Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
323/19.5PBSNT-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
INCUMPRIMENTO
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
MUDANÇA DE RESIDÊNCIA
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
REVOGAÇÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
INDEFERIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A providência do Habeas corpus tem natureza extraordinária e é independente do sistema de recurso penais.

II. Deve servir para as situações mais graves e mais carecidas de tutela urgente.

III. Na esteira da jurisprudência consolidada do STJ, quando se aprecia tal medida não se analisa o mérito da decisão que determinou a prisão, nem tão pouco os erros procedimentais (eventualmente, cometido pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais), uma vez que esses devem ser apreciados em sede própria, através dos recursos, mas tão só incumbe decidir se ocorrem qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º n.º 2, do C.P.P.

IV. Os fundamentos da decisão da juíza do processo, que revogou, nos termos do art. 59.º n.º 2 b), do Cód. Penal, a pena de trabalho a favor da comunidade e determinou o cumprimento por parte do arguido da pena de 7 meses de prisão pela prática de um crime, cuja moldura penal prevê prisão até 2 anos, tendo transitado em julgado, não podem vir, posteriormente, a ser postos em causa através da providência do Habeas corpus, com a alegação de a prisão ter sido motivada por facto que a lei não a permite (art. 222.º n.º 2 b), do C.P.P.).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA, detido no Estabelecimento Prisional ..., propôs, por intermédio da sua ilustre advogada com procuração, a presente providência de Habeas corpus, ao abrigo do disposto no art. 222.º n.º 2 al. b), do C.P.P., alegando o seguinte, que passamos a transcrever:

                                                          1.°

 O arguido foi condenado na pena de 7 meses de prisão substituída por 210 horas de trabalho comunitário.

                                                          2.°

Por despacho proferido em 21-05-2021, transitado em julgado em 09-07-2021, foi a pena substitutiva revogada, tendo o arguido para cumprir 7 meses de prisão efetiva.

                                                          3.°

Sucede que o arguido não iniciou o cumprimento da pena de trabalho a favor da comunidade por causa que não lhe é imputável.

                                                          4.°

Na verdade, foi notificado para se apresentar no Centro três vezes das três vezes que se apresentou não tinha ninguém responsável pelo processo dele, dizendo-lhe sempre para aguardar instruções, até à presente data não lhe comunicaram nenhuma instrução além de se apresentar naquelas datas, a partir de março de 2020, o que fez.

                                                          5.º

O arguido atualmente tem contrato de trabalho sem termo e encontra-se preso desde o dia 22 de Março de 2022 por conversão da pena de trabalho a favor da comunidade por prisão efetiva.

                                                          6.°

O Tribunal" a quo" proferiu o seguinte despacho:" Por sentença transitada em julgado em 29-04-2019, lida perante o arguido, foi este condenado na pena de sete meses de prisão subsidiária por duzentas e dez horas de trabalho.

Das informações prestadas pela DGRSP verifica-se que o mesmo nunca iniciou o cumprimento de tal trabalho nem apresentou qualquer adesão ao plano homologado.

O mesmo se conclui dos esclarecimentos prestados aqui pela senhora técnica da DGSRP, a qual especificou as dificuldades em estabelecer contacto com o arguido, o que nunca conseguiu fazer, tendo apenas chegado à fala com a sua companheira que indicou que o arguido não pretendia cumprir as horas de trabalho.

O arguido foi notificado da informação da DGRSP que conta de fls. 47 e nada disse.

Convocado para a presente diligência, não compareceu.

Conclui-se, por isso, que o arguido não tem qualquer interesse no cumprimento da pena que lhe foi aplicada, revelando total desprezo pela condenação sofrida. A sua ausência junto da DGRSP e da ETB mostram a sua recusa em prestar o trabalho sem que tenha apresentado qualquer justificação para o efeito, razão pela qual se revoga a pena de prestação a favor da comunidade e ordena o cumprimento de sete meses de prisão nos termos do art.° 59, n.° 2, al. b) do Código de Processo Penal."

                                                          7.°

Sucede que o arguido separou-se, tendo mudado de residência, não tendo recebido as cartas do Douto Tribunal" a quo".

                                                          8.°

É falso o depoimento prestado pela técnica da DGRSR

                                                          9.°

É falso que o arguido não tivesse qualquer interesse no cumprimento da pena que lhe foi aplicada, isto é, de trabalho a favor da comunidade, não tendo o arguido sido ouvido nessa audiência pelo Douto Tribunal "a quo" antes de concluir da forma que concluiu.

                                                          10.°

Só não justificou perante o tribunal o porquê de a não ter iniciado cfr. Supra exposto porque no Centro ... onde iria prestar o trabalho lhe disseram para aguardar comunicação.

                                                          11.°

Estamos assim perante motivação por factos pelos quais a lei a não permite, uma vez que são falsos e uma vez que o arguido não foi notificado para se pronunciar sobre a convolação da pena de trabalho a favor da comunidade em prisão subsidiária, não estando assim cumprido o contraditório.

Nestes termos e nos melhores DO DIREITO, Deve o Arguido ser restituído á Liberdade de forma imediata, pois, estão claramente preenchidos (do ponto de vista dos critérios vinculativos da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) as exigências previstas na invocada alínea b) do art. 222° C.P.R verificando-se a motivada por facto pelo qual a lei a não permite da prisão do Arguido e assim se fazendo imprescindível o presente requerimento de Habeas Corpus.

Requerer, como se requer, a concessão imediata da Providência de Habeas Corpus em razão da prisão do arguido ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite, devendo ser restituído de imediato à liberdade.


2. A Senhora Juiz titular do processo prestou, em 26/04/2022, a informação a que se refere o art. 223.º n.º 1, do C.P.P., que passamos a reproduzir:

Nos termos do artigo 222.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, constituem fundamentos para a providência de Habeas Corpus a prisão (i) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente, (ii) ser motivado por facto pelo qual a lei a não permite ou (iii) manter-se para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial.

Analisado o requerimento apresentado pelo Arguido, não se vislumbra que qualquer um destes fundamentos se verifique, mas melhor se apreciará no Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

Em cumprimento do estabelecido no artigo 223.° do Código de Processo Penal, são as seguintes as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão do Arguido AA:

a) Por sentença proferida a 20.03.2019 e transitada em julgado em 29.04.2019, foi o Arguido condenado na pena de sete meses de prisão substituída por duzentas e dez horas de trabalho, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido nos termos do artigo 3.°, n.°s 1 e 2 do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de Janeiro.

b) Por decisão de 21.05.2021 e transitada em julgado a 09.07.2021, foi revogada a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento de sete meses de prisão nos termos do artigo 59.°, n.° 2, al, b) do Código de Processo Penal.

d) Teve início o cumprimento da pena em 22.03.2022.

e) Foi realizada a liquidação da pena, fixando-se o seu terminus em 21.10.2022.

Encontra-se em cumprimento da pena aplicada nestes autos, aguardando pela data prevista para o seu termo, o dia 21.10.2022.

              

3. Neste Supremo Tribunal, convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Defensora do arguido, teve lugar a audiência (art. 223.º n.º 3, do C.P.P.), com as formalidades legais, pelo que cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Analisados os elementos e informações constantes dos autos, verifica-se que por sentença proferida, em 20/03/2019, no âmbito do processo sumário n.º 323/19...., do Juízo de Pequena Criminalidade ... -J..., da comarca ..., foi o arguido AA, ora requerente, condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3.º n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3/1 (cuja moldura penal, em abstrato, vai de 1 mês a 2 anos de prisão ou multa até 240 dias) na pena de 7 meses de prisão, substituída por 210 dias de trabalho a favor da comunidade.

Tal decisão transitou em julgado.

Por despacho judicial, de 21/05/2021, também transitado em julgado, foi revogada a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordenado o cumprimento de 7 meses de prisão, nos termos do art. 59.º n.º 2 b, do Cód. Penal.

O arguido encontra-se em cumprimento desta pena, no Estabelecimento Prisional ..., desde 22/03/2022 e de acordo com a liquidação da pena, homologada judicialmente, em 24/03/2022, tem o seu termo previsto para 21/10/2022, uma vez que lhe foi descontado um dia de detenção que sofreu.

Vem agora o mesmo requerer esta providência de Habeas Corpus, alegando, em síntese, que não é verdade não ter querido cumprir os dias de trabalho a favor da comunidade, não recebeu as notificações do tribunal, uma vez que mudou de residência, em consequência de separação, o tribunal não cumpriu o contraditório - ouvindo-o - e ser falso o depoimento que a técnica da DGRSP prestou em tribunal.

Nestes termos, requer a sua restituição imediata à liberdade, uma vez que se encontra preso por facto pelo qual a lei não permite a prisão (art. 222.º n.º 2 b), do C.P.P.)

2.  A providência de Habeas corpus[1], ao contrário do que a designação parece sugerir, não teve origem na Roma antiga, mas na Inglaterra, em 1215, quando a nobreza impôs ao Rei João Sem Terra a Magna Carta Libertatum, com o objetivo de limitar os poderes reais[2].

Com o tempo foi-se aperfeiçoando e a sua versão moderna surge, em 1679, com o famoso Habeas Corpus Amendment Act, que veio regulamentar o procedimento na área criminal, constituindo um eficaz instrumento no controlo da legalidade dos atos restritivos da liberdade individual.

Entre nós, a medida tem, como é sabido, desde há muito, dignidade constitucional, tendo sido introduzida pela Constituição de 1911[3]. Presentemente o art. 31.º, da nossa Constituição, reza assim:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória».

No que concerne ao direito ordinário, o Código de Processo Penal vigente prevê, nos seus arts. 220.º e ss., o habeas corpus em virtude de detenção ilegal, em virtude prisão ilegal, os respetivos procedimentos processuais – assentes em grande informalidade e celeridade – e ainda o incumprimento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a petição, que é punido com as penas do crime de denegação de justiça e prevaricação.

Ora, do cotejo de todos estes preceitos, podemos extrair que esta providência, de cariz expedito, tem em vista salvaguardar a liberdade física, reagindo contra uma situação de abuso de poder[4], por virtude de uma prisão ou detenção ilegal. Contudo, não constitui um recurso.

Como bem acentua Eduardo Maia Costa[5], trata-se de uma providência, independente dos sistemas de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Naturalmente, o modo de impugnação por excelência das decisões judiciais é o recurso para um tribunal superior. O Habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, servindo como instrumento da proteção da liberdade, quando os meios ordinários não sejam suficientemente expeditos para assegurar essa proteção urgente.

Deve servir, por conseguinte, para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente.

Porém, não tem uma natureza meramente residual, conforme observa Rodrigues Maximiano[6], mas sim a natureza de uma providência extraordinária, abrangendo as situações de abuso, que são distintas das situações de decisão discutível.

Cingindo-nos mais concretamente ao Habeas corpus por virtude de prisão ilegal (art. 222.º), por ser o mais comum e ser também o caso da situação em apreço, podemos dizer que os seus fundamentos se reconduzem todos, ao fim e ao cabo, à ilegalidade da prisão: incompetência da entidade que a efetuou ou a determinou, ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite e excesso de prazos.

O n.º 2 do citado normativo consagra, como notam Gomes Canotilho e Vital Moreira[7], uma espécie de ação popular, uma vez que a petição pode ser formulada pelo interessado ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, conquanto dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e apresentada à autoridade à ordem da qual se encontra preso o mesmo.

A limitação do gozo dos direitos políticos não diz, obviamente, respeito ao próprio, mas sim ao(s) terceiro(s) que decida(m) intervir.

Na esteira também da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça[8], quando se aprecia a providência do Habeas corpus não se analisa o mérito da decisão que determinou a prisão, nem tão pouco os erros procedimentais (eventualmente, cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais), uma vez que esses devem ser apreciados em sede própria, através dos recursos, mas tão só incumbe decidir se ocorrem qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do C.P.P.

3. Feito este breve enquadramento histórico-legal da medida em questão e regressando à situação sub judice, constata-se, designadamente, da certidão junta que o arguido/requerente tinha um defensor nomeado, no processo, e se discordava das decisões e despachos proferidos, nos autos, poderia ter impugnado os mesmos, através da interposição de recursos para o competente Tribunal da Relação.

Por outro lado, acrescentamos ainda que era seu dever ter comunicado ao tribunal do julgamento a sua mudança de residência, pelo que não vemos, em suma, que a prisão decretada, através de despacho fundamentado, tivesse sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Nesta conformidade, não cabendo, neste âmbito, apreciar o mérito da decisão que determinou a prisão do arguido, não pode proceder a providência peticionada, nomeadamente, pelo fundamento invocado.


III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a) indeferir, por falta de fundamento bastante, a providência de Habeas corpus (art. 223.º n.º 4 a), também do C.P.P.); e

b) condenar o requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos da Tabela III, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa, 4 de maio de 2022

(Processado e revisto pelo Relator)


Pedro Branquinho Dias (Relator)

Teresa de Almeida

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Forma abreviada da expressão latina Habeas corpus ad subjiciendum – Que tenhas o teu corpo para apresentar ao tribunal.
[2] Para uma visão mais desenvolvida sobre a sua origem histórica, vejam-se, com interesse, Eduardo Maia Costa, Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pg. 260 e ss., e Pedro Branquinho Ferreira Dias, Comentário a um acórdão, Revista do Ministério Público, Ano 28, n.º 110, pg. 216 e ss.
[3] Em termos de lei ordinária, viria a ser instituída pelo DL n.º 35 043, de 20/10/1945.
[4] Garantia privilegiada do direito à liberdade, na expressão feliz de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. revista, pg. 508.
[5] Loc. cit., pgs. 236 e 237.
[6] In Direito e Justiça, Vol. XI, T. 1, pg. 197.
[7] Ob. cit., pg. 509.
[8] Cfr., entre muitos, os acórdãos de 10/03/2022, no Proc. n.º 72/18.1T9RGR-E.S1, da 5.ª S., de 28/4/2021, no Proc. n.º 72/18.1T9RGR-A.S1, da 3.ª S., e de 18/11/2020, no Proc. n.º 300/18.3JDLSB-E.S1, da 3.ª S., cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros M. Carmo Silva Dias, Ana Barata Brito e Nuno Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt.