Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
027725
Nº Convencional: JSTJ00002688
Relator: LENCASTRE VEIGA
Descritores: TRANSGRESSÃO
HOMICIDIO INVOLUNTARIO
PUNIÇÃO
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195207230277251
Data do Acordão: 07/23/1952
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IªS 06-08-1952 ; BMJ N32 ,151
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 5/1952
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 38 PARUNICO ARTIGO 368 PARUNICO ARTIGO 482.
CPP29 ARTIGO 34 PAR3.
CE30 ARTIGO 35 ARTIGO 37 ARTIGO 61 N2.
CPC39 ARTIGO 763.
Legislação Estrangeira: CP37 DA SUIÇA ART102.
DL 3688 DE 1941/10/03 DO BRASIL ART1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1950/07/05 IN BMJ N20 PAG213.
ACÓRDÃO STJ DE 1951/01/10 IN BMJ N23 PAG142.
ACÓRDÃO STJ DE 1951/07/04 IN BMJ N26 PAG113.
Sumário :
As contravenções causais do crime de homicidio involuntario não podem ser objecto de punição autonoma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno:

A respondeu, na comarca do Porto (3 Juizo Correccional), pelo crime de homicidio involuntario, previsto no artigo 368 do Codigo Penal, e transgressões dos artigos 35 e 37 do Codigo da Estrada, porquanto, no dia 6 de Novembro de 1947, na Rua de Monchique, da cidade do Porto, guiando a sua camioneta de carga, deu, involuntariamente, a morte a B, sucedendo que o reu ultrapassou uma camioneta que no local estacionava, na ocasião em que a mesma tambem era ultrapassada pela vitima, que montava uma bicicleta, não tendo feito qualquer sinal sonoro e não se certificando se podia ultrapassar sem perigo; assim, derrubou o ciclista, causando-lhe lesões, que foram causa necessaria da morte.
Absolvido na primeira instancia, a Relação, por virtude de recurso da assistente, viuva da vitima, revogou a sentença e, dando por procedente a acusação, condenou o reu em dez meses de prisão correccional e igual tempo de multa a 10 escudos diarios, como nas multas de 100 escudos e 25 escudos pelas contravenções e na indemnização de 30 000 escudos, ficando ainda o reu impedido de guiar por oito dias.
Tendo recorrido, este Supremo Tribunal, dada a prova reconhecida pela Relação, confirmou a decisão proferida, salvo quanto a indemnização, que ficou para ser liquidada em execução de sentença, nos termos do paragrafo 3 do artigo 34 do Codigo de Processo Penal.
Oportunamente, recorreu o Ministerio Publico para o tribunal pleno, entendendo, quanto ao modo como foram encaradas as ditas contravenções do Codigo da Estrada, que entre o acordão recorrido e o de 5 de Julho de 1950 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 20, pagina 213) havia oposição, por aquele entender que, na hipotese, a infracção desses artigos 35 e 37 deve ser considerada para o efeito da aplicação da respectiva multa, conjuntamente com a sanção do tambem referido artigo 368 do Codigo Penal, quando, pelo acordão invocado, se entendeu que o condutor de uma camioneta que, por impericia e inconsideração, violando o n. 2 do artigo 61 do Codigo da Estrada, deu causa ao acidente, do qual resultou a morte do atropelado, era somente passivel da pena estatuida no mesmo artigo 368.
Por acordão da Secção Criminal, considerou-se existente a oposição, devendo o recurso ter seguimento.
Alegou muito doutamente o magistrado recorrente, concluindo no sentido de que deve ficar definido, por assento, que as infracções contravencionais causais do crime de homicidio culposo não podem constituir objecto de punição especifica.
Cumpre resolver:
As decisões referidas, a recorrida e a invocada, foram pronunciadas em processos diferentes e no dominio da mesma legislação (Codigos Penal e da Estrada); e verifica-se oposição quanto a mesma questão de direito, pois, na realidade, o acordão recorrido decidiu que o reu, condutor da camioneta que atropelou o ciclista e lhe ocasionou a morte, por inconsideração, não fazendo qualquer sinal sonoro e não se certificando se podia ultrapassar, cometeu, alem do homicidio culposo (artigo 368 do Codigo Penal), infracção dos ditos artigos 35 e 37 do Codigo da Estrada (tendo o relator ficado vencido em parte, por entender que as transgressões, sendo integradoras do crime de homicidio involuntario, não tinham autonomia, por serem causais); e acontece que orientação contraria teve o acordão mencionado pelo recorrente, decidindo, como se disse, que ao condutor de uma camioneta que, por impericia e inconsideração, com inobservancia do artigo 61 do Codigo da Estrada, foi causador de um acidente mortal era apenas imputavel a sanção do artigo 368, não tendo lugar a multa pela transgressão. Existe, pois, conflito de jurisprudencia, que este Tribunal tem de solucionar (artigo 763 do Codigo de Processo Civil).
Quanto ao fundo:
Consoante se viu, verificou-se, na hipotese dos autos, o crime do artigo 368 do Codigo Penal, como, tambem, a transgressão ou violação dos artigos 35 e 37 do Codigo da Estrada, donde especialmente resultou a ocorrencia; a propria inconsideração do reu filia-se, sobretudo, nas ditas contravenções.
Respeita o artigo 368 ao homicidio involuntario que alguem comete ou da causa por sua impericia, inconsideração, negligencia, falta de destreza ou falta de observancia de algum regulamento. Desde que o facto representativo da contravenção ou inobservancia legal se tornou elemento integrante ou constitutivo do homicidio, não e permissiva a sua valoração autonoma; o contrario equivalia a abranger o mesmo facto sob o regime de duas sanções diferentes, postergando-se a regra lex consumens derogat lugi consumtae. Diga-se mais que, considerada a infracção a luz do bem ou valor juridico que a norma visa a proteger, esse bem ou valor e, na hipotese, a defesa da vida humana ou da incolumidade publica, tanto no caso do artigo 368 do Codigo Penal, como no dos mencionados preceitos do Codigo da Estrada.
Esta-se na presença de concurso formal ou ideal de infracções (paragrafo unico do artigo 38 do Codigo Penal); a pena e uma so, a da infracção mais grave.
E certo e que não e, alias, essencial a identidade absoluta entre a execução de uma infracção e a execução da outra, bastando, no caso do mesmo paragrafo, a identidade parcial (Cavaleiro de Ferreira, Lições,
2 edição, pagina 588; Eduardo Correia, Unidade e pluralidade de infracções, 174; acordão deste Tribunal, de 13 de Fevereiro de 1942, Boletim Oficial, ano II, pagina 56).
Esse artigo 38, pela letra, respeita a crime; mas, preceito geral, tem de abranger tambem a contravenção, pois naquela expressão compreende-se a infracção penal, numa enunciação generica e sob este aspecto, em tudo o que não e excluido pela lei ou pela natureza da contravenção, não deve haver criterio discriminante; o que, nalguns paises, e reconhecido em texto expresso, como na Suiça (Codigo Penal de 1937, modificado em 1950, artigo 102) e no Brasil, onde, não obstante as contravenções fazerem parte de lei autonoma (de 3 de Outubro de 1941), o artigo 1 do Decreto-Lei n. 3688, que tem essa data, define que se aplicam as contravenções as normas gerais do Codigo Penal sempre que aquela lei não disponha de modo diverso. (Ribeiro Pontes, Codigo Penal Brasileiro, volume I, pagina 14).
E nada obsta a circunstancia de, no caso dos autos, se tratar de crime e de contravenção; pelo contrario, torna-se mais logica a consunção desta por aquele, tendo-se em conta a unidade de facto, ligada a unidade de conduta do agente, como a pequena gravidade da contravenção com respeito ao crime.
Observe-se mais que o Codigo Penal Portugues, quando pretendeu que se apliquem duas penas, uma pelo crime, outra pela contravenção, determinou-o por modo expresso, como sucede no caso do seu artigo 482; e ainda, sob o aspecto do concurso ideal, o da unidade da sanção penal, o proprio artigo 368, no paragrafo unico, equiparando, criminalmente, aos casos de homicidio culposo o que for consequencia de um facto ilicito, por forma terminante declara o seu agente sujeito a uma so pena.
Deve-se, pois, reconhecer que, na hipotese, as violações do Codigo da Estrada tomaram caracter causal, integrante do crime.
E e a orientação corrente neste Supremo Tribunal, como, alem do acordão indicado para termo de oposição, se mostra, entre outros, dos de 23 de Fevereiro de 1945, de 26 de Outubro de 1950, de 10 de Janeiro, 4 e 24 de Julho de 1951, este no recurso n. 27892, aqueles, respectivamente, no Boletim Oficial, ano V, pagina 84, e Boletim do Ministerio da Justiça, n. 21, pagina 154, n. 23, pagina 142, e n. 26, pagina 113.
Pelo exposto, dando provimento, alteram o acordão recorrido, considerando insubsistente a condenação em multa pelas transgressões.
E fixa-se o seguinte assento:
"As contravenções causais do crime de homicidio involuntario não podem ser objecto de punição autonoma".
Sem imposto de justiça.

Lisboa, 23 de Julho de 1952


Lencastre da Veiga (Relator) - Jaime de Almeida Ribeiro - Raul Duque - Piedade Rebelo - Roberto Martins - A. Cruz Alvura - A. Bartolo - Bordalo e Sa - Jose de Abreu Coutinho - Julio M. de Lemos - Artur A. Ribeiro - Rocha Ferreira - Campelo de Andrade - G. Beça de Aragão.