Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7614/12.4TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: EXEQUATUR
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CONVENÇÃO DE BRUXELAS
REGULAMENTO (CE) 44/2001
ORDEM PÚBLICA
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
TRADUÇÃO
DEPOIMENTO DE PARTE
DECLARAÇÕES DE PARTE
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCIPIO DO PROCESSO EQUITATIVO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ - Nº 259 - A. XXII - T. III/2014 - P. 128-132
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMUNITÁRIO - COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA, AO RECONHECIMENTO E À EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS - INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Paul Jenard, relatório publicado em JOCE C59, p. 1 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 4.º, 7.º, 133.º, 195.º, 199.º, 452.º, 496.º, 547.º, 682.º, N.º2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º, N.º 4 .
Legislação Comunitária:
CONVENÇÃO DE BRUXELAS RELATIVA À COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA, AO RECONHECIMENTO E À EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL, DE 27-09-1969.
REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001 DO CONSELHO, DE 22-12-2000: - ARTIGOS 34.º, N.ºS 1 E 2, 45.º, N.º1, 52.º.
REGULAMENTO (UE) Nº 1215/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012: - ARTIGOS 80.º E 81.º.
Jurisprudência Internacional:

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):
-ACÓRDÃO DE 13 DE NOVEMBRO DE 2011, PROC. C-139/10, CASO PRISM INVESTMENTS BV VS. JAAP ANNE VAN DER MEER;
-ACÓRDÃOS DE 28 DE MARÇO DE 2000, PROC. C-7/98, CASO DIETER KROMBACH VS. ANDRÉ BAMBERSKI, QUANTO À CONVENÇÃO, E OS ACÓRDÃOS DE 28 DE ABRIL DE 2009, PROC. Nº C-420/07, CASO APOSTOLIDES VS.ORAMS E DE 6 DE SETEMBRO DE 2012, PROC. Nº C-619/10, CASO TRADE AGENCY LTD. VS SERAMICO INVESTMENTS, LTD, PARA O REGULAMENTO.
-DE 6 DE SETEMBRO DE 2012, PROC.Cº C-619/10, CASO TRADE AGENCY LTD. VS SERAMICO INVESTMENTS, LTD.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (TEDH):
-DE 27 DE OUTUBRO DE 1993 (PROC. Nº 14448/88, CASO DOMBO BEHEER VS. PAÍSES BAIXOS).E DE 24 DE SETEMBRO DE 2002 (PROC. Nº 32771, CASO CUSCANI VS. REINO UNIDO).
Sumário :
I - Uma sentença é nula, por falta de fundamentação de facto, quando a decisão concretamente tomada não se encontre assente em factos apresentados pela própria decisão, directamente ou por remissão.

II - Quer no domínio da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de 27-09-1969, quer no domínio do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22-12-2000, a jurisprudência do TJUE tem afirmado, de forma uniforme, que a excepção de contrariedade à ordem pública, como fundamento de recusa de concessão do exequatur, tem de ser interpretada restritivamente, só procedendo em circunstâncias excepcionais de violação manifesta de um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido.

III - Só se a execução da decisão – e não a decisão, em si mesma – violar manifestamente um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido é que se justificará essa recusa.

IV - Pode constituir fundamento de recusa de exequatur a violação manifesta do princípio do processo equitativo, enquanto princípio integrante da ordem pública processual.

V - Não é causa de recusa de exequatur a alegação de violação de normas ou princípios processuais que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, ou em via de recurso, de forma a que pudesse ter sido corrigida.

VI - Não tem fundamento a afirmação de que é da ordem pública processual do Estado português que, num processo civil em que as partes estão representadas por advogado, e em que os representantes de uma das partes não entendem a língua do processo mas são assistidos por um intérprete devidamente credenciado para o efeito, quando são chamados a depor em audiência, incumba ao juiz garantir mais do que essa possibilidade de intervenção do intérprete.

VI - É condição de igualdade na produção da prova que, se as declarações das partes relevam como meio de prova, ambas compreendam as perguntas que lhes são feitas e os depoimentos com que são confrontados.

VII - Se a parte está representada por advogado, é assistida por intérprete formalmente credenciado e não suscita perante o tribunal a incapacidade concreta do tradutor, não pode vir a fazê-lo posteriormente, para impedir a concessão de exequatur à sentença que se encontre pendente de recurso. O mesmo se diga quanto aos depoimentos das testemunhas.

VII - Ainda que se provassem os factos alegados pela recorrente, não se poderia ter como preenchida a excepção de violação da ordem pública do Estado Português. Não se justifica assim a ampliação da matéria de facto.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Nos termos do nº 1 do artigo 38º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, AA B.V., com sede em Wassenaar, Holanda, requereu no Tribunal da Comarca de Cascais que fosse conferida executoriedade à sentença da Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amsterdão, de 27 de Junho de 2012, que condenou BB Biofarmacêutica, Lda, com sede em Cascais, a pagar-lhe a quantia de €183.405,90 (€ 175.000,00, acrescidos dos juros legais, contados desde 16 de Junho de 2009 até integral pagamento, € 4.984,89 de custas processuais suportadas pela requerente, € 1.421,00 de custas processuais suportadas pela requerente com o processo de oposição e € 2.000,00 de custas da reconvenção da requerida) – cfr. tradução da sentença, junta a fls. 10.

A sentença holandesa foi declarada executória pela sentença de fls. 40.


2. BB Biofarmacêutica, Lda. recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa; mas foi negado provimento ao recurso, pelo acórdão de fls. 146, que decidiu:

– não encontrar fundamento de recusa do exequatur, à luz do nº 1 do artigo 34º do Regulamento 44/2001 (contrariedade à ordem pública), invocado pela recorrente;

– não se justificar manifestamente o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia porque, “independentemente da utilidade que pudesse ter (…), falta para o efeito pretendido um pressuposto importante, isto é, a ausência de qualquer prova do facto alegadamente tido por violador do processo equitativo”;

– não determinar a suspensão da instância, aliás requerida sem fundamentação concretizada.


3. BB Biofarmacêutica, Lda. Recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça; mas o recurso só veio a ser admitido pelo despacho de fls. 76 do apenso, na sequência do deferimento da reclamação apresentada contra o despacho de não admissão, de fls. 205.

Também na sequência desse despacho foi proferido o acórdão de fls. 248 do Tribunal da Relação, indeferindo a nulidade do acórdão de fls. 146, arguida pela recorrente, que invocou “vício de ausência absoluta de fundamentação de facto”.

Em resposta ao despacho de fls. 258, a recorrente veio informar que “o recurso que interpôs nos tribunais neerlandeses contra a sentença proferida em 27 de Junho de 2012 pela Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amsterdão ainda não foi decidido”.


4. Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões:


A. O presente recurso tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (doravante, Tribunal a quo) que, negando provimento ao recurso de apelação interposto pela ora Recorrente, confirmou a declaração de executoriedade da sentença proferida, em 27 de Junho de 2012, pela Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amesterdão.

B. O acórdão recorrido é nulo por vício de ausência absoluta de fundamentação de facto, nos termos do artigo 615.º/1/b) CPC, aplicável ex vi artigo 666.° CPC, devendo ser ordenada a baixa dos autos ao Tribunal a quo para suprimento da nulidade, nos termos do artigo 684º./2 CPC.

C. A Recorrente reconhece e aceita que, por força dos vícios do acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça não poderá substituir-se ao Tribunal a quo no conhecimento do mérito da causa, na medida em que a matéria de facto deverá ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, devendo, pois, o Supremo cassar o acórdão recorrido, ordenando a baixa dos autos ao Tribunal a quo, nos termos previstos nos artigos 682.°/3 e 683.° CPC.

D. A Recorrente alegou na apelação os factos em que funda a violação da ordem pública internacional como fundamento da recusa de reconhecimento da sentença proferida pelo Tribunal de Amesterdão e, que no essencial, dizem respeito à audiência realizada a 20 de Fevereiro de 2012 no Tribunal de Amesterdão, maxime não ter sido assegurado à Recorrente uma tradução integral e fidedigna dos depoimentos aí prestados.

E. Apesar de oportunamente alegados, e serem relevantes para a decisão jurídica da causa, os factos em que a Recorrente funda a violação da ordem pública internacional foram desconsiderados pelo Tribunal a quo, que não determinou a sua selecção para efeitos de produção de prova.

F. O Supremo Tribunal de Justiça deve exercer o poder que lhe é atribuído pelo artigo 682.°/3 CPC e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para efeitos de ampliação da matéria de facto e produção de prova.

G. Mais se requer que o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 683.°/1 CPC, ordene ao Tribunal a quo que, no caso de julgar provado que não foi assegurada à Recorrente uma tradução integral e fidedigna dos depoimentos prestados na sessão de 20 de Fevereiro de 2012 realizada no Tribunal de Amesterdão, suscite, para efeitos da excepção de ordem pública prevista no artigo 34.°, n.º1, do Regulamento n.º 44/2001, o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia.


A recorrida contra-alegou, concluindo nestes termos (não se incluem as conclusões relativas à questão da admissibilidade do presente recurso, definitivamente resolvida na reclamação apensa):


(…) 8. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, não se verifica qualquer nulidade do acórdão recorrido devido a uma pretensa omissão da indicação dos factos considerados provados. De facto, não obstante o recurso da declaração de executoriedade interposto no Tribunal da Relação nos termos previstos no artigo 43.°, número 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001, admitir a indicação de meios de prova, é entendimento unânime da jurisprudência, que o Tribunal da Relação tem o dever de proceder à apreciação dos meios de prova indicados pelas Partes, o que integra o poder do Tribunal da Relação de realizar uma audiência de julgamento, mas também integra o dever (prévio à realização da audiência de julgamento), de o Tribunal da Relação verificar a necessidade/admissibilidade dos meios de prova indicados pelas Partes, face às alegações por estas efectuadas e face às sentenças constantes do processo.

9. No presente caso, face aos elementos constantes do processo, era por demais evidente que a Recorrente se respaldava na diversidade de regimes jurídicos envolvidos para, alegando verdadeiras falsidades, lançar a confusão e, de forma encapotada, pretender que o Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo da averiguação da existência de violação à ordem pública do Estado Português, efectuasse um verdadeiro controlo de mérito – proibido pelo artigo 45.° número 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001 – da sentença proferida pela Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amesterdão, segundo a qual a Recorrente foi condenada a pagar à Recorrida o valor de € 183.405,90.

10. A realização de um segundo julgamento perante o Tribunal da Relação de Lisboa, com a consequente elaboração da lista de factos que este Tribunal tivesse considerado provados, implicaria que o Tribunal da Relação de Lisboa tivesse inquirido testemunhas e fosse confrontado com os factos que determinaram o proferimento da sentença por parte do Tribunal holandês o que, consequentemente, implicaria que este Tribunal efectuasse um controlo do mérito da causa que correu termos diante da Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amesterdão, em manifesta violação do artigo 45.°, número 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001.

11. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, foi precisamente porque o Tribunal da Relação de Lisboa analisou a fundamentação da sentença holandesa e se apercebeu da falta de fundamento da alegação da Recorrente, que decidiu da única forma que poderia ter decidido: mantendo a sentença recorrida, sem necessidade de realização de nova audiência de julgamento.

12. Também contrariamente ao alegado pela Recorrente, o acórdão recorrido não é nulo por omissão de fundamentação, porquanto efectuou uma análise bastante clara da falta de fundamento da alegação da Recorrente, salientando, entre outros factos, que atendendo a que a sentença cuja declaração de executoriedade se requereu em Portugal respeita a uma obrigação pecuniária, comum no ordenamento jurídico português, a declaração de executoriedade desta sentença em Portugal, não é manifestamente contrária à ordem pública portuguesa, sendo certo que é a declaração de executoriedade e não a própria decisão, que deve ser compatível com a ordem pública.

13. Tão-pouco se pode afirmar (como faz a Recorrente) que o Tribunal da Relação não leu e analisou devidamente as alegações das partes. Prova inequívoca de que o Tribunal da Relação analisou os autos, é a afirmação segundo a qual dos mesmos não constavam quaisquer elementos que permitissem considerar-se ter existido violação do princípio do processo equitativo, sendo certo que caso fosse dado benefício à argumentação da Recorrente, existiria conhecimento do mérito da sentença estrangeira, o que é vedado pelo artigo 45.°, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001.

14. A alegação da Recorrente, ao confrontar o STJ com a descrição da audiência de julgamento que decorreu no dia 20.02,2012, perante a Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amesterdão, visa a realização, por parte do STJ, de um controlo de mérito da sentença holandesa (proibido pelo artigo 45,0 número 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001), bem como a apreciação de matéria de facto quando, nos termos previstos no artigo 44.0 e anexo IV do mesmo Regulamento, o recurso para o STJ está limitado a matéria de Direito.

15. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, durante a audiência que decorreu perante a Divisão de Direito Civil do Tribunal de Amesterdão, no dia 20.02.2012, não se verificou qualquer violação do princípio do processo equitativo. De referir que a audiência ocorrida no dia 20.02.2012 perante o Tribunal Holandês é, na terminologia utilizada pelo Direito Processual Civil Holandês, uma "audiência informal e oral das Partes", na qual estas comparecem pessoalmente perante o Tribunal para prestar informações que não constam dos articulados, visando ainda a tentativa de conciliação das Partes. Assim, o Direito processual civil Holandês garante o contraditório em sede de articulados, sendo certo que em caso de dúvida ainda permite que as Partes (pessoalmente, embora acompanhadas dos seus advogados) prestem informações diante do Juiz nesta audiência.

16. Nesta audiência, a Recorrente prestou declarações pessoalmente, foi acompanhada pelo seu advogado holandês e pela intérprete que livremente escolheu e que é uma intérprete juramentada e mencionada nas listas de intérpretes oficiais da Holanda, desde 2010, sendo absolutamente falso que a intérprete tenha sido incapaz de traduzir o que foi dito pelas Partes.

17. É absolutamente falso que CC e DD (da Recorrente), não tenham sido capazes de compreender a tradução feita pela intérprete. CC e DD não só compreenderam tudo o que sucedeu na audiência, como não ficaram prejudicados porquanto a mesma decorreu em inglês, língua em que ambos são fluentes, tendo ambos participado activamente na audiência. Por outro lado, o advogado holandês da Recorrente também se dirigiu a CC e DD em inglês e nunca em qualquer fase anterior ou posterior à audiência de 20.02.2012, a Recorrente apresentou reclamações quanto ao facto de não ter compreendido o que se passava no processo.

18. Na Holanda todas as audiências são gravadas e após a realização de cada audiência, a gravação é enviada a cada uma das Partes, que tem a possibilidade de referir se aceita a gravação efectuada ou se pretende corrigir algum erro. No caso sub judice e a Recorrente não assinalou qualquer erro ou omissão da gravação da audiência.

19. É falso que o Tribunal tenha preterido a audição de outras testemunhas, conforme alegado pela Recorrente na alínea GG) das alegações. O testemunho de EE iria ser prestado por escrito, o que apenas não sucedeu porque o advogado da Recorrente (através de declaração que consta da gravação da audiência) pôs em causa a seriedade da testemunha, invocando que esta trabalhava simultaneamente para a Recorrente e para a Recorrida.

20. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, é absolutamente falso que a sentença holandesa se tenha baseado expressamente nas declarações prestadas na audiência de 20.02.2012, para decidir sobre o incumprimento e a rescisão do contrato sub judice, porquanto resulta manifesto da sentença proferida pelo Tribunal holandês e junta aos autos, que a sua fundamentação foi efectuada principalmente com base na prova documental junta aos autos.

21. Conforme resulta da análise da sentença proferida pelo Tribunal de Amesterdão, em causa estava a questão de saber se a rescisão do contrato celebrado entre as Partes e feita pela Recorrida no dia 19.04.2010, foi ou não válida, o que pressupôs a análise da questão de saber se existiu ou não incumprimento do contrato, por parte da Recorrente. Conforme resulta do ponto 4. da sentença proferida pelo Tribunal de Amesterdão, este Tribunal discordou das alegações e interpretações que a Recorrente fez dos Anexos do contrato (e segundo as quais concluía que havia sido a Recorrida a, primeiramente, incumprir o contrato), tendo fundamentado a sua decisão nos documentos constantes dos autos, nas declarações prestadas pela Recorrente e pela Recorrida durante a audiência e com base na falta de prova documental que suportasse as alegações da Recorrente.

22. Não obstante na audiência de 20.02.2012 não se ter verificado qualquer violação do princípio do processo equitativo previsto no artigo 6.0 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H.), do número 3, alínea e) deste artigo não resulta a obrigatoriedade de, em processos civis, estar presente ou ser nomeado um intérprete - o número 3 é claro ao referir "o , acusado". De facto, nos termos deste artigo, apenas nos processos-crime em que o acusado não compreende ou não fala a língua usada no processo, deverá ser nomeado um intérprete gratuito. Esta é a posição da doutrina maioritária e também a única com acolhimento legal e que tem merecido o acolhimento da jurisprudência.

23. Acresce que segundo a doutrina maioritária, o artigo 6.0; número 3, alínea e) da C.E.D.H. apenas se pode aplicar a processos de outra natureza - e para salvaguarda do princípio do processo equitativo - quando a Parte não esteja patrocinada por advogado que compreenda a língua do processo, e se trate de processo que exija participação verbal da Parte, o que não foi, manifestamente, o caso._ O caso sub judice é um processo cível em que a Recorrente compreendeu perfeitamente o que sucedeu na audiência, não só porque foi acompanhada de advogado holandês, como também porque apresentou recurso redigido em holandês, o que determina a não aplicação do artigo 6.0, número 3, alínea e) da C.E.D.H..

24. Os processos judiciais referidos pela Recorrente para defender a aplicação do artigo 6.°, número 3, alínea e) da C.E.D.H. ao caso sub judice não têm qualquer paralelo com o presente caso, porquanto um deles (caso "Pellegrini vs. Itália") respeita a um processo entre um Estado-Membro e um Estado não Membro, outro (caso "Cuscani vs. Reino Unido") a um processo crime e o último (caso "Dombo Beheer VS. Países Baixos") a um processo em que a testemunha se recusou a prestar depoimento.

25. Tão-pouco merece acolhimento a alegação de que a sentença proferida pelo Tribunal de Amesterdão não respeitou o princípio do processo equitativo consagrado no artigo 20.°, número 4 da Constituição da República Portuguesa, porquanto as sentenças proferidas por jurisdições diferentes da portuguesa não estão submetidas à Lei Fundamental portuguesa.

26. Ainda que assim não se entendesse, a execução em Portugal da sentença holandesa não viola a ordem pública do Estado português, sendo manifesto que a argumentação da Recorrente, tem um único fim: convencer o STJ a verificar a justiça da sentença proferida pelo Tribunal de Amesterdão, ordenando ao Tribunal da Relação de Lisboa a realização de uma audiência de julgamento sem qualquer fundamento e que implicaria a violação da proibição do controlo mérito daquela sentença e do princípio da confiança recíproca na administração da Justiça no seio da União Europeia - cfr. artigo 45.°, número 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001 e considerandos 16 e 17 do preâmbulo do Regulamento.

27. É entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia (T.J.U.E.) e da Jurisprudência nacional, que a cláusula de ordem pública tem que ser interpretada de forma restrita, na medida em que a proibição do controlo de mérito das decisões estrangeiras constitui um seu limite. Acresce que segundo o T.J.U.E., o recurso à cláusula de ordem pública só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar (de forma manifesta) contra um princípio fundamental. Por outro lado, é entendimento corrente da doutrina portuguesa (e também seguido pelo acórdão recorrido), que o controlo da ordem pública deve limitar-se à parte decisória da sentença, sem que importe considerar os respectivos fundamentos.

28. No presente caso, não obstante seja inquestionável que o princípio do processo equitativo constitui um princípio de ordem pública do Estado português, não se pode afirmar que a execução, na ordem jurídica portuguesa, da sentença holandesa, viola a ordem pública portuguesa. Primeiramente não se pode afirmar que tenha havido violação do princípio do processo equitativo. Por outro lado, não se pode afirmar que a situação criada pela sentença holandesa seja contrária à ordem pública portuguesa, porquanto a sentença holandesa não é manifestamente contrária aos princípios fundamentais que integram a ordem pública do Estado português.

29. Ao exposto acresce que não existe qualquer fundamento para que o STJ determine que o Tribunal da Relação de Lisboa, após realização de novo julgamento, proceda ao reenvio prejudicial para o T JUE. De referir que contrariamente ao que fez no recurso de apelação, nas alegações de revista a Recorrente não indica a possível questão prejudicial a colocar ao T.J.U.E.. Não obstante, assumindo que a questão prejudicial pretendida seria a mesma que foi anteriormente submetida à apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa (e que este considerou não se justificar por não se compatibilizar com os termos do processo de declaração de executoriedade), cumpre referir que a mesma visa a emissão de uma opinião consultiva por parte daquela instância da União Europeia, sem qualquer relação com a realidade o que, segundo a jurisprudência fixada pelo T JUE no caso BIAO (cfr. acórdão de 07/01/2003, Proc. C-306/99) não é permitido.

30. Face ao exposto, deverão as alegações de revista da Recorrente ser liminarmente rejeitadas por ser o recurso legalmente inadmissível ou, assim não se entendendo, ser o mesmo julgado totalmente improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido na íntegra.


5. Os factos relevantes para julgar o presente recurso constam do relatório.

A recorrente coloca a este Tribunal as seguintes questões, que delimitam o objecto do presente recurso (nº 4 do artigo 635º do Código de Processo Civil):


– Nulidade do acórdão recorrido, “por vício de ausência absoluta de fundamentação de facto (…), devendo ser ordenada a baixa dos autos (…) para suprimento da nulidade”;

– Necessidade de ampliação da matéria de facto, devendo o Supremo Tribunal de Justiça anular o acórdão recorrido e determinar que a Relação proceda àquela ampliação e à produção de prova;

– Determinação ao tribunal recorrido para que proceda ao reenvio prejudicial ao TJUE, “no caso de julgar provado que não foi assegurada à Recorrente uma tradução integral e fidedigna dos depoimentos prestados na sessão de 20 de Fevereiro de 2012 (…), para efeitos da excepção de ordem pública (…)”.


6. A recorrente arguiu a nulidade do acórdão recorrido, por falta de fundamentação de facto, por omitir, “em absoluto, a especificação dos factos que considera provados”, sendo certo que ela, recorrente, alegou “fundamentos de facto contra o exequatur” que não teve a oportunidade de alegar em 1ª instância, onde o processo decorre sem contraditório.

A recorrida discordou da arguição, que foi rejeitada pelo Tribunal da Relação, no acórdão de fls. 248: “Na verdade, no acórdão descreveu-se especificamente a dinâmica processual relevante para conhecer do objecto da apelação, que se restringe à violação do princípio da ordem pública do Estado português, pela executoriedade da sentença estrangeira, ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia e, ainda à suspensão da instância, Por isso, a fundamentação jurídica desenvolvida no acórdão baseou-se expressamente em tal dinâmica processual (…)”.

A arguição de nulidade é manifestamente improcedente, uma vez que a decisão concretamente tomada se encontra suficientemente justificada nos factos relatados no acórdão.

A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito. Uma sentença é nula, por falta de fundamentação de facto, quando a decisão concretamente tomada – e não aquela que as partes entendam que deveria ter sido tomada – não se encontra assente em factos apresentados pela própria decisão, directamente ou por remissão. Não existe nulidade por discordância quanto à interpretação desses factos ou quanto ao sentido da decisão (de direito) que neles se apoia; essa discordância significará antes que a parte considera os factos mal julgados, ou juridicamente mal enquadrados, ou seja, que a parte discorda do sentido do julgamento e o considera errado (erro de julgamento).

Da leitura do acórdão recorrido resulta qual é a base de facto em que a Relação se apoiou para concluir que “tratando-se de uma obrigação pecuniária, comum no ordenamento jurídico português, a declaração de executoriedade da sentença na mesma ordem jurídica não é manifestamente contrária à ordem pública”, e qual é a razão pela qual entendeu que, ainda que “porventura” se pudesse considerar como fundamento de recusa uma violação do princípio do processo equitativo, o processo não fornecia elementos para uma decisão nesse sentido; elementos que, na perspectiva da Relação, haveriam de resultar de documentos e da indicação dos “factos emergentes da prova tida por ilegal”.

E resulta ainda que a Relação considerou relevante que não tivesse sido alegado que a invocada violação do processo equitativo não pudesse ter sido corrigida no tribunal onde decorreu a acção; e que entendeu que, se fosse acolhida a “argumentação aduzida pela Apelante, poder-se-ia incorrer no conhecimento do mérito da sentença estrangeira”.

A decisão está pois suportada na descrição da situação, tal como vem apresentada no acórdão recorrido; e, na verdade, a discordância da recorrente reconduz-se à não consideração dos factos que alegou no recurso de apelação para demonstrar a violação do princípio do processo equitativo, relativos à forma como sustenta que decorreu a audiência, que colocou as partes em situação de desigualdade. Mas a averiguação de tais factos não era necessária para a decisão concretamente tomada; nem seria congruente com ela.

E o mesmo se diga quanto à recusa de reenvio prejudicial (“sem a certeza da existência” de violação do “processo equitativo (…) seria completamente irrelevante o reenvio prejudicial”) e de suspensão da instância (que, na perspectiva da Relação, comprometeria a “celeridade atribuída ao processo” e implicaria a alegação de factos consubstanciadores dos invocados “danos avultados e irreversíveis”, que a recorrente não fez).                                                           


7. A recorrente sustenta que o Supremo Tribunal de Justiça deveria anular o acórdão recorrido e determinar a ampliação da decisão de facto, o que exigiria a produção de prova sobre os factos que alega para apoiar a violação do princípio do processo equitativo.

Essa decisão implicaria que, à luz do Regulamento (CE) nº 44/2001, o Supremo Tribunal de Justiça entendesse ser admissível, como fundamento de recusa da concessão do exequatur, a alegação dos factos que, na perspectiva da recorrente, demonstram ter sido violado o princípio do processo equitativo na acção em que veio a ser proferida a sentença de 27 de Junho de 2012. Ou, dito por outras palavras, que o Supremo Tribunal de Justiça considerasse que, a serem provados esses factos, a execução da referida sentença contrariaria a ordem pública portuguesa.

A apreciação desta questão torna necessário recordar o seguinte:

– Todos sabemos que o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, veio substituir a Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 (razão pela qual é frequentemente designado por Regulamento Bruxelas I, por também se ter generalizado a expressão Convenção Bruxelas I) sobre as mesmas matérias, na sequência da passagem para o âmbito do Direito Europeu das correspondentes matérias, relativas à cooperação judiciária em matéria civil. Foi, entretanto, revogado pelo Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, mas que apenas se aplica a partir de 10 de Janeiro de 2015 (artigos 80º e 81º do Regulamento (UE) nº 1215/2012. É pois aplicável ao caso o Regulamento (CE) nº 44/2001;

– Sabemos ainda que o Regulamento (CE) nº 44/2001 continuou o objectivo da Convenção Bruxelas I de “simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à execução rápidos e simples das decisões proferidas nos Estados membros” (considerando (2)); e que, no que agora particularmente releva, se afirmou que a “confiança recíproca da administração da justiça no seio da Comunidade” implicava “a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado Membro uma decisão proferida noutro Estado Membro” e que “para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos (…) – considerando (17). Veja-se o Relatório de Paul Jenard, publicado em JOCE C59, pág. 1 e segs.; recorde-se o passo que neste domínio veio a ser dado com o Regulamento (EU) nº 1215/2012, com a supressão da declaração de executoriedade;

– Assim, prevê-se nos seus artigos 38º e segs. um procedimento realmente expedito de concessão de executoriedade; e limitam-se os fundamentos do recurso contra a decisão que a conceda aos previstos nos artigos 34º e 35º (é taxativa esta indicação, cfr. por exemplo o acórdão do TJUE de 13 de Novembro de 2011, proc. C-139/10, caso Prism Investments BV vs. Jaap Anne van der Meer), não podendo em caso algum proceder-se a uma “revisão de mérito” (artigo 45º);

– Entre esses fundamentos encontra-se o que foi invocado pela recorrente: ser “o reconhecimento (…) manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido” (nº 1 do artigo 34º), sendo certo que o objectivo prosseguido pelo Regulamento (CE) nº 44/2001 obriga a uma interpretação exigente dessa contraditoriedade. Como se escreve no Relatório Jenard citado, pág. 44, “a cláusula de ordem pública só deve operar em casos excepcionais” e o que há-de ser contrário à ordem pública do Estado requerido é a execução da decisão, não esta decisão em si mesma;

  – Quer no domínio da Convenção de Bruxelas I, quer quanto ao Regulamento (CE) nº 44/2001, a jurisprudência do TJUE tem afirmado uniformemente que a excepção de contrariedade à ordem pública tem se ser interpretada restritivamente, só devendo proceder em circunstâncias excepcionais. Assim, apenas como exemplo, cfr. os acórdãos de 28 de Março de 2000, proc. C-7/98, caso Dieter Krombach vs. André Bamberski, quanto à Convenção, e os acórdãos de 28 de Abril de 2009, proc. nº C-420/07, caso Apostolides vs.Orams e de 6 de Setembro de 2012, proc. nº C-619/10, caso Trade Agency Ltd. Vs Seramico Investments, Ltd, para o Regulamento. Como se escreveu no acórdão de 28 de Abril de 2009, “54. Nos termos do artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento n.° 44/2001, uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido. O artigo 45.°, n.° 1, do mesmo regulamento prevê um caso idêntico de recusa do exequatur. 55. A título liminar, há que recordar que o artigo 34.° do Regulamento n.° 44/2001 deve ser objecto de interpretação estrita na medida em que constitua um obstáculo à realização de um dos objectivos fundamentais do referido regulamento (v. acórdãos de 2 de Junho de 1994, Solo Kleinmotoren, C‑414/92, Colect., p. I - 2237, n.° 20; de 28 de Março de 2000, Krombach, C‑7/98, Colect., p. I - 1935, n.° 21; e de 11 de Maio de 2000, Renault, C‑38/98, Colect., p. I - 2973, n. 26). Mais concretamente, a cláusula de ordem pública constante do artigo 34.°, ponto 1, do mesmo regulamento só deve ser usada em casos excepcionais (v. acórdãos de 4 de Fevereiro de 1988, Hoffmann, 145/86, Colect., p. 645, n.° 21; de 10 de Outubro de 1996, Hendrikman e Feyen, C - 78/95, Colect., p. I - 4943, n.° 23; Krombach, já referido, n.° 21; e Renault, já referido, n.° 26).”;

– Assim, só se a execução violar manifestamente um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido é que se justificará a recusa de exequatur: “O recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento n.° 44/2001, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante violem de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por infringir um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, essa infracção deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 37, e Renault, n.° 30).” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009 cit..;

– Essa norma ou princípio pode ser substantivo ou processual. No entanto, porque em caso algum se pode proceder a uma “revisão de mérito” (artigo 45º), o tribunal requerido não pode recusar o exequatur “com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo tribunal do Estado de origem e a que seria aplicada pelo tribunal do Estado requerido se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o tribunal do Estado requerido não pode controlar a exactidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo tribunal do Estado de origem (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 36, e Renault, n.° 29), devendo assumir que “o sistema de meios processuais existente” no Estado de origem “fornece aos particulares uma garantia suficiente” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009, cit.;

– Isto significa, nomeadamente, que, se tiver sido invocada contrariedade com a ordem pública processual, porque o processo concretamente seguido infringiu manifestamente normas ou princípios processuais fundamentais do Estado requerido, não é causa de recusa de exequatur a alegação de uma violação que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que julgou e ou em via de recurso, requerendo a respectiva correcção, e não o foi. A tanto obriga a confiança nas decisões dos outros Estados, em que assenta o sistema do Regulamento, e que exige que o sistema do Estado de origem tenha a oportunidade de corrigir uma hipotética incorrecção, antes de ser suscitada perante o Estado requerido em via de oposição ao exequatur.


8. No recurso de apelação, a recorrente invocou que o exequatur não deveria ter sido concedido, com fundamento em violação da ordem pública portuguesa; mais precisamente, violação da ordem pública processual, por desrespeito do princípio do processo equitativo. Em seu entender, não foram asseguradas condições de igualdade às partes na produção da prova.

Para o demonstrar, alegou factos relativos à audiência que precedeu a sentença, no que respeita à prestação de depoimento pelos representantes das partes (essa qualidade é aceite por ambas as partes neste recurso) e por um terceiro; e da sentença de 27 de Junho de 2012 resulta que os respectivos depoimentos foram considerados pelo tribunal holandês, no contexto da apreciação da prova.

Não se põe em dúvida que o princípio do processo equitativo deva ser considerado um princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa, um princípio estruturante da ordem pública processual; nem tão pouco que esta afirmação valha também no âmbito do processo civil ou laboral, naturalmente tendo em conta as suas especificidades e as diferenças em relação ao processo penal, onde tem vindo a ser objecto de mais profunda elaboração.

Encontra-se entre nós expressamente proclamado na Constituição, desde a reforma constitucional de 1997, que aditou ao artigo 20º o respectivo nº 4 (“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”); e, no que ao Processo Civil respeita, tem consagração legal expressa no Código de Processo Civil (artigos 4º, princípio da igualdade substancial das partes, correspondente ao artigo 3º- A aditado ao Código de Processo Civil anterior pela reforma de 1995, e 547º, necessidade de respeito pelo processo equitativo, nas decisões sobre adequação formal); e foi reconhecido, num âmbito mais vasto, por exemplo, pelos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 27 de Outubro de 1993 (proc. nº 14448/88, caso Dombo Beheer vs. Países Baixos) e do TJUE de 6 de Setembro de 2012, proc.cº C-619/10, caso Trade Agency Ltd. vs Seramico Investments, Ltd., que observou que o direito a um processo equitativo “resulta das tradições constitucionais comuns dos Estados Membros e foi reafirmado no artigo 47º, 2, da Carta, que corresponde, como ressalta das explicações relativas a este preceito, ao artigo 6º. § 1º, da CEDH (ver o acórdão de 22 de Dezembro de 2010, DEB, C-279/09 (…)”.

Admite-se pois que uma violação manifesta do princípio do processo equitativo possa ser fundamento de recusa de exequatur, nos termos do nº 1 do artigo 34º, conjugado com o nº 1 do artigo 45º do Regulamento (CE) nº 44/2001.


9. A recorrente afirma que os representantes das partes prestaram “declarações sobre o mérito da causa” e que “o princípio do processo equitativo exige que estivesse presente um intérprete fluente nas línguas portuguesa e neerlandesa para proceder à tradução para português do que fosse dito pelo tribunal e por Ineke Braat e para neerlandês do que fosse dito por CC – o mesmo se passando, mutatis mutandis, com os depoimentos da Directora de Assuntos Científicos da recorrente, DD”, que o intérprete concretamente presente se revelou incapaz de desempenhar correctamente a sua função e que, assim sendo, a igualdade das partes na produção de prova não foi observada.

A recorrida contrapõe que esta descrição não corresponde ao que ocorreu e que o juiz “colaborou com a Recorrente e assegurou que a mesma compreendesse tudo o que foi dito”.

Como se observou já, só tem utilidade determinar a produção de prova sobre os factos alegados pela recorrente se, a serem provados, houver que concluir no sentido da revogação do exequatur; mas trata-se de uma conclusão a que se não pode chegar.

A lei portuguesa não prevê, nem que as partes possam ser indicadas como testemunhas (artigo 617º do Código de Processo Civil anterior, actual artigo 496º), nem que sejam chamadas a prestar declarações sobre a causa, em geral, com relevância probatória.

Até à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013, as partes podiam requerer o depoimento da parte contrária ou de uma comparte (com interesses antagónicos) sobre factos determinados, com o objectivo de obter a respectiva confissão (de factos desfavoráveis ao depoente, portanto); esse depoimento podia ainda ser determinado por iniciativa do juiz, com o mesmo objectivo. O juiz tinha ainda o poder de chamar a parte para prestar esclarecimentos, não relevando agora averiguar exactamente com que extensão ou com que objecto.

O Código de Processo Civil de 2013 manteve estas possibilidades e veio acrescentar a prova por declarações de parte, no artigo 466º. Permite-se à própria parte que requeira a prestação (do seu próprio) depoimento sobre os factos que indicar, ficando as declarações prestadas sujeitas à livre apreciação pelo julgador, como meio de prova (salvo se e na medida em que resultarem em confissão). Mas não eliminou o impedimento a que a parte deponha como testemunha (artigo 496º), manteve a função do depoimento de parte como um meio de obtenção da prova por confissão (artigo 452º) e manteve o poder do juiz de pedir esclarecimentos e informações (artigos 7º, nº 2 e 452º, nº 1)

E continuou a não prever que a parte seja chamada a depor sobre os factos do litígio, independentemente de lhe serem favoráveis ou desfavoráveis, conferindo ao juiz o poder de valorar livremente as declarações; como a recorrida observa, a audição das partes que ocorreu e cuja equidade a recorrente contesta não tem paralelo no processo civil português. O mesmo se não pode dizer quanto ao depoimento de DD, naturalmente.

Não está em causa, no entanto, a possibilidade de valoração probatória das declarações dos representantes das partes; mas apenas as condições em que foram prestadas.


10. Ora a verdade é que ambas as partes estavam representadas por advogado, na audiência correspondente. Nada consta, na sentença, sobre uma eventual reacção da parte – insista-se, representada por advogado – quanto a uma hipotética inadequação da tradução, prejudicial à recorrente; e, portanto, nada consta sobre qualquer decisão do juiz no sentido de não ter em conta essa hipotética inadequação.

Não tem nenhum fundamento entender que é da ordem pública processual do Estado português exigir que seja o juiz a assegurar-se que, num processo civil em que as partes estão representadas por advogado, e em que os representantes de uma das partes não entendem a língua do processo mas são assistidos por um intérprete devidamente credenciado para o efeito, quando são chamados a depor em audiência, incumba ao juiz garantir mais do que essa possibilidade de intervenção do intérprete.

É tão somente essa intervenção que o Código de Processo Civil garante no respectivo artigo 133º, quando hajam de ser ouvidos “estrangeiros”, para “estabelecer a comunicação” e só quanto “ao que for estritamente indispensável”; este regime vale para as partes, se for o caso.

Para a lei portuguesa, aliás, uma eventual dificuldade de compreensão haveria de ser invocada na própria audiência, sob pena de se sanar.

Não se discorda do entendimento de que a igualdade da produção de prova implica que os depoentes disponham das condições adequadas à cabal compreensão do que lhes é perguntado, ou de declarações prestadas por outros depoentes, com os quais sejam confrontados (acareação). É condição de igualdade na produção de prova que, se as declarações das partes relevam como meio de prova, ambas as partes compreendam as perguntas que lhe são feitas e os depoimentos com os quais são confrontados. O que não equivale a ser feita uma tradução integral das perguntas ou dos depoimentos; com efeito, um regime como o do artigo 133º do Código de Processo Civil preenche as exigências do processo equitativo.

Apenas se entende que: se a parte está representada por advogado; se é assistida por um intérprete formalmente credenciado; se não suscita perante o tribunal (ou em via de recurso) a incapacidade concreta do intérprete e a impossibilidade de prestação de depoimento esclarecido por incompreensão provocada por essa incapacidade de tradução, de modo a permitir uma eventual correcção e, de qualquer modo, a obter uma decisão sobre a questão, então não pode vir posteriormente invocar a violação do princípio da igualdade na produção de prova, ou desta vertente do processo equitativo, para impedir a exequibilidade da sentença que tenha valorado o depoimento, no contexto global de apreciação da prova.

O mesmo se diga do depoimento de DD, prestado também na presença dos advogados.


11. A recorrente invoca em apoio da posição que defende os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 27 de Outubro de 1993 (proc. nº 14448/88, caso Dombo Beheer vs. Países Baixos).e de 24 de Setembro de 2002 (proc. nº 32771, caso Cuscani vs. Reino Unido), que se debruçaram sobre a necessidade de garantir a igualdade das partes, quanto à admissibilidade de prova testemunhal e quanto à efectividade das traduções.

É certo que o acórdão de 27 de Outubro de 1993 afirmou que “a igualdade de armas implica que deve ser concedida a ambas as partes uma oportunidade razoável de apresentar o seu caso – incluindo a sua prova – em circunstâncias que não o coloquem em situação de desvantagem” (ponto 33); e que considerou violação do nº 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem uma “desvantagem substancial” das partes perante a prova.

Mas o que então estava em causa era ter sido impedido de depor como testemunha um anterior representante de uma das partes, que como tal interviera em determinado acordo oral que cabia à parte provar, sendo certo que tinha sido admitido a depor a outra única pessoa que nele participara, no interesse da parte contrária.

No acórdão de 24 de Setembro de 2002 afirmou-se que competia ao juiz velar pela fiabilidade das traduções; mas teve-se então em vista a desvantagem perante a prova em que se encontrava um arguido em processo crime, que não entendia a língua do processo, e que se declarou culpado de acusações de elevada gravidade, arriscando uma pesada pena de prisão, e que tinha grandes dificuldades em comunicar com o seu próprio advogado.

Trata-se portanto de situações substancialmente diferentes da presente.


12. Disse-se atrás que não é fundamento de recusa de exequatur a infracção que, a ter ocorrido, poderia ter sido corrigida pelo próprio tribunal ou em via de recurso, se a parte que sustenta essa recusa não reagiu por alguma dessas vias.

Esta afirmação tem que ser devidamente entendida, pelo menos quanto à referência ao recurso, uma vez que o trânsito em julgado não é condição de concessão da executoriedade: basta que a decisão tenha força executiva no país de origem. No caso, como se sabe, a sentença está pendente de recurso nos tribunais holandeses.

A afirmação genericamente feita acima significa que, se de uma decisão transitada se tratar, não integra o fundamento de oposição à concessão de executoriedade de violação da ordem pública processual um vício, alegadamente ocorrido no processo, que poderia ter sido corrigido em recurso; veja-se, aliás, o lugar paralelo no nº 2 do artigo 34º do Regulamento (CE) nº 44/2001.

O mesmo se não poderá dizer no caso de se encontrar pendente o recurso, ou de este ainda ser possível, quando se aprecia um pedido de concessão de exequatur. Nessa eventualidade, deve exigir-se que a parte tenha suscitado a infracção perante o tribunal que proferiu a decisão.

Não se trata, diga-se já, de nenhum ónus, nem injustificado, nem excessivo. A sua justificação encontra-se no princípio da confiança nas decisões dos outros Estados Membros, já realçado; e a proporcionalidade está garantida, em primeiro lugar, por se tratar de processos civis em que as partes estão representadas por advogado; e, em segundo lugar, por estarem em causa princípios fundamentais da ordem processual, aliás consabidamente comuns aos países membros da União Europeia, exigindo-se como requisito de relevância a sua manifesta inobservância.

É o que resulta da necessidade de confiar no “sistema de meios processuais existente” no Estado de origem “fornece aos particulares uma garantia suficiente” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009, citado, como se observou já e, devidamente entendida esta afirmação, da impossibilidade de controlo do mérito da decisão de cuja exequibilidade se trata.

E é o que resulta, ainda, de caber a cada Estado a determinação do conteúdo da sua própria ordem pública. Como se afirmou, por exemplo, no já citado acórdão do TJUE de 6 de Setembro de 2012, a jurisprudência é contante no sentido de reconhecer que cabe aos Estados definir o conteúdo e “as exigências da sua ordem pública”, competindo ao TJUE “controlar os limites dos quadros em que o juiz de um Estado Membro pode recorrer a essa noção para não reconhecer uma decisão proveniente de outro Estado Membro”.

Com efeito, para a lei portuguesa, e como se referiu já, uma dificuldade de entendimento semelhante à que a recorrente alega haveria de ter sido suscitada na própria audiência, sob pena de se considerar sanada, nos termos do regime geral definido para as nulidades secundárias (artigos 195º e 199º do actual Código de Processo Civil, correspondentes aos anteriores artigos 201º e 105º, respectivamente).

Assim sendo, não pode entender-se contrária à ordem pública processual portuguesa a execução de uma sentença precedida de uma audiência na qual a parte que sentiu dificuldades de compreensão nos termos alegados, quando foi chamada a depor ou foi acareada com outro depoimento, estando presente o seu advogado, não invocou essa dificuldade para requerer as medidas adequadas a garantir tal compreensão, ainda que os depoimentos tenham sido valorados para efeitos de prova. O mesmo se diga quanto ao depoimento de DD.


13. Aqui chegados resta concluir que se não justifica que o Supremo Tribunal de Justiça determine que o processo regresse ao Tribunal da Relação para que este proceda à ampliação da decisão de facto, nos termos permitidos pelo nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil.

Na verdade, ainda que provassem os factos alegados pela recorrente com esse objectivo, não se poderia ter como preenchida a excepção de violação da ordem pública do Estado Português. E, por este motivo, fica prejudicado o pedido de determinação ao Tribunal da Relação para que proceda ao reenvio prejudicial ao TJUE.


14. O disposto no artigo 52º do Regulamento nº 44/2001 (“Nenhum imposto, direito ou taxa proporcional ao valor do litígio será cobrado no Estado-Membro requerido no processo de emissão de uma declaração de executoriedade”) não implica qualquer isenção quanto a custas de eventual recurso que seja interposto da decisão que concedeu o exequatur.

Não cumpre, todavia, alterar o que o acórdão recorrido decidiu quanto a esta questão; mas cabe condenar a recorrente pelas custas do recurso de revista.


15. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas do recurso de revista pela recorrente.


Lisboa, 20 de novembro de 2014


Maria dos Prazeres Beleza


Salazar Casanova


Lopes do Rego