Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
653/14.2TBGMR-B.G1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
TRANSMISSÃO DA LIVRANÇA
PREENCHIMENTO DA LIVRANÇA PELO CESSIONÁRIO
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS / CESSÃO DE CRÉDITOS / ADMISSIBILIDADE DA CESSÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 577.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 25-05-2017, PROCESSO N.º 9197/13, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-09-2017, PROCESSO N.º 779/14;
- DE 12-10-2017, PROCESSO N.º 1097/14, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1. O pacto de preenchimento associado a uma livrança subscrita em branco não tem, por regra, natureza intuitu personae (art. 577º, nº 1, do CC).

2. Por isso, na falta de convenção em contrário, com a transmissão do crédito cambiário emergente da livrança transmite-se para o cessionário o direito de proceder ao seu preenchimento, de acordo com o previsto no respetivo pacto.

Decisão Texto Integral:

I - AA deduziu os presentes embargos de executado por apenso à execução que lhe é movida por BB, pedindo a extinção da execução.

Alegou que a exequente não figura no título dado à execução e que a cessão de créditos invocada pela exequente é alheia ao embargante; que não consta da livrança qualquer endosso à exequente, pelo que esta não pode acionar o embargante; que não sabe que cálculos fez a exequente para atingir os valores que refere, nem se esses valores têm algum suporte legal ou se o mútuo subjacente à livrança está vencido.

Alegou ainda que, sendo verdade que a subscritora da livrança entregou a livrança em branco ao CC e lhe concedeu o direito de a preencher, a exequente deveria informá-la previamente dos valores apurados.

Ademais, o pacto de preenchimento apenas favorecia o CC, não podendo ser transferido para outra pessoa.

A embargada contestou alegando ser a legítima portadora da livrança que lhe foi transmitida no âmbito de um contrato de trespasse do estabelecimento comercial bancário, sendo justificado o preenchimento da livrança ao abrigo do pacto de preenchimento. Ademais, antes do seu preenchimento, a sociedade executada foi interpelada relativamente ao incumprimento do contrato de mútuo subjacente.

Foi proferido saneador-sentença  julgando improcedentes os embargos de executado.

O embargante deduziu recurso de apelação que foi julgado improcedente.

O embargante interpôs recurso de revista invocando a diferença substancial da fundamentação que foi empregue pela Relação, uma vez que a 1ª instância não abordou a questão do carácter intuitu personae do pacto de preenchimento em que a também fundamentou os embargos de executado.

Interpôs ainda revista excecional quanto à questão da legitimidade da exequente. Mas, submetida à formação prevista no nº 3 do art. 672º do CPC, esta não foi admitida, por falta de sustentação do alegado relevo jurídico ou social da questão.

Prossegue a revista circunscrito às seguintes questões:

a) Inexistência jurídica do acórdão recorrido;

b) Ónus da prova relativamente à alegada violação do pacto de preenchimento; e

c) Natureza intuitu personae do pacto de preenchimento, ante a alegação do recorrente de que não se pode considerar transmitido para a exequente/embargada o poder de proceder ao preenchimento da livrança.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Factos provados:

1. O embargante subscreveu, na qualidade de avalista, a livrança de fls. 7 dos autos de execução.

2. O embargante entregou à exequente a livrança apresentada à execução.

3. O embargante subscreveu o pacto de preenchimento da livrança apresentada á execução junto a fls. 66 e 66 v.

4. A exequente, por carta datada de 30-12-13 (com o timbre da exequente), comunicou à subscritora da livrança a remessa da mesma à cobrança bancária pelo valor de € 329.510,22, conf. carta junta a fls. 62 (onde se diz ainda que, “verificado o não cumprimento das obrigações emergentes do contrato em referência, foi o mesmo resolvido” e que, “em consequência de tal facto, de harmonia com o contratualmente estabelecido e conforme havia sido comunicado, procedemos ao encerramento conta e ao consequente preenchimento da livrança por € 329.510,22”)

5. Até à presente data, a livrança não foi paga por nenhum dos obrigados.

Outros elementos que relevam de documentação que foi junta:

6. No dia 4-4-11, entre CC, SA, e a exequente foi outorgado o contrato de “trespasse”, tendo por objeto o “estabelecimento comercial que constitui a universalidade de ativos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente contratos de depósito, contratos de mútuo e, de uma forma geral, a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua atividade bancária”.

E mais adiante refere-se que “estão incluídos neste contrato de trespasse … o restante ativo do estabelecimento, incluindo os créditos sobre mutuários, devedores e restante clientela a ele afeta, acompanhados de todas as garantias e acessórios, mediante a cessão da posição contratual da sociedade trespassante ou outro título jurídico suficiente, de todos os contratos com os referidos mutuários, devedores, restante clientela, fornecedores ou quaisquer outros relacionados com a atividade do estabelecimento trespassado …” (fls. 276 e ss.).

7. No dia 4-4-11, entre CC SA. e a exequente foi celebrada a escritura de “cessão de créditos” cuja cópia consta de fls. 74 e ss.

III – Decidindo:

1. Suscitou o embargante a inexistência jurídica do acórdão recorrido por reproduzir praticamente outro acórdão subscrito por outro coletivo da mesma Relação, no âmbito dos embargos de executado que constituem o Apenso A e que foram deduzidos pela sociedade executada.

Trata-se de uma pretensão que não encontra qualquer fundamento legal, pois se é verdade que o acórdão recorrido reproduziu praticamente a fundamentação adotada no acórdão proferido no Apenso A, o facto é que neste Apenso B, em que o embargante é o avalista da subscritora da mesma livrança, foram suscitadas as mesmas questões que, aliás, também haviam sido resolvidas da mesma forma pela 1ª instância.

Foi certamente também por esse motivo que o recorrente reproduziu no precedente recurso de apelação as alegações apresentadas no outro recurso de apelação interposto no Apenso A, não sendo de estranhar que o coletivo que produziu o acórdão neste Apenso B tenha aproveitado, citando devidamente, o que fora decidido no acórdão da Relação proferido no âmbito do Apenso A.

Naturalmente que, neste contexto, o julgamento desta revista também não divergirá substancialmente da revista interposta no Apenso A.

2. Quanto ao preenchimento da livrança:

O embargante/executado foi confrontado no processo de execução com uma pretensão assente numa livrança que por si foi avalizada, subscrita em branco pela sociedade executada, a qual foi entregue ao CC, no âmbito de um contrato de mútuo bancário. Tal livrança foi acompanhada de um pacto de preenchimento, nos termos do qual se permitia ao credor que procedesse ao preenchimento da livrança relativamente aos elementos em falta, até ao limite máximo de € 380.000,00.

A este respeito o embargante praticamente limitou-se a alegar que não sabe que cálculos fez a exequente para atingir os valores que refere, não sabe se esses valores e todos eles têm suporte legal ou se o mútuo subjacente à livrança está vencido e desde quando.

As instâncias consideraram apurado, a este respeito, que a A. exequente, por carta datada de 30-12-13, comunicou à executada a remessa da livrança à cobrança bancária pelo valor total de € 329.510,22.

No despacho saneador-sentença, a 1ª instância julgou improcedentes os embargos com tal fundamento por considerar que constituía ónus do embargante demonstrar a existência de abuso no preenchimento da livrança no confronto com o pacto de preenchimento, solução que foi confirmada pela Relação.

Na verdade, no seio das relações imediatas em que nos situamos, tendo, por um lado, o embargante, como avalista da subscritora da livrança e, por outro, a exequente, como legítima portadora, atento o disposto no art. 10º da LULL, não está afastada a possibilidade de se invocar a violação do pacto de preenchimento.

Todavia, como referem as instâncias, constituía ónus do embargante alegar e demonstrar a existência de violação do pacto de preenchimento, designadamente que o valor inscrito na livrança não corresponde à dívida emergente do contrato de mútuo no âmbito do qual a livrança foi subscrita e foi subscrito o pacto de preenchimento.

Esta foi, aliás, a solução adotada no Ac. do STJ de 12-10-17, 1097/14 (www.dgsi.pt), com intervenção deste coletivo, relatado pelo Cons. Tomé Gomes, em cujo sumário se refere que “no âmbito de uma livrança emitida em branco, incumbe aos obrigados cartulares, no domínio das suas relações imediatas com o portador daquela, alegar e provar a violação do respetivo pacto de preenchimento, como decorre do disposto no art. 10º, a contrario sensu, aplicável ex vi do art. 77º ambos da LULL e do art. 378º do CC”. Solução que também foi seguida no Ac. deste STJ de 28-9-17, 779/14, do mesmo relator, embora com outros adjuntos.

A este respeito o embargante, apesar de ter sido confrontado com uma comunicação da exequente dirigida à subscritora da livrança que reportava a resolução do contrato de mútuo e a intenção de proceder ao preenchimento da livrança com o quantitativo apurado, limitou-se a impugnar genericamente o modo como foi preenchida a livrança, sem alegação da existência de alguma violação desse pacto, seja quanto ao montante inscrito, seja quanto à data de vencimento.

Por conseguinte, não poderia a questão deixar de ser apreciada no despacho saneador, na medida em que não existia verdadeiramente qualquer facto suscetível de ser apurado de modo a integrar o fundamento jurídico de violação do pacto de preenchimento.

Confirma-se, nesta parte, o que foi decidido pelas instâncias.

3. Quanto à natureza do pacto de preenchimento:

Importa apreciar se, na falta de convenção especial, o pacto de preenchimento subscrito pela sociedade executada representa um contrato intuitu personae ou se a faculdade de proceder ao preenchimento da livrança, nos termos contratados, se considera também transmitida para a exequente, como legítima detentora da referida livrança, por lhe ter sido transmitida na sequência do trespasse de estabelecimento comercial bancário.

O pacto de preenchimento previsto no art. 10º da LULL constitui um acordo que, em regra, não ganha autonomia fora da relação jurídica em que foi subscrito. Constitui um instrumento jurídico que permite ao credor proceder ao preenchimento dos elementos em falta de forma que corresponda ao que efetivamente foi contratado, quer em termos de vencimento, quer de indicação do montante da obrigação.

Segundo o Ac. do STJ de 25-5-17, 9197/13, em www.dgsi.pt,“o pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária”.

No caso concreto, o embargante na petição inicial limitou-se a alegar que não cabia a outrem, que não ao CC, o direito de preencher a livrança, argumentando, de modo genérico, que o pacto de preenchimento gera um direito estritamente pessoal e, por isso, intransmissível, nos termos do art. 577º do CC.

Ora, a matéria de facto alegada não evidencia qualquer circunstância suscetível de sustentar o carácter intuitu personae do pacto de preenchimento outorgado, correspondendo a um passo que é comum sempre que se recorre ao financiamento bancário, como ocorreu no caso concreto.

Em situações como a presente, o sistema não tutela a maior ou menor sensibilidade do devedor em face de um ou de outro credor. Trata-se de dívida que emerge de um contrato de mútuo, a que, por seu lado, está associada a livrança subscrita e avalizada em branco, não existindo razão alguma para considerar que o pacto de preenchimento obedece a regras diversas daquelas a que obedece a transmissão do direito de crédito bancário ou do direito cambiário emergente da livrança na posse da exequente.

O art. 577º, nº 1, do CC, apenas tutela os casos em que a lei ou o acordo das partes impede a cessão ou em que esta respeita a crédito que, “pela sua própria natureza” está ligado à pessoa do credor, segmento jurídico para o qual não foram alegados factos pertinentes, de modo que nada impedia a apreciação dessa questão pela 1ª instância no despacho saneador.

Uma vez que nenhum facto foi alegado a esse respeito, nada impedia as instâncias de considerar improcedente a questão a partir do confronto que se estabeleceu nos articulados.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do embargante.

Notifique.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2018

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo (com declaração de voto junta)

_______

Declaração de voto


Votei o acórdão, circunscrito apenas à questão do carácter intuitu personae do pacto de preenchimento, em função da decisão do acórdão de fls. 319, proferido pela formação a que alude o nº 3 do art. 672º, do Código de Processo Civil, que não admitiu o recurso quanto à questão da legitimidade.