Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A3621
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO
MODIFICAÇÃO
Nº do Documento: SJ200502150036211
Data do Acordão: 02/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 288/04
Data: 04/27/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : No divórcio por mútuo consentimento, a questão do destino da casa de morada da família não se apresenta nem pode ser tratada apenas como um dos efeitos do divórcio mas, antes e diferentemente, como condição da admissibilidade dessa modalidade de divórcio, enquanto elemento do complexo de vontades e acordos que nele se interligam e interdependem.
Por isso, na medida em que poderia conduzir à frustração do equilíbrio e interesses que foram postos em equação e ponderação pelos cônjuges e pelo próprio juiz (ou Conservador), o acordo obrigatoriamente celebrado no processo sobre a atribuição da casa de morada da família não é modificável por iniciativa e imposição de uma das Partes apenas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "A" requereu, em 13/9/2002, contra o seu ex-cônjuge B, por apenso ao processo de divórcio por mútuo consentimento, a atribuição da casa de morada da família, mediante arrendamento, alegando, em síntese, que as Partes acordaram, nos autos de divórcio, que a casa de morada ficasse atribuída à ora Requerente na pendência da acção, pretendendo agora que lhe seja atribuído tal direito, por ser ela e a filha menor quem mais necessita de habitação.

O Requerido opôs-se a pretexto de ser o dono do imóvel e não ser admissível a alteração do acordo homologado no processo de divórcio, por iniciativa apenas de uma das Partes, não assistindo à Requerente o direito de exigir que o Tribunal celebre, à sua revelia, um contrato de arrendamento.

A final, decidiu-se atribuir a casa de morada da família à Requerente, a título de arrendamento, pela renda mensal de € 170.

A Relação, porém, julgou improcedente a acção, considerando não ser aplicável no caso de divórcio por mútuo consentimento o regime previsto no art. 1793º C. Civil.

Daí o presente recurso, agora da Requerente, que, para pedir a revogação e anulação do acórdão, conclui:

- O art. 1793º C. Civil encontra-se na subsecção que regula os efeitos do divórcio, quer esse tenha sido litigioso ou por mútuo consentimento;

- O mesmo art. não excepciona a sua aplicação apenas ao divórcio litigioso;

- O acórdão enferma da nulidade prevista no art. 668º-1-d) CPC, pois conheceu de questão não invocada pelo Recorrido - a inaplicabilidade do art. 1793 C. Civ. ao caso em apreço.

O Recorrido ofereceu resposta.

2. - A questão que se coloca é a de saber se a atribuição da casa de morada da família, mediante arrendamento, nos termos previstos no art. 1793 C. Civil, pode ter lugar no caso de o divórcio ter sido decretado por mútuo consentimento, em que apenas se acordou sobre essa atribuição para o período de pendência da acção.

3. - Os factos relevantes são, de entre os que vêm provados, os seguintes:

- Requerente e Requerido casaram um com o outro em 5/9/987;
- Desse casamento nasceu, em 18/1/988, C;

- O casamento foi dissolvido por divórcio decretado em 10/10/97, nos autos de divórcio por mútuo consentimento apensos;

- No processo de divórcio, a Requerente e o Requerido declararam que acordavam na atribuição da casa de morada da família à Requerente mulher, vigorando este acordo na pendência da acção de divórcio;

- O prédio onde estava instalada a casa e morada de família é bem próprio do Requerido;

- A filha da Requerente e do Requerido vive com a mãe nessa casa, desde a compra da mesma;

- O Requerido pretende que lhe seja entregue a referida casa, tendo intentado, com o n.º 291/002, uma acção ordinária em que peticiona a entrega do imóvel.

(Os restantes factos provados dizem respeito à situação profissional e condições económicas dos ex-cônjuges e a doença da filha que "não colide com as tarefas próprias da sua idade").

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Nulidade do acórdão.

A Recorrente argui a nulidade do acórdão por ter conhecido de questão que não podia conhecer - art. 668 n. 1 d) CPC -, por não ter sido invocada pelo Requerido a inaplicabilidade do art. 1793º C. Civil.

Como se sabe, a nulidade cominada no citado preceito é a sanção para a violação do disposto no art. 660 n. 2. 2ª parte do CPC.
O excesso de pronúncia existe quando o julgador, fora do âmbito das questões de que a lei lhe impõe o conhecimento oficioso, se ocupe (conheça) de questões não suscitadas pelas partes, violando o princípio da correspondência entre a acção e a decisão.

A expressão "questão" designa e caracteriza-se pelo complexo dos elementos que integram o pedido e causa de pedir, seja da acção seja de excepção.

Ora, a questão central que no processo foi colocada ao julgador é a da atribuição da casa mediante arrendamento, nos termos previstos no art. 1793º, questão que as Partes colocam sob perspectivas diferentes em sede de acção e de excepção:
- a Requerente parte do princípio de que não existe qualquer acordo;
- o requerido arranca da ideia de que, apesar de ter deixado de existir acordo eficaz, a satisfação da pretensão da Requerente implica a violação do acordo feito e fraude à lei do regime do divórcio por mútuo consentimento.

O que o acórdão recorrido considerou e decidiu foi que, porque havia apenas acordo para a pendência da acção de divórcio, restringidos os respectivos efeitos a esse período e não tendo os cônjuges providenciado, em devido tempo, quanto ao destino da casa no período posterior, não pode agora a Requerente obter a sua atribuição ao abrigo daquele preceito, que para tal não está vocacionado, dada aquela exigência de acordo como requisito de decretamento do divórcio.

Deste modo, o acórdão não exorbitou o âmbito da questão, que é única, nomeadamente quanto à causa de pedir e excepção, sendo certo ainda que, no domínio da interpretação e aplicação das normas jurídicas, o julgador não está limitado pelas alegações das partes, como expressamente se reconhece no art. 664º CPC, acolhendo o princípio da legalidade do conteúdo da decisão (jura novit curia).
Improcede, pois, a arguição da nulidade.

4. 2. - Mérito da causa.

4. 2. 1. - Dispõe o art. 1793 n. 1 C. Civil que "Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal".
Trata-se de norma cuja finalidade é regular um dos efeitos do divórcio - a atribuição da casa de morada da família - e como tal vem inserida na sistemática do Código.

Não se questiona a aceitabilidade da intervenção do tribunal na celebração do arrendamento forçado da casa de morada da família quando os ex-cônjuges se mostrem em divergência sobre o seu destino e o divórcio tenha sido decretado como litigioso. Está-se no campo da litigiosidade, estendida aos feitos da dissolução do casamento, em que nenhum acordo é exigível.

A questão coloca-se quando, como sucede no divórcio por mútuo consentimento, o destino da casa de morada da família não se apresenta ou, pelo menos, não se apresenta só como um efeito do divórcio mas, antes, como uma condição de admissibilidade do mesmo.

Com efeito, o divórcio por mútuo consentimento é requerido por ambos os cônjuges, de comum acordo, e o respectivo decretamento depende do preenchimento de certas condições ou requisitos, sendo um desses requisitos necessários ou obrigatórios o acordo sobre o destino da casa de morada (arts. 1773 e 1775 n. 2 C. Civil).

Este acordo, tal como os demais indicados no n.º 2 do art. 1775 (alimentos e poder paternal) está sujeito ao controlo judicial quanto ao respectivo conteúdo e validade, sendo que a sua falta ou a insuficiente protecção dos interesses de algum dos cônjuges ou dos filhos determina a recusa de homologação e o indeferimento do pedido de divórcio - arts 1776 n. 2 e 1778 C. Civil.

De notar que não é permitido ao juiz alterar os acordos obrigatórios, nomeadamente o referente ao destino da casa de morada, mas, tão só, os provisórios (n. 3 do art. 1775), entre os quais se encontra a utilização da casa no período de pendência do processo. Se não existirem os acordos obrigatórios ou não forem satisfatórios não há homologação, nem deferimento do pedido de divórcio.

É que entre o acordo sobre o divórcio e esses acordos obrigatórios existe "uma união ou coligação genética que se traduz numa relação de dependência bilateral" de tal forma que os acordos caducam se houver ruptura do acordo sobre o divórcio e este não é decretado se não existirem os acordos ou se estes não acautelarem suficientemente os interesses em jogo (P. COELHO e G. OLIVEIRA, "Curso de Direito de Família", I, 3ª ed., 660).

Assim, conclui-se, tem de existir acordo sobre o destino da casa de morada, já que sem ele não é possível o divórcio por mútuo consentimento.

4. 2. 2. - Mas, se assim é, então o acordo que foi apresentado na acção de divórcio, e homologado sem qualquer proposta de alteração, não pode deixar de ser considerado como o acordo sobre o destino da casa de morada da família que, no relacionamento do complexo integrado pelos acordos (alimentos e poder paternal, nomeadamente) homologados na sentença que decretou o divórcio, acautelava suficientemente os interesses da Requerente e da filha.

Esse acordo foi cumprido e os seus efeitos produziram-se e encontram-se esgotados.
Na sua execução e no âmbito dos seus efeitos, o Requerido goza do direito de reaver a propriedade plena da casa desde a data do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio.

Claro, pois, que (já) não vigora um acordo porque o que foi celebrado se extinguiu pelo cumprimento, designadamente por banda do Requerido, e não, ao menos em nosso entender, porque não tenha sido celebrado, apresentado e homologado como válido e eficaz.

Porém, não pode esquecer-se que do cumprimento e dos efeitos desse mesmo acordo resulta também que, após o divórcio, a casa de morada da família fica afecta ao ex-cônjuge marido, seu dono desde sempre, titularidade que a Requerente não ignorava.

Por isso, a Requerente refere (arts. 12º e 13º da resposta e J. das conclusões deste recurso) que quando acordou sobre a atribuição da casa «pensou que logo após o inventário ficaria com dinheiro ou com imóveis que lhe permitiriam mudar de casa se fosse necessário sair daquela onde sempre viveu com a filha», "partilha que ainda não ocorreu por culpa do Requerido".

4. 2. 3. - Não se está, pois, perante uma falta de acordo pressuposto de accionamento das normas que regem os efeitos do divórcio, mas, ao que se alega, perante um erro de previsão relativamente ao conteúdo do acordo que foi condição de admissibilidade do divórcio.

O que se pretende reconduz-se, efectivamente, a modificar ou alterar o acordado, atribuindo agora à Requerente a casa de morada que, segundo o acordo homologado, foi atribuída ao Requerido posteriormente ao divórcio.

Ora, confrontados com o complexo de interesses que determinam as referidas interdependência ou "união genética" entre o acordo de divórcio e os demais acordos e a destes entre si, crê-se que, na falta de previsão legal sobre a matéria - diversamente do que sucede com os demais acordos obrigatórios -, a sua modificabilidade, por iniciativa e imposição de uma das partes, poderia conduzir à frustração, pura e simples, do equilíbrio de interesses que foram postos em equação e ponderação pelos cônjuges e pelo próprio juiz (ou Conservador), quer no consentimento dos acordos de divórcio e complementares quer na respectiva homologação.
Por isso, pressupondo a intervenção judicial constitutiva ora peticionada a falta de acordo, falta que obsta sempre ao divórcio por mútuo consentimento, se subscreve a afirmação de que "a norma do n.º 1 do art. 1793º parece claramente vocacionada para casos de divórcio litigioso" (NUNO DE SALTER CID, "A Protecção da Casa de Morada da Família", 310 e ss.); cfr., ainda, M. TEIXEIRA DE SOUSA, "O Regime Jurídico do Divórcio", 26 e ss. e 119 e ss.).

4. 2. 4. - A Requerente-recorrente apresenta-se a peticionar a atribuição da casa mediante arrendamento como se não tivesse havido qualquer acordo e como se, por via dele e dos seus efeitos, a casa não estivesse atribuída ao Recorrido, esgotado o prazo convencionado de atribuição à Recorrente.

Porém, insiste-se, o acordo existiu e, do mesmo passo que o direito de utilização da casa cessou para a Recorrente, extinguindo-se, esse direito nasceu e radicou-se na titularidade do Recorrido, em execução do mesmo e em simultâneo, tudo se passando como se a partir da data do divórcio tivesse sido atribuído ao Requerido o direito de utilização da casa em questão.

Ao que posteriormente veio alegar, a Recorrente terá incorrido em erro sobre pressupostos em que fez assentar o acordo que celebrou e que foi homologado, situação que, podendo, eventualmente, ter repercussão jurídica em sede de vícios de vontade (anulabilidade), não tem, seguramente, a virtualidade de apagar, tornando-o inexistente, o mesmo acordo, permitindo às Partes agir como se estivessem perante um nada jurídico.

Em sintonia com o entendimento expendido, escreveu-se no acórdão desde Tribunal de 2/10/03 (CJ XI-III-76) que «o acordo sobre o destino da casa de morada da família homologado por sentença transitada, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento, tal como a decisão do próprio divórcio, está acobertado pela força do caso julgado, nos termos do art. 673º CPC, pelo que só poderá ser atacado por via do recurso de revisão da própria sentença homologatória, nos termos do art. 771º do mesmo Código, depois de obter sentença transitada em julgado a declarar nulo ou anulado o acordo, por falta ou vício de vontade das partes, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 301º do CPC» (no mesmo sentido o ac. de 19/3/02, proc. 555/02-2ª Secção, in Sumários, 2002, pg. 111).

4. 2. 5. - Resta referir, agora respondendo directamente às conclusões da Recorrente, que a inserção do preceito do art. 1793º na subsecção do Código Civil que regula os efeitos do divórcio em geral, sem excepcionar a sua aplicação apenas ao divórcio litigioso, argumento de natureza puramente formal, nada prova, desde logo porque aí se inserem também os arts. 1790º, 1791º e 1792º que apenas colhem aplicação no divórcio litigioso.

Mais relevante será, como dito supra, saber se no divórcio por mútuo consentimento a questão do destino da casa de morada deve ser tratada apenas como um dos efeitos do divórcio por mútuo consentimento ou, antes e diferentemente, como condição da sua admissibilidade enquanto elemento do complexo de vontades e acordos que nele se interligam e interdependem, nos termos que se deixaram enunciados.
Assim, as conclusões da Recorrente improcedem.

5. - Decisão.
Em conformidade com o que ficou exposto, decide-se:
- Negar a revista;
- Manter o decidido no acórdão impugnado; e,
- Condenar a Recorrente nas custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2005.
Alves Velho,
Moreira Camilo,
Lopes Pinto.