Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1980/17.2T8VRL-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: HABEAS CORPUS
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PROVIDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO PROCESSO PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
-Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, de H. Gaspar et al., 2016, 2.ª Edição, Almedina, p. 853 e 855.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 220.º E 222.º, N.º 2, ALÍNEA A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 12.º E 27.º, N.º 3, ALÍNEA E).
LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO (LPCJP), APROVADA PELA LEI N.º 147/99, DE 01 DE SETEMBRO: - ARTIGOS 34.º, ALÍNEAS A) E B), 35.º, N.º 1, ALÍNEA F) E 123.º, N.º 1.
LEI TUTELAR EDUCATIVA, APROVADA PELA LEI N.º 166/99, DE 14.09.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, ADOPTADA PELA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU EM 20 DE NOVEMBRO DE 1989: - ARTIGO 37.º, ALÍNEA D).
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 5.º, N.º 1, ALÍNEA D).
REGRAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A PROTECÇÃO DOS JOVENS PRIVADOS DE LIBERDADE, RESOLUÇÃO N.º 45/113, DE 14.12.90, IN HTTP://DIREITOSHUMANOS.GDDC.PT.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 03-10-2001, IN CJ/STJ, IX, III, 174;
- DE 30-10-2001, IN CJ/STJ, IX, III, 202;
- DE 10-01-2002, PROCESSO N.º 2/02, IN SASTJ, 57.º, 77;
- DE 08-03-2006, PROCESSO N.º 06P885, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-03-2011, PROCESSO N.º 25/11.0YFLSB.S1, IN WWW.DGSI,PT;
- DE 10-04-2016, IN CJ/STJ, XVIII, II, 196;
- DE 18-01-2017, PROCESSO N.º 3/17.6YFLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I  -   Sendo certo que as medidas de promoção e protecção decididas no âmbito da LPCJP (art. 34.º, als. a) e b)) visam afastar o perigo em que a criança se encontre e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, certo é também que a medida de acolhimento residencial (al. f) do n.º 1 do art. 35.º), não cabendo, embora, nos conceitos de “detenção” ou “prisão” a que se reportam os arts. 220.º e 222.º, do CPP, não deixa de configurar uma privação de liberdade merecedora da aplicação, por analogia, do regime da providência extraordinária de habeas corpus.

II - Esta posição foi já assumida anteriormente pelo STJ, quer no âmbito da medida tutelar de internamento em centro educativo no quadro da LTE, quer no âmbito da medida de acolhimento residencial no quadro da LPCJP. Pelo que, sob pena de violação do princípio da igualdade (art. 13.º, da CRP), é de aplicar o regime do habeas corpus previsto no art. 222.º, do CPP ao caso da medida cautelar de acolhimento residencial de criança decidida no âmbito de um processo de promoção e protecção.

III -  Qualquer discórdia quanto ao mérito da decisão provisória tomada, ou quanto à decisão interlocutória que apreciou a competência funcional do Juízo de Família e de Menores de X para prosseguir com o processo de promoção e protecção, não obstante a existência de um acordo prévio assumido no âmbito da CPCJ quanto a uma outra medida, ou ainda quanto às vicissitudes processuais (que jamais poderão pôr em causa o superior interesse da criança, já que é dela que se trata), só no âmbito do recurso ordinário pode ter guarida (art. 123.º, n.º 1, da LPCJP), não na presente providência extraordinária de habeas corpus, cujo pedido assim soçobra.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. O Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de ..., Comarca de ..., em representação de AA, nascido em 14 de Fevereiro de 2017, com referência ao processo de promoção e protecção n.º 1980/17.2T8VRL que aí corre termos, veio, ao abrigo do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 47/86, de 15.10, 222.º, n.º 2, alín. a), do CPP e 27, n.ºs 1, 2 e 3, alín. e), e 31.º e 219.º, n.º 1, da CRP, requerer providência de habeas corpus, alegando os seguintes factos:

“1. Na sequência de sinalização feita pelos serviços competentes do Centro Hospitalar de ... (...), onde o AA estava internado desde o nascimento, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de ..., reconhecendo a verificação de uma situação de perigo, instaurou a favor daquele o Processo de Promoção e Protecção (PPP) com o n.º 29/17, obtidos os necessários consentimentos dos progenitores.

2. Subsequentemente, por decisão de 23 de Março de 2017, a CPCJ, necessariamente com o acordo subscrito pelos pais da criança, titulares das Responsabilidades Parentais, aplicou a medida de acolhimento residencial, pelo período de 3 meses, de harmonia com o disposto no art. 35.º, n.º, 1, alínea f), da lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP).

3. Para cumprimento daquela medida foi designado o Lar-Escola BB, da Santa Casa da Misericórdia de .....

4. A medida referida foi revista e prolongada por mais 3 meses por decisão da CPCJ, sempre, como é obrigatório, com acordo dos pais da criança.

5. No dia 3 de Outubro de 2017, novamente com o acordo dos progenitores, aquela medida foi substituída pela de apoio junto de outro familiar, os avós maternos, prevista no n.º1, alínea b), do referido art. 35.º, da LPCJP.

6. A directora da instituição que acolhe o ... logo que soube que a medida tinha sido alterada e, consequentemente, que a criança iria abandonar a instituição para integrar o agregado familiar dos avós maternos, informou a magistrada do Ministério Público que exerce funções no Juízo de Família e Menores de ... que não concordava com aquela medida.

7. Na sequência daquela comunicação, a referida magistrada, requereu a instauração de processo judicial de promoção e protecção – o processo em epígrafe – sem contudo referir, mesmo sendo do seu conhecimento, que já existia PPP na CPCJ de ... e que, entretanto, apesar da criança permanecer na instituição, a medida tinha sido alterada para a medida de apoio junto de outro familiar.

8. Recebido o requerimento, a Sr.ª juíza titular do processo declarou aberta a instrução e determinou a realização de um conjunto de diligências, com vista à eventual necessidade de aplicação de uma medida de promoção e protecção.

9. Porém, não estavam reunidos os pressupostos legais para a instauração do processo judicial de promoção e protecção e a sua existência é ilegal violando lei expressa.

10. Na verdade, a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo é da responsabilidade, em primeira linha, das entidades com competência em matéria de infância e juventude e das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e, apenas em última instância, dos tribunais.

11. Nisto consiste o princípio da subsidiariedade: “a intervenção deve ser efectuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de protecção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais” – alínea k), do art. 4.º, da LPCJP.

12. Concretizando este princípio, estabelece o art. 11.º da LPCJP as situações em que tem lugar a intervenção judicial, sendo evidente que em nenhuma delas cabe a situação aqui em apreço.

13. Por ser assim, o Ministério Público, reconhecendo o seu erro inicial, requereu, no dia 24 de Novembro de 2017, a desistência de instância, uma vez que a situação em apreço, além do já referido, não se enquadrava em qualquer uma daquelas que legitima a sua iniciativa processual, tal como resulta do disposto no art. 73.º, da LPCJP.

14. O tribunal indeferiu o pedido assim formulado.

15. Posteriormente, na certeza de que esta decisão não era susceptível de recurso, por não estar abrangida pelo disposto no art. 122.º, da LPCJP, o Ministério Público foi aos autos invocar a excepção dilatória inominada de falta de jurisdição do juízo de Família e Menores de ... e consequentemente requerer que o tribunal se abstivesse de conhecer do mérito da causa.

16. Invocando razões formais, o tribunal não conheceu da referida excepção, mantendo a tramitação dos autos.

17. E, no dia 30 de Janeiro de 2018, decidiu aplicar provisoriamente a medida de acolhimento institucional, mantendo-se a criança na Instituição “BB”.

18. Isto é, o tribunal, apesar de haver a concordância dos titulares das Responsabilidades Parentais para a intervenção da Comissão de Protecção e de no âmbito do respectivo processo, terem acordado numa medida que entregava a criança aos cuidados dos avós, medida que se mantém em vigor, fez tábua rasa de tudo isso e, sem fundamento legal nem legitimidade continuou a intervir na vida da criança e da família e a tomar decisões num processo para o qual não tem competência.

19. De tudo isto, resulta que o cidadão AA está ilegalmente privado da sua liberdade e retido num Centro de Acolhimento.

20. A Constituição da República Portuguesa consagra no art. 27.º o Direito à Liberdade de todos os cidadãos, sendo certo que no caso de crianças e jovens sujeitos “a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, a liberdade poderá ser coarctada desde que tais medidas sejam decretadas pelo tribunal judicial competente” – cf. n.º 3, alínea e).

21. Ora, sendo os Juízos de Família e Menores materialmente competentes para a aplicação de medidas de promoção e protecção, apenas o poderão fazer se tais medidas (i) forem requeridas, (ii) se se verificar uma situação de perigo e (iii) e não for caso de intervenção da comissão de protecção, tal como resulta do art. 124.º, n.º1, al. b), da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. (sublinhado nosso).

22. Do que acima fica dito, é manifesto que nesta situação não estão verificados o primeiro e terceiro daqueles requisitos.

23. A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de Novembro de 1989, ratificada por Portugal em 1990, e que vigora no ordenamento jurídico por força do disposto no art. 8.º, n.º 2 da CRP, estabelece no seu art. 9.º, n.º 1 que “Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança”.

24. Por sua vez, estabelece-se no art. 37.º, al. d) da mesma Convenção que “A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre tal matéria” (sublinhados da nossa responsabilidade).

25. Em decisões anteriores, designadamente a que foi proferida em 18 de Janeiro de 2017, no âmbito do Processo n.º 3/17.6YFLSB, de que foi relatora a Exma. Juíza Conselheira Dr.ª Maria Rosa Oliveira Tching, tem sido entendimento do STJ que «não obstante a medida de promoção e protecção prevista no art. 35.º, n.º 1 al. f), da LPCJP ter por finalidade o afastamento de perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento integral, ela não deixa de traduzir uma restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de “detenção” e de “prisão” a que aludem os arts. 220.º e 222.º do CPP, configura uma privação de liberdade merecedora da protecção legal concedida pela providência extraordinária do habeas corpus».

Nesta conformidade, requer-se a V. Ex.ª que se digne declarar ilegal a intervenção do tribunal e a decisão entretanto proferida de acolhimento residencial da criança AA e, consequentemente, que se permita a sua “libertação”, entregando-o aos avós maternos para que possa ser cumprida a medida de promoção e protecção decretada pela CPCJ de ... de apoio junto de outro familiar”.


*

2. A Exma. Juíza do processo, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 223.º do CPP, prestou a seguinte informação:

Informe que a decisão que aplicou provisoriamente ao menor a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, nos termos do disposto nos artigos 37.° n.º 1 e 35.°, n.º 1, alínea f), da LPCJP, foi proferida no dia 30 de Janeiro do corrente ano, mantém-se presentemente e dela ainda não foi interposto recurso ordinário.

Notifique”.


*

3. Convocada a Secção Criminal e notificado o M.º P.º, teve lugar a audiência, nos termos dos art.ºs 223.º, n.º 2 e 435.º, do CPP.

*

4. Cumpre, pois, conhecer e decidir a questão suscitada, de saber, por um lado e previamente, se a providência de habeas corpus é aplicável à medida de promoção e protecção de acolhimento residencial de criança, no caso, decidida a título cautelar e com previsão no art.º 35.º, n.ºs 1, alín. f) e 2, da LPCJP e, por outro e na afirmativa, se tal medida configura uma privação de liberdade ilegal, por ter sido ordenada por entidade incompetente (art.º 222.º, n.º 2, alín. a), do CPP).

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II. Fundamentação

1. De facto

Para lá da factualidade indicada no precedente relatório, dos autos consta ainda como provada a seguinte matéria de facto:

a) – Por requerimento de 10.11.2017 (fls. 27 dos presentes autos) o M.º P.º junto do Juízo de Família e Menores de ... requereu a abertura de processo judicial de promoção e protecção a favor da criança AA;

b) – Alegou, para tanto, fazê-lo ao abrigo do disposto nos art.ºs 11.º, n.º 2, 34.º, 37.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, alín. b), 79.º, n.º 1 e 100.º e ss da Lei n.º 147/99, de 01.09 (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – LPCJP);

c) – E invocou, além do mais, que o menor se encontra desde que nasceu acolhido na instituição “BB”, uma vez que ainda antes de nascer foi verificado que a progenitora não apresentava condições para cuidar dele, sozinha, e necessitava de apoio para ela própria e para o bebé;

d) – Foi assim que a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) recorreu a essa instituição no sentido de o menor aí ser acolhido até a mãe demonstrar estar apta a cuidar do filho de forma adequada;

e) – Muito embora visite o filho na instituição, diariamente, a mãe do menor não consegue sozinha prestar-lhe os cuidados adequados, mormente de alimentação e vestuário;

f) – O menor tem um problema ao nível do palato, atraso de desenvolvimento e sofre de microcefalia;

g) – Aquando do acolhimento institucional do menor, após saída do hospital, os avós maternos referiram que a filha saíra de casa aos 17 anos de idade para ir residir sozinha, tinha um atraso mental e tinha sido assistida no Centro de Paralisia Cerebral de ... desde os 18 meses até aos 5 anos, com seguimento até aos 21 na Clínica ..., no Porto;

h) – Na ocasião não demonstraram disponibilidade para ajudar a filha nos cuidados a prestar ao neto, nunca (até então) o tendo visitado na instituição, sendo que o progenitor apenas mantinha relacionamento com a mãe do menor por dinheiro, constando dos documentos juntos informação de nunca haver visitado o filho;

i) – Juntou uma informação da CPCJ, datada de 17.05.2017, onde se dá conta das tentativas frustradas de realização de perícia/avaliação psiquiátrica à mãe do menor, solicitada aos serviços de Medicina Legal e onde se concluiu que “a Comissão decidiu informar o Ministério Público da situação, por inexistência de meios alternativos para a obtenção das informações urgentes e imprescindíveis, tendo por objectivo a definição do projecto de vida da Criança” (perícia aquela judicialmente pedida no âmbito do processo de promoção e protecção, cujo relatório ainda se aguarda);

j) – Por despacho de 13.11.2017 a Exma. Juíza declarou aberta a instrução, designou data para audição dos progenitores e solicitou a elaboração de relatórios sociais (tudo isso já efectuado) e realização de exame pericial à progenitora (ainda em curso);

l) – A instituição de acolhimento tem diligenciado por consultas médicas hospitalares ao menor nas especialidades de Pediatria do Desenvolvimento e Genética;

m) – A Exma. Procuradora requerente da abertura do processo judicial de promoção e protecção apresentou requerimento em 24.11.2017 em como “apenas e só no estrito cumprimento de ordem que superiormente lhe foi dada” desistia da instância, dada a existência prévia de acordo de promoção e protecção de apoio junto de outro familiar (avós maternos) no âmbito da comissão de protecção;

n) – Por despacho judicial de 27.11.2017 esse requerimento foi indeferido dado que os autos se haviam iniciado com o relato de uma situação de perigo para a criança e as diligências instrutórias estavam ainda em curso;

o) – Mediante despacho judicial de 30.11.2017 foi entendido que uma vez iniciado o processo de promoção e protecção “já não cabe à CPCJ de ... decidir da medida de promoção e protecção a aplicar ao menor AA”, tendo-se solicitado, para apensação, o processo pendente nessa Comissão;

p) – O M.º P.º arguiu a excepção dilatória inominada de falta de jurisdição do Juízo de Família e Menores, o que foi indeferido, dado o trânsito em julgado do despacho afirmativo da sua competência, bem como indeferiu o pedido de nulidade desse indeferimento;

q) – Entretanto, foi junto o “relatório social de avaliação diagnóstica” da criança, datado de 25.01.2018, onde se conclui que “propõe-se manter a medida de acolhimento residencial até se concluir o plano de acompanhamento/avaliação e concluir a avaliação”;

r) – Por decisão de 30.01.2018, já referida, foi aplicada provisoriamente à criança a medida de promoção e protecção de acolhimento na Instituição “BB”, pelo período de 3 meses, nela se consignando que “(…) ainda se não ultrapassaram as constatadas limitações da progenitora para prestar os cuidados inerentes ao desenvolvimento harmonioso do seu filho, os avós maternos ainda não estabeleceram uma relação afectiva segura e estável com o menor, o que bem se compreende, uma vez que só no corrente mês iniciaram as visitas ao neto, sendo que nenhum deles (progenitora e avós) tem a mínima noção da condição neurológica de que padece o menor e das terapias  e acompanhamento médico de que o mesmo necessita”.


*

2. De direito

2.1. O requerente fundamenta o presente pedido de habeas corpus na ilegalidade da medida provisória de promoção e protecção de acolhimento residencial aplicada a uma criança, dado ter sido aplicada por entidade incompetente (art.º 222.º, n.º 2, alín. a), do CPP).

Ora, a primeira questão que importa dilucidar é saber se uma criança a quem foi aplicada a medida cautelar de acolhimento residencial prevista na alín. f) do n.º 1 do art.º 35.º da LPCJP pode ou não lançar mão de uma providência de habeas corpus.

O art.º 27.º, n.º 3, alín. e), da CRP excepciona ao princípio da não privação da liberdade a “sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”.

O que, de resto, está de acordo com a ressalva a igual princípio, plasmada na alín. d) do n.º 1 do art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem quando, sob idêntica epígrafe de “direito à liberdade e à segurança”, refere que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo  “se se tratar de uma detenção legal de um menor feita com o propósito de o educar sob vigilância (…)”.

As “Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade” (Resolução n.º 45/113, de 14.12.90)[1] definem no ponto 11, alín. b), que “privação de liberdade significa qualquer forma de detenção ou prisão ou a colocação de uma pessoa num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não possa sair por sua própria iniciativa, por ordem de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública”.

Por seu tuno, a alín. d) do art.º 37.º da Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe que “[a]criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre tal matéria”.

Sendo certo que as medidas de promoção e protecção decididas no âmbito da LPCJP (art.º 34.º, alíneas a) e b)) visam afastar o perigo em que a criança se encontre e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, certo é também que a medida de acolhimento residencial (alín. f) do n.º 1 do art.º 35.º), não cabendo, embora, nos conceitos de “detenção” ou “prisão” a que se reportam os art.ºs 220.º e 222.º do CPP, não deixa de configurar uma privação de liberdade merecedora da aplicação, por analogia, do regime da providência extraordinária de habeas corpus.

Esta é uma posição já antes assumida por este Supremo Tribunal de Justiça, fosse no âmbito da medida tutelar de internamento em centro educativo no âmbito da Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14.09)[2], fosse de acolhimento residencial no âmbito da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01.09)[3].

Em suma e sob pena de violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP), é de aplicar o regime do habeas corpus previsto no art.º 222.º do CPP ao caso da medida cautelar de acolhimento residencial de criança decidida no âmbito de um processo de promoção e protecção.

Mas será que a situação concreta é merecedora dessa providência extraordinária?


*

2. 2. Como é sabido e este Supremo Tribunal amiúde recorda, a providência de habeas corpus, enquanto garantia fundamental de tutela da liberdade, com assento no art.º 31.º da CRP, constitui uma medida extraordinária e expedita destinada à salvaguarda do direito à liberdade, não se destinando a sindicar o mérito da decisão que decretou a privação da liberdade, como se de um recurso ordinário se tratasse.

Conforme está doutrinal e jurisprudencialmente adquirido[4] a providência de habeas corpus também não é o meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades de processo, a impugnar através do recurso ordinário, não podendo revogar ou modificar decisões proferidas ao longo do processo, mas somente apreciar se existe privação ilegal da liberdade e em consequência ordenar, ou não, a libertação imediata do preso.

Por outro lado, a ilegalidade da privação de liberdade para lá de clamorosa, manifesta ou grosseira, há-de ser actual, isto é, só pode lançar-se mão da providência se essa ilegalidade existir ou persistir aquando da apreciação do pedido, sendo irrelevante, para o efeito, qualquer ilegalidade que haja decorrido no processo e já não subsista quando o pedido é julgado.

A ilegalidade da prisão que fundamenta o habeas corpus tem o seu tratamento processual no art.º 222.º do CPP cujo elenco taxativo o n.º 2 faz derivar do facto de:

a) - Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) – Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) – Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

O requerente faz derivar o pedido do fundamento da alín. a) desse preceito legal, ou seja, da incompetência da entidade que ordenou a privação ilegal de liberdade.

Conforme assinala Maia Costa[5] a incompetência compreende apenas a de carácter material, a falta de jurisdição, ou seja, haverá incompetência se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão carece do estatuto requerido para o fazer, ou seja, não ter o estatuto de juiz, não constituindo a incompetência funcional (ou territorial) do juiz incompetência para esse efeito (art.º 33.º, n.º 3, do CPP)[6].

Passando ao caso dos autos e sem pretensão de intervir no mérito das decisões tomadas ao longo deles (o que nos está vedado, conforme acima assinalado), simplesmente se dirá que a abertura do processo de promoção e protecção não foi manifestamente arbitrária, muito menos o foi o seu prosseguimento.

Conforme requerimento inicial do M.º P.º, essa abertura, além do mais, deveu-se ao facto de a respectiva Comissão de Protecção lhe ter comunicado a “inexistência de meios alternativos para a obtenção das informações urgentes e imprescindíveis tendo por objectivo a definição do projecto de vida da Criança” e haver considerado indícios de situação de perigo para a criança, ou seja, de acordo com o disposto no art.º 73.º, n.º 1, alín. b), da LPCJP que nessa situação e com remissão ao art.º 68.º impõe a abertura do processo.

Já a decisão que em 30.01.2018 determinou a medida cautelar de acolhimento residencial louvou-se no superior interesse do menor e no disposto nos art.ºs 37.º, n.º 1 e 35.º, n.º 1, alín. f), da LPCJP, foi tomada pelo período de 3 meses, sendo que a sua duração máxima é de 6 meses, com revisão no prazo máximo de 3 meses.

Medida que foi determinada por juiz(a) com jurisdição na respectiva área de família e menores, ou seja, por entidade competente para o fazer (art.º 101.º, n.º 1, da LPCJP).

Já qualquer discórdia quanto ao mérito da decisão provisória tomada, ou quanto à decisão interlocutória que apreciou a competência funcional do Juízo de Família e de Menores de ... para prosseguir com o processo de promoção e protecção, não obstante a existência de um acordo prévio assumido no âmbito da CPCJ quanto a uma outra medida, ou ainda quanto às vicissitudes processuais (que jamais poderão pôr em causa o superior interesse da criança, já que é dela que se trata), só no âmbito do recurso ordinário pode ter guarida (art.º 123.º, n.º 1, da LPCJP), não na presente providência extraordinária de habeas corpus, cujo pedido assim soçobra.


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III. Decisão

Face ao exposto, por falta de fundamento bastante, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida pelo M.º P.º.

Sem custas, dada a isenção do requerente (art.º 4.º, n.º 1, alín. a), do RCP).


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Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Fevereiro de 2018

Francisco Caetano (Relator)

Carlos Almeida

Santos Carvalho (Vencido quanto à questão prévia, por entender, há longos anos, que o habeas corpus, como providência excepcional, não pode ser usado por interpretação extensiva a todos os casos em que exista uma qualquer limitação da liberdade, sendo o meio próprio apenas para as situações de manifesta ilegalidade da prisão, o que significa que, se a situação não for essa, os meios de defesa são os que a lei ordinária configurar para o caso).

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[1] Acessível em http://direitoshumanos.gddc.pt.
[2] Acs. de 03.10.2001 e 30.10.2001, CJ/STJ, IX, III, 174 e 202, respectivamente e 08.03.2006, Proc. 06P885 e 02.03.2011, Proc. 25/11.0YFLSB.S1, in www.dgsi,pt.
[3] Ac. de 18.01.2017, Proc. 3/17.6YFLSB.S1, in www.dgsi.pt.   
[4] Maia Costa, “Código de Processo Penal Comentado”, de H. Gaspar et al., 2016, 2.ª ed., Almedina, p. 853 e Ac. STJ de 10.01.2002, Proc. 2/02-5.ª, SASTJ, 57.º, 77.
[5] Ob. cit., p. 855.
[6] V. Ac. de 10.04.2016, CJ/STJ, XVIII, II, 196.