isso, susceptíveis do mesmo enquadramento jurídico.

2ª – Consta da sentença agora recorrida,

"a) São pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente: a “traditio” da coisa ou coisas, objecto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito emergente do incumprimento definitivo da obrigação de facto jurídico positivo resultante de contrato promessa;

b) Para que as prestações emergentes do contrato promessa se tenham por definitivamente incumpridas e o promitente vendedor constituído, por exemplo, na obrigação pecuniária de restituição, em dobro ou singelo, do sinal prestado, exige-se que o credor tenha perdido o interesse que tinha na prestação, ou que o devedor não realize dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo primeiro.

c) A resolução do contrato promessa só é admissível no caso de incumprimento definitivo das obrigações de facto jurídico positivo que dele emergem, não sendo suficiente, para facultar a qualquer dos contraentes aquele direito potestativo extintivo, a simples mora na realização dessas prestações;

d) Se o contrato promessa de compra e venda se não mostrar extinto, designadamente por resolução, ao tempo da declaração de insolvência são-lhe aplicáveis as disposições do CIRE relativas aos negócios em curso."

3ª – Tratando-se de duas situações iguais entre si, o tribunal “ad quem”, ao concluir por decisão diferente, está a violar o princípio da igualdade constante do art. 13 º da Constituição da República Portuguesa;

4ª – 0 Sr. Administrador de Insolvência, aquando da apresentação do seu relatório, nos termos e para os efeitos do artigo 129°, nº 1 do CIRE, graduou o crédito - € 100 000,00 (cem mil Euros) - da credora CC, ora recorrente, como sendo garantido por direito de retenção - do qual se infere o não cumprimento por parte do Administrador de Insolvência do negócio prometido;

5ª – A recorrente outorgou contrato promessa de compra e venda, pelo que tem o estatuto de promitente compradora;

6ª – Este contrato não foi efectivamente registado, pelo que a sua eficácia é meramente obrigacional;

7ª – À recorrente foram entregues chaves da fracção H do prédio descrito sob a ficha nº … da Conservatória do Registo Predial de Aveiro, a 06 de Dezembro de 2007;

8ª – A recorrente vive no imóvel desde essa data, pelo que é, também, consumidora;

9ª – A recorrente entregou ao insolvente o valor de € 100 000,00 (cem mil euros), a título de sinal;

10ª – Ao ser reconhecido o crédito à credora CC, por parte do Administrador de Insolvência, como garantido por direito de retenção, está o mesmo a assumir o não cumprimento do contrato prometido;

11ª – Pelo que a recorrente goza de direito de retenção sobre o dito imóvel que habita, dado que "São três os pressupostos que marcam o direito de retenção: - a existência de um crédito emergente de um contrato promessa de transmissão ou constituição de um direito real; a entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa; o incumprimento definitivo imputável ao promitente como fonte de crédito do retentor", in Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo nº 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1, a 25.03.14;

Da preferência do credor retentor em detrimento do credor hipotecário.

12ª – A graduação da preferência do credor retentor em detrimento do credor hipotecário reporta-se ao resultado de uma ponderação de interesses, porquanto os primeiros "constituem a parte mais débil que, por via de regra, investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente selectividade na concessão de crédito. ", também in Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo nº 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, a 20.03.14;

13ª – A recorrente vive, desde Dezembro de 2007 (quando recebeu a chave do imóvel e foi autorizada pelo insolvente a, aí, residir), na convicção de que o imóvel aqui em discussão e acima melhor identificado, é seu, pois para além de ter pago o preço de € 100 000,00 (cem mil euros), aí reside, desde essa data, como se da sua casa se tratasse;

14ª – Se outra solução estivesse no horizonte do legislador, aquando da recente alteração ao CIRE (em 2012), este teria diligenciado no sentido de alterar o teor do artigo 97°, contemplando a extinção do direito de retenção fundada na decisão de insolvência - o que não fez!

15ª – Por assim ser, deve este Supremo Tribunal decidir pela manutenção dos efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442°, nº 2 do Código Civil e, consequentemente, considerar o crédito da reclamante, aqui recorrente, em singelo (€ 100 000,00 - cem mil euros), mantendo-se a prevalência que lhe é conferida pelo direito de retenção, graduando este crédito conforme havia sido graduado em 1ª instância.

       Nestes termos e nos mais de direito que os Ex. mos Colendos, doutamente, suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se, parcialmente, a douta sentença recorrida, proferindo-se acórdão que revogue o decidido, na parte que à recorrente CC respeita, proferindo-se acórdão que consagre a decisão da primeira instância, graduando-se os créditos pela ordem seguinte:

A) Pelo produto da fracção H:

1° Crédito de CC;

2° Crédito da Caixa BB, no montante de € 981 036,02;

B) Pelo produto dos demais imóveis:

1° Crédito da Caixa BB, no montante de € 981 036,02;

2° Rateadamente, créditos comuns, no que se inclui o remanescente do crédito de CC.

       Contra-alegando, defende a recorrida a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                      *

2 – A Relação teve por provados (na parte que, aqui, interessa) os seguintes factos:

                                                      /

1 – Através de documento epigrafado de CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA datado de 11.08.06 e subscrito pelo insolvente e pela credora CC, nas qualidades de, respectivamente, promitente-vendedor e promitente-compradora, o primeiro declarou prometer vender à segunda e esta prometeu comprar ao primeiro, livre de quaisquer ónus ou encargos, fracção autónoma em construção tipo T2, com lugar duplo de garagem e arrecadação na cave, sita no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº … da freguesia de Esgueira, pelo preço de € 105 000,00, sendo € 40 000,00 a pagar com a assinatura do contrato em apreço, como sinal e princípio de pagamento, e a restante verba, no acto da escritura pública prevista para o segundo semestre de 2006, obrigando-se o insolvente a avisar a promitente-compradora sobre o local e hora para celebração da mesma;

2 – Através de documento datado de 03.11.06, epigrafado de “Aditamento ao contrato-promessa de compra e venda celebrado a 11 de Agosto de 2006” e subscrito pelos insolvente e credora, CC, aquele declarou que recebeu a quantia de € 40 000,00 e a título de reforço de sinal, ficando o valor de € 25 000,00 para liquidar na data da escritura de compra e venda;

3 – Através de documento datado de 12.10.07, epigrafado de “Aditamento ao contrato-promessa de compra e venda celebrado em 11.08.06” e subscrito pelos insolvente e credora CC, aquele declarou que recebeu a quantia de € 20 000,00 e a título de reforço de sinal, e ambos declararam fixar o mês de Janeiro de 2008 para formalização da escritura de compra e venda do negócio prometido;

4 – Através de documento datado de 06.12.07, o insolvente declarou que “o valor do prédio indicado em a) foi totalmente liquidado/pago através de três cheques (cheque nº …, no valor de € 40 000,00, sacado sobre o BDD, cheque nº …, no valor de € 40 000,00, e o cheque nº …, no valor de € 20 000,00, sacados sobre Caixa EE), nada mais tendo a receber, seja a que título for, inerente ao contrato-promessa ali identificado, tendo a chave do imóvel sido por mim entregue à CC, em Dezembro de 2007, a qual, a partir desta data, tomou posse do imóvel, já pago mas ainda não escriturado, passando a residir, de forma permanente, no mesmo”;

5 – No âmbito do descrito em 1 a 4, CC pagou ao insolvente a quantia total de € 100 000,00;

6 – No contexto do descrito em 4, no dia 06 de Dezembro de 2007, o insolvente entregou à credora CC as chaves da fração H do prédio descrito sob a ficha nº … da Conservatória do Registo Predial de Aveiro;

7 – Desde então que CC habita, com a sua família, na dita fracção, aí tomando as suas refeições, pernoitando, recebendo os seus amigos e familiares, etc;

8 – Através de carta datada de Fevereiro de 2008, que o insolvente recebeu, CC interpelou-o para celebrar o contrato prometido.

                                                      *

3 – Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, a única questão por si suscitada e que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste em saber se o seu verificado crédito de € 100 000,00 sobre a massa insolvente goza – como por si propugnado e decidido na 1ª instância –,ou não – como entendido no douto acórdão recorrido, com o aplauso da recorrida CBB –, do invocado direito de retenção.

       Apreciando:

4I – O direito de retenção, previsto nos arts. 754º e segs. do CC, consiste na “faculdade que o devedor de uma coisa possui de a não entregar enquanto não for pago do crédito que, por sua vez, lhe assiste”[2].

       Como expende o Prof. Júlio Gomes[3], “O direito de retenção apresenta como pressuposto para o seu exercício (cfr. o art. 754º do nosso CC), desde logo, a existência de uma detenção lícita de uma coisa. É necessário deter para posteriormente poder reter. Tanto pode, em rigor, tratar-se de uma posse propriamente dita, como de uma detenção ou posse precária. A detenção deve, contudo, implicar que o credor detentor tem o controlo de facto da coisa (directamente ou através de um «representante»), excluindo o devedor desse controlo material da coisa”. Aditando, mais adiante (pags. 12), que “um outro pressuposto para o exercício do direito de retenção é a existência de uma conexão entre o crédito do retentor e a coisa retida”, surgindo o mesmo como “acessório de um crédito que visa garantir e cujo cumprimento pelo devedor procura estimular”.

        Nos termos do disposto no art. 755º, nº1, al. f), do CC, “goza…do direito de retenção…o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º”.

       Sendo, pois, pressupostos genéricos do reconhecimento de tal direito de retenção: a) – a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; b) – a entrega da coisa objecto do contrato-promessa; c) – a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.

       Para o caso de declaração de insolvência do promitente-vendedor, impõe-se considerar que por este Supremo foi proferido o AUJ (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência) nº 4/2014, de 20.03.14, publicado no DR, 1ª Série, nº 95, de 19.05.14, e acessível em www.dgsi.pt, o qual uniformizou a Jurisprudência, nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente-comprador, em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º, nº1, al. f) do CC”.

       Esta uniformização mereceu a genérica concordância do Prof. Fernando de Gravato Morais, o qual apenas dela se distancia se entendida como restringindo-se apenas à posição do promitente-comprador consumidor, o que, na sua lição, consubstancia um entendimento redutor dos correspondentes textos legais (DD. LL. nº/s 236/80, de 18.07 e 379/86, de 11.11, incluindo os respectivos Preâmbulos)[4].

       No entanto, em tudo o mais relevante aquele insigne civilista se mostra em sintonia com a sobredita uniformização, trazendo à colação o conceito de imputabilidade (entendido “cum grano salis”) reflexa do incumprimento do contrato-promessa por parte do promitente-vendedor insolvente, pois, em última análise, foi este que deu causa ou motivou a declarada situação de insolvência. Sendo, por outro lado, certo que “À luz do CIRE, não estando a questão expressamente regulada, não pode deixar de aplicar-se o regime civilista do sinal, em virtude de ser esse o regime de base”, acrescendo que “da conjugação dos regimes da venda com reserva de propriedade e entrega da coisa e da insolvência do promitente-comprador, parece que se pode concluir pela interpretação restritiva do art. 106º, nº2, do CIRE, de molde a este apenas se aplicar às promessas não sinalizadas”, devendo aplicar-se às outras – as promessas sinalizadas – a disciplina civilista do art. 442º, nº2.

                                                    /

II – Como emerge dos autos, as instâncias tomaram posições antagónicas quanto à questão suscitada na presente revista: enquanto a 1ª instância reconheceu à recorrente CC a titularidade do direito de retenção para garantia real do seu reconhecido crédito de € 100 000,00 sobre a insolvência, direito aquele incidente sobre a fracção autónoma onde, desde 06.12.07, habita e que constitui o objecto mediato do contrato-promessa de compra e venda por si celebrado, na qualidade de promitente-compradora, com o insolvente AA, na qualidade de promitente-vendedor, a Relação de Coimbra quedou-se pela negativa, essencialmente, por não se mostrar provada, à data da declaração de insolvência, quer a perda objectiva de interesse na celebração do contrato prometido, por parte da CC, quer por, então, inexistir incumprimento definitivo (ou realidade fáctica a este equiparável nos seus efeitos) do mesmo contrato por parte do promitente-vendedor. Sendo, pois, remetidos para a disciplina legal constante do art. 808º do CC.

       Aqui, sem quebra do respeito devido, temos de acompanhar a 1ª instância.

       Com efeito, decorre do preceituado, especialmente (cfr. art. 7º, nº3, do CC), no art. 102º do CIRE precisamente o contrário do que vem sendo considerado: o regime, aí, consagrado e nos arts. seguintes só tem aplicação quanto aos negócios que possam ser considerados ainda em curso, à data da declaração de insolvência, o que postula que, então, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, a subsistência objectiva do interesse na celebração do prometido contrato e a inexistência de incumprimento definitivo do contrato-promessa por qualquer das partes.

       Acresce, por outro lado, que a recusa de cumprimento do contrato pelo administrador da insolvência legitima, como já se deixou referido, que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa (entendida esta “cum grano salis”, no sentido de “dar causa a” ou “motivar”), o incumprimento do contrato em causa.

       Não se podendo suscitar dúvidas, no caso dos autos, quanto à ocorrência da sobredita recusa: se esta inexistisse, não teria qualquer cabimento ou justificação o reconhecimento do crédito de € 100 000,00, garantido por direito de retenção incidente sobre a fracção habitada pela recorrente, nos termos em que o fez o administrador da insolvência (Cfr. fls.2 a 4). Ou seja, este recusou, nos mencionados termos concludentes (art. 217º, nº1, do CC), o cumprimento do contrato que está na origem do reconhecimento daquele crédito.

       Havendo, pois, incumprimento, imputável ao insolvente AA, do mencionado contrato-promessa de compra e venda, assiste à recorrente – nos termos expostos e nos demais invocados no sobredito AUJ, para onde, no omitido, se remete –, por decorrência do preceituado no art. 442º, nº2, do CC, em conjugação com o estatuído no art. 609º, nº1, do CPC, o peticionado direito de crédito de € 100 000,00 sobre a insolvência daquele AA, o qual, nos termos do disposto no art. 755º, nº1, al. f), do CC, se encontra garantido por direito de retenção incidente sobre a fracção autónoma “H”, identificada em 1 e 6 de 2 supra.

       Procedendo, pois, da forma exposta, as conclusões formuladas pela recorrente.

                                                     *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em conceder a revista, em consequência do que se revoga o acórdão recorrido, na parte em que não manteve o decidido na 1ª instância, que, aqui e integralmente, se repristina.

       As custas da apelação e da revista serão suportadas pela CBB (Caixa BB), devendo observar-se, quanto ao demais, o decorrente do preceituado nos arts. 303º e 304º ,ambos do CIRE.

                                                    /

                                       Lx      13 /    11 / 2014    /

  

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida   

_______________________
[1]  Relator: Fernandes do Vale (30/14)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2]  Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “CC Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., pags. 772.
[3]  In “Do direito de retenção (arcaico, mas eficaz…”) – CDP, nº11, pags. 10.
[4]  In “Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor”, “CDP, nº46”, pags. 32 e segs.