Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
376/08.1TBOFR-A.C1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONFISSÃO DE DÍVIDA
RECONHECIMENTO DE DÍVIDA
DOCUMENTO PARTICULAR
VALOR PROBATÓRIO
PRESUNÇÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
ACORDO DE PAGAMENTO
CLAÚSULA COM POTUERIT
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA / TÍTULO EXECUTIVO - PROCESSO DE EXECUÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / DISCUSSÃO E JULGAMENTO DA CAUSA - SENTENÇA (NULIDADES) - RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4ª edição, p. 45.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, III, p. 232.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 219.º, 246.º, 255.º, 256.º, 350.º, N.º2, 352.º, 354.º, 358.º, N.º 2, 359.º, N.ºS 1 E 2, 363.º, 373.º, 405.º, 406.º, 458.º, 778.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 45.º, N.º 1, 46.º, Nº1, C), 646.º, Nº 4, 668.º, 685.º, Nº 7, 685.º-B, 722.º, Nº 2, PARTE FINAL, 731.º, NºS 1 E 2, 802.º, 814.º, E) E 816.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 1/2/2011 (Pº 7273/07.6TBMAI), 31/5/2011 (Pº 4716/10.5TBMTS-A.S1), AMBOS EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I - A força probatória da declaração confessória é a fixada pelo art. 358.º, n.º 2, do CC: considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta (força probatória formal); e, tendo sido feita à parte contrária, reveste-se de força probatória plena contra o confitente (força probatória material).

II - Decorre do art. 359.º, n.ºs 1 e 2, do CC, que o confitente não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando, simplesmente, que o facto confessado não é verdadeiro: para destruir a força probatória da confissão terá que alegar e provar o erro ou outro vício de que tenha sido vítima.

III - Nas situações enquadráveis no art. 458.º do CC não há verdadeiramente a confissão dum facto desfavorável ao autor da declaração, mas uma mera confissão de dívida, presumindo-se até prova em contrário a existência da relação fundamental (causal); permite-se ao autor da declaração, portanto, que ilida a presunção (art. 350.º, n.º 2, do CC) mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida.

IV - Na confissão inserida em documento particular cuja veracidade esteja reconhecida, diversamente, os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte nos termos da declaração confessória efectuada.

V - Se as partes intitularam o documento dado à execução de “acordo de pagamento” e das suas cláusulas decorre que além do reconhecimento por parte do executado de que deve à exequente a quantia nele mencionada os contraentes estabeleceram por mútuo acordo o tempo e o modo de realização do pagamento devido na decorrência do reconhecimento da dívida plasmado na confissão, deve concluir-se que estamos na presença de um contrato inominado.

VI - A declaração constante do acordo “(…) Quando puder pago o resto por desvios prestados à empresa (…)”, configura uma cláusula cum potuerit, admitida pelo art. 778.º, n.º 1, do CC, caso em que, para exigir o cumprimento, o credor terá de alegar e provar que o devedor dispõe de meios económicos bastantes para efectuar a prestação, sem que esta o deixe em situação precária ou difícil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA deduziu oposição à execução comum para pagamento de quantia certa movida por BB, Ldª (hoje massa insolvente, na sequência da sua declaração de insolvência).

Alegou que a declaração de dívida dada à execução, no montante de  250.000,00 €, foi assinada sob ameaças e coacção moral, inexistindo qualquer obrigação causal subjacente a tal documento, já que nunca se apropriou de nenhuma quantia pertencente à exequente.

Esta contestou, impugnando os factos alegados na petição integradores das ameaças e coacção e alegando que, enquanto seu trabalhador e no âmbito das funções que lhe cabiam, o executado “desviou” frangos em quantidade e montantes correspondentes aos 250.000,00 € que declarou dever-lhe.

A final foi proferida sentença que julgou a oposição procedente, declarando extinta a execução.

A exequente apelou e a Relação de Coimbra, por acórdão de 20/6/12, julgou procedente o recurso, declarando a oposição improcedente e ordenando o prosseguimento da execução.

Agora é o executado que, inconformado, pede revista, pedindo a reposição da sentença da primeira instância com base em extensas cinquenta conclusões assim resumíveis:

1ª) O acórdão recorrido é nulo visto que não conheceu do não cumprimento do ónus do artº 685º-B, nº 2, do CPC por parte da exequente nem julgou deserta a sua apelação por apresentação das respectivas alegações fora do prazo legal;

2ª) O acórdão recorrido é ainda nulo porque, ao alterar a decisão da 1ª instância com base no artº 646º, nº 4, do CPC, conheceu de questão que não podia apreciar;

3ª) O STJ pode apreciar o modo como a Relação usou os poderes que a lei lhe confere quanto à modificabilidade da matéria de facto e, designadamente, quanto à aplicação do artº 646º, nº 4, do CPC, por se tratar de matéria de direito;

4ª) O documento que serve de base à execução cabe na espécie prevista no artº 46º, c), do CPC, e integra a previsão do artº 458º, nº 1, do CC; por essa razão o recorrente podia em sede de oposição à execução demonstrar a inexistência da dívida que nele reconheceu;

5ª) E fez tal prova, pois a primeira instância deu como provado que não subtraiu frangos das instalações da exequente na quantidade correspondente ao montante referido no título executivo, sendo o vínculo laboral que os ligava a única relação entre ambos;

6ª) O título executivo é um  documento particular e, como tal, a sua força probatória material reporta-se tão só às declarações documentadas, não ficando excluída a possibilidade de o seu autor demonstrar por qualquer meio de prova que aquelas declarações não correspondem à verdade (artº 376º, nºs 1 e 2, do CC);

7ª) Assim, porque o recorrente fez a prova da falsidade a que se reporta o artº 376º do CC, a Relação estava impedida de modificar a matéria de facto dada como provada, designadamente o artº 20º da base instrutória;

8ª) Da conjugação dos pontos de facto 4) a 24) resulta que era manifestamente impossível o recorrente ter efectuado os desvios que confessa no título dado à execução, dado que tais desvios teriam sido de imediato constatados pelos demais colegas de trabalho;

9ª) O tribunal deveria ter declarado oficiosamente a nulidade e inadmissibilidade da confissão de dívida por se estar perante o reconhecimento causal de factos torpes e relativos a direitos indisponíveis, susceptíveis de serem considerados como ilícito criminal; não o tendo feito, violou o disposto nos artºs 352º, 354º, b) e 358º do CC;

10ª) A declaração constante do título executivo quanto à forma de pagamento constitui uma cláusula prevista no artº 781º do CC pelo que, não tendo sido alegado nem dado como provado que o recorrente dispõe de meios económicos bastantes para efectuar a prestação a que o título executivo se refere, verifica-se a inexigibilidade da obrigação;

A executada contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação  

a) Matéria de Facto

Na sentença da 1ª instância deram-se como provados os seguintes factos:

 1) A Exequente deu à execução o documento particular de fls. 17 dos autos de execução de que os presentes são apensos, o qual se encontra assinado pelo executado e pelo, na altura, sócio - gerente da exequente (CC) e do qual consta designadamente o seguinte:

“(…) 2.º - O 2º outorgante reconhece e confessa-se devedor à 1.ª outorgante da quantia de € 250.000,00”;

2) Do mesmo documento consta, a letras manuscritas pelo executado, designadamente o seguinte:

“(…) Quando puder pago o resto por desvios prestados à empresa BB frangos sem serem devitados. Era o responsável pela expedição de saída do Centro de Abate” (sic).

3) O executado trabalhou para a exequente até ao dia 25/2/08;

4) Durante os 35 anos em que o executado foi funcionário da exequente não foi o executado alvo de qualquer processo disciplinar junto da exequente, ou reprimenda por parte desta;

5) Até ao dia 25/2/08 o executado sempre foi tido como um funcionário responsável e cumpridor no exercício das suas funções;

6) O executado exercia as suas funções na sede da exequente, na área do matadouro, nomeadamente na zona de cargas de mercadoria, sendo um dos responsáveis pelo registo das encomendas e pela sua expedição para os clientes;

7) No âmbito das suas funções profissionais o executado era um dos funcionários responsáveis por atender o telefone e registar as encomendas de mercadoria que os diversos clientes da exequente solicitavam telefonicamente;

8) Anotadas as encomendas realizadas pelos clientes, em livro de notas interno, o executado, enquanto encarregado, solicitava aos demais colegas de trabalho que procedessem à pesagem da mercadoria requerida pelos clientes, bem como que estes procedessem ao carregamento da mercadoria, já devidamente pesada, nos camiões da exequente;

9) A pesagem e carregamento da mercadoria eram realizadas por diversos funcionários da exequente;

10) A maioria das vezes, o executado limitava-se a acompanhar e a verificar tais trabalhos, não intervindo neles directamente;

11) As guias de remessa eram emitidas em duplicado;

12) O original e o duplicado eram entregues ao cuidado do motorista do camião onde fosse a mercadoria carregada;

13) O duplicado das guias era entregue aos serviços de escritórios da exequente, nomeadamente à funcionária DD, à funcionária EE e à funcionária FF, todas elas familiares dos 2 sócios gerentes da exequente, após a entrega e pelos motoristas;

14) Pesada e carregada a mercadoria e emitidas as correspondentes guias, a mercadoria era então distribuída e entregue pelos camiões da exequente junto dos clientes desta;

15) Os motoristas encarregues de proceder a tal distribuição e entrega de mercadoria eram, entre outros, o Sr. GG, o Sr. HH, o Sr. II, sendo às vezes acompanhados por um ajudante;

16) E eram estes que conferiam com os clientes o peso e o preço da mercadoria;

17) Não era o executado que procedia à entrega das mercadorias junto dos clientes;

18) O executado não recebia ou tinha acesso a pagamentos feitos pelos clientes;

19) Nem tinha acesso a dinheiros e a quaisquer receitas da exequente;

20) O executado não tinha acesso à contabilidade da exequente;

21) O executado não desviou ou subtraiu frangos das instalações da exequente na quantidade e montante referidos no título executivo;

22) Caso o executado retirasse mercadorias do matadouro da exequente, tal, seria necessariamente constatado pelos seus demais colegas de trabalho;

23) A única relação do executado com a exequente era o vínculo laboral que os ligava;

24) O executado, no exercício das suas funções, nunca teve acesso às contas da exequente nem ao dinheiro de clientes desta;

25) No dia 26/7/08 o executado foi interceptado pelo sócio gerente da exequente, BB, que lhe referiu precisar falar com ele;

26) Nessa sequência e no mesmo dia e manhã, o executado deslocou-se às instalações da exequente;

27) Onde se encontravam o sócio - gerente BB e a sua esposa, FF;

28) No final da conversa referida em 27) o executado assinou o documento referido em A) dos factos assentes;

29) O executado desempenhou funções, primeiro como motorista e depois como operário fabril, auferindo cerca do salário mínimo em cheque mas, pelo menos até à morte de JJ, recebia igualmente um montante em dinheiro que não era vertido no recibo de vencimento;

30) Nos últimos anos o executado construiu uma moradia sem recurso a crédito bancário no prédio inscrito na matriz predial sob o nº …e adquiriu dois veículos automóveis, um ligeiro de passageiros, marca Mercedes – Benz matrícula ...PE e um ligeiro de passageiros, marca Citroën, modelo AX, matricula ...FZ.

b) Matéria de Direito

1) Quanto às nulidades imputadas ao acórdão recorrido nas duas primeiras conclusões da minuta importa somente dizer que, não se reportando as questões colocadas a nenhum dos vícios formais da decisão recorrida enquadráveis na enumeração taxativa do artº 668º CPC, afastada está a hipótese de as suprir ou mandar baixar o processo à Relação para reformar a decisão em conformidade com o disposto no artº 731º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma. Por outro lado, mostra-se precludida a possibilidade de conhecer das questões postas na conclusão 1ª uma vez que não foram em tempo oportuno suscitadas pelo apelado nas contra alegações da apelação, nem objecto de decisão por parte da 2ª instância. A arguição, de qualquer modo, improcede porque a apelação da exequente teve por objecto a reapreciação da prova gravada, o que implicou o acréscimo de dez dias no prazo para a sua interposição (artº 685º, nº 7, CPC), prazo este que foi acatado, sendo certo que o ónus fixado no artº 685º-B também foi correctamente observado. As nulidades suscitadas nas restantes conclusões correspondem, não a vícios formais imputados ao acórdão recorrido, mas sim a verdadeiros e próprios erros de julgamento, que como tal serão adiante apreciados e decididos.

2) No quesito 20º da base instrutória perguntava-se o seguinte:

O executado nunca desviou ou subtraiu frangos das instalações da exequente?

O quesito obteve esta resposta na 1ª instância:

Provado apenas que o executado não desviou ou subtraiu frangos das instalações da exequente na quantidade e montante referidos no título executivo.

A Relação decidiu considera-la não escrita, fundamentando assim a sua decisão:

“....

Assim, a confissão do executado plasmada em tal documento tem força probatória plena da assumida dívida de € 250.000,00 para com a exequente.

E porque assim é e por imposição do n.º 4, parte final, do art.º 646.º do CPC a resposta dada ao art.º 20.º da base instrutória, ainda que confirmativa da dívida em montante que se não determinou, ter-se-á por não escrita, impertinente tendo sido, de resto, a sua formulação (art.º 659.º, n.º 3, do CPC)”.

O artº 646º, nº 4, do CPC dispõe:

“Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Vejamos.

O título executivo é o documento particular junto a fls 17.

As partes denominaram-no “Acordo de Pagamento”.

Está assinado pelo sóciogerente da exequente, CC, e pelo executado. Na cláusula primeira diz-se que “o 2.º outorgante (executado) trabalhou para a 1.ª (exequente) até … de … de 20…, data em que apresentou demissão”; na segunda que “o 2.º outorgante reconhece e confessa-se devedor à 1.ª outorgante da quantia de € 250.000,00”; na quinta que “com o pagamento integral da dívida aqui confessada ficam integralmente arrumadas as contas existentes entre ambas as partes”

Consta ainda do documento, escrito pelo punho do executado, o seguinte:

“entrego 20.000 Euros depositados na conta em cima descriminada até ao dia 30.7.08 e casa dos meus pais será da firma BB, avaliada no valor de 40.000 Euros e se não puder ser vendida no prazo de um ano entregarei o dinheiro. O carro no valor de 10.000 Euros vendido no prazo de um mês. Quando puder pago o resto por desvios prestados (ou furtados) à empresa BB. Frangos sem serem devitados; era o responsável pela expedição de saída do Centro de Abate”.

O fim e os limites da acção execu­tiva  são definidos pelo título executivo (artº 45º, nº1, CPC). O “acordo de pagamento” ajuizado é, sem qualquer dúvida, um título executivo (artº 46º, nº1, c), CPC) - e deve classificar-se como um documento particular (ar­tºs 363º e 373º CC). Sucede que a declaração que nele o executado produz, acima transcrita (facto nº 1) integra uma verdadeira e própria confissão extrajudicial, tal como o artº 352º CC a de­fine: o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. A força probatória da declaração confessória é a fixada pelo artº 358º, nº 2, do mesmo diploma: considera-se provada nos termos aplicáveis ao documento de que consta (força probatória formal); e, tendo sido feita à parte contrária, reveste-se de força probatória plena contra o confitente (força probatória material). A lei apenas permite que a confissão seja anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, sendo que o erro, desde que essencial, e justamente porque a confissão integra uma declaração de ciência, não de vontade, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos (artº 359º, nºs 1 e 2 CC). Vale isto por dizer que o confitente não pode impugnar a confissão produzida alegando e provando, simplesmente, que o facto confessado não é verdadeiro: para destruir a força probatória da confissão terá que alegar e provar o erro ou outro vício de que tenha sido vítima[1]. Do exposto decorre que na situação dos autos a confissão transcrita, relativa à existência de um débito de 250 mil €, faz prova plena contra o confitente, uma vez que se encontra impedido de fazer, quer a contraprova do que consta do documento, quer a prova do contrário. Independentemente disto, a afirmação produzida integra, como se disse, uma confissão em sentido técnico-jurídico, que o recorrente, sem êxito, intentou anular com fundamento em alegada mas não provada coacção (física e moral - artºs 246º, 255º e 256º CC) para a produzir sobre si exercida pela recorrida (cfr. respostas negativas aos quesitos 28º a 44º).

A alegação contida na conclusão 9ª da minuta não tem fundamento porque, sendo taxativa a enumeração das situações em que a lei torna inadmissível a confissão – artº 354º CC - resulta do já exposto e do que a seguir se dirá que o facto confessado pelo executado não se enquadra na previsão de nenhuma das alíneas deste preceito. 

Deste modo, a confissão subsiste, íntegra, com todas as consequências legais, traduzindo-se estas na plena eficácia jurídica do título dado à execução, cuja exequibilidade, por tal motivo, se mantém incólume.

Mas que confissão, exactamente?

Em nosso entender, a de que o executado deve à exequente a importância mencionada no título. É a realidade deste facto que, por via da confissão, está plenamente provada. E não se vê que haja colisão entre ele e o relatado sob o nº 21, que a Relação decidiu eliminar do elenco da matéria de facto. Na verdade, deste ponto de facto somente resulta que a apropriação de frangos que esteve na origem da confissão de dívida feita pelo executado não atingiu o valor nela indicado (250 mil €); não resulta que o facto confessado -  existência de uma dívida daquela importância - não seja uma realidade plenamente provada, no sentido acima exposto.

Isto quer dizer que, ao considerar não escrita a resposta por estar em causa facto plenamente provado por confissão da parte, a Relação fez uso indevido da faculdade prevista no artº 646º, nº 4, CPC; e porque cabe na competência do STJ, nos termos do artº 722º, nº 2, parte final, do mesmo diploma, censurar o erro na fixação dos factos materiais da causa que por essa via se cometa, decide-se repor no elenco dos factos coligidos o constante da resposta dada pela 1ª instância ao quesito 20º da base instrutória.

3) Parte substancial da argumentação do recorrente para conseguir a revogação do acórdão recorrido repousa na ideia de que o título executivo corporiza uma declaração unilateral de reconhecimento dívida sujeita ao regime previsto no artº 458º, nº 1, CC. A sentença navegou nas mesmas águas. Não é, porém, assim, salvo o devido respeito. Decerto, o reconhecimento de dívida pode ter lugar através de negócio jurídico unilateral. Simplesmente, tal reconhecimento pode também verificar-se, como no caso em exame sucedeu, por meio de confissão, que, se feita à parte contrária, tem força probatória plena, conforme já se pôs em evidência. Nas situações enquadráveis no artº 458º do CC não há verdadeiramente a confissão dum facto desfavorável ao autor da declaração, mas uma mera confissão de dívida, presumindo-se até prova em contrário a existência da relação fundamental (causal); permite-se ao autor da declaração, portanto, que ilida a presunção (artº 350º, nº 2, CC) mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida. Na confissão inserida em documento particular cuja veracidade esteja reconhecida, diversamente, os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte nos termos da declaração confessória efectuada. Reportada à situação ajuizada, esta distinção significa que a força probatória plena da confissão feita no título executivo, mais do que um reconhecimento de dívida ilidível nos termos do artº 458º CC, prova plenamente que o recorrente é devedor à recorrida da quantia de 250 mil €, conforme acima se procurou demonstrar.

Todavia, se não deve confundir-se o documento aqui dado à execução com uma declaração unilateral, tal como prevista no artº 458º do CC, também  não parece correcto ver nele uma pura e simples confissão de dívida.   A nosso ver, é nítido que ele formaliza um contrato entre as partes outorgantes, isto é, um acordo de vontades diversas que reciprocamente se ajustaram em ordem à produção de um resultado unitário. Tal o que se retira, não apenas da designação que lhe foi dada pelos interessados “acordo de pagamento” - mas acima de tudo da conjugação e articulação das suas cláusulas: delas decorre linearmente que, para além do reconhecimento por parte do recorrente de que deve à recorrida a quantia nele mencionada, os contraentes estabeleceram por mútuo acordo o tempo e o modo de realização do pagamento devido pelo recorrente na decorrência do reconhecimento da dívida plasmado na confissão. E já se vê que, estando-se em presença dum contrato - um contrato inominado, cuja validade e eficácia é incontestável à luz do disposto nos artºs 219º, 405º e 406º CC - deve proceder-se à sua interpretação tendo em conta o conjunto das estipulações que o compõem, sem isolar e desligar das restantes aquela que integra a declaração confessória da dívida (única a que o acórdão recorrido atendeu para decidir como decidiu). Ora, a declaração que consta do acordo - “(…) Quando puder pago o resto por desvios prestados à empresa BB frangos sem serem devitados. Era o responsável pela expedição de saída do Centro de Abate” (sic) – traduz-se praticamente na possibilidade que as partes concederam ao devedor de cumprir quando puder. Trata-se de uma cláusula cum potuerit, admitida pelo artº 778º, nº 1, CC ao dispor que “se tiver sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, a prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir”. Neste caso, “para exigir o cumprimento, o credor terá de alegar e provar que o devedor dispõe de meios económicos bastantes para efectuar a prestação, sem que esta o deixe em situação precária ou difícil” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4ª edição, pág 45; no mesmo sentido, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, III, pág. 232). Já assim se entendia no domínio do Código Civil anterior, cujo artº 743, § único, de modo mais impressivo do que o actual 778º, dispunha: “ Se o tempo da prestação for deixado na possibilidade do devedor, não pode o credor exigi-la forçadamente, excepto provando a dita possibilidade”. No caso sub judice a exequente não fez esta prova, nem nada alegou para o efeito, razão pela qual tem de concluir-se que a obrigação que o recorrente reconheceu por confissão não se tornou exigível, nos termos dos artºs 802º, 814º, e) e 816º CPC. Procede, assim, a conclusão 10ª e, com ela, o recurso.

III. Decisão

Nos termos expostos concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido para que fique a subsistir, ainda que com fundamentação inteiramente distinta, a sentença da 1ª instância.

Custas pela recorrida, aqui e nas instâncias.   

Lisboa, 22 de Janeiro de 2013

Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira

   

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[1] Cfr. neste sentido os acórdãos deste STJ de 1/2/2011 (Pº 7273/07.6TBMAI), desta conferência, e 31/5/2011 (Pº 4716/10.5TBMTS-A.S1), Rel. Salazar Casanova, ambos em www.stj.pt).