Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
999/12.4TBEPS-G.G2-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONCURSO DE CREDORES
INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
DIREITO DE RETENÇÃO
SINAL
INCUMPRIMENTO
CONSUMIDOR
CRÉDITO SUBORDINADO
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor (art. 49.º do CIRE) é taxativo, e não exemplificativo, estando fora da sua previsão a relação tio sobrinho.
II - Os credores irmão e cunhada daquele que foi administrador da sociedade devedora não são pessoas especialmente relacionadas com esta, nos termos da al. c) do n.º 2 do art. 49.º do CIRE, se tal administrador deixou de possuir essa qualidade anteriormente aos dois anos que antecederam o início do processo de insolvência.
III - Os credores irmão e cunhada daquele que foi sócio da sociedade por quotas devedora não são, à luz da al. a) do n.º 2 do art. 49.º do CIRE, pessoas especialmente relacionadas com esta, uma vez que tal sócio não responde legalmente pelas dívidas da sociedade.
IV - (i) Mostrando-se que os promitentes-compradores, a quem foi traditada a fração (“loja”) prometida vender passaram a colocar objetos no interior da mesma, usando-a como bem entendem, procedendo à limpeza da mesma, e (ii) mostrando-se que não existe licenciamento da construção nem propriedade horizontal e que o prédio ainda se encontrava em construção:
- então é adequado concluir que se está perante uma afetação do local a fins particulares, devendo aqueles ser considerados consumidores e titulares do direito de retenção.
V - Mostrando-se que foi passado sinal pelos promitentes-compradores, a quem foi traditada a coisa, e que a parte do preço remanescente da prometida compra e venda veio depois a ser entregue à promitente-vendedora, estamos, na suposição de incumprimento da promessa, perante um crédito que não pode deixar de ser visto como garantido pelo direito de retenção nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 755.º do CC e n.º 2 do art. 442.º do CC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 999/12.4TBEPS-G.G2. S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ...

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Por sentença de 06 de novembro de 2014 (transitada em julgado em 01 de dezembro de 2014) foi declarada a insolvência de A..., Unipessoal, Lda. (que foi, anteriormente, A..., S.A., e A..., Lda.).

Na sequência, vieram a ser apreendidas para a massa insolvente, entre outras, as frações designadas pelas letras ... (habitação do tipo T4) e “C” (loja) do prédio descrito nos autos (verbas n.ºs ..18 e ...54 do auto de apreensão).

Isto posto:

AA e mulher BB apresentaram-se oportunamente a reclamar um crédito de €499.594,52 sobre a Insolvente, emergente do não cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, invocando a garantia do direito de retenção sobre tais frações.

Após ocorrências processuais que para aqui não importam, veio, a final, a ser proferida sentença (9 de março de 2021), onde, além do mais, se decidiu que:

“II - Pelo produto da venda do imóvel apreendido sob o n.º …18 dar-se-á pagamento pela forma seguinte:

- em primeiro lugar, ao crédito por IMI, na parte em que é privilegiado (…);

- depois, ao crédito hipotecário da credora Parvalorem, S.A.;

- de seguida, ao que restar do crédito fiscal por IRC, privilegiado;

- a seguir, o restante do crédito da Segurança Social, também privilegiado;

- do remanescente do produto da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos créditos comuns, nestes se incluindo o que restar dos créditos hipotecário da Parvalorem, S.A. e privilegiados da Fazenda e da Segurança Social (…);

- por último, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, aqui incluído o crédito reclamado por AA e esposa (…).

III – Pelo produto da venda da fracção ...54 dar-se-á pagamento pela forma seguinte:

- em primeiro lugar ao IMI;

- de seguida e pela ordem temporal das apresentações correspondentes, aos créditos hipotecários da CEMG, de CC e DD e CEMG;

- depois, ao que restar do crédito fiscal por IRC, privilegiado;

- a seguir, o restante do crédito da Segurança Social, também privilegiado;

- do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns, nestes se incluindo o que restar dos créditos hipotecários acima e privilegiados da Fazenda e da Segurança Social;

- por último, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, aqui incluído o crédito reclamado por AA e esposa (…)”.

Inconformados com o assim decidido, apelaram os referidos Credores AA e mulher.

Fizeram-no com êxito, pois que a Relação ... (acórdão de 23 de setembro de 2021), modificando a sentença, decidiu que o crédito dos apelantes estava garantido por direito de retenção sobre as ditas frações. Em consequência mais procedeu à atinente graduação de créditos do seguinte modo:

“– Pelo produto da venda do imóvel apreendido sob o n.º …18 dar-se-á pagamento pela forma seguinte:

- em primeiro lugar, ao crédito por IMI, na parte em que é privilegiado (…);

- de seguida ao créditos garantido por direito de retenção dos credores AA e esposa (…);

- depois, ao crédito hipotecário da credora Parvalorem, S.A. antes identificado;

- depois, ao que restar do crédito fiscal por IRC, privilegiado;

- a seguir, o restante do crédito da Segurança Social, também privilegiado;

- do remanescente do produto da venda desse bem, dar-se-á pagamento aos

créditos comuns, nestes se incluindo o que restar dos créditos da Fazenda e da Segurança Social;

- por último, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados (…)

– Pelo produto da venda da fracção ...54 dar-se-á pagamento pela forma seguinte:

- em primeiro lugar ao IMI;

- depois, ao crédito garantido por direito de retenção dos credores (…) AA e esposa (…);

- de seguida (…), aos créditos hipotecários da CEMG, de CC e DD e CEMG (…)

- depois, ao que restar do crédito fiscal por IRC, privilegiado;

- a seguir, o restante do crédito da Segurança Social, também privilegiado;

- do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns, nestes se incluindo o que restar dos créditos da Fazenda e da Segurança Social;

- por último, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.”

Insatisfeitas com o assim decidido, pedem revista as Credoras Reclamantes Parvalorem S.A.. e Caixa Económica Montepio Geral.

Introduziram ambas os respetivos recursos como revista excecional, ainda que aludindo também ao art. 14.º, n.º 1 do CIRE.

O relator proferiu oportuno despacho, transitado em julgado, onde se decidiu que o art. 14.º, n.º 1 do CIRE não regulava para um processo como o vertente (processo de verificação de créditos) e onde se determinou a admissão dos recursos como revista ordinária, por, inexistindo dupla conforme, não ser caso legal de revista excecional.

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São as seguintes as conclusões que a Recorrente Parvalorem, S.A. extrai da sua alegação:

1. O presente recurso vem interposto do Acórdão que julgou procedente a apelação interposta pelos Credores AA e BB e, em consequência, reconheceu aos apelantes o direito ao crédito reclamado de 499.594,52 €, garantido por direito de retenção sobre as frações 18 e ....

2. O Tribunal a quo entendeu que, por um lado, o referido crédito não é subordinado dado que AA e esposa não se consideram pessoas especialmente relacionadas com a Insolvente e, por outro, que o mesmo crédito é garantido pelo direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC por considerar que estamos perante consumidores promitentes-compradores num contrato com eficácia obrigacional, devidamente sinalizado, onde ocorreu a tradição dos imóveis prometidos vender e a quem o Administrador de Insolvência recusou outorgar o contrato prometido.

3. Em 9 de julho de 2019, foi proferida a primeira sentença de verificação e graduação de créditos que reconheceu aos Credores AA e BB um crédito no valor de € 499.594,52, garantido por direito de retenção sobre as verbas n.º …18 e ...54 ao abrigo da al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC.

4. A Credora P..., S.A. apresentou, em 26 de julho de 2019, recurso de apelação onde, para além de ter impugnado a decisão da matéria de facto, suscitou que no caso em apreço não existia a prestação de qualquer sinal, mas a totalidade do preço e, como tal, não podia ser reconhecida a garantia do direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC.

5. Em 10 de setembro de 2020 foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação que, julgando improcedente a impugnação da matéria de facto, não se pronunciou quanto à garantia do direito de retenção do crédito dos Credores AA e esposa, por entender que havia de se aferir, primeiramente, se o referido crédito era subordinado face à relação de parentesco com o legal representante da sociedade insolvente.

6. O Tribunal de Primeira Instância, após a realização de diversas diligências, veio a entender que o crédito de AA e esposa era subordinado por imposição do disposto na primeira parte da al. a) do art. 48.º do CIRE.

7. Os Credores AA e esposa recorreram da nova sentença de verificação e graduação de créditos, tendo o Tribunal da Relação entendido que não estamos perante um crédito subordinado, mas antes um crédito garantido por direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CIRE.

8. No Acórdão em crise, o Tribunal da Relação entendeu que o sinal não pode ser considerado pressuposto indispensável da atuação do direito de retenção, sendo que, no caso em apreço, foi dado como provado o pagamento da totalidade do preço acordado no âmbito do contrato promessa de compra e venda.

9. Contudo, salvo o devido respetivo, tal entendimento desvirtua o regime do direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC e a sua necessária remissão para o crédito indemnizatório previsto no artigo 442.º do CC.

10. As partes A..., Lda. e EE e BB denominaram o contrato de “contrato promessa de compra e venda”, tendo estipulado que o preço global da venda era de € 400.000,00, tendo sido pago, na data do contrato, a quantia de € 300.000,00 e os restantes € 100.000,00 até ao final do mês de junho de 2009.

11. Foi dado como provado que foi paga a totalidade do preço da venda definitiva, ou seja, o valor de € 400.000,00, ao qual a sociedade insolvente deu quitação e conforme consta a respetiva contabilidade.

12. O montante pago e reclamado nos presentes autos pelos Reclamantes EE e BB corresponde à totalidade do preço da compra e venda definitiva, o qual se distingue da figura do sinal.

13. O sinal é a coisa entregue por um dos contraentes ao outro como garantia do cumprimento revestindo, por isso, uma dupla natureza confirmatória e penal.

14. O artigo 442.º do CC regula o regime do sinal, sendo que o n.º 2 dispõe sobre as indemnizações do sinal em dobro e do aumento do valor da coisa, estando a indemnização da restituição do sinal em dobro, em virtude do não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, dependente necessariamente da existência do sinal.

15. O valor reclamado pelos Reclamantes EE e BB, correspondente a €400.000,00, acrescido dos juros, não corresponde a uma antecipação parcial ou princípio de pagamento do preço estipulado para o negócio prometido, mas antes ao puro adiantamento dessa prestação atenta a expectável e futura compra.

16. O Tribunal a quo apenas reconheceu aos Reclamantes EE e BB o valor do preço global da venda de € 400.000,00, acrescido dos juros, não lhe tendo sido reconhecido qualquer sinal em dobro.

17. A quantia reconhecida aos Reclamantes EE e BB não constituiu qualquer sinal ou sequer sinal em dobro, mas antes ao montante indemnizatório em virtude do incumprimento do contrato promessa nos termos estabelecidos no artigo 442.º do Código Civil.

18. “Tendo o A. antecipado o pagamento da totalidade do preço acordado, falece, em concreto, um pressuposto fundamental da aplicação do regime previsto no art. 442.º, n.º 2, que é precisamente a existência de sinal, seja ele confirmatório ou penitencial.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de maio de 2009.

19. Considerando que os Reclamantes anteciparam o pagamento da totalidade do preço da venda, não se lhe pode conferir um crédito correspondente ao sinal em dobro, tal aliás como resulta da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância e do Acórdão recorrido.

20. O Tribunal de Primeira Instância, confirmado pelo Tribunal da Relação, não reconheceu aos Reclamantes EE e BB qualquer quantia a título de sinal em dobro, mas simplesmente o montante em singelo pago pelos mesmos, acrescido dos juros.

21. A al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC dispõe que goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º do Código Civil.

22. A aplicação do regime do artigo 442.º do Código Civil, nomeadamente da indemnização do sinal em dobro, pressupõe necessariamente a prestação do sinal pelo promitente-comprador.

23. O direito de retenção previsto na al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC apenas garante o crédito resultante do incumprimento imputável do contrato promessa quando tenha sido prestado um sinal.

24. Por um lado, porque a referida al. f) remete expressamente para o artigo 442.º do CC e os créditos referidos nessa norma são apenas o da restituição do sinal em dobro ou do aumento do valor da coisa e não o crédito geral indemnizatório como, por exemplo, o decorrente do artigo 798.º do CC.

25. Por outro lado, não havendo sinal, a tradição da coisa é uma mera tolerância, pelo que não faz sentido penalizar o promitente-vendedor.

26. Os efeitos do não cumprimento do referido contrato promessa são os do incumprimento dos contratos em geral que decorrentes dos artigos 798.º e 801.º do Código Civil e que determinam uma indemnização do credor com a exigência da restituição por inteiro da prestação efetuada.

27. Os Reclamantes EE e BB somente terão direito à restituição do preço da compra por si pago, conforme resulta da decisão recorrida, sendo certo que, ao contrário do referido acórdão, não se pode reconhecer a esse crédito a garantia de direito de retenção, uma vez que não está em causa uma indemnização pelo sinal em dobro, nem pelo aumento do valor da coisa.

28. Os Reclamantes EE e BB são credores da quantia de € 400.000,00, acrescido dos juros, não sendo este crédito garantido pelo direito de retenção previsto na al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, mas apenas um crédito comum.

29. O Acórdão deverá ser revogado na parte em que atribui aos Credores EE e esposa um crédito, correspondente ao preço de venda, garantido por direito de retenção ao abrigo da al. f) do artigo 755.º do CC.

São as seguintes as conclusões que a Recorrente Caixa Económica Montepio Geral extrai da sua alegação:

i. O Acórdão recorrido foi proferido em contradição com os doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-10-2020, Proc. 3030/18.2T8AVR-A.P1.S2, e de 23-05-2019, Proc. 1517/14.5T8STS-B.P1.S1.

ii. No citado Acórdão-fundamento proferido no âmbito do Proc. 3030/18.2T8AVR-A.P1.S2, foi dada como provada a seguinte factualidade: “a lei é clara ao consignar que a simples constatação do vínculo familiar e da vivência em economia comum faz operar a qualificação de pessoa especialmente relacionada com o devedor, para efeitos de classificação dos créditos destas pessoas como subordinados, nos termos do artº 48, al. a) do CIRE, independentemente da data da constituição do respectivo crédito.” (negrito e sublinhado nosso).

iii. O Acórdão recorrido foi ainda proferido em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-05-2019, Proc. 1517/14.5T8STS-B.P1.S1.

iv. No caso sub judice está em causa saber se os credores reclamantes AA e mulher deverão ser considerados pessoas especialmente relacionadas com o devedor e, em consequência, serem os seus créditos reconhecidos e graduados com base na sua natureza subordinada.

v. Estão provados os seguintes factos, como tal descritos quer na douta Sentença da 1ª Instância, quer no Acórdão Recorrido: “Ora, sendo o credor contratante/reclamante AA irmão do FF, contratante / representante da sociedade A..., S.A., seu presidente do Conselho de Administração, depois sócio maioritário da sociedade A..., Limitada, em que era titular de uma quota de 417.500,00 €uros, conforme Ap. ...05, e, mais tarde, da quota de 174.888,00 €uros, conforme Ap. ...17, é certo serem os credores AA e mulher pessoas especialmente relacionadas com a pessoa colectiva ora Insolvente, nos termos das disposições conjugadas do n.º 2, al. d) e al. b) do n.º 1, ambos do art. 49.º do CIRE. Consequentemente, o crédito aqui reclamado e reconhecido aos reclamantes AA e mulher é um crédito subordinado, por imposição do disposto na primeira parte da al. a) do art. 48.º do CIRE”.

vi. Contudo, o Acórdão recorrido negou que o crédito em causa devesse ser reconhecido como subordinado, expondo, em suma, a seguinte argumentação: “I. A enunciação das circunstâncias que constituem a especial relação com o credor causadoras da subordinação do crédito é taxativa e não meramente exemplificativa. II. Não podem considerar-se pessoas especialmente relacionadas com o devedor, o irmão e cunhada de alguém que foi administrador da insolvente (antes da transformação em sociedade por quotas) mais de 2 anos antes do início do processo de insolvência. III. Igualmente não podem considerar-se pessoas especialmente relacionadas com o devedor, o irmão e cunhada de alguém que foi sócio de uma sociedade por quotas que veio a ser declarada insolvente, na medida em que a responsabilidade de tal sócio não é pessoal e ilimitada, não respeita à generalidade das dívidas da pessoa colectiva insolvente e não tem como fonte a própria lei.”

vii. Da análise das certidões juntas aos autos, resulta que o GG é filho de FF – que sempre deu nome às sociedades SA, por quotas e unipessoal por quotas – e neto paterno dos pais do AA.

viii. Portanto, o credor EE é tio do GG, filho do seu (do EE) irmão FF.

ix. E, tal como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - Processo n.º 1445/12.9TBPFR-A.P1, de 19 de novembro de 2013, é lógico que a explicação para a classificação destes créditos como subordinados “consiste na superioridade informativa das pessoas indicadas face à situação do devedor e no conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência do devedor; no caso de pessoa coletiva, essas pessoas deveriam, por isso, ter financiado o devedor mais criteriosamente ou, noutras hipóteses, ter exercido sobre ele efetiva influência”

x. Tal classificação justifica-se, portanto, face à posição privilegiada em que certas pessoas se encontram, por poderem ser favorecidos, de forma prejudicial para os restantes credores da insolvência e, por conseguinte, representando uma situação de risco na satisfação dos restantes créditos.

xi. Porém, decidiu o Acórdão Recorrido que “ainda que o irmão e cunhado dos ora apelantes tenha sido sócio da sociedade insolvente (uma sociedade por quotas) até 4 de Maio de 2012, a verdade é que este, nessa qualidade de sócio, não respondia legalmente pelas dívidas dessa sociedade, pois que não respondia pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da insolvente, nos termos acima descritos.”

xii. E, quanto à questão do lapso temporal, de facto, em algumas alíneas do artigo 49º do CIRE prevê-se a existência de um lapso temporal, que se reporta até dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

xiii. Contudo, se o legislador entendesse que para além da verificação das referidas relações de proximidade referidas no artº 49º do CIRE, haveria cumulativamente de exigir a proximidade da constituição do crédito ou da garantia em relação ao início da insolvência, não deixaria de o ter referido, como de resto o faz na alínea a) do nº 1 e nas alíneas a), b) e c) do nº 2, e como o faz também no artº 120º do CIRE quando, a propósito da resolução dos actos prejudiciais à massa, à natureza do acto em si, faz acrescer a proximidade do início do processo da insolvência.

xiv. Assim, perfilhando mais uma vez do Acórdão fundamento, proferido no Proc. 3030/18.2T8AVR-A.P1.S2, se dirá que “em nosso entender, a lei é clara ao consignar que a simples constatação do vínculo familiar e da vivência em economia comum faz operar a qualificação de pessoa especialmente relacionada com o devedor, para efeitos de classificação dos créditos destas pessoas como subordinados, nos termos do artº 48, al. a) do CIRE, independentemente da data da constituição do respectivo crédito.”

xv. Neste contexto a provada relação de parentesco entre os credores é suficiente para qualificar os seus créditos como subordinados.

xvi. Por outro lado, entendendo ainda à decisão, ora em crise, também nos socorremos do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02-02-2010, proferido no âmbito do processo nº 171/07.5TBOBR-C.C1, no qual se pode observar que foi decidido que: II- O disposto no art. 49º do CIRE não deve ser interpretado com um excessivo rigor formal, mas antes plástica e razoavelmente, de sorte a concluir-se, ou não, se o caso concreto encerra o quid essencial que lhe subjaz, a saber: se o credor reclamante, directa ou indirectamente, tem na sua posse informação sobre a situação do devedor que o coloque no que toca à definição ou condicionamento de factualidade de que o seu crédito emirja. III- Destarte, subsume-se na sua previsão, rectius nas alíneas b) e c), o caso em que a credora é uma sociedade Lda., cujos únicos sócios são marido e mulher, sendo este sócio maioritário e gerente, e tendo este já sido administrador da sociedade insolvente.

xvii. Daqui se depreende que não poderá ser fundamento para a decisão de que se recorre, o facto de existir ou não responsabilidade pessoal e ilimitada.

xviii. Até porque, se assim fosse facilmente tal situação poderia ser “contornada” ao alterar uma sociedade anónima para uma sociedade por quotas.

xix. No que a esta questão diz respeito, bem esteve a sentença de verificação e graduação de créditos proferida a nove de Março de 2021, que reconheceu aos credores AA e mulher os seus créditos com natureza subordinada.

xx. O Acórdão recorrido foi ainda proferido em contradição com o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-09-2021, Proc. 679/14.6TYVNG-E.P1.S1.

xxi. No citado Acórdão-fundamento foi dada como provada, com interesse para o que aqui se discute, a seguinte factualidade: “É certo que a Credora em causa não pode, dentro do critério estabelecido no AUJ n.º 4/2019 (que optou por um conceito restrito de consumidor), ser havida como consumidora, na medida em que vem provado que se dedica ao comércio de artigos de ourivesaria, utilizando a fração prometida vender para tal atividade comercial de pendor lucrativo.”

xxii. Ora, no Acórdão, ora em crise (com origem neste processo datado de 2021), é referido que “É certo que o AUJ 4/2019, veio definir o conceito de consumidor para o efeito aqui considerado. Contudo, as reclamações de créditos apresentadas nos presentes autos datam do início do ano de 2015, e mesmo a sentença inicialmente proferida, é de data anterior ao referido AUJ 4/2019. Nessa medida, considerando que os AUJ, não são fonte de direito, que nunca nos autos o mesmo foi considerado (por inexistente à data)”.

xxiii. E, de acordo com o Acórdão Recorrido, encontram-se provados os seguintes factos: “Ora, no que aos apelantes diz respeito, temos que estes fizeram prova cabal da outorga do contrato promessa de compra e venda da moradia n.º 13 da urbanização da ..., ... e da loja sita no ..., em ..., verbas apreendidas para a Massa sob os n.ºs ..18 e ..54 (C), pelo preço de 200.000,00 € cada – factos 7 a 10.”

xxiv. Ou seja, está provado que a fracção ... destina-se a uma loja para uso profissional, e não pessoal.

xxv. Pelo que, dúvidas não restam em, relativamente à fracção ...54, operar a aplicabilidade do referido conceito de consumidor a que alude o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2019, publicado D.R. nº 141 – 1ª série de 25 de Julho de 2019 onde aí julga que “na graduação de créditos em insolvência apenas tem a qualidade de consumidor para efeitos do disposto no Acórdão nº 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente–comprador que destina o imóvel objecto da “traditio”, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afecta a uma actividade profissional ou lucrativa.”

xxvi. Pelo que, pode-se concluir que estes não beneficiam de qualquer direito de retenção.

xxvii. Aliás, reproduzir-se-á aqui parte do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto – 5ª Secção – Proc. nº 679/14.6TYVNG-C.P1, onde se pode ler que: “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa.” Seguiu assim este Supremo Tribunal uma interpretação restritiva de conceito de consumidor. Se é certo que para os presentes autos não tem aplicação a jurisprudência fixada pelo AUJ 4/14, no que respeita à proteção do promitente-comprador que vê recusado o cumprimento do contrato pelo AI na medida em que in casu a resolução e os direitos à mesma subsequentes se fixaram ainda antes da declaração da insolvência –a implicar que para o caso são irrelevantes as discussões doutrinárias e jurisprudenciais que sobre a interpretação dos artigos 102 e segs. se suscitaram e motivaram o 1º AUJ, já o mesmo se não pode dizer sobre a interpretação restritiva da norma contida no artigo755º nº 1 al. f) a qual é independente do momento em que ocorre o incumprimento do contrato”.

xxviii. Em suma, não é pelo facto de se entender que não se pode aplicar o AUJ de 4/2019 que se poderá aceitar a solução encontrada no Acórdão, ora em crise.

xxix. Isto porque sendo os credores, AA e mulher, pessoas especialmente relacionadas com o insolvente e,

xxx. não sendo considerados “consumidor”,

xxxi. não se encontra verificada a necessidade de tutela pelo direito de retenção,

xxxii. Pelo que, deverão os créditos de AA e mulher ser reconhecidos como créditos subordinados.

                                                           +

Os Recorridos HH e mulher contra-alegaram, concluindo pela improcedência dos recursos.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

Recurso da Caixa Económica Montepio Geral:

- Se os Recorridos são pessoas especialmente relacionadas com a Devedora;

- Se os Recorridos não podem ser havidos como consumidores relativamente à “fração” da verba n.º ...54.

Recurso da Parvalorem S.A.:

- Se os Recorridos não gozam do direito de retenção.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes (aqui incluídos os novos factos aditados pela segunda sentença proferida nos autos e pelo acórdão recorrido):

1 - Por contrato de permuta celebrado no dia 8 de outubro de 2008 entre II, na qualidade de dona e legitima proprietária do referido Lote ...1, e A..., S.A., enquanto construtor, aquela deu à dita sociedade o aí referido Lote n.º ...1, sito em ..., ..., em troca das frações a construir, conforme cópia de fs. 471/472 e posterior escritura de 19.6.2009, copiada a fs. 935/936 e planta anexa.

2 - Na sequência desse contrato de permuta, foi apresentado junto da Câmara Municipal ..., em 5 de dezembro de 2008, uma comunicação prévia de obras de construção relativamente ao lote em causa, conforme fs. 473 e ss,

3 - pedido esse que foi efetuado em nome da dita II, representada por GG, em virtude de aquela ser a proprietária e a sociedade A..., S.A. não dispor ainda de título bastante.

4 - Foi a sociedade A..., S.A., quem diligenciou e obteve todos os documentos necessários para apresentar a comunicação prévia.

5 - A tal comunicação prévia foi dado inicialmente o número 4894/... – fs. 473 -, tendo sido posteriormente alterado para o processo n° 5052/...,

6 - razão pela qual foi referido esse número no contrato promessa copiado a fs. 938 v.º/939.

7 - Em 18.12.2008, a sociedade A..., S.A., como primeira outorgante e promitente vendedora, e os ora reclamantes AA e esposa como segundos outorgantes e promitentes compradores, outorgaram o contrato promessa de compra e venda vertido no documento copiado a fs. 938 v.º/939.

8 - Nos termos da cláusula primeira de tal contrato, a Promitente Vendedora, disse ser dona e legítima proprietária do condomínio fechado em construção, em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de ..., inscrita na respetiva matriz predial de ... sob o artigo n.º ...18 e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78, a que corresponde o processo de obras n.º 180/... da Câmara Municipal ... e do prédio em construção, designado por Lote n.º ...1, com a área de 551,00 m2, na Rua ..., ..., ..., da freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...98 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ...29, com o Processo de Obras n.º 4894/... da Câmara Municipal ....

9 - Nos termos da cláusula segunda, os Promitentes Compradores aceitam a compra e a Promitente Vendedora, pelo seu lado, aceita a venda das frações autónomas, uma correspondente à moradia n.º 13 sita no Lugar ..., ..., ..., e outra correspondente à Loja situada no ... em ..., identificadas na cláusula anterior.

10 - Conforme cláusula terceira, a transação é prometida pelo preço global de euros: 400.000,00 (Quatrocentos mil euros), tendo cada fração o valor de 200.000,00 (Duzentos mil euros).

11 - Ainda nos termos da cláusula terceira, os Segundos Outorgantes entregaram à Primeira Outorgante 300.000,00 €uros na data do contrato promessa, como sinal e princípio de pagamento,

12 - quantia de que a promitente vendedora deu completa quitação.

13 - Os promitentes compradores obrigaram-se a pagar os restantes 100.000,00 €uros até final do mês de Junho de 2009.

14 - A ora Insolvente entregou aos reclamantes AA e esposa as chaves da moradia n.º 13 e da loja de ... em Junho de 2012.

15 - A partir dessa data, os ora reclamantes passaram a habitar ocasionalmente e a receber amigos e familiares na moradia,

16 - o que fizeram sempre à vista e com conhecimento de toda a gente,

17 - sem oposição de quem quer que seja,

18 - e passaram a colocar objetos no interior da loja,

19 - usando-a como bem o entendem,

20 - procedendo a limpezas da mesma,

21 - o que também fazem à vista de toda a gente,

22 - sem oposição de quem quer que seja.

23 - Os requerentes sempre exerceram essa posse na convicção de que exercem sobre os imóveis em causa o direito de propriedade.

24 - Os requerentes pagaram o preço total do contrato, conforme consta da contabilidade da insolvente.

25 - Em 25.12.2012 o prédio implantado sobre o Lote ...1 ainda se encontrava em construção.

26 - Ainda hoje não existe licenciamento da construção nem propriedade horizontal.

27 - AA nasceu em .../.../1944, filho de JJ e de KK, neto paterno de LL e de MM e neto materno de NN e de OO. Casou com BB em 14.2.1971.

28 - GG nasceu em .../.../1976, filho de FF e de PP, neto paterno de JJ e de KK e neto materno de QQ e RR. Casou com SS em 6.8.2011.

29 - Em 11.2.2009 foi matriculada na Conservatória do Registo Predial/Comercial de ..., sob o n.º ...66, a sociedade por quotas com a firma A..., Limitada;

30 - Pela Inscrição 7 – Ap. ...05 foi registada a transformação em sociedade por quotas desta sociedade, ficando assim distribuído o capital social:

- FF, casado com PP na separação de bens, com uma quota de 417.500,00 €uros;

- GG, solteiro, com uma quota de 164.350,00 €uros;

- TT, solteiro, com uma quota de 141.850,00 €uros;

- PP, casada com o UU, com uma quota de 2.500,00 €uros;

- VV, com uma quota de 2.500,00 €uros.

31 - A gerência ficou a cargo de TT e de GG;

32 - Pela Insc. 10 – Ap. ...17, foi registada alteração ao contrato de sociedade por forma a que o FF ficou com uma quota de 174.888,00 e o GG ficou titula de quota de igual valor, de 174.888,00 €uros; a gerência ficou a cargo de GG.

33 - Pela Insc. 14 - Ap. ...20 foi registada nova alteração do contrato de sociedade, transformada agora em S..., UNIPESSOAL, LIMITADA, com uma quota de 728.700,00 pertencente a GG como bem próprio.

34 - Esta S... por quotas é a aqui insolvente, como tal declarada por sentença de 6.11.2014.

35 - A 31 de Agosto de 2012 A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., ..., veio, ao abrigo do disposto nos artigos 17º-A e 17º-B do Código de Insolvência e de Recuperação de empresas e com a anuência da sua credora R..., Lda., comunicar ao Tribunal que pretende iniciar negociações tendentes à aprovação de um plano de recuperação através de procedimento especial de revitalização.

36 - Por decisão de 10/03/2014, foi decidido não homologar o plano de recuperação de A..., Lda., apresentado em 18 de Abril de 2013.

37 - por sentença de 06/11/2014, foi declarada a insolvência de A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., ... ao abrigo do disposto no art.º 17º G nº 3 do CIRE.

38 - A 22 de Abril de 1986 foi constituída a sociedade A..., S.A., sendo FF o seu Presidente do Conselho de Administração, cargo no qual foi reconduzido a 27 de Março de 2007.

39. Em 4 de maio de 2012, o sócio FF, através da menção Dep. .../2012-05-05 21:47:32 UTC – Transmissão de Quota(s), transmite a sua quota de valor nominal de 14.574,00 euros.

De direito

Quanto ao recurso da Caixa Económica Montepio Geral

Sustenta esta Recorrente que, diferentemente do que se decidiu no acórdão recorrido, os Reclamantes AA e mulher devem ser havidos como pessoas especialmente relacionadas com a sociedade Insolvente. Daqui que o respetivo crédito deva ser considerado como subordinado, e não como garantido como se decidiu.

Mas não pode ser assim.

Dispõe a alínea a) do artigo 48º do CIRE que se consideram subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor (desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva aquisição).

E o art. 49º estabelece que:

“1 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:

a) O seu cônjuge e as pessoas de quem se tenha divorciado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior;

c) Os cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor;

d) As pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa coletiva:

a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1.”

Embora se trate de questão controversa nos círculos doutrinários e jurisprudenciais, cremos que este elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve ser visto como taxativo[1], pois que estamos perante uma norma que se apresenta como enumerativa circunscrita ou fechada, nada se surpreendendo na sua letra que indicie ou sugira uma designação meramente exemplificativa. Essa natureza circunscrita ou fechada está como que assumida no art. 47.º, n.º 4, alínea b) do CIRE (“Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são: (…) «Subordinados» os créditos enumerados no artigo seguinte[2] (…)” e no ponto 25 do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004 (“A categoria dos créditos subordinados abrange (…) aqueles cujos titulares sejam «pessoas especialmente relacionadas com o devedor» (…), as quais são criteriosamente indicadas no artigo 49.º do diploma”) (sublinhados nossos). Se a solução legal é acaso suscetível de poder causar alguma desigualdade ou injustiça, como há quem aponte[3], isso, porém, não constitui fundamento para que a norma não seja observada tal como se apresenta.

 De observar, em breve nota, que a questão estará em breve superada, na medida em que face à redação dada ao art. 49.º do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro (mas que ainda não entrou em vigor) resulta expressamente assumida a natureza taxativa da norma. A nova lei funciona aqui como lei interpretativa do direito anterior, de sorte que não poderá haver dúvidas acerca da apontada taxatividade.

Ora, sendo embora certo que os Credores Reclamantes AA e mulher são irmão e cunhada de FF, menos certo não é que este não detém (mas sim o seu filho GG, sobrinho, pois, dos ditos Credores) a qualidade de administrador, de direito ou de facto, da sociedade Insolvente. É verdade que FF foi administrador da sociedade (facto do ponto 38), mas desde que esta foi transformada em sociedade por quotas (2009) que deixou de o ser (factos dos pontos 31 e 32).

Deste modo, e vistos os factos dos pontos 35, 36 e 37, segue-se que não está preenchida a previsão da alínea c) (em conjugação com a alínea d) e com as alíneas b) e c), estas do n.º 1) do n.º 2 do art. 49.º do CIRE. Pois que, tudo ao contrário da previsão dessa norma, se mostra que o irmão do Credor Reclamante AA não detém a qualidade de administrador da devedora, conquanto a tenha detido mas para além dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (2014, ano em que foi indeferida a homologação do PER, na sequência imediata do que foi aberto o processo de insolvência). E desinteressante para o caso é a circunstância do administrador da devedora ser sobrinho dos Credores em causa, justamente porque, sendo o elenco do art. 49.º taxativo, a relação de parentesco em causa não fazer parte desse elenco.

De observar que os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2020 (Processo n.º 3030/18.2T8AVR-A.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt) e de 23 de maio de 2019 (Processo n.º 1517/14.5T8STS-B.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), invocados pela Recorrente na suposição de estarem em oposição com o acórdão recorrido, nada têm a ver com o que aqui está em discussão ou com o que se decidiu no acórdão recorrido (e se está de novo a discutir no presente recurso).

O que esses acórdãos decidiram foi que a alínea a) do art. 48.º do CIRE não comporta interpretação restritiva de modo a fazer relevar qualquer lapso de tempo entre a aquisição do crédito e a insolvência, sendo condição necessária e suficiente para a classificação do crédito como subordinado que seja detido por pessoa especialmente relacionada com o devedor. O que estava em discussão em tais acórdãos era a questão de saber se (sendo certo que a ratio dessa norma repousa na ideia de superioridade informativa da pessoa especialmente relacionado com o devedor) relevava ou não o facto do crédito ter sido constituído em tempo deveras anterior ao do início do processo de insolvência.

A Recorrente parece fazer uma interpretação muito própria dessa jurisprudência, como se a mesma tivesse alguma coisa a ver - mas não tem - com o prazo dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência estabelecidos em várias alíneas (nomeadamente na alínea c) do n.º 2, que é a que parece ter sido visada pela Recorrente) do art. 49.º do CIRE. Tudo isso para concluir, porém erraticamente, que “Neste contexto a provada relação de parentesco entre os credores é suficiente para qualificar os seus créditos como subordinados”. Uma tal afirmação seria válida para uma hipótese como aquelas sobre que recaíram os ditos acórdãos, mas não para a hipótese vertente, totalmente diversa no seu enquadramento factual e jurídico.

A Recorrente Caixa Económica Montepio Geral mais sustenta que os Credores Reclamantes AA e mulher devem ser vistos como pessoas especialmente relacionados com a devedora também pela razão indicada na alínea a) do n.º 2 do citado art. 49.º.

Mas é por demais óbvio que carece de razão.

Retira-se de tal norma, para o que aqui importa, que são havidos como especialmente relacionados com o devedor que seja uma sociedade os sócios que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Ora, a devedora (a Insolvente) é uma sociedade com a natureza de sociedade por quotas, de sorte que os respetivos sócios (por último apenas um) não respondem legalmente, pessoal e ilimitadamente (v. art. 6.º, n.º 2 do CIRE), pelas suas dívidas (v., entre outros, o art. 197.º do CSComerciais). E, para além disso, sempre se evidencia que o irmão (FF) do Credor Reclamante aqui em causa deixou de ser sócio da Insolvente em momento que se situa para além dos dois anos que precederam o início do processo de insolvência (não confundir o início do processo de insolvência com o início do PER que foi aberto anteriormente).

Deste modo, está claramente afastada a possibilidade dos Credores Reclamantes AA e mulher poderem ser tidos como pessoas especialmente relacionadas com a Devedora à luz da citada alínea a) do n.º 2 do art. 49.º do CIRE.

Também aqui importa observar que a jurisprudência que a Recorrente invoca – na circunstância, o acórdão da Relação ... de 2 de fevereiro de 2010 (processo n.º 171/07.5TBOBR-C.C1) – em nada contradita o acórdão recorrido ou vai contra o que acaba de ser referido. Basta ler o respetivo sumário[4] para ver que tal acórdão trabalhou sobre pressupostos factuais que não têm qualquer similitude com aquilo que aqui estamos a discutir, de sorte que carece de validade a afirmação da Recorrente no sentido de que “(…) não poderá ser fundamento para a decisão de que se recorre, o facto de existir ou não responsabilidade pessoal e ilimitada”.

Mais defende a Recorrente Caixa Económica Montepio Geral que os Credores Reclamantes AA e mulher não podem ser havidos como consumidores relativamente à “fração” da verba n.º ..., razão pela qual, dentro do critério subjacente ao AUJ n.º 4/2014, não gozariam do direito de retenção nessa parte.

Mas continua carecida de razão.

A questão prende-se exclusivamente com o conceito de consumidor.

Assumindo, como assumiu o acórdão recorrido[5], que não há que relevar aqui sem mais a orientação estabelecida pelo AUJ n.º 4/2019[6], diremos, todavia, que essa orientação já era defendida maioritariamente à data das reclamações dos créditos e é a que mais se ajusta aos textos legais (com destaque para a Lei n.º 24/96, Lei de Defesa do Consumidor[7]).

E daqui que se nos afigura que é a orientação que deve ser adotada no caso vertente, e neste particular estamos de acordo com a Recorrente.

Isto posto:

Está provado que a falada fração (loja no rés-do-chão direito) foi oportunamente (2012) traditada aos promitentes compradores (os Credores Reclamantes AA e mulher), que “passaram a colocar objetos no interior da mesma, usando-a como bem entendem, procedendo à limpeza da mesma”: Mais está provado que “ainda hoje não existe licenciamento da construção nem propriedade horizontal” e que “em 25.12.2012 o prédio implantado sobre o Lote ...1 ainda se encontrava em construção”.

Esta factualidade revela-nos uma afetação do local a fins puramente particulares, uma destinação do local a uso puramente particular, e não uma destinação em contrário disso, como seja a revenda ou a afetação a uma qualquer atividade profissional ou lucrativa.

É certo que no auto de apreensão dos bens, verba n.º ...54, se fala em loja “para comércio”, e será provavelmente a partir daí que a Recorrente passa a afirmar sem mais que “a fracção ...54 destina-se a uma loja para uso profissional e não pessoal”. A verdade, porém, é que tal “finalidade” não apenas não integra o elenco dos factos provados (v. a propósito o art. 682.º, n.ºs 1 e 2 do CPCivil) como não passa de uma mera designação formal, que não contende com a destinação concreta (uso particular) que se entendeu dar ao local, sendo ademais certo que jamais chegou a ser obtida licença de construção ou constituída qualquer propriedade horizontal e que o prédio ainda se encontrava em construção.

Temos, assim, que os Credores Reclamantes em questão devem ser vistos como consumidores (preenchem o conceito restrito de consumidor), pelo que, a ser de entender (como é suposto no AUJ n.º 4/2014) que se impõe uma interpretação restritiva do art. 755.º, n.º 1, alínea f) do CCivil (por ser pretensamente uma norma material de proteção do consumidor), beneficiam eles do direito de retenção ali estabelecido.

Também neste domínio afirma a Recorrente que esta conclusão está em contradição com outra jurisprudência, neste caso o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de setembro de 2021 (processo n.º 679/14.6TYVNG-E.P1.S1). Segundo diz, “pese embora a factualidade dada como provada no Douto Acórdão-fundamento seja em tudo idêntica à factualidade dada como assente nos presentes autos, a verdade é que o Douto Acórdão recorrido julgou o mérito destes autos em contradição com o Douto Acórdão-fundamento”.

Mas é patente a sua falta de razão.

No caso sobre que incidiu esse acórdão, aliás produzido pelos mesmos precisos juízes que produzem o presente acórdão, estava provado que a credora, que era uma sociedade comercial, se dedicava ao comércio de artigos de ourivesaria, utilizando a fração prometida vender para tal atividade comercial de pendor lucrativo. Foi a partir daqui que o acórdão discorreu no sentido de a credora não poder ser havida como consumidora (por aplicação do chamado conceito restrito de consumidor), salientando ademais que, em princípio, apenas as pessoas singulares (e não era o caso da credora) poderiam ser havidas como consumidores.

Bem se vê, portanto, que, contrariamente ao que proclama a Recorrente, o contexto factual subjacente a tal acórdão não tem qualquer semelhança com o contexto factual do presente caso, razão pela qual não se surpreende a menor contradição entre o que foi dito nesse acórdão (que a sociedade credora não era consumidora para os efeitos em causa) e o que foi decidido no acórdão ora recorrido e se decide agora no presente acórdão (que os Credores AA e mulher, pessoas singulares, são consumidores para os efeitos em causa).

Improcede, pois, totalmente o recurso da Recorrente Caixa Económica Montepio Geral, sendo de manter o decidido no acórdão recorrido.

Quanto ao recurso da Parvalorem, S.A.

Sustenta esta Recorrente que, diferentemente do suposto no acórdão recorrido, o crédito dos Credores Reclamantes AA e mulher não está garantido pelo direito de retenção estabelecido na alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do CCivil. Na sua perspetiva, o que foi pago à Insolvente no âmbito do contrato-promessa em causa não assume a natureza de sinal nem se lhe aplica o art. 442.º do mesmo Código, antes representando o pagamento (adiantamento da prestação) da totalidade do preço da prometida compra e venda.

Mas não lhe asiste razão.

Recuperemos aqui os seguintes factos provados, que contrariam frontalmente o pressuposto (ausência de sinal) de que parte a Recorrente:

- Em 18.12.2008, a sociedade A..., S.A., como primeira outorgante e promitente vendedora, e os ora reclamantes AA e esposa como segundos outorgantes e promitentes compradores, outorgaram o contrato promessa de compra e venda vertido no documento copiado a fs. 938 v.º/939;

- Nos termos da cláusula segunda, os Promitentes Compradores aceitam a compra e a Promitente Vendedora, pelo seu lado, aceita a venda das frações autónomas, uma correspondente à moradia n.º 13 sita no Lugar ..., ..., ..., e outra correspondente à Loja situada no ... em ..., identificadas na cláusula anterior;

- Conforme cláusula terceira, a transação é prometida pelo preço global de euros: 400.000,00, tendo cada fração o valor de 200.000,00;

- Ainda nos termos da cláusula terceira, os Segundos Outorgantes entregaram à Primeira Outorgante 300.000,00 €uros na data do contrato promessa, como sinal e princípio de pagamento;

- Os promitentes compradores obrigaram-se a pagar os restantes 100.000,00 €uros até final do mês de Junho de 2009;

- Os requerentes pagaram o preço total do contrato, conforme consta da contabilidade da insolvente.

Como se vê destes factos, os Credores Reclamantes AA e mulher e a ora Insolvente estabeleceram entre si um contrato-promessa de compra e venda das frações em causa. Foi passado sinal (€300.000,00), sendo que a parte do preço remanescente (€100.000,00) também veio depois a ser entregue à promitente-vendedora. Esta entrega vale igualmente como sinal (art. 441.º do CCivil, na certeza de que não foi ilidida a presunção estabelecida nesta norma). Ou seja, foi entregue à promitente-vendedora o sinal de €400.000,00, pese embora tal quantia corresponder à totalidade do preço ajustado para a venda[8].

Deste modo, e ainda que não tenha sido reclamado o dobro daquilo que foi prestado como sinal (o que é irrelevante, porque quem tem direito ao mais também tem necessariamente direito ao menos), está o crédito garantido pelo direito de retenção, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do CCivil (com reporte ao n.º 2 do art. 442.º). Claro que se está a partir da suposição de que a promessa foi incumprida por parte da devedora, assunto sobre que também não tergiversa a Recorrente.

E assim sendo, não se logra inteligir onde reside o fundamento do recurso, aí onde se afirma, para afastar o direito de retenção, que tudo se passa à margem do sinal.

Cabe dizer, em breve nota, que em discussão paralela à presente, em que era parte recorrente também a ora Recorrente, já se decidiu neste Supremo (acórdão de 13 de abril de 2021, processo n.º 9452/15.3T8VNG-C.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) que a entrega à promitente-vendedora de quantia correspondente à totalidade do preço representava a prestação de sinal, e daqui que foi reconhecido ao promissário o direito de retenção.

Invoca a Recorrente o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 7 de maio de 2009 (processo n.º 09A0350, disponível em www.dgsi.pt), de que diz estar em contradição com o acórdão recorrido. Admite-se que o aí decidido[9] não se identifica, pelo menos aparentemente, com o que vem de ser dito[10], mas, a ser assim, só temos de dizer que o bom entendimento jurídico acerca do que aqui se discute é aquele que deixamos exposto e não o proposto nesse acórdão.

Com efeito, e como resulta expresso do art. 441.º do CCivil, em sede de contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço. É o caso.

Ex abundanti sempre se dirá que mesmo que as coisas devessem ser vistas como as vê a Recorrente (ausência de sinal), nem por isso seria de excluir o direito de retenção para garantia do crédito dos Credores em causa.

A justificação para a bondade desta asserção repousa nos seguintes considerandos, que houve já oportunidade de deixar expostos no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de julho de 2018 (Processo n.º 2717/16.9T8VNF-B.G1.S2, disponível em www.dgsi.pt), produzido por dois dos juízes que produzem o presente acórdão:

«Nos termos do artigo 755.º n.º 1 al. f) do CCivil, goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.

Questão é saber se o direito indemnizatório resultante do não cumprimento é apenas o do nº 2 desta última norma (uma sub-questão é ainda saber se a faculdade de exigir o valor da coisa ou do direito, como alternativa ao recebimento do sinal prestado, pressupõe a existência de sinal), ou se compreende também a indemnização que, a despeito da existência do sinal, tenha sido convencionada, ou até a indemnização a calcular nos termos gerais (coincidente com o prejuízo real ou efetivo) quando não tenha sido constituído sinal nem fixado o quantum do prejuízo.

Vejamos:

Historicamente, o direito de retenção (ainda que então direcionado apenas para a defesa do promitente-comprador [de edifícios ou frações autónomas deles]) em sede de incumprimento de contrato-promessa surgiu com a alteração introduzida no Código Civil pelo DL nº 236/80. Aí (nº 3 do art. 443º) se concedia um direito de retenção para garantia do “crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor”. Literalmente, este direito não surgia vinculado ao crédito decorrente do regime do sinal ou do valor da coisa. Por isso, parece que era de entender que o direito de retenção garantia também créditos emergentes do incumprimento da promessa para além dos decorrentes do regime do sinal[11]. O que é dizer, o direito de retenção não estaria necessariamente dependente da constituição de sinal, senão e apenas do incumprimento do promitente-vendedor (com o consequente crédito do promitente-comprador) e da tradição da coisa.

O DL 379/86, que de igual forma alterou o Código Civil, manteve o direito de retenção, desta feita nos termos supra transcritos do artigo 755 n.º 1 al. f). Como resulta do respetivo preâmbulo (ponto 4), um tal direito foi suportado pelo legislador na seguinte argumentação: “Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa-fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança”. Do mesmo passo que o legislador considerou que se afigurava razoável atribuir prioridade (mediante esse direito de retenção) à tutela dos particulares em geral, o que, mais aduziu, vinha “na lógica da defesa do consumidor”. Também destes incisos se retira que a ratio do direito de retenção passou á margem do sinal, centrando-se exclusivamente no propósito de fortalecer (garantia acessória) os direitos do beneficiário (consumidor) da promessa de transmissão ou constituição de direito real.

Sendo assim, como nos parece que é, então o direito de retenção não depende necessariamente da existência de sinal, isto a despeito do art. 442º do CCivil regular sobre o sinal e, inclusivamente, a respetiva epígrafe se reportar precisamente ao sinal.

Acrescente-se que a remissão da alínea f) do nº 1 do art. 755º é feita para o artigo 442º, e não especificamente para o respetivo nº 2 (e seria neste nº 2 que se poderia ancorar a tese de que o sinal funcionaria como conditio sine qua non do direito de retenção). Ora, no art. 442º postulam-se (ou seja, estão previstos, admitem-se) três tipos de créditos pecuniários emergentes do incumprimento da contraparte do beneficiário do direito de retenção: (i) o do sinal em dobro (nº 2), (ii) o do valor da coisa ou do direito (idem nº 2) e (iii) o da indemnização para além do sinal (nº 4). O primeiro destes créditos pressupõe obviamente a constituição de sinal. O segundo crédito parece que não pressupõe necessariamente a constituição de sinal; o ponto será controverso, mas no sentido de que é dispensável a constituição de sinal se pronuncia, por exemplo, Galvão Telles (Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 155), quando aduz que “(…) a indemnização consistente no aumento do valor da coisa ou do direito tem lugar ainda que não haja sinal (ao contrario do que inculcaria a letra da lei), pois que não se vê motivo para que ela só possa funcionar quando sinal exista, como alternativa a este”; no mesmo sentido vai Januário Gomes (Em Tema de Contrato-promessa, pp. 15 e 61 e seguintes). Quanto ao último dos créditos - trate-se aí de crédito convencionado para além do sinal constituído, trate-se de crédito por indemnização a calcular nos termos gerais (coincidente pois com o prejuízo real ou efetivo) – o sinal não tem implicação. O que tudo reforça a ideia de que o sinal não pode ser erigido como pressuposto inelutável da atuação do direito de retenção.

Na doutrina encontram-se vários autores, para além destes que acabam de ser citados, que se pronunciam no sentido de que o direito de retenção de que estamos a falar não exige necessariamente um crédito fundado na existência de sinal.

Assim, diz-nos Ana Prata (O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, p. 888) que “O direito de retenção supõe necessariamente a tradição da coisa e parece garantir qualquer crédito indemnizatório, seja o do sinal, o do valor da coisa ou o da pena convencional estipulada pelas partes. É que a existência de sinal, como facto constitutivo do direito de retenção, não obstante a remissão do artigo 755º, nº 1-f), para o artigo 442º, não parece indispensável, pois (…) nem dele depende o direito de indemnização calculada no valor da coisa a que se refere o artigo 442º, nem a ele faz referência o artigo 755º, nº 1-f), o que significa, dado o necessário pressuposto da traditio rei, que o direito de retenção, garantindo sempre o direito indemnizatório de que esta é requisito, garantirá qualquer outro crédito indemnizatório fundado no incumprimento, seja ele o da indemnização calculada nos termos gerais, seja o da pena convencional, seja mesmo o de indemnização de benfeitorias realizadas pelo accipiens na coisa”.

Calvão da Silva (Sinal e Contrato-Promessa, 14ª ed., p. 166) aduz que “(…) o direito de retenção existe para garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à parte que promete transmitir ou constituir um direito real. Vale dizer, por outras palavras, que está em causa o crédito (dobro do sinal, valor da coisa, indemnização convencionada nos termos do nº 4 do art. 442º) derivado do incumprimento definitivo (…), de que o direito de retenção constitui garantia acessória”.

Gravato Morais (Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, pp. 233 e 234) explica: “O crédito emergente do contrato-promessa é o que tem na sua base o incumprimento definitivo daquele (…). Deve discutir-se, porém, se tal crédito apenas existe se tiver havido sinal passado ou não. Literalmente, o art. 755º, nº 1, al. f) só se refere ao “crédito”. Daí decorre que é, à partida, independente da sua causa. Todavia, o mesmo preceito também alude à existência do crédito “nos termos do art. 442º CC”. O que poderia significar que só havendo sinal passado ou se existisse convenção indemnizatória haveria lugar ao direito de retenção. Cremos que a conclusão não colhe. O direito de retenção há-de garantir qualquer crédito emergente do incumprimento definitivo do contrato-promessa. É esse o valor da ampla remissão efectuada para o art. 442º CC”.

Na jurisprudência, direcionam-se em igual sentido os acórdãos da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2006 (processo nº 7796/2006-8, relatora Carla Mendes, disponível em www.dgsi.pt) e da Relação do Porto de 26 de Outubro de 2006 (processo nº 0634127, relatora Deolinda Varão, disponível em www.dgsi.pt).

Concluímos assim que (…) a circunstância do contrato-promessa (…) não ter sido sinalizado (…) não obsta à atuação do direito de retenção estabelecido no art. 755º, nº 1, alínea f) do CCivil.»

Conclusão: improcede o recurso interposto pela Recorrente P..., S.A., sendo de manter o acórdão recorrido.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em:

- Julgar improcedente a revista interposta pela Recorrente Caixa Económica Montepio Geral;

- Julgar improcedente a revista interposta pela Recorrente Parvalorem, S.A.,

Confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

A Recorrente Caixa Económica Montepio Geral é condenada nas custas relativas à revista que interpôs.

A Recorrente P..., S.A. é condenada nas custas relativas à revista que interpôs.

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Lisboa, 5 de abril de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] Neste sentido, entre vários outros, Luis Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 301; Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed., p. 283; Ana Prata et alii, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 165; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, p. 70.

[2] Cuja alínea a) projeta depois diretamente para o art. 49.º, que a substancia ou densifica.
[3] Assim, Júlio Gomes, Nótula sobre a Resolução em Benefício da Massa Insolvente, in IV Congresso de Direito da Insolvência, p. 116.
[4] “II - O disposto no artº 49º do CIRE não deve ser interpretado com um excessivo rigor formal, mas antes plástica e razoavelmente, de sorte a concluir-se, ou não, se o caso concreto encerra o quid essencial que lhe subjaz, a saber: se o credor reclamante, directa ou indirectamente, tem na sua posse informação sobre a situação do devedor que o coloque numa situação de superioridade face aos demais credores no que toca à definição ou condicionamento de factualidade de que o seu crédito emirja. III - Destarte, subsume-se na sua previsão, rectius nas alíneas b) e c), o caso em que a credora é uma sociedade de responsabilidade Lda., cujos únicos sócios são marido e mulher, sendo este sócio maioritário e gerente, e tendo este já sido administrador da sociedade insolvente.”
[5] O acórdão recorrido argumenta do seguinte modo. “É certo que o AUJ 4/2019, veio definir o conceito de consumidor para o efeito aqui considerado. Contudo, as reclamações de créditos apresentadas nos presentes autos datam do início do ano de 2015, e mesmo a sentença inicialmente proferida, é de data anterior ao referido AUJ 4/2019. Nessa medida, considerando que os AUJ, não são fonte de direito, que nunca nos autos o mesmo foi considerado (por inexistente à data), e que nas alegações de recurso, nenhum dos recorrentes invocou tal questão (que sempre seria nova), não terá este Tribunal em consideração a definição de consumidor aí fixada.”
[6] E que foi no seguinte sentido: “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.
[7] De cujo art. 2.º, n.º 1 se pode ler que “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
[8] O que nada tem de relevante para os efeitos aqui em discussão. Ver, a propósito, Fernando de Gravato Morais (Contrato-Promessa em Geral; Contratos-Promessa em Especial; p. 197): “(…) as somas entregues na vigência do contrato-promessa, ainda que representem a totalidade do preço, devem ser havidas, em regra, como sinal”.
[9] Pode ler-se do respetivo sumário que “V – Tendo o A. antecipado o pagamento da totalidade do preço, falece, em concreto, um pressuposto fundamental da aplicação do regime previsto no art. 442.º, n.º 2, que é precisamente a existência de sinal, seja ele confirmatório ou penitencial.”
[10] Na revista excecional onde foi produzido o referido acórdão de 13 de abril de 2021 foi precisamente este acórdão de 7 de maio de 2009 que foi invocado como acórdão-fundamento, tendo sido reconhecida pela competente formação uma oposição de julgados.
[11] Neste sentido se terá pronunciado J. Lourenço Soares, em escrito policopiado denominado “O direito de retenção “maxime” no contrato-promessa de compra e venda (aspectos substantivos e processuais)”, isto de acordo com o que informa Ana Prata, em O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, p. 888, nota 2045. Também Antunes Varela (Sobre o Contrato-Promessa, 2ª ed., p. 113) parece concluir no mesmo sentido quando afirma o seguinte: “Quanto à prestação do sinal, embora o novo preceito (nº 3 do art. 442º) aparecesse inserido numa disposição legal que tinha como epígrafe a palavra sinal, nenhuma alusão se fazia no texto à exigência desse elemento. Quer isto dizer que o promitente-comprador poderia desfrutar do privilégio da retenção da coisa imóvel que lhe fora entregue, mesmo indo de mãos inteiramente a abanar, sem ter feito a menor despesa (…)”.Em sentido contrário, defendendo uma elencagem meramente exemplificativa, Luis Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 109 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de julho de 2014 (processo n.º 529/10.2TBRMR-C.C1.S1, com texto disponível em www.dgsi.pt).