Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1000/14.9TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
SOCIEDADE COMERCIAL
VENCIMENTO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO E BAIXA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 6ª edição, pág. 455;
-Armando Manuel Triunfante, Luís de Lemos Triunfante, Desconsideração da Personalidade Jurídica – Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial, Julgar, nº 9, 2009, pág. 134;
-Catarina Serra, Desdramatizando o Afastamento da Personalidade Jurídica (e da Autonomia Patrimonial), Julgar nº 9, 2009, pág. 129 e ss.;
-João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª edição, p. 20 e ss., 132, 133, 146 286 e 290;
-Maria de Fátima Ribeiro, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a desconsideração da personalidade jurídica, pág. 131;
-Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, pág. 860 e 863;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, 2015, p. 312 e ss., 358 e 378 a 380 ; Volume IV, pág. 700, 731 e ss.;
-Pedro Cordeiro, A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, pág. 104;
-Pedro Fuzeta da Ponte, obra citada, pág. 18 e
-Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 3ª edição, pág. 26;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 634;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, págs. 626, 627 e 628.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 610.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-02-2006, PROCESSO N.º 07B4533, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-10-2008, PROCESSO N.º 07B4533, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-11-2010, PROCESSO N.º 1148/03.5TVLSB.S1;
- DE 10-01-2012, PROCESSO N.º 434/1999.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Em ação de impugnação pauliana o réu pode, apesar de o não ter feito na contestação, invocar só em alegações de recurso a impossibilidade de impugnação de ato que traduza cumprimento de obrigação vencida, porque se trata de questão de direito, de conhecimento oficioso.

II – Ainda que o devedor, cumprindo uma, de entre a pluralidade de obrigações a que está adstrito, favoreça um dos seus credores, não podem os demais reagir impugnando o ato, se o mesmo representar a satisfação de obrigação cujo cumprimento já devia ter ocorrido.

III – Sendo constituída uma sociedade por quotas e assumindo um sócio a obrigação de entrada em espécie através da transmissão de imóveis, o cumprimento desta obrigação torna-se logo obrigatório, o que equivale ao seu vencimento.

IV – Neste caso, a impugnabilidade do ato de constituição da sociedade transmite-se para a alienação de imóveis que é o cumprimento da obrigação de entrada assumida, a qual passa, também ela, a ser impugnável através da ação pauliana.

V – A disputa judicial que o exercício da impugnação pauliana normalmente implica terá lugar, neste caso, com a participação, no lado ativo, do credor e, no lado passivo, do devedor e do adquirente.

VI – Aquele que, constituindo uma sociedade por quotas na qual fica a deter praticamente a totalidade do capital social, assume uma obrigação de entrada, logo vencida e cumprida, de transmissão de bens imóveis seus, procurando beneficiar da personalidade jurídica da sociedade para ocultar o seu próprio património, abusa do instituto da personalidade coletiva para contornar a lei e prejudicar fraudulentamente terceiros seus credores.

VII – Este circunstancialismo pode tornar necessária a desconsideração da personalidade coletiva da sociedade assim constituída, do que resultará a inexistência daquela obrigação de entrada e a impugnabilidade da transmissão dos imóveis nos termos do art. 610º do CC.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




I - Banco AA, S.A., propôs contra BB e CC - Sociedade Imobiliária, S.A., a presente ação declarativa, pedindo que seja declarado ineficaz em relação a si, autor, o negócio jurídico de alienação, por meio de entrada em espécie do 1º réu a favor da 2ª ré, registada pela Ap. nº 1668 de 30.11.2010, de duas frações autónomas que identificou, com a consequente restituição das mesmas nos termos do art. 616º, nº 1 do CC.

O 1º réu foi citado editalmente e não contestou, nem o M. P. em sua representação.

Contestou a ré sociedade, pedindo a absolvição do pedido.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação procedente, declarou ineficaz em relação ao autor o negócio jurídico de alienação das frações autónomas em causa, com a restituição das mesmas nos termos do art. 616º, nº 1 do CC.

Apelou a ré, pedindo a anulação ou revogação da sentença e a sua substituição por acórdão onde se julguem como não provados os factos correspondentes aos pontos 27, 91, 92 e 107 a 114, com a sua absolvição do pedido.

Foi proferido na Relação do Porto acórdão que, julgando procedente a apelação, absolveu a ré do pedido.

Interpôs o autor recurso de revista, onde pedindo a revogação do acórdão, formula as conclusões que passamos a transcrever:


A - A decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto viola claramente a lei substantiva aplicável situação em apreço, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 674.° do CPC, verificando-se igualmente causa de nulidade da decisão, porquanto, o Tribunal apreciou questão que, no entendimento do Banco Recorrente, não poderia ter apreciado nesta sede.

B - Encontram-se preenchidos todos os requisitos legais para procedência da acção de impugnação pauliana, não se aplicando à situação em discussão a previsão vertida no n.° 2 do artigo 615.° do CPC, sendo certo que em sede de contestação nunca tal foi alegado, motivo pelo qual não poderia o Tribunal superior apreciar uma questão até então não suscitada.

C - A alienação que ora se impugna não constitui cumprimento de obrigação vencida, tratando-se antes de simulação, existindo clara divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos declarantes, ou seja, dos réus.

D - Não pode o Tribunal ignorar que a Sociedade Ré foi constituída na precisa data em que os dois bens imóveis então objecto da presente acção foram transferidos para a sua esfera, não caindo por isso a obrigação de entrada do sócio no escopo da previsão legal do n.° 2 do artigo 615.° do CPC.

Motivo pelo qual o acto é impugnável.

E sendo impugnável, encontram-se provados todos os requisitos gerais para aplicação do instituto de acção de impugnação pauliana.

O Banco credor provou a existência e anterioridade do seu crédito, a impossibilidade de ressarcimento do mesmo em virtude do acto impugnado e a má fé, quer do devedor, quer do terceiro, pese embora não estejamos perante um acto oneroso.

Ficou igualmente provado o devedor não teria património apto a garantir a satisfação do crédito, atenta a alienação então impugnada.

A alienação dos dois imóveis a favor da Sociedade ré não assume a natureza de cumprimento de obrigação vencida para efeitos da previsão vertida no artigo 615.°, n.° 2 do CPC, tendo existido uma clara e errónea aplicação do direito aos factos então provados no âmbito da presente ação.


Contra-alegando, a ré sustenta a improcedência da revista.


Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação, as de saber se:

- o acórdão recorrido padece da nulidade que o recorrente lhe atribui;

- deve manter-se a decisão de improcedência da ação.


II - Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1.°. O 1o réu foi declarado insolvente por sentença de 5/8/2013, proferida no âmbito do processo n.° 2134/13.2TBMAI, a correr termos no Tribunal Judicial da …,

2.°. Os imóveis objeto mediato do negócio impugnado nestes autos não foram apreendidos para a massa insolvente, por se tratar de bens não registados em nome do insolvente 1o réu.

3.°. O autor é uma instituição bancária, cuja atividade consiste na realização de operações bancárias e financeiras com a latitude consentida por lei aos bancos de investimento.

4.°, No âmbito da sua atividade, o autor estabeleceu uma relação comercial com a sociedade "DD - Supermercados, S.A.." da qual o 1o réu era o legal representante.

5°. Nesse contexto, entre o autor e a referida sociedade foram celebradas várias operações bancárias de financiamento, nos termos das quais o primeiro injetou capital na segunda.

6.°. Em concreto foram celebrados com a aludida sociedade os seguintes contratos:

a.    mútuo de €250.000,00, celebrado em 14/1/2008;

b.    garantia bancária n.° 50…5, prestada a favor de "EE - Combustíveis e Lubrificantes, S.A.", de 23/7/2009;

c.    mútuo de €350.000,00, celebrado em 19/4/2010;

d.    contrato de derivado de taxa de juro, celebrado em 22/04/2010.

7.°. O 1o réu era administrador da sociedade "DD, S.A.", e representou-a em todas as operações em sindicância.

8.°. Tendo igualmente avalizado as livranças-caução que garantiam o bom pagamento de cada um daqueles negócios.

9.°. A 26 de Outubro de 2010 a sociedade DD deliberou apresentar-se à insolvência, em Assembleia-Geral da mesma data.

10.°. A apresentação à insolvência concretizou-se a 18 de Novembro de 2010.

11.°. A sociedade foi representada no ato pelo 1o réu, que subscreve a procuração forense ao II. Mandatário da ali apresentante.

12.°. Facto que é, igualmente, alegado no art. 2o da referida P.I., ao referir-se que aquele era administrador único.

13.°. A sociedade DD alegou estar "absolutamente impossibilitada de cumprir as suas obrigações já vencidas e em mora, e, até, de continuar a exercer a sua atividade comercial".

14°. A 15/11/2010, segundo reconhece a sociedade apresentante, os créditos vencidos e não pagos ascendiam já a €1.010.813,85.

15.°. Sendo que um dos principais credores da aludida pessoa coletiva era o Banco AA, aqui autor.

16.°. É a própria apresentante quem confessa dever ao aqui autor, já em Novembro de 2010, € 439.291,25 (quatrocentos e trinta e nove mil duzentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos).

17.°. A sociedade representada pelo 1o réu disse ainda que os contratos de arrendamento dos imóveis em que laborava já haviam sido resolvidos em 29/7/2010 e 21/9/2010, "aguardando-se a todo o momento a execução de mandados de despejo".

18°. A DD, desde pelo menos Julho de 2010, estava em situação de insolvência - no mínimo - iminente.

19.°. O processo de insolvência foi autuado sob n. ° 540/10.3TBBBR, correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial do … e a sentença foi de decretada no dia 07-12- 2010.

20.°. O 1o réu teve participação direta na deliberação de apresentação da sociedade à insolvência, na qualidade de legal representante da sócia maioritária "FF, SGPS, S.A.".

21.°. O 1o réu foi o único administrador identificado na sentença de insolvência.

22°. O autor reclamou em sede insolvencial os créditos decorrentes das operações atrás anunciadas, num total reclamado de € 501.461,60 (quinhentos e um mil, quatrocentos e sessenta e um euros e sessenta cêntimos).

23.°. O crédito do autor foi reconhecido por sentença de verificação e graduação de créditos transitada em julgado.

24°. O passivo da sociedade representada pelo 1o réu, segundo a própria, ascendia a € 2.192.054,58.

25.°. O 1° réu deu o seu aval ou afiançou várias operações de financiamento, enquanto legal representante da sociedade.

26°. Com a cessação generalizada do cumprimento das obrigações a que a sociedade DD, S.A. estava adstrita, aliada à sua declaração de insolvência, o 1o réu sabia, ou não devia ignorar, que acabaria por ser demandado a título pessoal para execução das garantias que pessoalmente havia prestado.

27°. Razão pela qual dissipou parte do seu património imobiliário.

28°. Não logrando o pagamento voluntário, o autor viu-se compelido a requerer a tutela judicial através da instauração de uma ação executiva contra o 1o réu.

29.°. Antes de instaurar a ação, o autor ainda procurou interpelar novamente o 1o réu, por carta registada de 8/11/2011.

30°. A qual foi devolvida com a menção "não reclamado".

31.°. Isto não obstante a carta ter sido remetida para a morada que o 1° réu fornecera ao autor para quaisquer contactos escritos.

32°. Neste contexto, considerou o autor definitivamente goradas as possibilidade duma resolução extrajudicial do litígio, e procedeu ao preenchimento das livranças-caução.

33º. O autor é dono e legítimo possuidor da livrança número 50...3T1, no valor de €131.634,68, emitida no dia 14/1/2008 e vencida no dia 16/2/2012.

34°. A aludida livrança foi, respetivamente, subscrita e avalizada pela identificada sociedade e pelo ora réu BB, para titulação das responsabilidades decorrentes do contrato de empréstimo celebrado a 14/1/2008, incluindo todas as despesas judiciais e extrajudiciais que o autor houvesse de fazer para se ressarcir do seu crédito.

35.°. Ao capital em dívida inscrito na livrança em apreço, acrescem os valores dos juros moratórios vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.

36.°. A 18/2/2014 os juros moratórios vencidos ascendiam ao montante de €10.574,54, calculados à taxa de juro legal de 4%.

37.°. O crédito do autor relativo à livrança junta sob doc. n.° 13, incluindo o imposto de selo liquidado por meio de guia no valor de € 658,17, cifra-se em €142.867,29.

38.°. O autor é ainda portador da livrança número 50…0, no valor de 36.993,77, emitida no dia 23/7/2009 e vencida no dia 19/4/2012.

39.°. A aludida livrança foi, respetivamente, subscrita e avalizada pela identificada sociedade e pelo ora réu BB, para titulação das responsabilidades decorrentes da constituição de garantia bancária a 23/7/2009, incluindo todas as despesas judiciais e extrajudiciais que o autor houvesse de fazer para se ressarcir do seu crédito.

40.°. O beneficiário da garantia bancária, a sociedade "EE - Combustíveis e Lubrificantes, S.A.", acionou o pagamento da mesma, a qual foi honrada a 30/11/2010.

41.°. Ao capital em dívida inscrito na livrança em apreço acrescem os valores dos juros moratórios vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.

42.°. A 18/2/2014 os juros moratórios vencidos ascendiam ao montante de € 2.176,25, calculados à taxa de juro legal de 4%.

43.°. O crédito do autor relativo à livrança junta sob doc. n.° 14, incluindo o imposto de selo liquidado por meio de guia no valor de €184,97, cifra-se em €39.354,99.

44.º. O autor é dono e legítimo possuidor da livrança número 50…3, no valor de € 357.531,15, emitida no dia 19/4/2010 e vencida no dia 16/2/2012.

45.°. A aludida livrança foi, respetivamente, subscrita e avalizada pela identificada sociedade e pelo ora réu BB, para titulação das responsabilidades decorrentes do mútuo de € 350.000,00, celebrado em 19/4/2010, incluindo todas as despesas judiciais e extrajudiciais que o autor houvesse de fazer para se ressarcir do seu crédito.

46.°. Ao capital em dívida inscrito na livrança em apreço acrescem os valores dos juros moratórios vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.

47.°. A 18/2/2014 os juros moratórios vencidos ascendiam ao montante de € 28.720,04, calculados à taxa de juro legal de 4%,

48.°. O crédito do autor relativo à livrança junta sob doc. n.°17, incluindo o imposto de selo liquidado por meio de guia no valor de €1.787,66, cifra-se em €388.038,85.

49.°. O autor é, também, dono e legítimo portador da livrança sob on.° 50…1, no valor de € 4.948,68, emitida em 22-04-2010 e vencida em 19-04-2012.

50.°. A livrança em causa foi emitida em caução do contrato de derivado de taxa de juro, vulgarmente designado contrato swap de taxa de juro, celebrado em 22.04.2010, junto sob doc. n.° 7.

51.°. O título foi, respetivamente, subscrito e avalizado peia identificada sociedade e pelo 1o réu, para titulação das responsabilidades decorrentes do referido contrato de derivado de taxa de juro, incluindo todas as despesas judiciais e extrajudiciais que o Banco houvesse de fazer para se ressarcir do seu crédito.

52.°. O contrato de derivado sobre taxa de juro foi cancelado por parte da sociedade subscritora.

53.°. À data da extinção do contrato, existia uma dívida ao ora autor, no valor total de € 4.948,68 (quatro mil novecentos e quarenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos), valor peio qual foi preenchido o título de crédito.

54°. Interpelados os obrigados cambiários para liquidação da livrança em apreço, incluindo o réu BB, a mesma continuou, e continua, por pagar.

55.°. Ao capital inscrito na livrança em questão, acrescem os valores dos juros moratórios calculados sobre o capital em dívida, os quais ascendiam, a 18/2/2014, ao montante de € 363,90, calculados à taxa de juro legal de 4%.

56.°. Sobre aquele montante em dívida acresce ainda o valor de € 24,74, referente ao pagamento do Imposto de Selo.

57°. O que perfaz o total em dívida de € 5.337,32 (cinco mil trezentos e trinta e sete euros e trinta e dois cêntimos).

58°. As livranças que titulam o crédito do autor foram todas subscritas, avalizadas e entregues em branco ao autor, acompanhadas das respetivas autorizações de preenchimento.

59°. No que tange aos contratos juntos sob docs. n.° s 4 e 6, os pactos de preenchimento encontram-se insertos no próprio texto contratual, concretamente na "cláusula 7a" do doc. n.°4 e na página 4 do doc. n.° 6.

60.°. Os contratos e pactos foram subscritos pelo réu BB na dúplice qualidade de legal representante da subscritora e de avalista,

61.°. O mesmo sucedendo quanto aos títulos de crédito.

62.°. Relativamente à garantia bancária junta sob doc. n.° 5 e ao contrato de swap de taxa de juro junto sob n.° 7, os pactos de preenchimento foram exarados em documento autónomo, na data de assinatura do contrato que visavam caucionar, tendo sido igualmente subscritos pelo réu BB na dupla qualidade invocada.

63.°. O autor completou o preenchimento dos títulos de crédito em sindicância no que se refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento e valor correspondente aos créditos de que era titular por conta das operações em causa,

64.°. Respeitando os limites das autorizações que lhe foram conferidas.

65.°. O crédito do autor sobre o 1o réu ascende, atualmente, aos € 575.598,45 (quinhentos e setenta e cinco mil quinhentos e noventa e oito euros e quarenta e cinco cêntimos).

66.°. Com vista à recuperação do seu crédito, o autor reclamou os seus créditos na ação de insolvência da sociedade subscritora das livranças em apreço, da qual o 1o réu intervinha como sócio e administrador.

67.°. Até à data, o autor não logrou ser totalmente ressarcido na sede insolvencial.

68.°. O autor instaurou também uma ação executiva fundada nos títulos de crédito acima elencados, na qual é único executado o primeiro réu.

69.°. A ação executiva foi instaurada a 7 de Maio de 2012 e corre termos no Juízo de Execução da … sob o n.°2861/12.1TBMAI.

70.°. Das diligências de pesquisa de bens ou créditos do referido réu que fossem penhoráveis, o único ativo encontrado foi o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da …, freguesia de …, sob o n. ° 9…7, inscrito na matriz sob o artigo 4964.

71.°. Sobre o referido imóvel, encontrava-se previamente registada uma penhora em benefício do Banco GG, para garantia da quantia exequenda de €472.026,04.

72.°. Não são conhecidos ao réu BB outros bens, mesmo após as buscas realizadas pelo Agente de Execução no âmbito daquele processo executivo movido pelo autor.

73. °. O próprio réu foi citado para vir indicar bens à penhora naquele processo e nada disse.

74°. Considerando que, só a dívida do autor ao Banco GG ascendia ao milhão de euros, resultava claro que o património do réu era manifestamente insuficiente para satisfazer tais créditos.

75.°. Perante tal factualidade, o ora autor requereu a insolvência do réu BB, que foi autuada sob n.° 2134/13.2TBMAI e corre termos no 4o Juízo Cível do Tribunal Judicial da ….

76.°. A sentença foi proferida em 5/8/2013.

77.°, O réu BB nunca teve qualquer intervenção no processo de insolvência, nem contactou com o Sr. Administrador da Insolvência.

78.°. As diligências encetadas judicialmente com vista à localização do paradeiro do réu BB resultaram frustradas, pelo que o Tribunal determinou a realização da audiência de julgamento sem audição prévia do mesmo.

79.°. No exercido das suas funções, o Administrador da Insolvência procedeu às pesquisas de património em nome do réu BB, ali insolvente, bem como de variações patrimoniais negativas ocorridas nos últimos anos.

80.°. O Sr. Administrador da Insolvência conseguiu apurar a ocorrência da alienação de dois imóveis, operada a 17/11/2010, factualidade que fez constar do seu relatório.

81°. Com efeito, até 17/11/2010, o réu BB era dono e legítimo proprietário dos seguintes bens imóveis:

a. fração autónoma designada pelas letras "CD", do prédio urbano escrita na 2a Conservatória do Registo Predial da …. sob o nº 8…, da freguesia de …, correspondendo ao 10° esquerdo frente, com entrada pelo número … da Rua das …, destinada à habitação;

b. fração autónoma designada peias letras "CU", do prédio urbano descrita na 1a Conservatória do Registo Predial do … sob o n.° 4…, da freguesia de …, correspondendo ao 5º direito bloco D, com entrada peio número … da Rua de …, destinada à habitação.

82°. Nessa data, procedeu o réu BB à alienação de ambos os imóveis a favor da sociedade por quotas "CC, Sociedade Imobiliária, Lda." o que fez a título de entradas em espécie.

83.°. A sociedade por quotas "CC, Sociedade Imobiliária, Lda." foi constituída nessa mesma data, 17 de Novembro de 2010.

84°. À data da constituição o capital social cifrava-se em €311.210,00, no qual o réu BB detinha uma participação de €310.010,00, correspondente a 99,61% do capital social.

85.°. A entrada do sócio BB, ora réu, foi realizada em espécie, pela tradição a favor da sociedade dos referidos imóveis.

86.°. O primeiro pelo valor de €79.003,00 e o segundo pelo valor de €231.000,00.

87.°. Os valores dos imóveis foram obtidos por intermédio de uma avaliação realizada no âmbito do disposto no art. 28° do Código das Sociedades Comerciais, tendo sido as entradas em espécie validadas por Revisor Oficial de Contas.

88.°. A constituição da sociedade e subsequente alienação patrimonial ocorreram no dia anterior à apresentação à insolvência da sociedade DD, pelo que, à data da alienação, o 1o réu não podia ignorar que seria demandado pelo autor para obter o pagamento dos seus créditos, enquanto devedor solidário.

89.°. Tanto mais que a sociedade da qual era legal representante não tinha património apto a fazer face sequer a uma pequena parte das dívidas em seu nome.

90°. O património cifrava-se, à data da inventariação, em pouco mais do que €50.000,00.

91°. O 1° réu constituiu a sociedade 2a ré com o fito de dissipar o seu património, alienando a favor da 2a ré os bens registados em seu nome, com vista a impedir a satisfação do crédito do autor, ainda que parcialmente, pelos bens em causa.

92°. Com a agravante de, muito embora se trate de entes juridicamente distintos, o 1° e a 2a réus consubstanciarem materialmente uma só entidade, o réu BB, detentor, à data da constituição, da quase totalidade do capital social.

93.°. O aludido BB procurou beneficiar da personalidade jurídica da sociedade 2a ré para ocultar o seu próprio património.

94°. A relação do réu BB com a sociedade DD não se limitava à de administrador único.

95.°. O 1° réu era igualmente sócio maioritário e gerente da sociedade "FF, Lda.", a qual, por sua vez, era sócia maioritária da aludida DD.

96.°. O réu BB era o administrador único da sociedade que contratou as operações bancárias supra descritas.

97.°. Nessa qualidade e na de sócio por intermédio da "FF" tomou a decisão de apresentar a sociedade à insolvência, alegando, para tanto, que "A requerente [DD, S.A.) tem dívidas a vários fornecedores, à banca e ao Estado, no valor global de €2.192.054,58. A requerente deve à Banca 1.086.725,65€, e ao Estado (por impostos e contribuições para a Segurança Social) €45465,72.",

98°. Mais asseverando que "a requerente alega não ter património, pelo que requer a declaração da insolvência nos termos do disposto no art.° 39.°, n.° 1, do CIRE".

99.°. Assim, o incumprimento generalizado das obrigações da sociedade DD, Lda., e subsequente apresentação à insolvência são contemporâneos da alienação dos dois imóveis por parte do réu BB a favor da sociedade "CC, Lda.".

100.°. Alienação que ocorre na véspera da apresentação à insolvência daquela sociedade.

101.°. 0 1° réu foi sócio fundador e quase totalitário da 2a.

102.°. Facto que procurou ocultar com a sua transformação em sociedade anónima.

103.°. 0 1° réu sabia, ou não podia desconhecer, que a sua situação patrimonial foi determinante para o autor na tomada de decisão de celebraras operações bancárias em causa.

104.°. O 1° réu apenas tem como património um imóvel de valor patrimonial de € 81.630,00, determinado em 2012, imóvel esse apreendido para a massa insolvente do 1o réu.

105.°. O passivo do 1o réu ascende, no mínimo, a €1.298.817,07.

106.°. Donde, não há qualquer possibilidade do autor obter a satisfação do seu crédito à custa do património do 1o réu.

107.°. Pelo menos à data em que o ato impugnado se concretizou, o 1o réu exercia domínio total sobre a sociedade 2a ré.

108.°. Ou seja, mantinha-se, na prática, dono dos imóveis alienados, mas com a proteção conferida pela personalidade jurídica autónoma da sociedade, bastante para, perante os credores, tudo suceder como se os bens não fossem seus.

109°. O ato impugnado, na prática, não passou da mera transferência patrimonial da esfera (formal) do 1o réu para a esfera (formal) da 2a ré, mantendo-se o 1° réu o único dono de facto dos imóveis, através da sociedade 2a ré, sem qualquer contrapartida por parte da 2a ré.

110.°. O 1° réu, com a entrada no capital social da 2a ré, ficou detentor da quase totalidade do mesmo.

111.°. Além do 1o réu eram sócios da 2a ré à data da constituição, HH e II, ambos filhos do 1° réu.

112°. Além disso, aquando da constituição da sociedade 2a ré, esta sabia da existência dos créditos do autor, que determinaram o preenchimento das livranças em causa.

113°. Não podia ignorar precisamente porque era quase integralmente propriedade do 1° réu, o próprio devedor, que interveio em todas as operações bancárias na qualidade de legal representante da sociedade financiada bem como na de avalista.

114°. Os réus tinham perfeita consciência do prejuízo que o ato impugnado causava ao autor, sendo precisamente esse prejuízo o fim visado.

115°. Quando o réu BB procedeu à alienação dos imóveis a favor da 2a ré, já a sociedade da qual era legal representante e consigo codevedora havia deliberado apresentar-se à insolvência.


E descrevem-se como factos não provados os seguintes:

- o autor começou por interpelar verbalmente o 1º réu para cumprimento das garantias prestadas, o que fez desde a data do início do incumprimento por parte da sociedade DD, S. A., sendo que as tentativas de contacto telefónico por parte de funcionários do autor foram múltiplas e resultaram sempre frustradas;

- o autor até à data não logrou ser ressarcido, pelo menos parcialmente, na sede insolvencial.


   III – Com base nestes factos, a sentença teve como verificados os pressupostos legais da impugnação pauliana estabelecidos nos arts. 610º e 612º do CC[1], a saber:

- a existência de um crédito;

- a sua anterioridade relativamente à celebração do ato impugnado, ou, sendo posterior, ter o ato sido realizado dolosamente com vista à não satisfação do crédito;

- do ato resultar a impossibilidade ou o agravamento da satisfação do crédito;

 - ter sido o ato, se oneroso, praticado com má fé, entendida como consciência do prejuízo causado ao credor.

        

Já o acórdão recorrido inverteu este juízo, desenvolvendo argumentação, cujas linhas essenciais se podem resumir assim:

 - Os atos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo diretamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição;

- Impõe-se considerar se a transmissão em causa foi, ou não, realizada em cumprimento de uma obrigação vencida;

- O Banco recorrido impugnou o ato de realização de uma entrada em espécie para o capital social duma sociedade comercial, consubstanciado na transmissão de dois imóveis para a apelante;

- O cumprimento da obrigação de entrada corresponde à realização do capital junto da sociedade comercial, em função de obrigação (anterior ou concomitantemente) assumida para com os demais sócios no referido contrato e, portanto, vencida;

- Assim sendo, o ato que a lei sujeita a impugnação será aquele de onde nasce a obrigação, ou seja, aquele em que é constituída a obrigação, e não o seu mero cumprimento (realização da entrada) determinado, precisamente, pela obrigação assumida;

- Sem a impugnação do contrato de sociedade, com a demanda conjunta das pessoas intervenientes, jamais o credor impugnante poderá obter o efeito útil do que pretende;

- Não sendo acionados todos os sócios da sociedade adquirente, não pode ser apreciada a má fé desta, porque no ato de transmissão dos bens ainda não tinha personalidade jurídica.


Da nulidade do acórdão:

Começa o recorrente – conclusão A. – por defender que o acórdão impugnado padece de nulidade por ter indevidamente apreciado e decidido uma questão que antes, nomeadamente na contestação, não fora suscitada.

Embora não indique o preceito legal que carateriza este vício, cremos estar a referir-se à previsão da segunda parte da al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC, que veda ao tribunal a apreciação de questão de que não possa tomar conhecimento[2].

Refere-se o recorrente ao fundamento usado pela Relação para julgar improcedente a pretensão por ele formulada na p. i., segundo o qual está legalmente vedada a impugnação de atos que sejam o cumprimento de obrigações vencidas, por imperativo do nº 2 do art. 615º.

Nesta disposição legal preceitua-se, com interesse para o caso, o seguinte: “O cumprimento de obrigação vencida não está sujeito a impugnação; …”.

É facto que na contestação não fora usado pela ré este meio de defesa, invocado apenas em sede de alegações na apelação.

Mas este argumento, usado pela 1ª vez nas alegações da apelação[3], não cai no âmbito da proibição constante do art. 573º, nº 1 do CPC, visto estar-se perante uma das exceções previstas no seu nº 2, designadamente a que se reporta às questões de conhecimento oficioso; trata-se, na verdade, de uma pura questão de direito, sempre ao alcance do poder cognitivo do juiz, como decorre do nº 3 do art. 5º do mesmo diploma.

Assim, não se verifica a invocada nulidade.


Do mérito da decisão:

A impugnação pauliana, instituto muito antigo na História do Direito[4] que visa a salvaguarda do património do devedor para proteção dos interesses do credor contra os riscos da sua dissipação, apresenta na sua configuração atual uma natureza diferente da que possuía no Código de Seabra.

Neste Código, verificados os requisitos exigidos por lei, o ato era rescindido, revertendo os valores que o devedor alienara do seu património em benefício da totalidade dos seus credores, e não apenas daquele que intentara a ação; era o regime ditado pelos seus arts. 1033º e 1044º.

Agora as coisas são bem diversas.

O art. 610º já não fala em rescisão, ou qualquer outro modo de supressão do ato lesivo dos interesses do credor, mas, simplesmente, na sua impugnação.

E o alcance desta impugnação, quando procedente, está definido no art. 616º, nº 1, onde se diz que o credor impugnante tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse – o que aponta para uma solução, logo confirmada no nº 4, segundo a qual só ele, e não também os outros credores do devedor, aproveitam com essa restituição – e que esses bens podem ser por ele executados no património do adquirente obrigado à restituição, a evidenciar que as eventuais sobras dessa execução ficarão em poder deste adquirente e que só então delas poderão aproveitar-se os seus próprios credores.[5]

E é de assinalar que a referida restituição dos bens ao devedor alienante é, as mais das vezes, puramente ficta, só excecionalmente havendo lugar a uma efetiva restituição.[6]

Importa realçar, ainda, um aspeto específico do regime da impugnação pauliana, qual seja o da repartição do ónus da prova para demonstração dos respetivos pressupostos.

A este propósito rege o art. 611º, que, desviando-se das regras gerais contidas no art. 342º, nº 1[7], põe a cargo do devedor ou do terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao do montante das dívidas, estando subjacente a este desvio a consciência da extrema dificuldade ou até mesmo impossibilidade de o impugnante conseguir demonstrar que o devedor não tem bens.[8]

Não fora esta específica regra e seria ao devedor que caberia a demonstração dos elementos constitutivos do seu direito, entre os quais a impossibilidade (ou agravamento) da satisfação do seu crédito, sendo certo, todavia, que apenas o próprio devedor “pode em rigor, demonstrar a sua capacidade de gerar riqueza ou de conseguir crédito, por forma a honrar a dívida questionada.[9]

Tendo a 1ª instância, por aplicação destas regras, concluído pela procedência da ação, encontrou a Relação dois motivos essenciais para inverter o sentido desse julgamento:

- ter a transmissão dos imóveis sido feita para cumprimento de obrigação vencida;

- correspondendo a transmissão feita ao cumprimento da obrigação de entrada para realização do capital de uma sociedade comercial, o ato a impugnar seria aquele de onde nasce a obrigação de entrada, ou seja, o contrato de sociedade, com a demanda conjunta das pessoas aí intervenientes.

Que dizer?


O primeiro destes argumentos arranca do nº 2 do art. 615º, já atrás transcrito.

“É comum afirmar-se que apenas são impugnáveis os actos que exprimam uma vontade arbitrária do devedor, isto é, que sejam uma manifestação do auto-governo da sua esfera jurídica, em contraponto aos actos que se limitam ao cumprimento de um dever jurídico anteriormente assumido.”[10]

Por isso, não é impugnável o cumprimento de obrigação vencida, pois que em relação a ela ocorreu já o momento em que devia ser cumprida, sob pena de entrada em mora. Ainda que o devedor, cumprindo uma, de entre a pluralidade de obrigações a que está adstrito, favoreça um dos seus credores, não podem os demais reagir impugnando o ato, se o mesmo representar a satisfação de obrigação cujo cumprimento já devia ter ocorrido.

A transmissão de imóveis impugnada na ação ocorreu no ato constitutivo da sociedade aqui recorrida – cfr. factos provados nºs 81 a 83 e 85-86.

A obrigação de entrada em espécie que o 1º réu então satisfez, através da transmissão dos imóveis, foi por ele constituída nesse mesmo momento e ato, tornando-se logo obrigatório o seu cumprimento, o que equivale ao seu vencimento - arts. 983º, nº 1 do CC e 26º, 197º, 199º, 202º e 203º do CSC.

Não obstante o preceituado no art. 615º, nº 2 e o facto de se tratar de obrigação vencida que o 1º réu cumpriu, deve considerar-se que o seu cumprimento é impugnável.

Com efeito, a constituição, por parte do devedor, 1º réu, da obrigação de entrada aquando da celebração do contrato de sociedade da 2ª ré, é ato que pode ser objeto de impugnação pauliana nos termos do art. 610º, pois que, envolvendo um aumento do passivo, determina uma diminuição do seu acervo patrimonial, suscetível de pôr em causa a garantia dos seus credores.[11]

E, sendo assim, temos como correto o entendimento de C. Massimo Bianca[12], segundo o qual a impugnabilidade do ato de constituição de obrigação que, sendo exigível, tenha sido cumprida pelo devedor, transmite-se ao respetivo ato de cumprimento que passa, também ele, a ser impugnável através da ação pauliana, apesar do que dispõe o dito art. 615º, nº 2.

Não se aceita, pois, como boa a tese adotada no acórdão recorrido que considerou não ser impugnável a transmissão dos imóveis por representar o cumprimento de obrigação já vencida, nem o segundo dos argumentos usados, baseado no entendimento exposto por João Cura Mariano, segundo o qual ao credor preterido restará, nestes casos, a impugnação do ato de que resultou a constituição da obrigação cumprida, no caso, a constituição da sociedade, com a necessária intervenção de todos os sócios.[13]

Por isso, a disputa judicial que o exercício da impugnação pauliana normalmente implica terá lugar, como aqui acontece, com a participação, no lado ativo, do credor e, no lado passivo, do devedor e do adquirente, como é pressuposto no art. 611º[14].


Mas ainda que assim se não entendesse[15], uma outra linha de raciocínio e de abordagem do problema é suscetível de nos levar a concluir pela impugnabilidade do ato de transmissão dos imóveis em causa.

Ora vejamos.

O instituto entre nós denominado de levantamento ou de desconsideração da personalidade coletiva ou de “levantamento do véu” surge como limite a essa personalidade coletiva e permite, em certas situações, “sem normas específicas e por exigência do sistema (…) passar do modo coletivo ao modo singular, ignorando a presença formal de uma pessoa coletiva.[16]

Sem consagração legal expressa, a desconsideração da personalidade coletiva surge como “reação do ordenamento jurídico a situações que ferem a consciência jurídica dominante por traduzirem «o exercício inadmissível de posições jurídicas». São situações onde se configura um mau uso de institutos próprios do direito das sociedades, nomeadamente aproveitando ilicitamente a personalidade colectiva (…) para cometer fraudes ou abuso do direito. Nessas hipóteses a dogmática jurídica lança mão da desconsideração e inibe os efeitos normais da autonomia da personalidade, porque esta foi empregue (contrariando o fim com que foi inicialmente prevista e atribuída).”[17]

Trata-se de instituto cuja aplicação tem, para a maioria da doutrina, caráter subsidiário e excecional, apenas se justificando o seu uso como forma de evitar resultado injusto e iníquo, a que o direito positivo não permitiria dar uma solução justa.[18]

Posição menos restritiva é assumida por outros.

Menezes Cordeiro[19], depois de reconhecer que inúmeros dos casos reconduzidos ao levantamento poderiam ser equacionados à luz de outros institutos - designadamente na responsabilidade civil e no abuso do direito -, conclui ser má solução a depuração da desconsideração da personalidade coletiva a que tal levaria, pois que “apenas a ideia global do levantamento permite: alcançar novas e mais apuradas hipóteses de responsabilidade civil; obter perspetivas aprofundadas de interpretação normativa; conquistar vias mais finas de concretização da boa fé.” E afirma a sua autonomia dogmática, enquanto instituto de enquadramento, traduzindo “uma delimitação negativa da personalidade coletiva por exigência do sistema ou, se se quiser: ele exprime situações nas quais, mercê de vetores sistemáticos concretamente mais ponderosos, as normas que firmam a personalidade coletiva são substituídas por outras normas”.

Também Catarina Serra[20] considera que “haveria/haverá afastamento sempre que, por força de circunstâncias imprevisíveis, anómalas ou excecionais fosse/seja necessário «subverter» as caraterísticas essenciais, naturais ou típicas de determinada entidade.”; e, ainda, que o levantamento da personalidade é um instituto autónomo de enquadramento, o que significa que “apesar de, aparentemente, se concretizar em soluções que poderiam derivar da aplicação isolada de outros institutos, (…) permite tomar consciência das novas hipóteses que cabem em cada um destes institutos e exige o apuramento deles, de tal modo que, isolada ou articuladamente, possam funcionar como critérios orientadores da resposta aos seus problemas específicos.


Segundo Menezes Cordeiro[21] são de agrupar em três, as constelações de casos em que se justifica o recurso a este instituto:

- Quando haja confusão de esferas jurídicas, de sorte a que, devido ao incumprimento de certas regras societárias ou por virtude de circunstâncias concretas, não seja possível estabelecer uma linha delimitadora entre o património da sociedade e o património do sócio.

- Quando haja subcapitalização, ou seja, a sociedade tenha sido constituída com capital que se revele insuficiente, quer em face do seu objeto social, quer perante a sua concreta atuação;

- Finalmente, quando haja atentado a terceiros ou abuso do instituto da personalidade coletiva, verificando-se este último sempre que “com recurso a uma pessoa coletiva, se contorne uma lei, se violem deveres contratuais ou se prejudiquem fraudulentamente terceiros.[22], ou ainda quando a pessoa coletiva seja usada para “frustrar o escopo de uma norma ou de um negócio”, devendo prevalecer os escopos e regras dirigidas a pessoas singulares.

“É uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da atuação do visado, através de uma pessoa coletiva. (…) o comportamento que justifica a penetração vai caraterizar-se por atentar contra a confiança legítima (venire contra factum proprium, supressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade (tu quoque ou exercício em desiquilibrio).”[23]


Também a nossa jurisprudência tem versado e reconhecido o abuso da personalidade coletiva, como o demonstram, entre outros e a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 10.01.2012[24], de 30.11.2010[25] de 16.10.2008[26] de 21.02.2006[27].

 

Feita esta breve abordagem ao tema do levantamento da personalidade coletiva, detenhamo-nos, com acuidade, naquilo que se passou no caso em análise:

- O 1º réu era administrador único da DD, S. A., entidade que, por ele representada, contratou com o autor, entre 2008 e 2010, várias operações de financiamento, tendo o réu avalizado as livranças-caução que garantiam o bom pagamento de cada um daqueles negócios – factos nºs 4 a 8.

- Após deliberação tomada em assembleia geral de 26.10.2010, em que o 1º réu participou, a dita sociedade apresentou-se à insolvência em 18 de novembro de 2010 e esta foi decretada em 07-12- 2010, sendo um dos seus principais credores o aqui autor, que reclamou e viu reconhecido um crédito no valor de € 501.461,60. – factos nºs 9 a 23.

- Mas em 17/11/2010 - dia anterior à data em que a DD se apresentou à insolvência - foi constituída a sociedade por quotas "CC, Sociedade Imobiliária, Lda.", a favor da qual o 1º réu, detentor de uma participação de €310.010,00, correspondente a 99,61% do capital social, fez uma entrada em espécie por via da transmissão a seu favor de dois bens imóveis de que era dono, um pelo valor de €79.003,00 e outro pelo valor de €231.000,00, não podendo então ignorar que seria demandado pelo autor para obter o pagamento dos seus créditos, enquanto devedor solidário, tanto mais que a sociedade da qual era legal representante não tinha património apto a fazer face sequer a uma pequena parte das dívidas que tinha – factos nºs 80º a 90 e 100º.

- O réu BB, sócio fundador e quase totalitário da 2a. ré, procurou beneficiar da sua personalidade jurídica para ocultar o seu próprio património, circunstância que visou ocultar com a sua (ulterior) transformação em sociedade anónima - factos nºs 93º, 101º e 102º.


Estes factos, já definitivamente adquiridos para os autos, avaliados segundo as regras da normalidade, ditadas pela experiência comum, apontam, por si só, no sentido de que o 1º réu, administrador único da DD, S. A., ciente de que viria a ser decretada a insolvência desta e de que, na insuficiência do seu património, viria, dadas as garantias prestadas, a ser demandado pelo autor com vista a obter a satisfação dos créditos de que era titular sobre aquela sociedade, tratou de “desviar” do alcance dos seus credores aqueles bens imóveis.

Para o efeito, no dia anterior àquele em que a sociedade por ele representada se apresentou à insolvência, criou uma sociedade por quotas, com participação sua de valor correspondente a 99,61% do capital social, contraindo uma obrigação de entrada em espécie cujo cumprimento se tornou logo obrigatório e que ele satisfez no ato com a entrega de dois bens imóveis.

Desta feita, abrigando-se sob o véu da personalidade jurídica coletiva da 2ª ré, na qual detém praticamente a totalidade do capital social, assumiu e cumpriu obrigação de entrada, “transferindo” para a sua titularidade a propriedade das frações autónomas em discussão nos autos.

Em face disto e sabendo-se, definitivamente, que procurou beneficiar da personalidade jurídica da ré para ocultar o seu próprio património, tudo aponta no sentido de que a ela recorreu, em abuso do instituto da personalidade coletiva, para contornar a lei e prejudicar fraudulentamente terceiros, nomeadamente o autor, seu credor, criando a aparência de uma obrigação de entrada, desde logo vencida, assim se acolhendo ao regime da inimpugnabilidade ínsito no art. 615º, nº 2 e pondo a salvo, agora formalmente no acervo patrimonial da 2ª ré cujo capital era por si detido na quase totalidade, os ditos bens imóveis.

Isto aponta já no sentido da eventual necessidade de desconsideração da personalidade coletiva da 2ª ré, por ele usada abusivamente para atingir fim ilegítimo, do que resultará a inexistência daquela obrigação de entrada – e, portanto, do cumprimento de obrigação que já estivesse vencida - e a impugnabilidade da transmissão dos imóveis nos termos do art. 610º.

E a necessidade de recurso a esse instituto poderá sair reforçada e até mesmo tornar-se inquestionável se se mantiverem como essencialmente provados os factos descritos sob os nºs 27, 91, 92 e 107, sendo que a respetiva decisão se mostra impugnada no recurso de apelação interposto pela 2ª ré, recurso que, nesta parte, não foi apreciado pela Relação por o seu conhecimento ter ficado prejudicado pela solução que deu ao litígio.


Assim se conclui no sentido de que o acórdão recorrido não é de manter.


Porém, recordando o sentido da decisão proferida na 1ª instância, assinala-se que aí a ação procedeu porque se imputou má fé, tanto ao réu BB, como à sociedade ré – respetivamente, alienante e adquirente dos imóveis.

Este juízo fundou-se essencialmente nos já referidos factos julgados como provados e aí descritos sob os nºs 27, 91, 92 e 107 a 114, a respeito dos quais não há ainda decisão definitiva, pois que a impugnação contra ela deduzida, como acabámos de referir, não chegou a ser conhecida pelo Tribunal da Relação.

Esta matéria, sendo relevante para os efeitos já acima assinalados, igualmente releva para a verificação do requisito da má-fé, indispensável para a procedência da impugnação pauliana, uma vez que se tratará de um ato oneroso – a efetivação da obrigação de entrada assumida pelo réu BB tem como contrapartida a aquisição de uma participação social na sociedade ré.

O conhecimento dessa impugnação está, à partida, vedado a este STJ, pelo que os autos deverão baixar à Relação do Porto para esse efeito e subsequente conhecimento de mérito.


IV - Pelo exposto, dando-se procedência parcial ao recurso de revista, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que os autos baixem à Relação para que aí se conheça, se possível com intervenção dos mesmos Exmos. Desembargadores, da questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto levantada pela apelante.

Custas a fixar a final, conforme o vencimento que vier a verificar-se.

Lisboa, 3.05.2018


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

__________

[1] Diploma a que pertencem as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.

[2] A Relação absteve-se de se pronunciar sobre esta nulidade, como lhe incumbia face ao disposto nos arts. 666º, nº 1 e 617º, nº 1; porém, entendemos desnecessário fazer baixar o processo para esse fim, como permitem os arts, 666º, nº 1 e 617º, nº 5 – todos do CPC.

[3] Aliás, sem que tivesse suscitado aí qualquer reação do ora recorrente, que se dispensou de contra-alegar.

[4] De que se encontram sinais já no direito romano, como informam Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, 2015, págs. 312 e seguintes, e João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª edição, págs. 20 e segs..

[5]  Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 6ª edição, pág. 455.

[6]  Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 634.

[7] Assim, cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, pág. 863, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, págs. 627-628.

[8] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 3ª edição, pág. 26

[9] Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 358

[10] Cfr. João Cura Mariano, obra citada, págs. 132-133.

[11] Cfr. João Cura Mariano, obra citada, pág. 146; Mário Júlio Almeida Costa, obra citada, pág. 860; Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, obra citada, pág. 18 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, pág. 626  

[12] Em Diritto civile, vol. 5º, pág. 452, conforme citação feita por João Cura Mariano, na mencionada obra, pág. 133, nota de rodapé 262.

[13] Obra citada, págs. 133 e 148-149 e nota de rodapé 306.

[14] Cfr., neste sentido, Menezes Cordeiro, obra citada, págs. 378-380 e João Cura Mariano, obra citada, págs. 286-290.

[15] e se considerasse que o cumprimento da obrigação de entrada na sociedade ré, com tradição dos imóveis, não é impugnável por cair, sem mais, na previsão normativa do nº 2 do art. 615º

[16] Menezes Cordeiro, obra citada, Volume IV, pág. 700

[17] Armando Manuel Triunfante, Luís de Lemos Triunfante, “Desconsideração da Personalidade Jurídica – Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial”, Julgar, nº 9, 2009, pág. 134

[18] Neste sentido, autores e obra acabados de citar, pág. 140; Pedro Cordeiro, “A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais”, pág. 104 e Maria de Fátima Ribeiro, “A tutela dos credores da sociedade por quotas e a desconsideração da personalidade jurídica”, pág. 131

[19] obra citada (volume IV), pág. 731 e segs..

[20] Em “Desdramatizando o Afastamento da Personalidade Jurídica (e da Autonomia Patrimonial), Julgar nº 9, 2009, pág. 129 e segs. .

[21] Obra citada (vol. IV), pág.709 e segs.

[22] SeriK, Rechtsform um Realität, 203, citado por Menezes Cordeiro, dita obra (Vol. IV), pág. 705

[23] Menezes Cordeiro, ibidem (Vol. IV), pág. 716

[24] Processo nº 434/1999.L1.S1, Relator Conselheiro Salazar Casanova, acessível em www.dgsi.pt 

[25] Processo nº 1148/03.5TVLSB.S1, Relator Conselheiro Fonseca Ramos, citado no referido acórdão de 10.01.2012

[26]   Processo nº 07B4533, Relator Conselheiro Pires da Rosa, acessível em www.dgsi.pt

[27] Processo nº 3704/05, Relator Conselheiro Paulo Sá, citado no referido acórdão de 10.01.2012