Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1776/06.7TBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO
PRÉMIO DE SEGURO
PAGAMENTO
VALIDADE
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
TRÂNSITO EM JULGADO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REMETIDO O PROCESSO À RELAÇÃO
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 631.º, N.º 1, 633.º, N.º 1, 636.º, 665.º, 679.º.
D.L. N.º 142/2000, DE 15-07, NA REDACÇÃO VIGENTE EM AGOSTO/SETEMBRO DE 2003: - ARTIGOS 1.º, N.º1, 4.º, N.º2, 6.º, N.º1, SEGUNDA PARTE.
D.L. N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGOS 8.º, N.º 1, E 21.º, N.º 1, 29.º, N.º6.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 20 DE JANEIRO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 471/2002.G1.S1.
-DE 11 DE MARÇO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 697/1999.S1.
-DE 3 DE ABRIL DE 2014, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 856/07.6TVPRT.P1.S1.
Sumário :
I - É pressuposto da obrigação de indemnizar por parte do FGA, dentro do âmbito do seguro automóvel obrigatório (arts. 8.º, n.º 1, e 21.º, n.º 1, do DL n.º 522/85, de 31-12), a inexistência de seguro válido ou eficaz

II - Não obsta à condenação do FGA e do condutor do veículo a circunstância de os mesmos terem sido absolvidos do pedido em 1.ª instância, em virtude de condenação da Companhia de Seguros, e de tal decisão não ter sido impugnada: por um lado, tendo a 1.ª instância condenado a Companhia de Seguros, não tinham os autores interesse em recorrer, seja a título principal, seja subordinadamente; por outro a questão da existência ou inexistência de seguro é uma só, tendo a sua resolução repercussões na determinação de quem deve ser condenado.

III - Não obstante o regime vigente à data da celebração do contrato de seguro – DL n.º 142/2000, de 15-07 – admitir que as partes convencionassem que o pagamento do prémio ou fracção inicial pudesse ter lugar até ao 30.º dia após a data de início da cobertura do seguro, o facto é que o ónus da prova da existência dessa convenção e da duração do prazo acordado incumbia a quem se quisesse prevalecer do regime de excepção, previsto na segunda parte do n.º 1 do art. 6.º do DL n.º 142/2000.

IV - Assim, a falta de pagamento do prémio inicial impede que se possa considerar a existência de um seguro válido e eficaz para a cobertura do acidente em causa nos presentes autos.

V - Assentes os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte dos réus FGA e J, sempre terão os autos de baixar ao Tribunal da Relação para que sejam apreciadas as questões (designadamente de verificação dos demais pressupostos de responsabilização destes dois réus e de prescrição do crédito invocado pelo Hospital S), de que não conheceu por considerar prejudicadas, uma vez que o actual NCPC (2013), ao contrário do que sucedia com o CPC anterior, não permite que o STJ delas conheça (cf. arts. 679.º e 665.º do NCPC e anteriores arts. 726.º e 715.º do CPC).

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA instaurou uma acção contra BB, CC - Companhia de Seguros Ramos Reais, S.A. e Fundo de Garantia Automóvel, pretendendo a condenação no pagamento da quantia de € 15.232,72 “a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos” por ter sido atropelado por um veículo automóvel conduzido pelo primeiro réu, a pagar pela Companhia de Seguros ou, se vier a entender-se que o seguro invocado pelo primeiro réu se encontrava anulado, pelo Fundo de Garantia Automóvel e pelo condutor.

Pediu ainda que fossem condenados a pagar ao Hospital DD “as despesas que estejam por liquidar em consequência do acidente”, em “quantia nunca inferior a € 1.384,04”

Segundo alegou, o atropelamento foi causado por culpa exclusiva do primeiro réu e ocorreu pelas 21h do dia 27de Agosto de 2003.

O Fundo de Garantia Automóvel contestou. Por entre o mais, invocou a prescrição, por ter sido citado mais de três anos depois do acidente, sustentou não ter legitimidade e impugnou matéria de facto.

O Hospital DD, EPE veio requerer a sua intervenção principal, para obter a condenação dos réus no pagamento de € 512,00, com juros de mora, desde a citação até integral pagamento, pela assistência prestada ao autor entre 27 de Setembro e 20 de Novembro de 2003.A intervenção veio a ser admitida a fls. 156.

EE – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA (anteriormente denominada CC - Companhia de Seguros Ramos Reais, S.A.) também contestou. Opôs a prescrição do direito à indemnização e a “inexistência de seguro válido e eficaz”, por não ter sido pago o prémio inicial correspondente à proposta de contrato de seguro que lhe foi apresentada, e impugnou os factos alegados pelo autor.

O autor replicou e o Fundo de Garantia Automóvel contestou o pedido apresentado pelo Hospital DD, invocando a prescrição do crédito alegado, a sua ilegitimidade e, de novo, impugnando os factos.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a prescrição oposta pela ré EE – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA e pelo Fundo de Garantia Automóvel e foi relegado para a sentença o conhecimento da prescrição oposta pelo Fundo de Garantia Automóvel ao Hospital DD, EPE.

A acção foi julgada parcialmente procedente pela sentença de fls. 513, nestes termos:

“(…) julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condeno a Ré EE  – Companhia de Seguros Ramos Reais, SA (…)

– a satisfazer ao Autor AA a quantia global de 7.216,08 EUR, acrescida de juros de mora…

– a pagar ainda ao interveniente Hospital DD, EPE a quantia de 512 EUR, acrescida também de juros de mora (…); absolvendo-a do demais peticionado, indo absolvidos os demandados FGA e BB.»

Interessa agora reter que, para assim decidir, a sentença considerou existir seguro válido e eficaz à data do sinistro: “no caso presente, não obstante a falta de pagamento do prémio inicial, como confessada, a validade do certificado provisório do seguro não ficou (face ao convencionado tacitamente) também dependente (ou condicionada) do pagamento do prémio ou fracção, só produzindo os seus efeitos com esse pagamento. Por isso que válido e eficaz o certificado provisório (…)”.

Mas a sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 575, proferido em recurso interposto pela ré Companhia de Seguros: “Face à matéria fixada na alínea Y dos factos provados elencados na sentença impugnada – falta de pagamento pelo tomador do seguro do prémio inicial referente ao período de início do contrato celebrado com a Ré/Apelante – ter-se-á, pois, de concluir pela falta de eficácia do contrato celebrado entre ambos, à data do sinistro, não se tendo transferido para a Ré seguradora a cobertura dos riscos nele previstos, por falta de pagamento do prémio inicial, pelo que não poderá a mesma responder civilmente pelos danos sofridos pelo Autor/Apelado e pelas despesas hospitalares.

Essa responsabilidade – solidária – deveria recair sobre os Réus Fundo de Garantia Automóvel e BB.

Todavia, tendo os mesmos sido absolvidos em primeira instância dos pedidos contra eles formulados pelo Autor, que não tendo reagido recursivamente contra tal decisão” [em nota: “designadamente através do meio processual facultado pelo nº 1 do artigo 636º do Código de Processo Civil actual”] permitiu a formação de caso julgado quanto a esse segmento decisório, não pode o mesmo ser objecto de alteração por esta Relação”.

2. O autor recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

«I. O Acórdão recorrido ao absolver a Recorrida Seguradora CC -  COMPANHIA DE SEGUROS RAMOS REAIS SA " e ao não condenar,' solidariamente, os Recorridos " FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL", e de "BB ", no pagamento da indemnização fixada ao Autor pelo Tribunal de 1ª Instância, de € 7.216/08, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento violou o disposto nos 631.°, nº1, 633.°, nº1 e 636.° todos do actual Cpc, ( correspondentes aos arts. nº 1 do artigo 680º nº 1 do artigo 682°, e 684°-Aº do Código de Processo Civil anterior).

II. Violou, assim, o Acórdão posto em crise, o princípio do litisconsórcio necessário passivo, cfr. o art. 29°/ nº 6/ do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12.

III. Violou, ainda, os princípios da economia e celeridade processuais, princípios estes estruturantes do Código de Processo Civil Português, os quais levam até à consagração da proibição da prática de actos inúteis, cfr. art. 130° do CPC, (anterior 137.°).

IV. Errou também ao decidir que, pelo facto do Autor não ter reagido recursivamente contra o segmento da decisão de primeira instância que absolveu os Recorridos, "FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL", e de "BB ", nomeadamente, através do recurso ao art. 636.°, nº 1 do c.P.c. se formou caso julgado.

V. Tal situação. contudo, não se verificou – neste sentido vide Ac. do STJ de 3-04-2014, da 3ª Secção, Juiz Desembargador Relator Fernando Bento, publicado no site www.dgsi.pt . AcSTJde11-03-2010.Rel. M. Prazeres Beleza, Acórdão do TRP de 20-12-2111, Juiz Desembargadora Relatora Maria José Simões, Acórdão do TRP de 22-09-2011, Juiz Desembargador Relator Amaral Ferreira, Acórdão do TRP 18/6/2008, Juiz Desembargador Relator Teles de Menezes e Melo, todos disponíveis no mesmo site.

VI. Porquanto, desde logo, porque estão demonstrados nos presentes autos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar e assim, aliás, decidiram as instâncias, sem que tal verificação tenha sido questionada por qualquer das partes em de recurso.

VII. Depois, porque, tendo a primeira instância condenado a Recorrida Companhia de Seguros, o autor, desde logo, não tinha interesse em recorrer da absolvição dos demais réus, seja a título principal, seja subordinadamente (arts. 631.º, nº1, 633.0º, nº1 do actual CPC e nº 1 do artigo 680º e nº 1 do artigo 6820 do Código de Processo Civil anterior); sendo que a indemnização seria fixada de igual forma.

VIII. Mas também porque a situação não é sequer enquadrável no artigo 636.°, nº 1 do actual CPC, (art. 684°-A do Código de Processo Civil anterior), não tendo o Autor sequer legitimidade para recorrer da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, ao abrigo da referida disposição legal.

IX. A questão da existência ou inexistência de seguro que abranja o acidente dos autos, cuja resolução tem evidentemente repercussões na determinação de quem deve ser condenado nesta acção, é na verdade uma só; se este Supremo Tribunal concluir no sentido da não abrangência, problema que esteve em discussão na Relação e voltou a ser colocada na revista/ falha o pressuposto em que assentaram as absolvições decididas em 1ª Instância, que se não podem, obviamente, manter.

X. O disposto no art. 635.°, nº 5 do actual C.P.C, (anterior nº 4 do art. 684.° do CPC anterior) parece implicar que a situação dos Recorridos absolvidos é inalterável, mas tal não se verifica, porquanto, tendo sido interposto recurso da sentença pela Ré Seguradora, a mesma não transitou em julgado relativamente ao FGA e ao responsável civil.

XI. Porquanto, em primeira linha, a responsabilidade recai sobre a seguradora, apenas nascendo a responsabilidade do Fundo (e do responsável) quando não exista p. ex. responsabilidade da seguradora pelo facto de o seguro não ser considerado válido ou eficaz, como assim considerou o Acórdão recorrido- cfr. nº 2 do art° 21° do DL 522/85, de 31/12.

XII. Por isso, apesar de integrarem, processualmente, a posição de réus, a Seguradora e o Fundo têm interesses diametralmente opostos, na medida em gue a responsabilidade deste só surge quando seja de afastar a responsabilidade daquela, vide a propósito o nº 5 do art? 21° do DL 522/85.

XIII. Na verdade, em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, sendo a filosofia subjacente a de que os lesados nunca podem ficar sem a indemnização a que têm direito, a absolvição de uma seguradora, em casos de culpa do condutor, ou de funcionamento da responsabilidade pelo risco, apenas pode ocorrer quando inexista seguro ou este seja inválido ou ineficaz, ou quando se encontre falida, casos em que entra a responder pela indemnização o Fundo.

XIV. Assim, a responsabilidade de um exclui a do outro. O que não pode acontecer é que ambos, nas hipóteses de culpa do lesante, sejam absolvidos.

XV. Também ao decidir pela invalidade/inexistência de contrato de seguro, violou o Douto Acórdão Recorrido o previsto nos artigos 14° e 20° e do D.L. 522/85 de 31.12.

XVI. Resulta claro do art. 4.º nº 1 do DL nº 142/2000 de 15/07atrás citado que o prémio ou fracção inicial é devido na data da celebração do contrato.

XVII. Mas, resulta também claro, in casu, das regras da experiência comum que a Recorrida Seguradora não exigiu do Recorrido BB, antes da data do acidente dos autos, o pagamento do prémio de seguro do contrato de seguro em causa.

XVIII. Porquanto, resulta da proposta de seguro junta pela Ré seguradora à sua Contestação, que esta só deu entrada nos serviços desta em 03-09- 2003 , o que conjugado com a matéria assente que a proposta de seguro em causa nos autos foi efectuada em Felgueiras, no dia 13- 08-2003 e que a data de vencimento anual era no dia 12/8, mas com pagamento mensal,

XIX. à data do acidente dos autos e tendo ambos os Recorridos Seguradora e BB acordado na forma de pagamento por transferência bancária é inevitável e inegável que o prémio inicial nunca poderia estar pago, por nem sequer poder – temporalmente – ter sido exigido pela Recorrida Seguradora e sendo o seu vencimento mensal, nem sequer havia decorrido o prazo de 30 dias para o efeito.

XX. Todos estes factos levam a que o Tribunal de lª Instância tivesse razão ao afirmar como o fez. a existência da convenção tácita entre a Recorrida Seguradora e o Recorrido BB, de início de seguro aguando da entrega da proposta, o qual está provado e demonstrado pela emissão e entrega ao Recorrido José Vasconcelos do certificado provisório, o que está conforme com o disposto no artigo 20°, n.º 1, alínea a) do Decreto Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro,

XXI. Assim, deve considerar-se válido e eficaz o seguro efectuado por um agente de seguradora que, em troca, da proposta, entrega ao proponente / segurado tem certificado provisório de seguro de responsabilidade civil, o qual tem a função de substituir a apólice até a emissão desta, assim comprovando a tácita aceitação do seguro pela seguradora.


    O Fundo de Garantia Automóvel recorreu subordinadamente, concluindo desta forma as suas alegações:

1 - É legalmente admissível o pagamento do prémio em momento posterior ao da celebração do contrato – artigo 4° do D.L. 142/2000 e os n° 2 e 4 da Norma Regulamentar 9/2000.

2 - Da proposta do seguro e do certificado provisório não constava qualquer prazo de pagamento nem sequer o montante do prémio – a1. A da matéria de facto provada.

3 - Nos termos do n° 2 da Norma Regulamentar 9/2000 do ISP é expresso que o pagamento ulterior do prémio não implica que a cobertura dos efeitos do seguro esteja dependente do pagamento desse prémio, podendo ter início de imediato, como aliás consta do próprio certificado-provisório.

4 - Não consta dos autos que a seguradora tenha, por qualquer forma, informado o tomador do seguro quer do prazo de pagamento do prémio quer do próprio montante desse prémio quer ainda das consequências da falta de pagamento do prémio.

5 - O ónus da prova do aviso contendo essas obrigatórias menções recai sobre a seguradora – artigo 7° nº4 do D.L. 142/2000.

6 - A seguradora não fez nestes autos qualquer prova nem da existência e muito menos do envio desse aviso.

7 - Não se encontram por isso reunidos os legais pressupostos de que depende a invocada resolução do contrato de seguro por falta de pagamento do respectivo prémio.

8 - O seguro deve por isso ser considerado válido e eficaz à data do acidente.

9 - Ao assim não se entender violou o aresto em crise o disposto no artigo 4° do D.L. 142/2000 bem como a Norma Regulamentar 9/2000 do ISP.

10 - Pretende por isso o Recorrente FGA que seja revogado o Acórdão ora em crise, nos termos e com os fundamento expostos, devendo o seguro em causa ser considerado válido e eficaz, confirmando-se a sentença proferida em 1ª instância que absolveu o Recorrente da lide, só assim se fazendo a mais sã e costumeira JUSTIÇA»


Os recursos foram admitidos, como revista e com efeito devolutivo (despacho de fls. 694).

Após ter sido distribuído o recurso no Supremo Tribunal de Justiça, foram remetidas a este Supremo Tribunal as contra-alegações apresentadas no recurso subordinado, nas quais AA vem dizer que concorda com o Fundo de Garantia Automóvel, quando sustenta a validade e eficácia do contrato de seguro. Afirma ainda que, a concluir-se no sentido da invalidade, “então estamos perante um flagrante caso de abuso de direito”: “pois, se a proposta do seguro em causa nos autos, só entrou na Recorrida Seguradora no dia 03/09/2003 (não obstante a proposta ter sido subscrita em 13/08/2003), após a ocorrência do acidente dos autos, sendo que teria de ser a Recorrida a dar as instruções necessárias para a cobrança do prémio através de débito bancário, na conta da CCAM, Balcão de …, com o NIB (…)”, “como poderia então o prémio do seguro estar liquidado no dia 27/08/2003, dia do acidente em causa nos autos?”


3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido, mas apenas na parte em que releva para o presente recurso):

«A) No âmbito da sua actividade a ré seguradora recebeu do 1º Réu BB uma proposta de seguro novo do ramo automóvel, respeitante ao veículo …-…-AB, tendo sido emitido o certificado provisório de seguro com o n.º …, datada de 13/08/2003, junta por cópia a fls. 125 e 126 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, da mesma constando, em síntese, o seguinte: “ (…) Início 13/08/2003 (…) vencimento anual (dia/mês) 12/08 (…) pagamento mensal (…) forma de pagamento Por débito em conta (…) Inf. Para débito em conta CCAM TSBT Balcão … NIB …”.

(…)

C) No dia 27 de Agosto de 2003, pelas 21 horas, no Lugar …, do Concelho de Amarante o 1º Réu, BB, conduzia o veículo …-…-AB, no sentido Lixa- Celorico de Basto.

(…)

O) Tendo tido alta no mesmo dia do sinistro, com tratamento conservador, com aparelho gessado, veio a ser seguido na Consulta Externa do Hospital DD…

P) Também aí realizou várias sessões de fisioterapia/recuperação funcional.

(…)

Y) O 1º Réu não procedeu ao pagamento do prémio inicial referente ao período do início do contrato referido em A), posto que não provisionou a conta respectiva, da qual o pagamento era a realizar, por débito directo.

Z) Para tratamento das lesões sofridas pelo Autor em consequência do atropelamento/sinistro em apreço nos autos, o Hospital DD EPE prestou-lhe assistência médica no período compreendido entre 27 de Agosto e 20 de Novembro de 2003.

AA) O custo da referida assistência importou no valor de 512 EUR.»

4. Estão em causa as seguintes questões, relativamente a ambos os recursos:

– Definitividade da absolvição, em 1ª Instância, dos réus Fundo de Garantia Automóvel e BB;

– Validade e eficácia do contrato de seguro invocado nos autos, por referência à data do acidente, 27 de Agosto de 2003;

– Abuso de direito.

5. Antes de as apreciarmos cumpre, no entanto, recordar o seguinte:

– Não se discute em nenhum dos recursos, nem a verificação (objectiva) dos pressupostos da obrigação de indemnizar, nem o montante da indemnização arbitrado, mas apenas quem deve ser condenado no correspondente pagamento;

– Nas alegações de revista, o Fundo de Garantia Automóvel coloca questões, das quais conclui que “não se mostram por isso verificados os legais pressupostos de que depende a válida resolução do contrato de seguro automóvel por falta de pagamento do prémio (…),” que não referiu na contestação que apresentou, e que, portanto, não poderão ser consideradas, tendo em conta o ónus da concentração da defesa na contestação (artigo 489º do Código de Processo Civil, na versão em vigor à data da apresentação da contestação). Concretamente, as que resume nas conclusões 2, 3, 4, 5, 6, no que contêm de matéria de facto;

– O mesmo faz, aliás, o recorrente autor, trazendo questões de facto que não alegou no momento próprio, a petição inicial – assim, cfr. artigos 30º e segs. das alegações;

– No documento 2 junto pela ré Companhia de Seguros com a contestação, a fls.125-126, vê-se um carimbo com uma data de entrada posterior à data do acidente. No entanto, esta diferença de datas não foi oportunamente alegada e valorada no processo, nada constando da prova sobre o assunto. A mesma ré, aliás, no artigo 7º da contestação, alega que “O primeiro réu propôs à ora contestante a celebração do supra referido contrato [o contrato dos autos] em 13 de Agosto de 2003, conforme doc. nº 2”; e o mesmo volta a dizer nas alegações apresentadas no recurso de apelação.

Não levantou portanto a questão de a proposta de contrato poder ter sido recebida pela ré depois do acidente – esta alegação até contraria essa hipótese –, o que poderia constituir um problema adicional no contexto desta acção, tendo em conta o que prescrevia o nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 142/2000, de 15 de Julho, na redacção vigente em Agosto/Setembro de 2003: “A cobertura dos riscos apenas se verifica a partir do momento do pagamento do prémio ou fracção inicial, salvo se, por acordo entre as partes, for estabelecida outra data, que não pode, todavia, ser anterior a da recepção da proposta de seguro pela empresa de seguros.”

É o autor que, na revista, invoca essa data de 3 de Setembro, para retirar efeitos quanto a uma eventual aceitação tácita do contrato de seguro. Mas essa alegação não pode ser considerada, por ser extemporânea, como se viu. Aliás, a estar provado que a proposta apenas teria dado entrada nesse dia, aliás, então o contrato de seguro não poderia produzir efeitos à data do acidente, nos termos do citado artigo 6º, sem necessidade de mais indagações.

Por estas razões, e sem necessidade de mais considerandos, não pode proceder a alegação de abuso de direito, feita por AA nas contra-alegações apresentadas no recurso subordinado.

6. É certo que a sentença, considerando válido e eficaz o contrato de seguro à data do acidente, não obstante a falta de pagamento do prémio inicial, absolveu do pedido os réus Fundo de Garantia Automóvel e BB, cuja condenação o autor pediu a título subsidiário (para a eventualidade de se considerar que o sinistro não estava coberto por seguro válido a eficaz) – em lugar, por exemplo, de considerar prejudicado o pedido contra eles subsidiariamente deduzido.

Na realidade, é pressuposto da obrigação de indemnizar por parte do Fundo de Garantia Automóvel, dentro do âmbito do seguro automóvel obrigatório (nº 1 do artigo 8º e nº 1 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na versão relevante), a inexistência de “seguro válido ou eficaz”; e só nessa eventualidade é que devem ser demandados o Fundo de Garantia Automóvel e o condutor do veículo, se o pedido se mantiver nos limites do seguro obrigatório, como é o caso (nº 6 do artigo 29º do mesmo Decreto-Lei nº 522/85).

O acórdão recorrido decidiu que, não tendo sido impugnada a absolvição de ambos os réus, formou-se caso julgado “quanto a esse segmento decisório, não pode o mesmo ser objecto de alteração por esta Relação”.

No entanto, não pode confirmar-se tal entendimento. Escreveu já, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Março de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 697/1999.S1:

«10. Não merece assim acolhimento a alegação do Fundo de Garantia Automóvel, quando sustenta ter transitado em julgado e ser portanto definitiva a sua absolvição do pedido, decidida em 1ª Instância.

Em primeiro lugar porque, tendo a primeira instância condenado a Companhia de Seguros, os autores não tinham interesse em recorrer da absolvição dos demais réus, seja a título principal, seja subordinadamente (nº 1 do artigo 680º e nº 1 do artigo 682º do Código de Processo Civil); a medida da indemnização (que impugnaram) seria fixada de igual forma.

Em segundo lugar, porque a situação não é enquadrável no artigo 684º-A do Código de Processo Civil.

A questão da existência ou inexistência de seguro que abranja o acidente dos autos, cuja resolução tem evidentemente repercussões na determinação de quem deve ser condenado nesta acção, é na verdade uma só; ao concluir este Supremo Tribunal no sentido da não abrangência, problema que esteve em discussão na Relação e voltou a ser colocada na revista, falha o pressuposto em que assentaram as absolvições decididas em 1ª Instância, que se não podem manter.»

Este julgamento é plenamente transponível para o caso dos autos, com as devidas adaptações; e a base legal então citada tem correspondência no Código de Processo Civil 2013, aqui aplicável, tendo em conta as datas da sentença e do acórdão recorrido – cfr. actuais artigos 631º, nº 1, 633º, nº 1, 636º.

No mesmo sentido, cfr. ainda os acórdãos deste Supremo Tribunal de 20 de Janeiro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 471/2002.G1.S1, no qual se escreveu “Perante a nulidade do contrato de seguro, não pode a seguradora ser responsabilizada civilmente pelas consequências do acidente e consequente ressarcimento dos danos sofridos pelos lesados. Mas tendo sido demandado o FGA, que absolvido foi no pressuposto da existência de seguro válido e eficaz, há que apreciar agora a sua responsabilidade pela satisfação dessas consequências danosas” ou de 3 de Abril de 2014, www.dgsi.pt, proc. nº 856/07.6TVPRT.P1.S1.

A absolvição em 1ª instância não impede, assim, a condenação do Fundo de Garantia Automóvel ou de BB.

7. No que respeita à questão da validade e eficácia do contrato de seguro, na data do acidente, as instâncias chegaram a conclusões diferentes, mas partindo do mesmo quadro legal: o regime definido pelo Decreto-Lei nº 142/2000, de 15 de Julho, para o pagamento dos prémios de seguro (cfr. nº 1 do respectivo artigo 1º), que aqui se considera na versão vigente à data dos factos. Com efeito, este diploma foi objecto de várias alterações (pelos Decretos-Leis nºs 248-B/2000, de 12 de Outubro, 150/2004, de 29 de Junho, 122/2005, de 29 de Julho e 291/2007, de 21 de Agosto, e veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o novo regime jurídico do contrato de seguro).

Posto que está excluída a hipótese de se averiguar qual o significado do carimbo de 3 de Setembro de 2003, o que verdadeiramente importa saber é se a falta de pagamento do prémio inicial (cfr. ponto Y dos factos provados) impede que o contrato de seguro dos autos se considere eficaz à data do acidente, 27 de Agosto de 2003.

Não se afigura decisivo determinar se resulta ou não dos factos provados que se possa concluir pela existência de uma convenção tácita quanto à possibilidade de pagamento do prémio inicial em momento posterior à data da celebração do contrato, como entendeu a 1ª Instância, implicando nesta convenção a possibilidade de cobertura de sinistros ocorrido antes desse pagamento. Relevante é antes saber se a falta de pagamento que vem provada obsta ou não à eficácia do seguro, porque se sabe que pagamento não houve.

E a verdade é que, ainda que se pudesse admitir a convenção tácita aceite em 1ª Instância – sabe-se que o regime então vigente admitia convenções no sentido de que o pagamento do prémio inicial se pudesse efectuar em momento posterior ao da celebração do contrato (nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 142/2000), o nº 2 da Norma nº 9/2000-R , autorizada pelo nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 142/2000, apenas admitia que as partes convencionassem “que o pagamento do prémio ou fracção inicial tenha lugar até ao 30º dia após a data em que se pretende que a cobertura tenha início” – no caso, seria até ao 30º dia posterior a 13 de Agosto de 2003; havendo tal convenção, a seguradora apenas teria de avisar o tomador do seguro, nos termos ali previstos, se o prazo convencionado fosse igual ou superior a 20 dias; ora, se parece difícil ter como assente que houve uma convenção tácita eficaz, é impossível saber se a seguradora dos autos estaria ou não obrigada a fazer esta comunicação, por nada se ter provado quanto ao hipotético prazo tacitamente acordado.

Ora o ónus da prova de que houve convenção e da duração do prazo acordado incumbe a quem se quer prevalecer do regime de excepção, previsto na segunda parte do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 142/2000.

De tudo isto resulta que a falta de pagamento do prémio inicial – e só este está em causa, como se sabe – impede que se possa considerar que existia um seguro válido e eficaz para a cobertura do acidente dos autos; o que significa que a ré EE – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA tinha de ser absolvida do pedido formulado nesta acção, como decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão agora recorrido.

8. Aqui chegados, coloca-se o problema de saber se o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o pedido de condenação dos réus Fundo de Garantia Automóvel e BB, tal como se fez no citado acórdão de 11 de Março de 2010, sem esquecer a prescrição do crédito invocado pelo interveniente Hospital DD, EPE, oposta pelo Fundo de Garantia Automóvel e que não chegou a ser apreciada pelas instâncias, naturalmente.

Estão assentes os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte dos réus Fundo de Garantia Automóvel e BB. No entanto, contrariamente ao que ocorria no domínio do Código de Processo Civil anterior, o Código de 2013 não permite que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie questões das quais a Relação não conheceu, designadamente por as considerar prejudicadas; compare-se o resultado da conjugação entre os actuais artigos 679º e 665º, com aquele que decorria da conjugação entre os anteriores artigos 726º e 715º, preceito do qual apenas se excluía a aplicação do respectivo nº 1.

Face à lei actual, o Supremo Tribunal de Justiça não pode pronunciar-se sobre os (1) demais pressupostos de responsabilização destes dois réus, nem tão pouco sobre (2) a eventual prescrição do crédito invocado pelo Hospital DD, EPE, no que toca ao Fundo de Garantia Automóvel.


9. Nestes termos, determina-se o envio do processo ao Tribunal da Relação do Porto para que aprecie estas duas questões.


Custas de acordo com o vencimento, afinal.


Lisboa, 09 de Julho de 2015


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego