Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4243/17.0T9PRT-J.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
PRISÃO PREVENTIVA
DUPLA CONFORME
TRÂNSITO EM JULGADO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A circunstância de não ter transitado em julgado o acórdão que condenou o arguido na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, não obsta a que seja aplicável o prazo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, n.º 6, do CPP.

II - O STJ vem uniformemente adotando, desde há muito, o entendimento que, se o que se considera relevante para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, é a sentença condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação.

III - O Tribunal Constitucional no acórdão n.º 404/2005, de 22-07-2005, proferido no processo n.º 546/2005 (in DR, II Série, de 31-03-2006), decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do art. 215.º, n.º 1, al. c), com referência ao n.º 3, do CPP, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação.

IV - Entendimento semelhante vem assumindo o TEDH, ao considerar que o período de tempo a considerar para duração da prisão preventiva inicia-se com a prisão e termina com a decisão em 1.ª instância sobre o mérito da acusação.

V - Uma vez que o arguido se encontra sujeito à medida de prisão preventiva desde 04 de maio de 2019, que por acórdão de 15-07-2020 do Tribunal Central Criminal do Porto foi condenado como autor de um crime de tráfico de estupefaciente, agravado, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 e 24.º, als. b) e j), do DL 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C e II-A, anexas ao mesmo, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, e que por acórdão de 27-01-2021 do Tribunal da Relação do Porto, ainda sem trânsito, foi confirmada a pena, aplicada ao arguido, no acórdão de 15-07-2020 do Tribunal Central Criminal do Porto, ainda não se tinham excedido os prazos máximos previstos no art. 215.º, n.º 6, do CPP, que só se extinguirá em 04 de fevereiro de 2022.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

AA, preso no Estabelecimento Prisional …, à ordem do processo comum coletivo nº 4243/17.0T9PRT, veio requerer a providência de HABEAS CORPUS, invocando o art. 222º, nº 2, al. c) do Código do Processo Penal[1], nos termos e com os seguintes fundamentos: (transcrição)

«1. O arguido foi notificado, via citius, no dia 27 de Janeiro.

2. A decisão quanto a si confirmou a decisão recorrida.

3. Com efeito, o arguido está condenado na pena de prisão de 6 anos e 6 meses.

4. Concorrem para a presente providência três ordens de razões:

- o acórdão do Tribunal da Relação …. não transitou (o trânsito ocorrerá em Março);

- o acórdão do Tribunal da Relação … quanto ao recorrente não admite recurso;

- o acórdão do Tribunal da Relação …. encerra quanto ao segmento da decisão relativa ao arguido um ponto passível de reclamação.

5. Porque não tem direito a recorrer e mesmo sabendo que vai cumprir pena privativa, tem direito a ver esclarecida a questão decorrente da decisão quanto a si.

6. Tem prazo e ainda corre para o fazer.

7. Só que, a sua privação de liberdade por força da lei é neste momento ilegal.

8. O tempo passou e, desde a detenção até ao dia de hoje passaram 2 anos.

9. A decisão se no dia de hoje se mostrasse transitada, a prisão seria legal.

10. Assim, não, por violação da lei adjectiva.

11. O arguido, no dia de hoje, dirigiu à 1ª Instância requerimento e recebeu o despacho, que infra se transcrevem:

1. O arguido foi detido no dia 4 de Fevereiro de 2019 e o prazo máximo de duração da privação de liberdade é de 2 (dois) anos, nos termos do disposto no art.º 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que a data limite da medida de coacção em curso é a do dia 4 de Fevereiro de 2021.

2. Nos termos das disposições conjugadas nos artigos 201º, 214º, 218º e 215º, nº 2, todos do CPP, a medida de coação aplicada ao arguido extingue-se quando, desde o seu início, tenham decorridos dois anos sem condenação transitada em julgado.

3. A decisão proferida no Tribunal da Relação ainda não transitou.

4. Assim, em face do exposto, a medida de coação aplicada ao arguido AA está extinta ope legis pelo decurso do tempo’.

A sua pretensão de revogação da medida coactiva, mereceu a seguinte decisão:

Por acórdão datado de 15.07.2020 foi arguido AA condenado, como autor de um crime de tráfico de estupefaciente, agravado, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 24º b) e j) do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C e II-A, anexas ao mesmo, A PENA DE 6 ANOS e 6 MESES DE PRISÃO efectiva, pena esta confirmada pelo Acórdão da Relação …. datado de 27.01.2021, ainda não transitado. O arguido AA encontra-se detido desde 04.02.2019 e após primeiro interrogatório de arguido detido realizado em 07.02.2019 foi-lhe aplicada medida coativa de prisão preventiva, a qual em curso até à presente data. Reza o art.º 215 n.º 6 o seguinte: (...)6 -No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.(...).Logo, não tendo transitado o Acórdão da Relação ….. acima referenciado, o qual confirmou a pena aplicada ao arguido AA em 1.ª instância, mantém-se o mesmo em prisão preventiva a qual vê agora o seu prazo máximo aumentado para metade da pena fixada. Isto é, face ao prazo máximo da prisão preventiva ora em curso de 3 anos e 3 meses, esta apenas atinge o seu limite máximo em 04.05.2022.

Face ao exposto, indefere-se o solicitado pelo arguido AA (ref.ª ….) mantendo-se nos seus exatos termos o teor do despacho judicial proferido em 28.01.2021, no qual se procedeu ao reexame das medidas coativas detentivas em execução por referência ao preceituado no art.º 215 n.º 6 do C.P.P. acima transcrito.

Notifique’

12. A letra da lei no artigo 215º, nº 6 do CPP não pode ultrapassar o trânsito da decisão, pois que a arguição de nulidade ou correcção da decisão pode vir a alterar a decisão.

13. O Trânsito em Julgado é a expressão máxima da certeza jurídica.

14. Não é porque o nº 6 do artigo 215º do CPP refere “ter sido confirmada”, que se renuncia, abdica ou oblitera que essa confirmação ocorra pela simples notificação, sem trânsito.

15. A decisão deve transitar para ter o seu efeito definitivo.

16. É por isso que, a decisão de manutenção da prisão preventiva para lá dos 2 anos, é uma decisão é ilegal.

17. O arguido até dia 9 de Fevereiro, o 10º dia (no limite, até 15/2) pode pedir a correcção da decisão nos termos do artigo 380º do CPP no que a si diz respeito.

18. A providência de habeas corpus tem caracter extraordinário e só tem aplicação nos casos em que não haja outro meio legal para fazer cessar a ofensa a liberdade, como é o caso.

19. A decisão proferida pela 1ª Instância, não obstante o trânsito do acórdão condenatório apenas ocorrer no dia 1 de Março, refere que a prisão preventiva se mantém para lá do prazo legalmente previsto, porque a prisão “… vê agora o seu prazo máximo aumentado para metade da pena fixada”.

20. Não é “agora”, mas apenas depois do trânsito em julgado.

21. É o trânsito em julgado que confere a firmeza ou definitividade da decisão e, no fundo a paz social.

22. Até lá o arguido não tendo direito a recorrer, tem outro direito, que deve ser respeitado – não é um direito menor; é um direito.

23. Para a determinação da data do trânsito em julgado de uma sentença penal deve considerar-se o prazo de 30 dias.

24. Assim, a decisão transitará no dia 1 de Março.

25. Proferida uma decisão, ainda que legalmente irrecorrível para o tribunal superior, a mesma não pode considerar-se transitada em julgado na data da sua notificação, pois a mesma, independentemente de não ser susceptível de recurso ordinário, pode ser objecto de reclamação ou correcção nos termos do artigo 380º do CPP.

26. A providência de habeas corpus, no caso de prisão ilegal, tem como pressuposto de facto a prisão efectiva e actual (desde 4/2/19)e como fundamento jurídico a ilegalidade dessa prisão (face ao artigo 215º, nº 2 e face aos docs 1 e 2 que mostram à evidência a decisão não transitada).

Termos em que, no provimento do presente, deve ser ordenada a libertação do suplicante, face ao disposto no artigo 222º, nº 2, al c) do CPP.

Junta: 2 documentos e

Requer seja instruído com o requerimento e despacho do dia 4 de Fevereiro referidos sob 11»

2. A Mmª Juíza do Juízo Central Criminal ….. – Juiz ….. - exarou a informação a que alude o artigo 223º, n.° 1, do CPP, em 05FEV21 nos seguintes termos: (transcrição)

«AA, arguido nestes autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo n.º 4243/17.0T9PRT., requer ao Supremo Tribunal de Justiça a providência extraordinária de Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal, com fundamento no art.º222 n.º1 e 2 c) do C.P.P.

No seguimento do preceituado no art.º 223 do C.P.P. deverá a secção remeter ao Supremo Tribunal de Justiça a informação que se segue com os documentos descriminados:

- Por acórdão datado de 15.07.2020 foi arguido AA condenado, como autor de um crime de tráfico de estupefaciente, agravado, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 24º b) e j) do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C e II-A, anexas ao mesmo, A PENA DE 6 ANOS e 6 MESES DE PRISÃO efetiva, pena esta confirmada pelo Acórdão da Relação …. datado de 27.01.2021, ainda não transitado.

- O arguido AA encontra-se detido desde 04.02.2019 e após primeiro interrogatório de arguido detido realizado em 07.02.2019 foi-lhe aplicada medida coativa de prisão preventiva, a qual em curso até à presente data.

- foram proferidos despachos judiciais com datas de 28.01.2021 e 04.02.2021, constando deste último o seguinte:

”…Reza o art.º 215 n.º 6 o seguinte:

(…)6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.(…).

Logo, não tendo transitado o Acórdão da Relação …. acima referenciado, o qual confirmou a pena aplicada ao arguido AA em 1.ª instância, mantém-se o mesmo em prisão preventiva a qual vê agora o seu prazo máximo aumentado para metade da pena fixada. Isto é, face ao prazo máximo da prisão preventiva ora em curso de 3 anos e 3 meses, esta apenas atinge o seu limite máximo em 04.05.2022.

Face ao exposto, indefere-se o solicitado pelo arguido AA (ref.ª ….) mantendo-se nos seus exatos termos o teor do despacho judicial proferido em 28.01.2021, no qual se procedeu ao reexame das medidas coativas…”

Face ao exposto, concluí este tribunal que a prisão preventiva do arguido AA não é ilegal, pelo que se mantém.

Mas suas excelências, os Senhores Juízes Conselheiro, decidirão quanto à petição de Habeas Corpus, fazendo como sempre, Justiça.

Remeta-se ao S.T.J. cópias certificadas do Acórdão proferido nestes autos em 15.07.2020, do Acórdão proferido no Tribunal da Relação … em 27.01.2021, ainda não transitado, da acusação pública, do despacho que designou dia para julgamento e dos despachos que se seguiram mercê da interrupção da audiência face à entrada do país em confinamento face à Pandemia Covid-19, dos requerimentos apresentados pelo arguido AA em 04.02.2021 e 05.02.2021 e dos despachos judiciais acima referenciados. Deverá ainda ser junta cópia do Auto de 1.º interrogatório do arguido AA, do despacho judicial que decretou a prisão preventiva assim como do mandado de detenção que o antecedeu, e ainda dos despachos proferidos nos autos que asseguraram o reexame dos pressupostos da prisão preventiva daquele mesmo arguido.

3. Convocada a secção criminal, notificados o Ministério Público e a mandatária do requerente, realizou-se a audiência (artigos 223.º, nºs 2 e 3, e 435.º do Código de Processo Penal).


***


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Dos documentos juntos aos autos e do teor da informação prestada resultam apurados os seguintes factos e ocorrências processuais, com relevância para a decisão da providência requerida:

1.1. O arguido AA encontra-se detido desde 04FEV19 e após primeiro interrogatório de arguido detido realizado em 07FEV19 foi-lhe aplicada medida coativa de prisão preventiva.

1.2. Por acórdão de 15JUL20 do Tribunal Central Criminal …. – Juiz …., foi o arguido AA condenado como autor de um crime de tráfico de estupefaciente, agravado, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 24º b) e j) do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C e II-A, anexas ao mesmo, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva.

1.3. Por acórdão de 27JAN21 do Tribunal da Relação …., ainda não transitado, foi confirmada a pena de 6 anos e 6 meses de prisão, aplicada ao arguido, no acórdão de 15JUL20 do Tribunal Central Criminal … – Juiz ….

1.4. Por despacho de 04FEV21 foi decidido o seguinte:

”…Reza o art.º 215º, n.º 6 o seguinte:

(…) 6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada. (…).

Logo, não tendo transitado o Acórdão da Relação …. acima referenciado, o qual confirmou a pena aplicada ao arguido AA em 1.ª instância, mantém-se o mesmo em prisão preventiva a qual vê agora o seu prazo máximo aumentado para metade da pena fixada. Isto é, face ao prazo máximo da prisão preventiva ora em curso de 3 anos e 3 meses, esta apenas atinge o seu limite máximo em 04.05.2022.

Face ao exposto, indefere-se o solicitado pelo arguido AA (ref.ª ….) mantendo-se nos seus exatos termos o teor do despacho judicial proferido em 28.01.2021, no qual se procedeu ao reexame das medidas coativas…”

Face ao exposto, concluí este tribunal que a prisão preventiva do arguido AA não é ilegal, pelo que se mantém».

1.5. Desde 07FEV19 até à presente data a medida de coação de prisão preventiva tem sido sucessivamente revista e mantida.


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III. O DIREITO

O art. 27º, da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à liberdade pessoal, como direito fundamental, é de aplicação direta e vincula todas as entidades públicas e privadas e a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias da Constituição e da lei – arts. 27º, nº 2 e 28º, da CRP, e art. 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos.

O art. 31º, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Habeas Corpus”, consagra no seu nº 1 que «Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente».

Conforme entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça «É uma providência urgente e, expedita, com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação, destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação direta, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação.

“Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o “habeas corpus” testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (JJ. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigo 1º a 107º, 4ª edição revista, volume I, Coimbra Editora, 2007, II, p. 508).

E escrevem os mesmos autores (ibidem, V, p. 510): “(…) (1) a providência do “habeas corpus” é uma providência à margem do processo penal ordinário; (2) configura-se como um instituto processual constitucional específico com dimensões mistas de ação cautelar e de recurso judicial. (…)”[2]

E no acórdão do STJ de 30NOV16, conclui-se:

«Em suma:

A previsão - e precisão - da providência, como garantia constitucional, não exclui, porém, a sua natureza específica, vocacionada para casos graves, anómalos, de privação de liberdade, como remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, traduzidas em abuso de poder, ou por serem ofensas sine lege ou, grosseiramente contra legem, traduzidas em violação direta, imediata, patente e grosseira dos pressupostos e das condições da aplicação da prisão, que se apresente como abuso de poder, concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável»[3].

Em conformidade com os citados preceitos constitucionais, a providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excecional para proteger a liberdade individual, revestindo caráter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.° 1 do artigo 220.° do CPP e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.° 2 do artigo 222.° do CPP.[4]

Por outro lado, de acordo com o princípio da atualidade é necessário que a ilegalidade da prisão seja atual, sendo atualidade a reportada ao momento em que é necessário apreciar o pedido.

O art. 222º, do CPP, sob a epígrafe, Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal, estabelece quais os fundamentos da providência resultante da ilegalidade da prisão, ou seja:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

No caso subjudice o requerente invoca que a sua prisão é ilegal, porquanto no seu entender já foi ultrapassado o limite do artº 215º n.º 1, al. d) do CPP, tendo ocorrido o prazo máximo de prisão preventiva, em 04FEV21, uma vez que a decisão condenatória não transitou em julgado, porquanto o acórdão do Tribunal da Relação …. ainda não transitou, o que só ocorrerá em 1 de março de 2021.

As medidas de coação são meios processuais de limitação de liberdade pessoal, e estão sujeitas aos princípios da legalidade, da adequação, da proporcionalidade, da precariedade e, quanto à prisão preventiva da subsidiariedade (arts. 191º, nº 1, 193º, 215º e 218º, 202º e 209º, do CPP).

Tais medidas porque limitativas de direitos fundamentais têm que, contudo, estar em conformidade com as garantias da Constituição e da Lei.

Assim, o art. 191º, nº 1, do CPP no qual se consagra o princípio da legalidade das medidas de coação, determina, em conformidade com o preceito constitucional do art. 27º, nº 2, da CRP, que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e garantia patrimonial previstas na lei”.

O direito à liberdade pessoal, como direito fundamental, é de aplicação direta e vincula todas as entidades públicas e privadas e a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias da Constituição e da lei – arts. 27º, nº 2 e 28º, da CRP, e art. 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Humanos - não deixando, porém, também a Lei Fundamental de prever os casos de violação dos deveres a que os cidadãos estão adstritos ou as situações particulares decorrentes da prática de crimes.

A prisão preventiva que é a medida mais grave das medidas de coação, e dada a sua excecionalidade e subsidiariedade, conforme resulta da Constituição, em que a liberdade é a regra e a prisão preventiva a exceção (arts. 27º e 28º, da CRP), só pode ser aplicada quando se verifiquem os requisitos especiais previstos no art. 202º do CPP e os requisitos gerais previstos no art. 204º, do CPP.

O artigo 212º do CPP consagra:

«1. As medidas de coação são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:

a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou

b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação».

Como corolário do princípio constitucional da presunção de inocência, o princípio da precariedade que rege a aplicação das medidas de coação, segundo o qual as medidas de coação, porque impostas ao arguido que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, (art. 32º, nº 2, da CRP), não devem ultrapassar os pressupostos legais, o art. 215º, do CPP estabelece os prazos máximos de duração da prisão preventiva.

Assim, de harmonia com o citado preceito,

«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro;

b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos;

c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respetiva passagem;

d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio;

e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;

f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;

g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.

4 - A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.

5 - Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos nºs 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.

6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.

7 - A existência de vários processos contra o arguido por crimes praticados antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva não permite exceder os prazos previstos nos números anteriores.

8 - Na contagem dos prazos de duração máxima da prisão preventiva são incluídos os períodos em que o arguido tiver estado sujeito a obrigação de permanência na habitação».

Como supra se referiu, o requerente invoca os fundamentos previstos na c) do nº 2 do artigo 222º, do CPP, ou seja, a prisão manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial, alegando que já se mostra ultrapassado o prazo legal de prisão preventiva, uma vez que ainda não transitou em julgado o acórdão que o condenou na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, porquanto o acórdão do Tribunal da Relação … ainda não transitou em julgado.

Vejamos, se lhe assiste razão:

Retomando as ocorrências processuais relevantes para a decisão da presente providência:

O arguido AA encontra-se detido desde 04FEV19 e após primeiro interrogatório de arguido detido realizado em 07.02.2019 foi-lhe aplicada medida coativa de prisão preventiva. Por acórdão de 15JUL20 do Tribunal Central Criminal … – Juiz ….., foi o arguido AA condenado como autor de um crime de tráfico de estupefaciente, agravado, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 24º b) e j) do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C e II-A, anexas ao mesmo, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Por acórdão de 27JAN21 do Tribunal da Relação …, ainda não transitado, foi confirmada a pena de 6 anos e 6 meses de prisão, aplicada ao arguido, no acórdão de 15JUL20 do Tribunal Central Criminal … – Juiz …. Por despacho de 04FEV21 foi decidido o seguinte:

”…Reza o art.º 215º, n.º 6 o seguinte:

(…) 6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada. (…).

Logo, não tendo transitado o Acórdão da Relação …. acima referenciado, o qual confirmou a pena aplicada ao arguido AA em 1.ª instância, mantém-se o mesmo em prisão preventiva a qual vê agora o seu prazo máximo aumentado para metade da pena fixada. Isto é, face ao prazo máximo da prisão preventiva ora em curso de 3 anos e 3 meses, esta apenas atinge o seu limite máximo em 04.05.2022.

Face ao exposto, indefere-se o solicitado pelo arguido AA (ref.ª ….) mantendo-se nos seus exatos termos o teor do despacho judicial proferido em 28.01.2021, no qual se procedeu ao reexame das medidas coativas…”

Face ao exposto, concluí este tribunal que a prisão preventiva do arguido AA não é ilegal, pelo que se mantém». Desde 07FEV19 até à presente data a medida de coação de prisão preventiva tem sido sucessivamente revista e mantida.

O crime de tráfico de estupefaciente, agravado, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 e 24º b) e j) do DL 15/93, de 22.01 com referência às Tabelas I-A, I-B, I-C e II-A é punido com uma moldura penal abstrata de cinco a quinze anos de prisão, integra o conceito de criminalidade altamente organizada (art. 1º, al. m) do CPP).

Assim sendo, o prazo máximo de prisão preventiva, sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado é de 2 anos. (art. 215º, nº 1 e 2, als. b) e c), do CPP).

Considerando, porém, que por acórdão de 27JAN21 do Tribunal da Relação …., ainda não transitado, foi confirmado o acórdão de 15JUL19 do Tribunal Central Criminal …., Juiz …., o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada, de harmonia com o disposto no art. 215º, nº 6 do Código de Processo Penal «No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada», ou seja, o prazo máximo de prisão preventiva é de 3 (três) anos e 3 (três) meses, atendendo à fase do processo.

Com efeito, a circunstância de não ter transitado em julgado o acórdão que condenou o arguido na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, não obsta a que seja aplicável o prazo de prisão preventiva, previsto no art. 215º, nº 6, do CPP, muito embora no caso subjudice, uma vez que a decisão condenatória foi mantida nos seus precisos termos, verifica-se a dupla conforme, não sendo passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Com efeito, tal como se decidiu no acórdão do STJ de 06-03-2014, processo nº 7/14.0YFLSB.S1, Relator OLIVEIRA MENDES[5], «Considera-se relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação. (…).

Trata-se de orientação que este Supremo Tribunal vem uniformemente adotando, desde há muito, sob o entendimento de que aquilo que o legislador pretendeu evitar ao fixar os prazos de duração máxima da prisão preventiva é que o arguido esteja preso preventivamente por mais de certo e determinado tempo sem nunca ter sido condenado por um tribunal, ou seja, sem que um tribunal, após contraditório, haja considerado o arguido culpado. Isso é que seria intolerável do ponto de vista legal. Já não assim quando houve uma condenação, não obstante a sentença ou o julgamento tenham sido anulados.[6].

Sendo certo que o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 404/2005, de 22-07-2005, proferido no Processo n.º 546/2005 (in DR, II Série, de 31-03-2006), decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 215.º, n.º 1, al. c), com referência ao n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória em 1.ª instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação, sob o entendimento de que a anulação da condenação não tem como efeito o regresso ao primeiro limite, entendimento que, segundo defende, além de se mostrar juridicamente fundado na distinção entre os efeitos da nulidade e da inexistência, se mostra adequado aos objectivos do legislador, pois respeita a intenção de o processo chegar à fase da condenação em 1.ª instância sem ultrapassar 3 anos de prisão preventiva, e não se mostra directamente violador de qualquer norma ou princípio constitucional.

Entendimento algo semelhante vem assumindo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao considerar que o período de tempo a considerar para duração da prisão preventiva inicia-se com a prisão e termina com a decisão em 1.ª instância sobre o mérito da acusação, o que, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Maio de 2008, atrás citado, está associado ao entendimento de que o que o n.º 3 do artigo 5.º da CEDH garante é que qualquer pessoa presa ou detida tem direito a ser julgada num prazo razoável. Este julgamento é o julgamento em 1.ª instância. Efectuado este, entra-se já na fase dos recursos e aí a regra que valerá é a do artigo 6.º, n.º 1, sendo certo que prazo razoável para efeitos do artigo 5.º, n.º 3, é diferente de prazo razoável para efeitos do artigo 6.º, n.º 1. Neste último caso o que se pretende evitar é que as pessoas acusadas, presas ou não, se mantenham muito tempo numa situação de incerteza sobre o desfecho do seu processo, enquanto no primeiro o que se pretende evitar é, unicamente, que a prisão tenha uma duração excessiva [7]».

Assim sendo, uma vez que o arguido AA se encontra sujeito à medida de prisão preventiva desde 04 de maio de 2019 ainda não excedeu os prazos máximos previstos no art. 215º, nº 6, do Código de Processo Penal, que só se extinguirá em 04 de fevereiro de 2022.

A prisão preventiva a que o arguido AA se encontra sujeito, foi aplicada por entidade competente - o juiz do processo - por facto pelo qual a lei permite, e, mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coação na fase em que o processo ora se encontra.

Não se verifica assim, qualquer excesso de prazo.

Os fundamentos invocados pelo requerente, como supra se referiu não cabem na previsão normativa do art. 222º, nº2, do CPP, e designadamente não se verifica o fundamento de habeas corpus, a que alude a alínea c) do n.° 2 do artigo 222º do CPP, subjacente aos motivos invocados pelo requerente.


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IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a petição de habeas corpus, por falta de fundamento bastante, nos termos do art. 223º, nº 4, al. a), do CPP.

Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Ucs.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 10 de fevereiro de 2021


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

Pires da Graça (Presidente da Secção)

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[1] Doravante designada pelas iniciais CPP
[2] Vide AC do STJ de 07JUN17 (relator Pires da Graça), AC de 15FEV17 (relator Raul Borges) proferido no proc. nº 7459/00.4TDLSB-M.S1 e os arestos ali citados; ACS de 22.06.2017 e de 20.12.2017 (relator Manuel Braz), proferidos no mesmo processo.
[3] Vide AC do STJ de 30NOV16 (relator Pires da Graça), proferido no proc. nº 66/14.6GBLSB-A.S1.
[4] Vide AC de 15FEV17 (relator Raul Borges) proferido no proc. nº 7459/00.4TDLSB-M.S1.
[5] Disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cf. entre muitos outros, os acórdãos de 02.08.30, 03.03.26, 04.04.29, 06.01.25, 07.12.06, 07.01.17, 08.05.14, 10.09.29 e 11.09.08, o segundo e o terceiro publicados nas CJ (STJ), XI, II, 230 e XII, II, 176, os restantes proferidos, respetivamente, nos Processos n.ºs 2943/02, 281/06, 4583/06, 176/07, 1672/08, 139/10.4YFLSB.S1 e 413/07.7TACBR.S1.
[7] Cf. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada (3ª edição), 103/104.