Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2155
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: RECURSO PENAL
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE
DECISÃO FINAL
TRIBUNAL COLECTIVO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA DA PENA
ATENUAÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200307080021555
Data do Acordão: 07/08/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: 2 J CR V FRANCA XIRA
Processo no Tribunal Recurso: 247/01
Data: 02/24/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : 1-Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos pelo tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame de matéria de direito (art. 432.º, al. d do CPP-norma imperativa), assim se excepcionando da regra de que o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância se interpõe para a Relação (art. 427.º do CPP).
2-Em matéria de recursos, há que respeitar a segurança jurídica que os sujeitos processuais só podem encontrar no conforto da lei e não em interpretações jurisprudenciais que dela se tendem a afastar, pelo que não é aceitável a interpretação de que, recorrendo só o arguido de uma decisão que infligiu pena igual ou inferior a 5 anos de prisão, o recurso deve ser dirigido à Relação, por tornar incerto, no momento de interposição do recurso, qual o tribunal ad quem.
3-Deve entender-se que a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.
4-O art. 71.º do C. Penal manda atender à culpa, às condições pessoais do agente e à sua conduta anterior ao facto, o que inclui, quando é o caso, a sua idade avançada.
5-O Código actual, diversamente do que sucedia com o de 1886 não prevê como circunstância atenuante da responsabilidade criminal do agente o «ser maior de setenta anos» (art. 39.º, circunstância 3.ª), circunstância de natureza pessoal, baseada em diminuição de culpa, que se compreendia como eventual segunda infância, com efectivas consequências sobre a imputabilidade, e como uma especial maior benevolência pelo respeito devido aos velhos.
6-Além de que a idade superior ao 70 anos, dá um outro e muito mais majorado sentido ao tempo de encarceramento, dado o limitado tempo de vida previsível.
7-Mas o não ter sido indicada expressamente esta circunstância como atenuante no texto do C. Penal, mercê da nova técnica utilizada a propósito, não lhe retira actualmente o valor atenuativo que se analisou.
8-Assim aceita-se que num crime de abuso sexual de menor, cometido por pessoa de 70 anos, sem antecedentes criminais, a pena baixe de 5 anos para 3 anos e 6 meses de prisão.
Decisão Texto Integral: Supremo Tribunal de Justiça

I

1.1. AFSC, com os sinais nos autos, foi condenado, por acórdão de 24.2.2003 do Círculo Judicial de Vila Franca de Xira, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.ºs 172°. n.° 1 e 177°, n.º 1, al. a), ambos do C. Penal, na pena de 5 anos de prisão.

Inconformado recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça concluindo na sua motivação:

1 - Quanto à pena em concreto aplicada ao arg.º -5 anos de prisão efectiva-ela foi exagerada, não teve em conta os factores de escolha e graduação da respectiva pena concreta que estão previstos nos art.°s 70.° e 71.º do C. Penal. Assim essa determinação deve fazer-se em Junção da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depuseram a favor ou contra o arguido;

2-Circunstâncias que militam contra o arg°.:

- Ao actuar da forma descrita no Acórdão , o arg░. agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo perfeito conhecimento da idade da menor SATS e que esta era sua neta, actuando movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apesar de saber que a conduta que praticava com a menor ofendia os mais elementares princípios de moral sexual daquela, pretendendo e conseguindo manter com ela relações sexuais, ainda que sem penetração vaginal;

- Sabia o recorrente que a sua conduta era prevista e punida por lei;

- Depois dos factos, a SATS teve uma mudança no seu comportamento, tornando-se uma criança mais agressiva, sofrendo de pesadelos e enurese nocturna, tendo sido acompanhada por uma psicóloga;

- O dolo é intenso e manifesta-se na sua forma mais vincada - o dolo directo;

- O arguido apenas admite ter praticado os factos em face do resultado dos exames efectuados, dizendo-se arrependido, mas de forma pouco convincente;

- O comportamento do recorrente é objecto de elevada reprovação social, reprovação essa tanto maior quanto mais baixa é a idade da ofendida;

- Actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que toda a sua conduta lhe estava vedada, por ser ilícita e criminalmente punível;

3-Circunstâncias que militam a favor do arg.║:

- O arguido vive sozinho em Faro sendo viúvo, e a ofendida vive em Castanheiro do Ribatejo;

- Reformado, auferindo cerca de €200 por mês;

- Não sabe ler, nem escrever, sabendo, apenas, assinar o seu nome;

- Não lhe são conhecidos antecedentes criminais, o que se mostra relevante face à sua idade (70 anos), quer antes quer depois dos factos (os factos são de Dezembro de 2001 e o acórdão é de Fevereiro de 2003);

- O recorrente é de humilde condição económica e social;

- Diz-se arrependido;

- Da conduta do arg.░ não resultou o desfloramento da ofendida;

- princípio da reintegração social do condenado;

4-Há, pois, também que ter em atenção a finalidade das penas referidas no art░. 40.º 1, do C. Penal, introduzido pelo DL n░. 48/95, de 15/3-protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade;

5-E são quatro as linhas de força inseridas neste art░. 40░.: princípio da culpa, princípio da proporcionalidade, principio da vinculação à defesa de bens jurídicos e principio da reintegração social do condenado;

6-O Tribunal Colectivo ao optar por uma pena privativa da liberdade de cinco anos de prisão, quando a moldura penal mínima do crime a que o arg.║ foi condenado é de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, não teve em atenção o art░. 40.║, 50.░, 70.║ e 71.║ todos do C Penal e as circunstâncias que militam a favor e contra o arg.░, a sua reintegração social e a idade do mesmo-70 anos;

7-Impunha-se que a decisão recorrida obedecesse aos requisitos previstos nestes artigos o que não o fez.

8-O Tribunal Colectivo não devia pelo crime a que o org.║ foi condenado o ter condenado na pena de prisão efectiva de 5 (cinco) anos de prisão atenta a moldura penal mínima do mesmo-l (um) ano e 4 (meses) de prisão, mas sim, tendo em atenção os artigos supra citados do C. Penal, devia o Tribunal ter condenado o arg░. Na pena mínima de 3 (três) anos de prisão não efectiva na sua execução mas sim suspensa por um período de 5 (cinco) anos, por esta realizar deforma adequada e suficiente as finalidades da punição e da reintegração social do idoso de 70 anos condenado.

9-A pena de prisão deve ser suspensa atendendo ao modo de execução do crime, não houve desfloramento da ofendida nem tentativa de violação da mesma nem agressões físicas, à sua situação actual, é reformado, vivendo sozinho e tem 70 anos de idade, a ausência de antecedentes criminais quer antes quer posteriores aos factos, atendendo que esteve vários meses em prisão preventiva por estes factos. Face a isto e a tudo o que foi supra referido é de concluir que a simples censura do facto e ameaça de prisão efectiva, realizam deforma adequada e suficientes as finalidades da punição, pelo que deverão E. Ex░s suspender a execução da pena de prisão pela qual o arg░. Deve ser condenado, três anos, em cinco anos de pena suspensa, tudo nos termos do art. 50░ do CP.

Face aos elementos constantes dos autos, é possível fazer uma prognose positiva relativamente ao recorrente e suspender por esta razão a pena de prisão.

10-Em conclusão e pelo supra exposto o arg░. Devia ter sido condenado numa pena de prisão efectiva de 3 anos e não de 5 anos suspensa na sua execução por 5 anos.

11-O art. 50░ do CP, ao exigir a satisfação das necessidades de prevenção geral do crime para a suspensão da pena viola o princípio da culpa, deste modo o art. 50░ do CP viola o art. 32░ da CRP.

12-A grande amplitude entre os limites mínimo e máximo das penas viola o art. 30░ n.║ 4 da CRP.

Assim sendo, violaram-se os art░s 40░,50░, 70░, 71░, 172░, n░. 1 e 177░, n░. 1 al. a) todos do C Penal e art.s 13░, 20░, 30░, 32░ da CRP.

Nestes termos, deve o presente Recurso ser julgado procedente, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que aplique ao arg░. A pena efectiva de 3 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 5 anos. Assim se fazendo a costumada Justiça.

1.2. O Ministério Público respondeu à motivação, sustentando a improcedência do recurso.


II

Neste Tribunal, o Ministério Público teve vista dos autos e pronunciou-se pela atribuição da competência da Relação de Lisboa e não do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer deste recurso.

Para tanto sustentou que, partindo do princípio da unidade do sistema, se deve concluir que não cabe recurso para o Supremo de decisão final do tribunal colectivo, desde que não coubesse do acórdão da Relação que, em recurso, sobre esta recaísse.

Só dessa forma - diz - se dará conteúdo à intenção, expressamente anunciada, de restringir a admissibilidade de recurso para o STJ em função da gravidade dos casos e se impede que entre pela janela [art. 432.░, al. d)] o que se fez sair pela porta [art. 400.░, n.║ 1, als e) e f)].

Ou seja, só poderá haver recurso directo para o STJ uma vez verificado o pressuposto (negativo) de não se estar perante uma (futura) decisão da Relação que viesse a ser irrecorrível.

Foi cumprido o disposto no n.║ 2 do art. 417.║ do CPP.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre conhecer e decidir, começando por esta questão prévia.


III
E conhecendo.
3.1. Quanto à questão prévia, com a discordância do relator, entendeu-se e decidiu-se:
O recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a Relação, «exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça» (art. 427.º do CPP).
Ora, «recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça (...) de acórdãos proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» (art. 432.º, al. d).
Foi o que o arguido fez, pois impugnou acórdão proferido pelo tribunal colectivo e visou exclusivamente o reexame de matéria de direito, pelo que recorreu directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, a letra da lei, nesse art. 432., al. d), é clara e imperativa, não devendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9.º, n.º 2, do CC).
De resto, em matéria de recursos, há que respeitar a segurança jurídica que os sujeitos processuais só podem encontrar no conforto da lei e não em interpretações jurisprudenciais que dela se tendem a afastar.

Note-se que não estamos perante um recurso "per saltum", mas perante um "recurso directo" para o STJ, pelo que não há que conferir à relação uma competência que a lei em caso algum lhe atribui, ainda que por título alternativo ou opcional.
O recorrente, ao limitar o seu recurso a questões de direito, quer vê-las decididas pelo mais Alto Tribunal e, com essa pretensão, não está a escolher uma instância de recurso, mas a obedecer ao dito imperativo legal.
A vingar a tese defendida pelo Excm.º Procurador-Geral Adjunto, o arguido nunca saberá, no momento da interposição, se dirige o recurso ao STJ ou à Relação, pois que se o assistente ou o M.º P.º também recorrerem, o que ele ignora, já não ocorrerá a proibição da "reformatio in pejus" e já não se verificará o pressuposto (negativo) de não se estar perante uma (futura) decisão da Relação que viesse a ser irrecorrível.
Essa insegurança não pode ser tolerada e, por isso, as regras de competência são definidas antecipadamente e de modo abstracto. E como tal têm de ser interpretadas.
Não ignoramos que, assim, o STJ acabará por conhecer de casos de pequena e média gravidade. Mas também não podemos perder de vista que, se foram julgados pelo tribunal colectivo, em algum momento tiveram gravidade suficiente para fazer intervir esse tribunal e não o singular, circunstância que, só por si, justifica a intervenção deste Supremo Tribunal. Tanto mais que o processo pode voltar a uma fase anterior, por virtude de reenvio ou de anulação do acórdão.
Termos em que não se atende à questão prévia e admite-se o recurso, para ser processado e julgado neste Supremo Tribunal.

3.2. Quanto ao mérito do recurso.

Como se vê das conclusões e do conjunto da motivação, o recorrente suscita as questões da medida concreta da pena e da aplicação da pena de suspensão da execução.

E sustenta, em síntese, que a pena em concreto aplicada-5 anos de prisão efectiva-é exagerada (conclusão 1.ª), pelo que o Tribunal Colectivo ao optar por ela numa moldura penal com o limite mínima de 1 ano e 4 meses, não teve em atenção o art. 40.º, 50.º.°, 70.º e 71.º todos do C Penal e as circunstâncias que militam a favor e contra o arguido, a sua reintegração social e a idade do mesmo-70 anos (conclusão 6.ª)

Devia o mesmo Tribunal ter aplicado a pena mínima de 3 anos de prisão não efectiva na sua execução mas sim suspensa por um período de 5 anos, por esta realizar deforma adequada e suficiente as finalidades da punição e da reintegração social do idoso de 70 anos condenado (conclusão 8.ª), pois não houve desfloramento da ofendida nem tentativa de violação da mesma nem agressões físicas, o recorrente é reformado, vivendo sozinho e tem 70 anos de idade sem antecedentes criminais quer antes quer posteriores aos factos e já esteve vários meses em prisão preventiva por estes factos (conclusões 8.ª e 9.ª).

3.3. É a seguinte a matéria de facto apurada:
1°- O arguido é avô da menor SATS, a qual nasceu em 4. 10.95.

2°- No dia 23 de Dezembro de 2001, o arguido chegou a casa da sua filha FS e de seu genro JT, pais da menor SATS, situada no Casal dos Arcos, Lugar das Quintas, Castanheira do Ribatejo, para passar o Natal na companhia destes.

3°- No dia 27 de Dezembro de 2001, na referida casa, a hora não concretamente apurada, mas antes das 15 horas, a menor SATS deitou-se, para fazer a sesta, numa cama que fazia parte de um móvel de quarto, tendo-se o arguido deitado, também, numa outra cama que fazia parte do mesmo móvel e que se encontrava encostada à cama da SATS.

4°- Aproveitando a situação de se encontrar sozinho com a sua neta no quarto e de a mesma só ter ainda seis anos de idade, o arguido puxou até aos joelhos as calças do pijama e as cuecas que a SATS vestia na altura, começando, então, a esfregar o seu pénis erecto no corpo desta, designadamente na região vulvar, tocando depois com o mesmo na vagina da SATS, onde friccionou, sem no entanto ter havido penetração.

5º- Na sequência desta fricção, o arguido ejaculou-se nas calças do pijama e cuecas que a menor SATS vestia.

6°- Posteriormente, o arguido e a menor ficaram deitados nas camas, ambos tapados por cobertores, tendo aquele aproveitado, ainda, a situação para colocar a sua mão direita por debaixo da roupa, para desta forma acariciar a vagina da menor.

7º- Foi nessa altura, cerca das 15 horas, que FS entrou no quarto, e, ao ver a mão do arguido por debaixo dos cobertores, logo pensou que este estivesse a mexer na vagina da sua filha, pelo que puxou, de imediato, os cobertores, tendo, então, verificado que esta tinha as calças do pijama e as cuecas colocadas junto aos joelhos.

8°- Perante o que acabara de ver, FS retirou, de imediato, a sua filha do quarto, tendo, posteriormente, o arguido abandonado a residência onde se encontrava.

9°- Efectuado exame directo de clínica médico-legal sexual à menor SATS, resulta das respectivas conclusões médico-legais o seguinte:

- a pesquisa de espermatozóides nas amostras de exsudado vaginal da examinada revelou-se positiva;

- pela conclusão anterior SATS havia tido coito vaginal recente;

- não foram encontrados vestígios de lesões traumáticas recentes ou não recentes, nem sinais de lesões infecciosas, quer a nível genital quer extra-genital, que pudessem ser sugestivos de contacto sexual;

- tal, não exclui que a examinada tenha sido submetida a algum tipo de contacto de cariz sexual que, pelas suas características, não deixa necessariamente marcas-como por exemplo, e dado o resultado positivo do exame complementar solicitado, coito vestibular (cfr. fls. 27a30).

10°- Efectuado, ainda, exame pericial biológico para comparação de material recolhido à menor SATS e ao arguido, resultou do mesmo as seguintes conclusões:

- na zaragatoa vaginal detectaram-se levas vestígios de sangue e não se detectaram vestígios de esperma;

- no par de cuecas e no par de calças de pijama, detectaram-se vestígios de esperma e não se detectaram vestígios de sangue;

- de acordo com os resultados obtidos na análise de DNA, há identidade de poliformismos para o conjunto de loci estudados, dos vestígios de esperma detectados no par de calças de pijama e a zaragatoa bucal recolhida a AFSC;

- de acordo com os resultados obtidos na análise de DNA, há identidade de poliformismos de loci estudados, dos vestígios biológicos detectados na zaragatoa vaginal e a zaragatoa bucal recolhida a SATS;

- de acordo com os resultados obtidos na análise de DNA no par de cuecas detectou-se uma mistura de vestígios biológicos provenientes de mais de um indivíduo, da qual não podem ser excluídos como maior dador e menor dador, respectivamente, SATS e AFSC (cfr. fls. 177 a 181).

11°- Ao actuar da forma acima descrita, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo perfeito conhecimento da idade da menor SATS e que esta era sua neta, actuando movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apesar de saber que a conduta que praticava com a menor ofendia os mais elementares princípios de moral sexual e que atentavam contra a liberdade e autodeterminação sexual daquela, pretendendo e conseguindo manter com ela relações sexuais, ainda que sem penetração vaginal.

12°- Sabia o arguido que a sua conduta era prevista e punida por lei.

13°- Depois dos factos, a SATS teve uma mudança no seu comportamento, tornando-se uma criança mais agressiva, sofrendo de pesadelos e enurese nocturna, tendo sido acompanhada por uma psicóloga.

14°- O arguido vive sozinho.

15°- É reformado, auferindo cerca de € 200 por mês.

16°- Não sabe ler, nem escrever, sabendo, apenas, assinar o seu nome.

17°- Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

3.4.1. No que se refere à medida concreta da pena, escreveu-se na decisão recorrida:

«A determinação da medida concreta da pena far-se-á em função da culpa do arguido, tendo, ainda, em atenção as exigências de prevenção da prática de futuros crimes.

Atender-se-ão a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente as constantes do art. 71°, n.º 2 do CP.

É elevado o grau de ilicitude do facto; revelado pelo modo de execução do crime, o tipo de actos praticados e as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, nomeadamente o facto do arguido se ter aproveitado da situação de proximidade em que se encontrava com a menor, partilhando o mesmo quarto.

Não são de menor importância as sequelas dos actos praticados na menor, mostrando a mesma alteração no seu comportamento, não se podendo ignorar o carácter necessariamente traumatizante que tais situações geralmente têm, reflectindo-se no futuro comportamento da menor a nível sexual.

Escreveu-se no Ac. do STJ de 1.4.98, publicado in CJASTJ, Tomo II, pág. 175 e ss que "qualquer dos factos previstos no citado art. 172°, quando praticados com ou em criança que ultrapassou a P infância, além de ultrajar, torturar e vilipendiar, é susceptível de corromper. E, tratando-se de criança que em idade não ultrapassou a P infância, qualquer daqueles actos, condenados pela comunidade como repugnantes, poderá causar-lhe deformações do foro afectivo, que se projectarão no futuro, originando, quiçá, um complexo edipiano ou outro".

O dolo é intenso e manifesta-se na sua forma mais vincada-o dolo directo.

O arguido é de humilde condição económica e social.

O arguido apenas admite ter praticado os factos em face do resultado dos exames efectuados, dizendo-se arrependido, mas de forma pouco convincente.

Não tem antecedentes criminais, o que se mostra relevante face à sua idade (70 anos).

Refere-se, ainda, que da conduta do arguido não resultou o desfloramento da ofendida.

Ponderar-se-ão, por último as exigências de prevenção geral e especial, com vista a evitar a prática de futuros crimes, sendo de referir que o comportamento do arguido é objecto de elevada reprovação social, reprovação essa tanto maior quanto mais baixa é a idade da ofendida, e que não se prende com sensacionalismos televisivos mais recentes.

A moldura penal abstractamente aplicável ao arguido é a de pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.

Ponderando tudo o que se deixou escrito, entendem os juízes que constituem o Tribunal Colectivo que será de aplicar ao arguido uma pena acima da moldura mínima legal, efectiva na sua execução.»

3.4.2. Deve ter-se em conta que se trata de um recurso de revista em que sofrem de alguma limitação os poderes de cognição do Tribunal ad quem em matéria de medida concreta da pena.
Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.
Tendo sido posto em dúvida que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade caibam dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista (Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3), deve entender-se que a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (neste sentido, Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63 n.º m. 200, Figueiredo Dias, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas Santos, Medida Concreta da Pena, Disparidades, pág. 39).
Ao crime em causa corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, e é nela que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);
- A intensidade do dolo ou negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Como se refere na decisão recorrida, é elevado o grau de ilicitude do facto (modo de execução, os actos praticados, o ter-se o arguido aproveitado da partilha do mesmo quarto, embora, de algum modo, a facilidade de acesso já esteja considerada na agravação pelo parentesco, por ser desta resultante).
E, ainda no domínio da ilicitude, apesar de não ter havido penetração, que estaria, aliás, afastada dada a idade da ofendia, não se podem desvalorizar as consequências dos actos praticados na menor, como é demonstrado pela alteração no seu comportamento actual e, com todas as probabilidades, no seu futuro comportamento a nível sexual.

O dolo é directo e revela-se intenso, pelo tipo de comportamento, pela insistência, pela relação de parentesco, no que nesta sede pode relevar e pela idade da ofendida.

Quanto às suas condições pessoais e situação económica, o agente é de humilde condição económica e social, vive sozinho, é reformado, auferindo cerca de € 200 por mês. Não sabe ler, nem escrever, sabendo, apenas, assinar o seu nome.

No que se refere à conduta anterior ao facto e posterior a este, releva a primaridade e o desconhecimento de prática de outros factos posteriores, bem o ter admitido ter praticado os factos 8 se bem que em face do resultado dos exames efectuados), dizendo-se arrependido, por forma que o Tribunal a quo teve por pouco convincente.

As necessidades de prevenção geral de integração impõem, como se ponderou na decisão recorrida, uma pena efectiva

Com efeito, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97).
A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
A esta luz, e atendendo aos poderes de cognição que a este Supremo Tribunal assistem, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que o recorrente contesta, se situa dentro da sub-moldura a que se fez referência.
Mas já se entende que nem todos aqueles elementos de facto que se salientaram foram dentro dela devidamente sopesados.
Referimo-nos à idade do recorrente, conjugada com a falta de antecedentes criminais.
Como se viu, o art. 71.º do C. Penal manda atender à culpa, às condições pessoais do agente e à sua conduta anterior ao facto, o que aconteceu, mas em medida insuficiente.

Com efeito, o Código Penal de 1886 previa como circunstância atenuante da responsabilidade criminal do agente o «ser menor de catorze (sendo punível), dezoito ou vinte e um anos, ou maior de setenta anos» (art. 39.º, circunstância 3.ª) (sublinhado agora), com atenuação especial nos art.ºs 107.º (menores de 21 anos) e 108.º (menores de 18 anos)

Escrevia, a propósito Maia Gonçalves (Código Penal Anotado, 3.º Ed., 1977, pág. 118) que é «uma circunstância de natureza pessoal, baseada em diminuição de culpa» (cfr. Ac. do STJ de 31.8.61, BMJ 107-432).

E Eduardo Correia: «compreende-se que uma idade avançada, fazendo voltar como que a uma segunda infância, produza sobra a imputabilidade efectivas consequências. Por isso, se manda atenuar a pena quando se é maior de setenta anos.» (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 382). O mesmo Autor acrescentara anteriormente: «possível é também, a consideração de que é uma circunstância de ter mais de setenta anos exige uma maior benevolência pelo respeito devido aos velhos. A entender-se, todavia, assim, como parece ser mais razoável, será o momento do julgamento, e não da prática do crime que determina a possibilidade de atenuação.» (Apontamentos Sobre as Penas e sua Graduação no Direito Criminal Português, Coimbra, 1953, págs. 296-7).

Pode ainda dizer-se que a idade superior ao 70 anos, dar um outro e muito mais majorado sentido ao tempo de encarceramento, dado o limitado tempo de vida previsível.

O não ter sido indicada expressamente esta circunstância como atenuante no texto do Código Penal, mercê da nova técnica utilizada a propósito, não lhe retira actualmente o valor atenuativo que acima se analisou.

Assim, considera-se que a pena já adequada à culpa atendendo ao maior valor que se atribuiu à circunstância de o arguido ter setenta anos, sem antecedentes criminais, se situa num patamar mais baixo dos 5 anos estabelecidos pela decisão recorrida e que constituem a pena ainda adequada à culpa, ou seja nos 3 anos e 6 meses de prisão.


IV

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso, reduzindo a pena aplicada ao arguido para 3 anos e 6 meses de prisão, no restante confirmando a decisão recorrida.

Custas, no decaimento, pelo recorrente com a taxa de justiça de 3 Ucs

Lisboa, 8 de Julho de 2003

Simas Santos

Santos Carvalho (no que respeita à questão prévia a decisão reflecte o meu entendimento actual assim modificando a opinião que tive como relator e como adjunto em anteriores acórdãos).

Costa Mortágua

Rodrigues da Costa

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Votei vencido, como Relator, quanto à questão prévia, pelas seguintes razões:

1. Tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a considerar, a propósito do regime dos recursos resultante da Revisão de 1998 do CPP, que o mesmo contém inovações de relevo quando comparado como o regime originário do CPP de 1987.

Na versão original do Código (como se faz notar na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII que o alterou), os recursos contam-se entre as matérias em que tal Código [1987] mais inovou.

"Como se refere no preâmbulo do diploma, foi preocupação do legislador reforçar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e emprestar efectividade à garantia de um duplo grau de jurisdição.

As soluções postas ao serviço destes objectivos caracterizaram-se pela linearidade quase esquemática dos princípios e por uma forte sensibilidade às conexões entre processo e organização judiciária. Neste contexto, as ideias de tramitação unitária, de competência baseada na natureza do tribunal a quo, de estrutura acusatória ou de revista alargada exprimiram um singular compromisso entre teoria e exigências práticas.

Houve, certamente, a consciência de que o projecto se aproximava, em alguns capítulos, de limites constitucionais e que a sua aplicação dependeria de uma utilização exaustiva dos meios.

Alguns anos decorridos, há que reconhecer que, não obstante os seus aspectos positivos, a experiência, ficou aquém das expectativas. Por razões que, naturalmente, se prenderam mais com dificuldades de aplicação do que com o mérito das soluções, é hoje manifesta a erosão de alguns princípios, de que são exemplo, nomeadamente: (...)

b) A incomunicabilidade entre instâncias de recurso resultante de os poderes das relações e do Supremo Tribunal de Justiça incidirem, em regra, sobre objecto diferente (os primeiros sobre recursos interpostos do tribunal singular; os segundos sobre recursos interpostos do tribunal colectivo ou de júri);

c) A indesejável duplicação de tribunais de recurso que julgam, por regra, em última instância (em princípio, não há recurso ordinário dos acórdãos proferidos pelas relações e pelo Supremo Tribunal de Justiça); (...)

f) O enfraquecimento da função real e simbólica do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal a quem compete decidir, em última instância, sobre a lei e o direito".

Para corrigir a indicada erosão de princípios, a nova lei visa, expressamente, a introdução de "instrumentos mais consistentes, adequados e dialogantes, obtidos a partir da reavaliação dos meios disponíveis, da tradição jurídica e da cultura prevalecente."

E para concretização destes objectivos: (...)

"c) Faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade;

d) Admite-se o recurso per saltum, justificado pela medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito;

e) Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça;

f) Ampliam-se os poderes de cognição das relações, evitando-se que decidam, por sistema, em última instância;" (sublinhado agora).

2.

È, portanto, a esta luz que devem ser interpretados os normativos interessados na questão prévia suscitada, tendo, pois, presente, que, com o princípio da «dupla conforme», se procurou limitar a intervenção do STJ aos casos de maior gravidade, se admitiu para este Tribunal o recurso per saltum, justificado pela medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito e se retomou a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao STJ.

Dispõe a al. d) do art. 432.º-recurso para o STJ:

«Recorre­se para o Supremo Tribunal de Justiça: (...)

d) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito; (...)»

Por sua vez, o n.º 1, als. e) e f) do art. 400.º do mesmo diploma-decisões que não admitem recurso, estabelece:

«1 - Não é admissível recurso: (...)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;(...)»

«Recorre­se para o Supremo Tribunal de Justiça: (...)

d) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito; (...)»

Independentemente das dificuldades de interpretação que a al. d) do art. 432.º vem gerando no STJ, há acordo sobre a possibilidade deste Supremo Tribunal conhecer do recurso de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

Mas, não resultará do disposto na al. e) do art. 400.º, à luz da razão de ser das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, o estabelecimento de limites à mencionada admissibilidade de recurso para o STJ dos falados recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo?

Relembremos que a al. f) do n.º 1 do art. 400.º veio acolher a citada limitação da intervenção do STJ aos casos de maior gravidade, prescrevendo a irrecorribilidade dos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.

Quanto aos casos de pequena ou média gravidade, que não devem, por norma chegar ao STJ, estabeleceu-se a possibilidade de recurso per saltum, como se refere na transcrita Exposição de Motivos, em função da medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito.

Mas quais são os limites que desenham o limite dessa pequena ou média gravidade?

Os apontados pela al. e) do n.º 1 do art. 400.º, «processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3»

Com efeito, dessa disposição, tendo em conta o princípio da unidade do sistema jurídico, resulta o princípio de que nesses processos, em que não caberia recurso, para o STJ, do acórdão da Relação, proferido em recurso, não cabe recurso da decisão do Tribunal Colectivo para o STJ.

Com efeito, só dessa forma se dá conteúdo à, expressamente anunciada, intenção de restringir a admissibilidade de recurso para o STJ em função da gravidade dos casos e se impede que entre pela janela [art. 432.º, al. d)] o que se fez sair pela porta [art. 400.º, n.º 1, als e) e f)]

Neste sentido já se pronunciou, aliás, este Tribunal (Acs de 20.3.02, Proc. n.º 137/2002-3.ª e de 11.4.02, proc. n.º 150/02-3, Relator: Cons. Lourenço Martins e de 3.4.03, proc n.º 613/03, do mesmo Relator do presente) entendendo «que a interpretação mais adequada será mesmo a que entende que o recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça só é admissível dos acórdão proferidos pelo tribunal de júri, e de acórdãos proferidos pelo tribunal colectivo (exclusivamente para reexame de matéria de direito), mas desde que pudessem ser recorríveis nos termos do artigo 400º do CPP. Dizendo de outro modo: só poderá haver recurso directo para o STJ uma vez verificado o pressuposto (negativo) de não se estar perante uma (futura) decisão da Relação que viesse a ser irrecorrível. De outra maneira, a "dupla conforme" não funcionará em casos em que devia existir, isto é, em situações de pequena e média gravidade, que continuarão a chegar ao STJ, ficando assim subvertido o princípio de que o recurso per saltum só se justifica pela medida da pena (e a limitação à matéria de direito), tudo isto contra o que terá sido o propósito do legislador, expresso nas alíneas c), d) e e) do n.º 16 da "Exposição de motivos" da Proposta de lei n.º 157/VII.»

E, como se entendeu no último destes dois arestos, se for trazido recurso pelo arguido ou no exclusivo interesse da defesa, não podendo ter lugar a reformatio in pejus (art. 409.º do CPP), ainda que a Relação, na pior das hipóteses para a recorrente, confirmasse a decisão condenatória da 1. ª Instância, se a pena não pudesse exceder a pena de prisão já aplicada, se a mesma fosse inferior a 8 anos de prisão, não haveria possibilidade sequer de recurso para este Supremo Tribunal, ficando o processo decidido definitivamente-als e) e f) do n.º 1, do citado artigo 400º.

No caso sujeito, como se viu, foi o arguido recorrente condenado na pena de 5 anos de prisão. E só ele recorreu.

Assim, não seria recorrível a decisão que a Relação viesse a proferir, mesmo se condenatória, à luz do art. 400.º, n.º 1. als e) e f) do CPP, pelo que não deve o mesmo recurso ser conhecido por este Supremo Tribunal de Justiça, mas sim pela Relação.

3.

E não se argumente em contrário com a clareza do texto legal [art. 432, al. d)].

A interpretação consiste, genericamente, numa operação intelectual através da qual se procura estabelecer o sentido das expressões legais para decidir a previsão legal e, logo, a sua aplicabilidade ao pressuposto de facto que se coloca perante o intérprete (Muñoz Conde e Garcia Arán, in Derecho Penal, Parte General, 3ªedição, Valencia, 1998).

Interpretar o preceito consistirá antes do mais em tirar das palavras usadas na sua redacção um certo sentido, um certo conteúdo de pensamento, uma significação; em extrair da palavra - expressão sensível duma ideia - a própria ideia nela condensada. Não se tratará, porém, de colher da lei um qualquer sentido, o primeiro que o teto legal traga ao espírito do jurista. É que a lei não se destina a alimentar a livre especulação individual; é um instrumento prático de realização e de ordenação da vida social, que se dirige sempre a uma generalidade mais ou menos ampla de indivíduos, não concretamente determinados, para lhes regular a conduta (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 1973, pág. 144 - Carlos Maximiliano Hermeneutica e Aplicação do Direito, 5.º Edição, 1951, pág. 24)

Entre os elementos a atender na interpretação da lei, devem também ser ponderados os elementos racional e histórico.

Consiste o elemento racional na razão de ser, no fim visado pela lei (ratio legis) e ainda nas circunstâncias históricas particulares em que a lei foi elaborada (ocasio legis) [circunstâncias políticas, sociais, económicas, morais, religiosas que permitem avaliar a força relativa com que no seu espírito (do legislador) devem ter operado os diversos interesses regulados por essa norma e, assim, descortinar mais facilmente a disciplina que através dela de pretendeu estatuir].

Por sua vez, o elemento histórico compreende todos os materiais relacionados com a história da norma e que lançam alguma luz sobre o seu sentido e alcance decisivo. Nele cabem, assim, as disposições reguladoras da mesma matéria em períodos anteriores (história do direito), os textos que directa ou indirectamente serviram de modelo ao legislador (fontes da lei) e as publicações onde se documenta a elaboração (trabalhos praparatórios).

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, 6.ª edição revista e ampliada, págs. 158 e segs), resulta dos princípios gerais de interpretação jurídica que a letra da lei, se bem que constitua um importante elemento de interpretação não é o único, nem, porventura, o mais importante. O elemento lógico ou racional, conjugado com os elementos histórico, e sistemático, nomeadamente, não podem ser descurados

E na verdade, o art. 9.º do Código Civil , que genericamente regula a matéria da interpretação da lei, estabelece, como principal linha de rumo, que tal interpretação deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

O escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.

Assim, afastado que está o hoje afastado o brocardo de que sendo clara a letra da lei não há lugar à interpretação, o que importa na questão que nos ocupa é saber se o legislador da Revisão de 1998 não disse mais do que queria ao manter a redacção da falada alínea. E pensamos ter demonstrado que o disse, pelo que se impõe a interpretação restritiva da al. d) do art. 432.º que se propôs.

Também não se pode esquecer de que se trata do Supremo Tribunal de Justiça e que se trata da interpretação das regras que balizam a sua competência e os seus poderes de cognição.

A posição hierárquica do Supremo Tribunal de Justiça e a sua qualidade de tribunal de revista (1) a quem cabe orientar superiormente a aplicação da lei pelos tribunais judicias, inclusive uniformizando a jurisprudência dos tribunais superiores desavindos, garante-lhe um espaço interpretativo especialmente alargado naquelas matérias.

Estatuto que o Supremo Tribunal de Justiça deve, sem complexos ou tibiezas, assumir.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça situa-se na cúpula da hierarquia judiciária. Com efeito, diz o art. 214.° da Constituição que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
A Constituição não abordou, pois, a questão das funções do Supremo Tribunal de Justiça e deixou em aberto o problema da sua competência para proferir assentos, remetendo-o para o legislador ordinário (2) (3).
O STJ foi concebido como «regulador e uniformizador da jurisprudência nacional». Como referem Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, «na hierarquia judiciária não há poder de direcção por parte dos juízes dos tribunais superiores, como não há dever de obediência do lado dos juízes dos tribunais inferiores, visto que para todos eles vale indistintamente o princípio basilar da independência, o que não impede a acção uniformizadora do STJ [art. 35.º, n.º 1, al. c) da LOFTJ].
E são essas funções de regulador e uniformizador da jurisprudência nacional que vem mantendo, cabendo-lhe essencialmente a função de tribunal de revista (art. 26.° da LOFTJ).
É, pois, o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, isto é, um «tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pela relação ou pelo tribunal da lª instância, contribuindo para a uniformização da jurisprudência. Essa uniformização ocorre, quer directamente, por via dos assentos, quer indirectamente». (4)
Acompanha, assim, o nosso Supremo Tribunal de Justiça o ensinamento do direito comparado de, em primeiro lugar, velar pela boa aplicação das regras jurídicas pelas jurisdições inferiores e, por essa forma, assegurar ao direito unidade, clareza e certeza; em segundo lugar, modernizar o direito, isto é, adaptá-lo às novas condições sociais e às aspirações contemporâneas: e só reflexamente fazer boa justiça ao recorrente. (5)
Ora, aproxima-se o Supremo Tribunal de Justiça português do Supremo Tribunal ideal, na síntese conclusiva de André Tunc, na obra mencionada, que seria híbrido - nem um terceiro grau de jurisdição que se não distingue das 1ª e 2ª instâncias a não ser pela sua supremacia, uma vez que conhece igualmente de matéria de facto e de direito, nem o oposto que tem exclusivamente por função o controle do respeito da lei - e só poderia ser chamado a intervir sobre questões de direito mas poderia alterar a decisão de fundo, sempre que os factos fossem suficientemente claros.
Referiu Costa Andrade, no decurso da discussão sobre a consagração constitucional das regras de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, que se devia dar prioridade à concepção do Supremo como «a última instância de criação de direito e a instância mais qualificada possível». Sendo o Supremo, «em toda a plenitude, criador do direito», esta tarefa «exige criatividade, inteligência e abertura», o que implica que se acolham «contributos novos à tarefa de aplicação do direito.» (6)

4.

Também não se argumente que a posição que se advoga geraria um resultado absurdo e que o legislador seguramente não aceitaria: a incerteza sobre o tribunal ad quem.

Com efeito-diz-se-no momento da interposição de recurso pelo arguido, o mesmo era dirigido a um tribunal superior (o STJ) que poderia deixar o que viria a conhecer dele, por virtude da interposição de recurso por parte da acusação.

Tal pode efectivamente acontecer, mas esse resultado não só não repugna ao legislador, como foi por este expressamente adoptado.

Na verdade, o legislador de 1998 consagrou-o expressamente no n.º 7 do art. 414.º do CPP. De acordo com o normativo aí inserido, se a defesa recorrer para o STJ, em matéria de direito, e depois a acusação recorrer em matéria de facto e de direito, será a Relação a conhecer de todos eles, mesmo do que havia sido interposto para o STJ.

E, sendo assim como é, perde totalmente valor tal argumento.

5.

Finalmente, é completamente alheia a esta problemática, aquela outra que está em discussão neste Supremo Tribunal de Justiça respeitante à possibilidade de o recorrente optar por dirigir o recurso de direito de decisão do colectivo para a Relação ou para o STJ.

A questão coloca-se da mesma maneira quer se entenda que o recurso da al. d) do art. 432.º é per saltum ou directo.

Lisboa, 8 de Julho de 2003

Simas Santos

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(1) Deve notar-se que «o recurso de revista é entre nós antiquíssimo, porque remonta a D. Afonso II. Era, antes do estabelecimento do regime liberal, um recurso extraordinário e de graça especial, chamado assim, porque se pedia ao rei por meio de uma petição escrita, dirigida ao desembargo do paço, que fizesse a graça de conceder a revista do feito.»
« Recebida a petição, o desembargo do paço, como delegado do impetrante civil, concedia ou negava a revista pedida pelo voto unânime de dois desembargadores ou de três, se os dois empatavam, devendo, neste caso, o terceiro concordar com um dos dois votos. Concordando dois desembargadores com se conceder a revista, o desembargo do paço nomeava dois desembargadores da Casa da Suplicação para examinarem o feito e deliberarem, por tenções escritas, se o caso era ou não de revista; e se resolviam pela negativa, ficava esta negada, não obstante os dois votos favoráveis dos desembargadores do paço; se resolviam pela afirmativa, mandava-se passar um alvará assinado pelo punho real e dirigido ao regedor da justiça, para nomear juízes, a quem se cometia a revisão do feito, sendo um relator e os demais adjuntos». Chaves e Castro, op. cit., pág. 157, podendo ainda ver-se sobre o recurso de revista Pereira e Souza, Primeiras Linhas de Processo Civil. Paulo Merêa, BMJ n.º 7, págs. 43 a 72, Alberto dos Reis, CPC Anotado, VI, págs. 11 e segs. e Sá Nogueira, na introdução a «Supremo Tribunal de Justiça, Assentos e Jurisprudência Obrigatória» págs. 13-66.
(2) A 6ª Comissão propôs para o art. 8.º a seguinte redacção: «O Supremo Tribunal de Justiça é o órgão máximo da hierarquia dos tribunais judiciais e tem competência para proceder à uniformização da jurisprudência». Esta última parte foi retirada após discussão no plenário, tendo, a propósito, afirmado o deputado Jorge Miranda «a opinião que sempre sustentei é de que os assentos não são lei - são jurisprudência, são expressão de jurisprudência criadora. Ora, a consagração constitucional deste poder do Supremo Tribunal de Justiça para uniformizar a jurisprudência através de assentos poderia, mais tarde, ser interpretada no sentido de que era lei. E nós, no Estado democrático que queremos construir em Portugal, só podemos admitir um único órgão legislativo: o órgão representativo, o órgão derivado da vontade popular, e não o Supremo Tribunal de Justiça)»-DAC, pág. 3128/9, Plenário de 17 de Dezembro de 1975.
(3) Cfr. a apresentação do Supremo Tribunal em www.stj.pt..
(4) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, pág. 2.
(5) Cfr. o número especial da Revue Internationale de Droit Comparé, intitulado La Cour Judiciaire Suprême.
(6) Diário da AR, II Legislatura, 2ª Sessão Legislativa, II Série, 2º suplemento ao n.º 44 de 24-1-82, pág. 904 (51).