Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8514/12.3TBVNG.P2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO
SUCUMBÊNCIA
DANOS FUTUROS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL À REVISTA DO AUTOR. NEGADO PROVIMENTO À REVISTA DA RÉ
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( POR FACTOS ILÍCITOS ) / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / ADMISSIBILIDADE DA REVISTA.
Doutrina:
- A. MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, 285 e ss..
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, 603 a 606, 905 e 906.
- L. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, I, 3.ª edição, 2003, 339.
- M. J. ALMEIDA COSTA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134.º, 2002, 297.
- VAZ SERRA, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 113.º, 1980, 104.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, 496.º, N.º3, 562.º, 564.º, N.º2, 566.º, N.ºS 1, 2 E 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): – ARTIGO 671.º, N.º 3.
PORTARIA N.º 377/2008, DE 26 DE MAIO.
Sumário :
I - Não existe dupla conforme, quando o acórdão recorrido não confirma a sentença, e, dando procedência parcial à apelação, arbitra uma indemnização superior à fixada na sentença, mas inferior ao pedido.

II - Continuando o lesado a desenvolver a atividade profissional habitual, embora com um esforço acrescido, a indemnização do dano futuro deve corresponder à obtenção de um rendimento a prolongar durante o tempo de vida expetável, considerando especialmente a retribuição ou equivalente auferida, o grau e repercussão da incapacidade, uma aplicação financeira média e a antecipação da disponibilidade do capital.

III - Para a fixação da indemnização pelo dano de natureza não patrimonial, estabelece-se um critério de mera equidade, no âmbito do qual se deve atender ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado e às demais circunstâncias do caso, designadamente, a gravidade e a extensão da lesão.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 3 de outubro de 2012, na então 1.ª Vara Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia (Instância Central de Vila Nova de Gaia, Secção Cível, Comarca do Porto) contra Fundo de Garantia Automóvel, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que o Réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 227 101,40, bem como as despesas médicas e medicamentosas que haja de fazer e ainda o prejuízo na sua pensão de reforma.

Para tanto, alegou, em síntese, que em resultado do acidente de viação, ocorrido no dia 23 de dezembro de 2010, pelas 17:30 horas, na EN n.º 109-2, envolvendo um veículo ligeiro, de matrícula desconhecida, e o seu veículo, matrícula ...-...-PO, e com culpa exclusiva do condutor do primeiro veículo, que o atingiu violentamente, quando se encontrava fora do veículo que estacionara junto à berma da estrada do lado direito, sofreu graves lesões corporais e elevados danos patrimoniais, designadamente resultantes da incapacidade para o trabalho, e danos não patrimoniais.

Contestou o R., por impugnação.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 27 de março de 2015, a sentença que condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 22 000,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, sobre a quantia de € 10 000,00, e desde 27 de março de 2015 até efetivo pagamento, sobre a quantia de € 12 000,00.

Inconformado, apelou o Autor para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão, de 2 de junho de 2016, dando procedência parcial ao recurso, condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 112 650,00 e no que se viesse a liquidar em “execução de sentença” relativamente aos factos referidos em 60.


De novo inconformado, o Autor recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) Desde a data do acidente, deixou o A. de poder trabalhar na sua atividade profissional, não lhe sendo também possível desempenhar outra similar, por manifesta incapacidade funcional.

b) O valor indemnizatório deste dano deve ser calculado em função da sua efetiva incapacidade para desempenhar a sua atividade profissional, não podendo, de modo algum, a IPG que lhe foi determinada, erigir-se em critério válido com base no qual deve ser determinado o quantum indemnizatório deste dano.

c) A indemnização, relativa à perda de ganho futuro, não obedece aos desígnios da lei, que manda reparar o dano atendendo aos ganhos que o lesado deixa de obter em consequência da lesão (art. 562.º, 653.º, 564.º e 566.º do CC).

d) Atento o rendimento, à data do acidente, o A. deve ser ressarcido com um capital, que adicionado do juro remuneratório, lhe propicie um rendimento idêntico e se esgote aos 65 anos, nomeadamente na quantia de € 134 891,40.

e) Quanto aos danos não patrimoniais, o acórdão recorrido ficou aquém do razoável, tendo em consideração a máxima culpabilidade do lesante, a inexistência de culpa do lesado e a gravidade dos danos, vivenciada no passado, presente e futuro, para além do seu caráter sancionatório, pois o lesante fugiu, deixando o A. inanimado na estrada, devendo ser atribuída a compensação pedida de € 25 000,00.


Pretende o Recorrente, com a revista, a substituição da decisão do acórdão por outra que condene o Recorrido nos termos alegados.

Também inconformado, recorreu o Réu, que, tendo alegado, formulou em resumo as conclusões:

a) Não cabe qualquer indemnização, a título de frustração de ganho.

b) A atribuição ao A. da quantia de € 34 440,00, a título de perda de ganho, é manifestamente excessiva.

c) Os critérios plasmados na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, não podem deixar de se erigir em referente para o julgador, pois reduzem a incerteza e a subjetividade da decisão e asseguram um melhor tratamento igual entre todos os lesados.

d) Tais critérios resultam de uma ponderação prudencial, médico-legal e económica e social e devem, por isso, ser considerados.

e) Não ficou provado que o A. tivesse ficado incapacitado para além do rebate profissional e esforço acrescido correspondente ao dano corporal que sofreu – de 12 pontos.

f) Donde, a indemnização pelo dano de perda de ganho futuro decorrente da incapacidade deve fixar-se em € 10 000,00.

g) Por erro de interpretação, o Tribunal violou os arts. 562.º e 566.º do CC.


Pretende o Recorrente, com a revista, a substituição da decisão recorrida por outra que condene apenas nos termos alegados.


A. e R. contra-alegaram no sentido de ser negada a revista contrária, para além do R. ter suscitado ainda a inadmissibilidade do recurso do A., por efeito da dupla conforme.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Nos recursos, está essencialmente em discussão, para além da questão prévia da inadmissibilidade do recurso do Autor, o valor da indemnização emergente de acidente de viação, quer por danos patrimoniais, resultantes da incapacidade para o trabalho, quer por danos não patrimoniais.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. Estão dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 23 de dezembro de 2010, pelas 17:30 horas, na estrada EN n.º 109-2, perto do cruzamento que dá para o centro da freguesia de Lever, concelho de Vila Nova de Gaia, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro, de matrícula portuguesa desconhecida, e o veículo de matrícula ...-...-PO, propriedade do A. e por este conduzido.

2. O A., um pouco depois de passar o dito cruzamento, estacionou o automóvel, junto à berma da estrada do lado direito, sentido sul/norte, ocupando apenas uma pequena parte da faixa de rodagem e deixando livre um espaço de 2,90 metros dessa faixa.

3. O veículo de matrícula desconhecida, que circulava no sentido Sul/Norte, colidiu na parte esquerda do veículo do A. e, seguidamente, contra o A., que se encontrava fora do veículo voltado de frente para o mesmo.

4. O veículo automóvel de matrícula desconhecida atingiu o A. violentamente no seu lado direito, projetando-o alguns metros para diante e deixando-o caído, inanimado, na berma da estrada.

5. O condutor desse veículo fugiu.

6. O R. indemnizou o A. dos danos causados no seu automóvel e entregou-lhe a quantia de € 100,00 para pagamento de deslocações de táxi relativas a sessões de fisioterapia.

7. O A. nasceu em 15 de agosto de 1953.

8. Após embate, o A. esteve em estado inconsciente durante algumas horas.

9. Em consequência do embate, o A. sofreu traumatismo craniano do lado direito, traumatismo dos membros inferiores, traumatismo da bacia e fratura do acetábulo direito e traumatismo no joelho esquerdo.

10.  Foi socorrido no Hospital Santos Silva, em Vila Nova de Gaia, e aí esteve internado com tração esqueléctica do membro inferior direito durante 27 dias, tendo tido alta hospitalar ao fim de 31 dias.

11.  Após a alta, o A. seguiu o regime de consulta externa, para tratamentos de fisioterapia, primeiramente na perna esquerda/joelho e depois na perna direita, até 29 de setembro de 2011.

12.  O A. realizou várias sessões de fisioterapia, que foram de vinte unidades cada uma.

13. Em deslocações para essas sessões, o A. despendeu em táxis, para além da quantia referida em 6., o valor de € 500,00.

14. Em resultado do acidente, o A. ficou com atrofia dos músculos do membro inferior direito, encurtamento de dois cm do membro inferior direito, instabilidade rotatória antero-posterior do joelho esquerdo, impossibilidade na corrida, salto e posição de cócoras, dor e limitação funcional da anca direita, dor e instabilidade do joelho esquerdo, marcha claudicante e dolorosa, especialmente em terrenos irregulares ou inclinados e ao subir ou descer escadas, dores na anca direita, irradiando para a coxa, até ao joelho, e atrofia muscular dos nadegueiros e da coxa direita.

15. Em consequência das lesões sofridas e suas sequelas, o A. sente algum cansaço e irritabilidade fácil, mais dificuldade na memorização, dores de cabeça, especialmente à noite, tem mais dificuldade de dormir, precisando por vezes de um “calmante”, e falta de concentração.

16.   O A., ao fim de meia hora de pé, não consegue permanecer nesta posição e precisa de se sentar por causa da dor que sente nas pernas.

17.  O joelho da perna esquerda anda habitualmente inchado, “falha” quando o quer movimentar e sente dores intensas com um movimento mais brusco.

18. O A. não consegue fazer uma marcha mais ligeira, muito menos correr, e tem bastante dificuldade em baixar-se e levantar-se se está baixado.

19.   Custa-lhe a agarrar em pesos superiores a 15 kg, como, por exemplo, pegar numa roda de automóvel para mudar.

20. Se se põe de joelhos, não consegue levantar-se sem se agarrar a alguma coisa fixa, por falta de força e equilíbrio.

21. O joelho direito não tem a rotação normal.

22.   A espaços de tempo tem de movimentar também a perna direita, pois se estiver inativa fica dormente.

23.   Custa-lhe imenso entrar ou sair do automóvel, bem como conduzir por causa da posição da bacia e pernas.

24. Sente mal-estar na cama, por não ter “posição”, dormindo mal e mexendo-se muitas vezes.

25. O referido de 15. a 23. é consequência das lesões sofridas no acidente e suas sequelas.

26. O A. ficou a padecer duma “incapacidade permanente geral”, de forma genérica, correspondente a um dano na integridade físico-psíquica, de caráter permanente, atual ou futuro, que se repercute em diversas áreas da sua existência: atividades da vida diária; atividades afetivas, familiares, sociais, de lazer e desportivas; atividades de formação; atividades profissionais, no valor de 12 pontos.

27. No acidente estragou um “Kispo”, que tinha o valor de € 150,00.

28. O A. tem a profissão de serralheiro civil, especializado na montagem de grandes estruturas de ferro e outros metais.

29. É considerado bom profissional na arte.

30. O A. fazia todos os esforços para trabalhar no estrangeiro, dadas as melhores condições remuneratórias e para assegurar um boa reforma no futuro.

31. Estava inscrito há vários anos numa empresa de trabalho temporário, que coloca trabalhadores especializados no estrangeiro, BB, Empresa de Trabalho Temporário, Lda., com sede em Setúbal.

32.   Em 2006, o A. esteve a trabalhar na Síria mediante contrato de trabalho durante alguns meses.

33. De setembro de 2007 a abril de 2009, trabalhou na montagem de estruturas metálicas na Suécia, recebendo, em 01.2008, um salário mensal de € 4 770,00 ilíquido e líquido de € 4 145,33, 02.2008 um salário mensal de € 4 060,00 ilíquido e líquido de € 3 574,10, 03.2008 um salário mensal de € 5 280,00 ilíquido e líquido de € 4 586,94, 04.2008 um salário mensal de € 5 460,00 ilíquido e líquido de € 4 763,19, 05.2008 um salário mensal de € 4 320,00 ilíquido e líquido de € 3 906,27, 06.2008 um salário mensal de € 5 355,00 ilíquido e líquido de € 4 658,83, 07.2008 um salário mensal de € 6 370,00 ilíquido e líquido de € 5 499,36, 08.2008 um salário mensal de € 5 735,00 ilíquido e líquido de € 4 989,32, 09.2008 um salário mensal de € 4 355,00 ilíquido e líquido de € 3 824,33, 10.2008 um salário mensal de € 6 375,00 ilíquido e líquido de € 5 533,22, 11.2008 um salário mensal de € 4 475,00 ilíquido e líquido de € 3 889,62, 12.2008 um salário mensal de € 2 945,00 ilíquido e líquido de € 2 645,03, 01.2009 um salário mensal de € 3 660,00 ilíquido e líquido de € 3 241,22, 02.2009 um salário mensal de € 5 952,50 ilíquido e líquido de € 5 179,87, 03.2009 um salário mensal de € 5 940,00 ilíquido e líquido de € 5 164,04, 04.2009 um salário mensal de € 5 410,00 ilíquido e líquido de € 4 754,99, 06.2009 um salário mensal de € 1 220,75 ilíquido e líquido de € 718,88 e apresentando rendimentos ao “fisco” apenas no ano de 2009 e no valor de € 9 713,01.

34.  Em junho de 2009 foi trabalhar para a …, com um contrato de trabalho para uma empreitada de estruturas de ferro.

35.  O trabalho habitual do A. consistia na montagem de estruturas de ferro ou aço, para diversos fins – gás, condutas, caldeiras.

36.  Além de executar o serviço de que era incumbido, o A. desempenhava normalmente a função de chefe de equipa, acompanhando e supervisionando o trabalho dos seus membros.

37. Trata-se de serviços de grande precisão, responsabilidade e que exigem apetrechados conhecimentos técnicos e bastante experiência, além de boa capacidade física, para aguentar trabalhos ao ar livre e rigores do tempo.

38.  A execução do trabalho de serralharia, e mais especificamente na montagem de estruturas, implica subir e descer escadas das estruturas, algumas vezes, em grande número e íngremes.

39.  O A. está impossibilitado de realizar tais tarefas em condições de normalidade e exigência laboral.

40.  É-lhe muito difícil, especialmente descer escadas, visto que não tem equilíbrio nos joelhos.

41. Não tem equilíbrio de pernas e joelhos para se poder movimentar em planos não regulares.

42. Tem dificuldade de vergar-se, e vergado, não pode levantar-se sem se agarrar a objeto fixo.

43. O A. não dispõe de força, segurança, equilíbrio, estabilidade do corpo, bem como baixar-se e levantar-se com normalidade, para exercer os serviços que dantes fazia.

44. A sua arte de serralharia exige constante permanência de pé e manuseamento de artigos de ferro, usualmente pesados, o que não está ao alcance do A.

45. Antes do acidente, o A. dispunha de boas condições, físicas, conhecimento e experiência suficientes para desempenho deste tipo de contratos, era profissionalmente bem conhecido das empresas de trabalho temporário e estava relacionado com o pessoal de recrutamento, que trabalha para o Grupo CC, de que a BB e DD são associadas.

46.  Não fora o acidente, o A. manteria, no mínimo, o valor remuneratório mencionado em 33.

47.  Um pouco antes do acidente, o A. tinha apalavrado com a BB a ida para a República de …, para trabalhar numa central a gás.

48. A confirmação do contrato surgiu um pouco após o acidente, mas o A. já estava incapacitado para cumprir, motivo pelo qual o contrato não foi assinado.

49. O A. ia ganhar e € 25,00 por hora, 10 horas diárias, incluindo trabalho normal ao sábado, sendo o alojamento por conta da empresa, recebendo ainda uma dotação mensal de € 800,00 para alimentação.

50. O contrato tinha a duração de quatro meses, renováveis por idênticos períodos.

51. Os colegas do A. mantiveram-se em … durante 16 meses a trabalhar por conta dessa empresa.

52. À data do acidente, mercê dos descontos efetuados, o A. recebia, desde julho de 2009, a título de Fundo de Desemprego, o valor mensal de € 1 257,60.

53. O A. deixou de receber o Fundo de Desemprego, a partir de 27 de agosto de 2012.

54. O A. sente tristeza e apreensão pela situação inativa em que agora se encontra.

55.  O A. sofreu dores intensas no embate, com as intervenções clínicas e com os tratamentos a que foi submetido.

56. Sofreu a solidão do internamento hospitalar e com a falta dos familiares e amigos.

57. Sofreu com a total imobilização a que esteve sujeito durante vinte e sete dias, enquanto esteve com a perna direita em tração.

58.  Sofreu com os sacrifícios dos exercícios de fisioterapia a que se sujeitou para recuperar alguma mobilidade da perna direita e joelho esquerdo.

59. O A. sente um constante mal-estar nas partes afetadas pelo acidente (pernas e bacia), tanto na posição de pé, como na posição de sentado ou deitado.

60.  É de esperar que o A. necessite de assistência médica e medicamentosa, para tratamento das sequelas e em consequência do seu agravamento futuro, especialmente da anca direita e joelho esquerdo.

61. O A. deixou de poder correr ou até fazer uma marcha mais apressada.

62. O A. tinha o hobby da pesca, que após o acidente abandonou por falta de disposição de a praticar.

63. As sequelas e limitações de que ficou a padecer causam-lhe muita perturbação e tristeza.

64. O A. experimenta grande apreensão com a diminuição dos recursos financeiros.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, com a modificação decidida pela Relação, importa então conhecer do objeto dos dois recursos, definido pelas suas conclusões, e que se reconduz, essencialmente, ao valor da indemnização emergente de acidente de viação, nomeadamente quanto aos danos resultantes da incapacidade para o trabalho e aos danos não patrimoniais.


O R., na sua contra-alegação, suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso do A., argumentando com a dupla conforme, quanto à questão do “dano pela perda de ganho” e ao dano não patrimonial.

Na verdade, a indemnização do dano resultante da incapacidade para o trabalho foi fixada na quantia de € 10 000,00 e € 100 000,00, pela sentença e acórdão recorrido, respetivamente. Já a indemnização pelo dano não patrimonial foi estabelecida, por ambas as decisões, no valor de € 12 000,00.

Por outro lado, importa referir que, na ação de efetivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, o A. formulou, designadamente, um pedido líquido de indemnização de € 227 101,40, tendo a sentença fixado a indemnização de € 22 000,00, enquanto o acórdão recorrido, sem voto de vencido, a estabeleceu em € 112 650,00.

A dupla conforme, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se pela confirmação da decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).

É manifesto que não existe dupla conforme, pois o acórdão recorrido não confirmou a sentença, tendo dado “procedência parcial ao recurso de apelação”, ao arbitrar uma indemnização de € 112 650,00, em substituição da fixada na sentença, de € 22 000,00.

Por outro lado, consubstanciado o pedido na indemnização por responsabilidade civil, não releva a segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas, pois a lei não erigiu tal critério para aferir a dupla conforme.

A circunstância do acórdão recorrido ter favorecido a posição do R., que recorrera da sentença, também não releva, dado o decaimento na apelação, circunstância que não pode deixar de ser considerada.

Além disso, do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, não resulta que tal circunstância pudesse influenciar a questão sobre a dupla conforme, nem, por outro lado, que tal tivesse sido a vontade do legislador.

Deste modo, não há dupla conforme, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, que obste à interposição da revista pelo A.

Assim, improcede a questão prévia, nada obstando ao conhecimento da revista interposta pelo Autor.

 

2.3. Passando à questão da indemnização, emergente de acidente de viação, questiona-se o seu valor, duplamente quanto aos danos patrimoniais, resultantes da incapacidade para o trabalho, e ainda em relação aos danos não patrimoniais.

Na verdade, o acórdão recorrido fixou a indemnização pelos danos patrimoniais, resultantes da incapacidade para o trabalho, no valor de € 100 000,00, diferentemente da sentença que determinara € 10 000,00, enquanto a indemnização pelos danos não patrimoniais foi estabelecida em € 12 000,00, tanto no acórdão recorrido como na sentença.

No recurso, o A. continua a insistir na indemnização pedida na petição inicial, pelos danos patrimoniais, resultantes da incapacidade para o trabalho, no valor de € 134 891,40 e pelos danos não patrimoniais, na quantia de € 25 000,00.

Por sua vez, o R. pugna pela indemnização de € 10 000,00, para os danos patrimoniais, tal como foram fixados na sentença.


O princípio geral da obrigação de indemnização encontra-se definido no art. 562.º do Código Civil (CC), nos termos do qual “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Por efeito desta norma legal, que não é absoluta, está consagrada a chamada teoria da diferença, nos termos da qual a situação patrimonial do lesado deve ser reconstituída como se não se tivesse ocorrido o evento, de modo a reparar, integralmente, o prejuízo sofrido.

A indemnização, por sua vez, é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição não seja possível, não repare integralmente os danos ou, ainda, seja excessivamente onerosa para o devedor (art. 566.º, n.º 1, do CC).

A lei vigente aponta, claramente, no sentido da indemnização ser feita, prioritariamente, pela reconstituição natural, constituindo o meio ideal de reparação ou compensação dos danos sofridos pelo lesado.

No entanto, a reconstituição natural pode não ser possível, suficiente ou idónea. Nestas circunstâncias, a indemnização é fixada em dinheiro, constituindo uma das chamadas dívidas de valor (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, págs. 905 e 906, e M. J. ALMEIDA COSTA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134.º, 2002, pág. 297).

A indemnização pecuniária é medida pela diferença entre a situação patrimonial (real) em que ficou o lesado e a situação patrimonial (hipotética) em que se encontraria se não tivesse existido o dano (art. 566.º, n.º 2, do CC).

Desta formulação, sobre a avaliação pecuniária, emerge também a consagração da teoria da diferença.


Descrito, sumariamente, o regime normativo aplicável, vejamos, no caso sub judice, se a indemnização de € 100 000,00 arbitrada no acórdão recorrido, a título de incapacidade para o trabalho, padece de defeito, como alega o Autor, ou, então, de excesso, como afirma, por seu turno, o Réu.

Na verdade, trata-se de um dano futuro, expressamente previsto no art. 564.º, n.º 2, do CC. A indemnização do dano futuro pressupõe a sua previsibilidade, excluindo-se a indemnização do dano incerto e meramente hipotético.

Efetivamente, como decorre da matéria de facto, o A. ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho, fixada nomeadamente no valor de doze pontos. Essa incapacidade para o trabalho, ao contrário do alegado, não impossibilita o A. de exercer a sua atividade profissional, embora implique esforços suplementares.

É com este alcance que devem ser interpretados os factos que se referem às circunstâncias do A. estar impossibilitado de realizar a execução do trabalho de serralharia em condições de normalidade e exigência laboral e à dificuldade de equilíbrio e exercício físicos. Estas circunstâncias, atendendo à atividade específica desenvolvida, acarretam para o A. um esforço suplementar considerável, a ponderar no cálculo da indemnização do dano futuro.

Assim, o A. continua com a possibilidade de desenvolver a sua atividade profissional habitual, embora com um esforço acrescido.

A indemnização, neste caso, deve corresponder à obtenção de um rendimento a prolongar durante o tempo de vida expetável, considerando especialmente a retribuição ou equivalente auferida, o grau e repercussão da incapacidade, uma aplicação financeira média e ainda a antecipação da disponibilidade do capital.

Por outro lado, saliente-se que os critérios fixados na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, de aplicação extra-judicial, não podem sobrepor-se aos critérios consagrados no Código Civil, no qual ganha especial relevo o critério da equidade, expresso no art. 566.º, n.º 3, do CC.

Neste contexto, apresenta-se, pois, como adequada a indemnização de € 100 000,00, fixada no acórdão recorrido, não se justificando qualquer alteração.

Tal indemnização reporta-se a todo o período decorrente desde o evento gerador da obrigação de indemnizar.


O A., no seu recurso, questionou também a indemnização de € 12 000,00, fixada a título dos danos não patrimoniais, continuando a defender a sua determinação no montante de € 25 000,00, tal como alegara na petição inicial.

A fixação da indemnização por dano não patrimonial depende da sua gravidade, a qual justifica a tutela pelo direito – art. 496.º, n.º 1, do CC.

É pela gravidade do dano não patrimonial que se afere a sua ressarcibilidade, sendo certo que, desde há muito tempo, está ultrapassada a controvérsia da sua ressarcibilidade, depois de se reconhecer a justa necessidade de uma compensação, reparação ou satisfação adequada, de modo a contribuir para atenuar, minorar e compensar os danos sofridos pelo lesado (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª edição, 2004, pág. 603/604).

A gravidade do dano não patrimonial é medida por um padrão objetivo e, por outro lado, apreciada em função da tutela do direito (ANTUNES VARELA, Ibidem, pág. 606).

De harmonia com o disposto no n.º 3 do art. 496.º do CC, a indemnização por dano não patrimonial é fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias especificadas no art. 494.º do CC.

Estabelece-se um critério de mera equidade, no âmbito do qual se deve atender ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado e às demais circunstâncias do caso, designadamente, a gravidade e a extensão da lesão.

A adoção do critério da equidade, que não se confunde com o juízo arbitrário, embora revele especial melindre e dificuldade na sua aplicação prática, apresenta-se como adequado, porquanto, como realça VAZ SERRA, “a satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, tratando-se, antes, de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é suscetível de equivalente” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 113.º, 1980, pág.104).

No mesmo sentido segue também, designadamente, ANTUNES VARELA, anotando que a fixação da indemnização deve ter em conta “todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (Ibidem, págs. 605 e 606) e A. MENEZES CORDEIRO (Direito das Obrigações, 2.º, 2001, págs. 285 e segs.).

Interessa ainda observar, neste âmbito, que a doutrina vem entendendo que a indemnização por dano não patrimonial reveste também um “cariz punitivo, assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-lo do comportamento do lesante” (L. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, I, 3.ª edição, 2003, pág. 339).

Também a jurisprudência, por sua vez, tem vindo a admitir que a indemnização por dano não patrimonial inclui, também, a ideia de “reprovar ou castigar (…) a conduta do agente” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de outubro de 1996, BMJ n.º 460, pág. 444) ou de “função punitiva” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de janeiro de 2008, acessível em www.dgsi.pt, Processo n.º 07B4538).


Dentro deste contexto legal, ponderando todo o circunstancialismo descrito nos autos, nomeadamente o grau de culpa na ofensa a um direito fundamental, como o direito à integridade física, as consequências do facto ilícito, algumas das quais com efeitos duradouros, aquilo que se depreende ser a situação económica do lesado, os parâmetros concretos seguidos pela jurisprudência e ainda os padrões médios de vida da sociedade portuguesa, onde o lesado se insere, considera-se mais justa e equitativa a indemnização no valor de € 20 000,00, a título de dano não patrimonial.


Nestes termos, procede parcialmente o recurso do Autor, com a fixação da indemnização no valor de € 120 650,00, e improcede o recurso do Réu.


2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Não existe dupla conforme, quando o acórdão recorrido não confirma a sentença, e, dando procedência parcial à apelação, arbitra uma indemnização superior à fixada na sentença, mas inferior ao pedido.

II. Continuando o lesado a desenvolver a atividade profissional habitual, embora com um esforço acrescido, a indemnização do dano futuro deve corresponder à obtenção de um rendimento a prolongar durante o tempo de vida expetável, considerando especialmente a retribuição ou equivalente auferida, o grau e repercussão da incapacidade, uma aplicação financeira média e a antecipação da disponibilidade do capital.

III. Para a fixação da indemnização pelo dano de natureza não patrimonial, estabelece-se um critério de mera equidade, no âmbito do qual se deve atender ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado e às demais circunstâncias do caso, designadamente, a gravidade e a extensão da lesão.


2.5. O Autor e o Réu, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

No entanto, o pagamento é inexigível ao A., por beneficiar do apoio judiciário.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Conceder revista parcial ao Autor e, alterando o acórdão recorrido, condenar o Réu a pagar a quantia de € 120 650,00 (cento e vinte mil seiscentos e cinquenta euros).

2) Negar a revista ao Réu.

3) Condenar o Autor e o Réu no pagamento proporcional das custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o Autor.


Lisboa, 7 de dezembro de 2016


Olindo Geraldes (Relator)

Fernando Nunes Ribeiro

Maria dos Prazeres Beleza