Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1759/07.0TALRA.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ACÓRDÃO ABSOLUTÓRIO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONDIÇÕES PESSOAIS
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
FACTOS NÃO PROVADOS
FACTOS PROVADOS
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO DO PROCESSO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 03/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ORDENADO O REENVIO DO PROCESSO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS - SENTENÇA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - INTEGRAÇÃO DE LACUNAS - AUDIÊNCIA - SENTENÇA - RECURSOS.
Doutrina:
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, volume III, p. 325.
- Maria João Antunes na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4, Fasc. 1 - Janeiro-Março 1994 (em anotação a acórdão do STJ, de 6-05-1992, Colectânea de Jurisprudência 1992, tomo 4, p. 5), pp. 121/3.
- Simas Santos - Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, 2008, p. 75, 81, 82.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 137.º, 660.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 334.º, N.ºS 2 E 4, 371.º, 374.º, N.º2, 379.º, N.º1 AL. A), N.º2, 400.º, N.º1, AL. E), N.º2, 403.º, N.º3, 410.º, N.º3, 412.º, N.º1, 425.º, 426.º, N.ºS 1 E 2, 430.º, N.º 1, 431.º, 432.º, N.º1, ALS. B) E C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 14.º, N.º 3, 71.º, N.º2.
DECRETO N.º 41821, DE 11-08-1958, QUE APROVOU O REGULAMENTO DE SEGURANÇA NO TRABALHO DE CONSTRUÇÃO CIVIL (APLICÁVEL POR FORÇA DO ARTIGO 29.º DO DECRETO-LEI N.º 273/2003): - ARTIGO 67.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

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-ACÓRDÃO DO PLENÁRIO DA SECÇÃO CRIMINAL, DE 19-10-1995, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 46580, ACÓRDÃO N.º 7/95, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE - A, N.º 298, DE 28-12-1995, E BMJ N.º 450, PÁG. 72.
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QUESTÃO PRÉVIA - ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
-DE 09-11-2011, PROCESSO N.º 43/09.9PAAMD.L1.
VÍCIOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO
-DE 20-06-2002, PROCESSO N.º 4250/01-5.ª.
-DE 3-03-2010, PROCESSO N.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª.
-DE 29-11-1989, PROCESSO N.º 40255/89-3.ª; DE 19-12-1990, PROCESSO N.º 41327/90-3.ª; DE 31-05-1991, BMJ N.º 407, P. 377; DE 13-02-1992, BMJ N.º 414, P. 389; DE 22-09-1993, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 43829, CITANDO ACÓRDÃO PROFERIDO NO PROCESSO N.º 41327, DE 19-12-1990, IN CJSTJ 1993, TOMO 3, P. 210; DE 11-12-1996, PROCESSO N.º 1188/96, IN SASTJ, N.º 6, P. 58; DE 19-11-1997, PROCESSO N.º 873/97-3.ª; DE 20-11-1997, PROCESSO N.º 1242/97-3.ª; DE 28-10-1998, PROCESSO N.º 887/98 E DE 29-10-1998, PROCESSO N.º 525/98, AMBOS IN BMJ N.º 480, PP. 83 E 292; DE 17-02-2000, PROCESSO N.º 292/97, BMJ N.º 494, P. 227, DE 24-03-2004, PROCESSO N.º 4043/03-3.ª, DE 19-01-2006, PROCESSO N.º 2636/05-5.ª, DE 08-02-2006, PROCESSO N.º 98/06-3.ª.
E MAIS RECENTEMENTE: DE 15-02-2007, PROCESSO N.º 3174/06 - 5.ª; DE 14-03-2007, PROCESSO N.º 617/07 - 3.ª; DE 23-05-2007, PROCESSO N.º 1405/07 - 3.ª; DE 11-07-2007, PROCESSO N.º 1416/07 - 3.ª; DE 27-07-2007, PROCESSO N.º 2057/07-3.ª; DE 24-10-2007, PROCESSO 3338/07-3.ª; DE 17-01-2008, PROCESSO N.º 2696/07-5.ª, CJSTJ, 2008, TOMO I, P. 206; DE 09-04-2008, PROCESSO N.º 999/08-3.ª; DE 6-10-2010, PROCESSO N.º 936/08.0JAPRT.P1.S1-3.ª (VERSANDO SOBRE O VÍCIO DA ALÍNEA C) E PRESUNÇÕES NATURAIS).
-DE 29-02-1996, BMJ N.º 454, P. 531, DE 11-12-1996, PROCESSO N.º 900/96, BMJ N.º 462, P. 207, E DE 12-11-1997, PROCESSO N.º 32507,
-DE 12-06-2008, PROCESSO N.º 4375/07, DE 22-10-2008, PROCESSO N.º 215/08, DE 27-05-2010, PROCESSO N.º 18/07.2GAAMT.P1.S1, DE 14-07-2010, PROCESSO N.º 149/07.9JELSB.E1.S1, DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 17/09.0TELSB.L1.S1 E DE 12-07-2012, PROCESSO N.º 350/98.4TAOLH.E1.S1, TODOS DA 3.ª SECÇÃO.
-DE 20-04-2005, PROCESSO N.º 3434/04 - 3.ª E NO MESMO SENTIDO, O ACÓRDÃO DO STJ DE 21-01-2004, PROCESSO N.º 3176/03 - 3.ª, IN SASTJ, N.º 77.
-DE 23-03-2006, PROCESSO N.º 547/06-5.ª (CITADO NO ACÓRDÃO DE 17-01-2008, PROCESSO N.º 2696/07-5.ª, CJSTJ 2008, TOMO 1, P. 206), DE 15-10-2008, PROCESSO N.º 1964/08, DESTA SECÇÃO, DE 12-07-2012, PROCESSO N.º 2/09.1PAETZ.S1-3.ª.

DO VÍCIO DA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
-DE 31-05-1991, COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA 1991, TOMO 3, P. 23, DE 16-10-1991, PROCESSO N.º 41587, BMJ N.º 410, P. 610, DE 13-01-1998, PROCESSO N.º 1169/97, DE 09-04-2008, PROCESSO N.º 999/08 E DE 12-07-2012, PROCESSO N.º 350/98.4TAOLH.E1.S1-3.ª SECÇÃO, DE 22-05-1996, PROCESSO N.º 306/96, DE 4-12-1996, PROCESSO N.º 47271, SASTJ, N.º 6, P. 52, DE 11-12-1996, PROCESSO N.º 900/96, BMJ N.º 462, P. 207, DE 08-10-1997, PROCESSO N.º 671/97, DE 25-03-1998, PROCESSO N.º 53/98 - 3.ª, BMJ N.º 475, P. 502, DE 29-10-1998, PROCESSO N.º 525/98, IN BMJ N.º 480, P. 292, DE 17-02-2000, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 292/97-5.ª, PUBLICADO NO BMJ N.º 494, P. 227, DE 19-05-1993, PROCESSO N.º 43.851, IN CJSTJ 1993, TOMO 1, P. 232 E DE 25-09-1996, PROCESSO N.º 48 731, 3.ª SECÇÃO E DE 31-10-1996, PROCESSO N.º 692/96, 3.ª SECÇÃO, IN SUMÁRIOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, N.º 3, P. 59, E N.º 4, P. 96.
-15-02-2007, PROCESSO N.º 3174/06 - 5.ª, DE 22-02-2007, PROCESSO N.º 147/07 - 5.ª, DE 02-05-2007, PROCESSO N.º 1017/07 - 3.ª, DE 19-09-2007, PROCESSO ESPECIAL DE EXTRADIÇÃO N.º 3338/07 - 3.ª, DE 12-09-2007, PROCESSO N.º 2583/07, DE 24-10-2007, PROCESSO N.º 3238/07, DE 09-04-2008, PROCESSO N.º 999/08 (CONTRADIÇÃO NOS ANTECEDENTES CRIMINAIS), DE 15-10-2008, PROCESSO N.º 1964/08 E DE 22-10-2008, PROCESSO N.º 215/08, RELATADOS COMO O ANTERIOR PELO ORA RELATOR, DE 22-11-2007, PROCESSO N.º 3756/07 - 3.ª, DE 13-10-2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª.
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
-DE 09-11-2011, POR NÓS RELATADO NO PROCESSO N.º 43/09.9PAAMD.L1.S1; DE 3-10-1996, PROCESSO N.º 440/96-3.ª SECÇÃO, IN SUMÁRIOS DO STJ, N.º 4, P. 71, DE 22-05-1997, PROCESSO N.º 1389/96-3.ª, DE 4-11-1998, PROCESSO N.º 588/98-3.ª, DE 18-11-1998, PROCESSO N.º 855/98-3.ª E DE 26-11-1998, PROCESSO N.º 504/98-3.ª, IN SUMÁRIOS DO STJ, N.º 11, PP. 87/8; E N.º 25, PP. 78, 89 E 92, RESPECTIVAMENTE.
-DE 13-01-1998, PROCESSO N.º 877/97 - 3.ª, BMJ N.º 473, PÁG. 307, DE 25-03-1998, PROCESSO N.º 53/98 - 3.ª, BMJ N.º 475, P. 502, DE 28-10-1998, PROCESSO N.º 887/98, BMJ N.º 480, P. 83 (NA LINHA DOS ACÓRDÃOS DE 21-12-1996, PROCESSO N.º 694/96, DE 11-12-1996, PROCESSO N.º 1188/96, IN SASTJ, N.º 6, P. 58), DE 29-10-1998, PROCESSO N.º 525/98, IN BMJ N.º 480, P. 292, DE 20-10-1999, PROCESSO N.º 1452/99-3.ª, DE 17-02-2000, PROCESSO N.º 292/97-5.ª, BMJ N.º 494, P. 227.
-DE 24-04-2006, PROCESSO N.º 363/06; DE 24-05-2006, PROCESSO N.º 816/06; DE 20-12-2006, PROCESSO N.º 3379/06 (O VÍCIO CONSISTE NUMA CARÊNCIA DE FACTOS QUE PERMITAM SUPORTAR UMA DECISÃO DENTRO DO QUADRO DAS SOLUÇÕES DE DIREITO PLAUSÍVEIS E QUE IMPEDE QUE SOBRE A MATÉRIA DE FACTO SEJA PROFERIDA UMA DECISÃO DE DIREITO SEGURA), SENDO OS DOIS PRIMEIROS CITADOS NO ACÓRDÃO DE 23-04-2008, PROCESSO N.º 1127/08, TODOS DA 3.ª SECÇÃO – CFR. AINDA, I.A., OS ACÓRDÃOS DO STJ, DE 22-10-1997, PROCESSO N.º 612/97; DE 12-03-1998, PROCESSO N.º 1404/97, BMJ N.º 475, PÁG. 492 (EM CASO DE REINCIDÊNCIA E FALTA DE INDAGAÇÃO SOBRE A PERSONALIDADE DO ARGUIDO E SEU REFLEXO NA MEDIDA JUDICIAL DA PENA); DE 09-12-1998, PROCESSO N.º 1165/98; DE 13-01-1999, PROCESSO N.º 1169/98-3.ª, IN BMJ N.º 483, PÁG. 49 E EM VIA REDUZIDA NA CJSTJ 1999, TOMO 1, P. 175 (CONVOCANDO OS ACÓRDÃOS DE 21-12-1996, DE 11-12-1996, DE 19-12-1996, DE 21-01-1998, DE 23-09-1998, PROCESSOS N.ºS 694/96, 1188/96, 348/96, 1104/97 E 665/98, TODOS DA 3.ª SECÇÃO); DE 02-06-1999, PROCESSO N.º 288/99; DE 15-05-2002, PROCESSO N.º 857/02 - 3.ª (INSUFICIÊNCIA PARA FORMULAÇÃO DE JUÍZO SOBRE A CORRECÇÃO DA PENA APLICADA); DE 01-07-2004, PROCESSO N.º 2691/04 - 5.ª (INSUFICIÊNCIA NO SEGMENTO EM QUE SE DECIDIRA DO CONDICIONAMENTO DA SUSPENSÃO DA PENA).
-DE 15-02-2007, PROCESSO N.º 3174/06 - 5.ª, DE 05-09-2007, PROCESSO N.º 2078/07 - 3.ª,
DE 09-04-2008, PROCESSO N.º 999/08-3.ª; DE 13-10-2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª, DE 27-02-2013, PROCESSO N.º 1336/06.2TAFUN.L1.S1-3.ª.
REENVIO
-DE 18-09-1997, PROCESSO N.º 534/97, CJSTJ 1997, TOMO 3, P. 176, DE 12-03-1998, PROCESSO N.º 1404/97, BMJ N.º 475, P. 492 E DE 09-04-2008, PROCESSO N.º 999/08-3.ª
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- N.º 49/2003, DE 29 DE JANEIRO, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 81/2002, DA 3.ª SECÇÃO, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, DE 16-04-2003 E EM ATC, VOLUME 55, P. 335 A 341;
- N.º 640/2004, DE 12-11-2004-3.ª SECÇÃO, SUMARIADO IN ATC, VOLUME 60.º, P. 933;
- N.º 255/2005, DE 24-05-2005, PROCESSO N.º 159/05-1.ª SECÇÃO, SUMARIADO EM ATC, VOLUME 62.º, P. 1283, E N.º 487/2006, DE 20-09-2006, PROCESSO N.º 622/06-2.ª SECÇÃO, COM SUMÁRIO IN ATC, VOLUME 66.º, P. 815;
-N.º 424/2009, DE 14 DE AGOSTO, PROFERIDO NO PROCESSO 591/09-2.ª SECÇÃO, COM SUMÁRIO IN ATC, VOLUME 75.º, P. 758;
- N.º 385/2011, DE 27-07-2011, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 470/11, DA 2.ª SECÇÃO.
Sumário :
I - Nos termos conjugados dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, este a contrario, é recorrível para o STJ a condenação proferida em primeira via pelo Tribunal da Relação, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade superior a 5 anos.

II - Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

III -Estes vícios só relevam se decorrerem do texto da própria decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, constando do processo em outros locais, como declarações, depoimentos ou documentos colhidos ao longo do processo, ou até produzidos em julgamento (salvo se os factos forem contraditados por documentos que fazem prova plena, não arguidos de falsidade).

IV -Perante a verificação de algum vício decisório, o julgador pode fazer uma de duas coisas: ou não tem elementos disponíveis, como será a regra, e reenvia o processo para julgamento, ou decide da causa, se estiver de posse dos elementos necessários e imprescindíveis à nova solução, dando uma nova versão ao conjunto dos factos provados e não provados, se for caso disso.

V - Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados.

VI -Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada.

VII - Há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.

VIII - O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito, quando existe uma lacuna, deficiência ou omissão, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

IX - Do texto da decisão recorrida, por si só considerado, perfila-se a existência do vício aludido na al. a), porquanto a matéria de facto provada não é bastante para a determinação da pena a aplicar, sendo omissa na indicação de dados sobre a personalidade e a inserção familiar, social ou profissional do arguido.

X - Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (arts. 369.º e ss. do CPP), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais, sendo certo que a lei prevê mesmo a possibilidade de produção de prova suplementar, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência ─ art. 371.º do CPP.

XI - Verificados os vícios de insuficiência para a matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, que são inultrapassáveis e insusceptíveis de saneamento, deve ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do n.º 2 do art. 426.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

       No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, n.º 1759/07.0TALRA, do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Leiria, integrante do Círculo Judicial de Leiria, foram submetidos a julgamento, os arguidos:

1. AA;

2. BB;

3. CC;

4. DD;

5. EE;

6. FF;

7. GG;

8. HH; e

9. II.

                           

       Por acórdão de 27 de Outubro de 2011 - constante de fls. 1883 a 1924 e depositado no mesmo dia, conforme fls. 1927 -, foi deliberado julgar extinto o procedimento criminal quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e absolver todos os arguidos do imputado crime de infracção às regras de construção, agravado pelo resultado, p. e p. pelos artigos 277.º, n.º 1, alínea a), e 285.º, do Código Penal.

                                                      

       Inconformado com o assim deliberado, recorreu o Ministério Público, conforme fls. 1929 a 1936, a que respondeu, apenas, o arguido GG (fls. 1945 a 1955, e em original, de fls. 1959 a 1969).

                                                            

      Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, 4.ª Secção (Criminal), de 10 de Outubro de 2012, constante de fls. 2004 a 2045, foi deliberado, no provimento do recurso:

      1 – Condenar os arguidos:

1.1 – DD, pela prática de um crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado (duas mortes e um ferido grave), p. e p. pelos artigos 277.º, n.º 1, alínea a), e 285.º, do Código Penal, na pena de sete anos de prisão.

1.2 – GG, pela prática de um crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado (duas mortes e um ferido grave), p. e p. pelos artigos 277.º, n.º 1, alínea a), e 285.º, do Código Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período.

                                              

Inconformado, o arguido DD interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 2056 a 2073, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral):

1ª - O Acórdão recorrido revogou a decisão absolutória da primeira instância e, na sequência do propugnado pelo Ministério Público, condenou o aqui recorrente na pena de sete anos de prisão, por ter considerado estarem preenchidos os factos integradores do crime de Infracção de Regras de Construção, agravado pelo resultado e praticado com dolo.

2ª - Contudo, toda a construção do Acórdão revela-se atentatória de princípios basilares do processo penal, inclusivamente com consagração constitucional, pois que o art. 67° do DL n° 41821, de 11.08.58, que prescreve a obrigação da «entivação do solo, estabelece no seu parágrafo único que tal não é imposto se as escavações forem efectuadas em «rochas e argilas duras».

3ª - Ao invés da primeira instância, que entendeu não se poder concluir pela infracção à referida norma, por não se ter provado o ponto da acusação que afirmava que o talude em causa era constituído essencialmente por «barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade»,

4ª - O Acórdão recorrido entendeu que o corpo do dito artigo 67° seria a «regra» a aplicar, se os arguidos não demonstrassem a «excepção», ou seja, se não provassem que o solo do talude era composto por «rochas e argilas duras».

Porem:

5ª - Desde logo, não há qualquer presunção legal de que o terreno onde o talude foi edificado teria a natureza de solo composto por «barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade» (ou seja, «não rochoso» nem não composto por «argilas duras»).

6ª - Donde, para fazer funcionar a «regra» a que se refere o Acórdão recorrido, seria pois necessário que a acusação tivesse provado que o solo tinha efectivamente essa natureza e características - e não aos arguidos, maxime ao recorrente, que o não tinha - como elemento constitutivo da infracção penal, tal como afirmara na acusação/pronúncia

7ª - O entendimento propugnado pelo Acórdão recorrido traduz-se pois, por isso, na estatuição de uma presunção de culpa do(s) arguido(s), o que é a todas as luzes inaceitável, por contrariar o princípio da presunção de inocência do arguido e do in dúbio pro reo.

8ª - Como refere o Acórdão deste Supremo de 1997.10.15 (Processo n° 1316/96, in JusNet n° 7125/1997), entre outros: «(...) a nossa Constituição consagra no n. 2 do artigo 32 como garantia da defesa, em processo penal, a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. O princípio da presunção de inocência compreende, além do mais, a proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do Arguido, e articula-se com o princípio in dúbio pro reo»

9ª - O próprio Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n° 89/2000, de 10.02 (Proc. n° 350/99, in JusNet 8598/2000), estatuiu: «Segundo o princípio da presunção de inocência, em caso de dúvida sobre a existência de factos incriminatórios, cuja prova caiba ao Ministério Público, resolve-se a favor do arguido. Tal princípio impede o de inverter o ónus da prova em desfavor do arguido. (...) contraria o princípio da presunção de inocência do arguido, visto que acaba por fazer recair sobre [ele] a prova da inexistência da culpa».

10ª - Em suma, não é ao arguido que incumbe demonstrar a sua inocência, a qual se presume (artigo 32°, n.° 2 da CRP); ao invés, é à acusação e ao Tribunal a quem compete demonstrar (provar) os factos em que se traduz o preenchimento do tipo legal de crime.

11ª - O princípio in dúbio pro reo não permite que se presuma uma «regra» incriminadora e se faça impender sobre o arguido a demonstração da «excepção» que teria a virtualidade de ilidir a «regra»; nem se pode legitimamente colocar a dicotomia «regra/excepção» como se esta última se tratasse de uma «causa de exclusão de ilicitude», pois a questão não é, obviamente, essa.

12ª - A questão é a do preenchimento dos requisitos do tipo legal de crime, que não de uma causa de exclusão de ilicitude dele; e para que se possa considerar que se esse tipo se encontra preenchido, teria de se ter demonstrado o facto constante da acusação/pronúncia de o terreno do talude ser constituído por «barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade».

13ª - Em homenagem aos referidos princípios, não poderá presumir-se, como faz o Acórdão recorrido, que o terreno tinha essas características, competindo ao arguido ilidir essa presunção de culpa.

14ª - Consequentemente, mostra-se insustentável e infundamentada a asserção do Acórdão recorrido de que lhe seria permitido concluir pela «clara natureza terrosa do material geológico constitutivo do talude resultante da operada escavação na referenciada obra e, por conseguinte, pela inevitável obrigação legal de respectiva entivação/contenção/escoramento».

15ª - Atentar-se-á que o Acórdão deste Supremo citado na 22ª conclusão infra, versou sobre situação em que havia no local «dois solos distintos» (um granítico e um remexido), o que traduz que não pode sequer afirmar-se que existem apenas duas possíveis realidades, «preto» e «branco», pois que há variáveis em zonas «cinzentas».

16ª - Deveria pois ter-se por inverificada a existência da prática do crime de que o recorrente foi acusado e condenado na segunda instância, determinando-se a sua absolvição.

Sem prescindir:

17ª - Consta  dos  autos  e é  citado  na  sentença  da  primeira  instância (pág.s 4 e 10), que a Câmara Municipal local, até 2007, não exigia, como requisito do licenciamento da obra, a realização de qualquer estudo geodésico, pelo que o recorrente não infringiu qualquer «norma» ou «regra» ao não o ter providenciado.

18ª - Por isso, e por o recorrente ter providenciado o termo de responsabilidade do técnico responsável pela direcção técnica da obra e o projecto de estabilidade, e a declaração de responsabilidade do técnico do plano de segurança e saúde e,

19ª - também, por as testemunhas que sobre tal foram inquiridas terem sido unânimes em asseverar a natureza rochosa do solo do terreno (pág.s 24, 5º, 6º e último parágrafo, 25, 26, 27 e 28) [apenas uma única referiu «não ser possível opinar sobre a natureza do terreno»], tais factores excluem a conclusão de que o terreno teria, presumivelmente (?!) natureza «terrosa».

20ª - Mais: como é referido no Acórdão deste Supremo citado na 22ª conclusão infra, o desprendimento do solo podia ocorrer logo no momento em que se estivesse a proceder à entivação, pelo que não poderá concluir-se, sem mais, que o concreto risco criado se deve, em termos de causalidade, a falta de entivação.

Sempre sem prescindir:    

21ª - Se, em entendimento que se afigura inexacto, este Supremo Tribunal entendesse encontrar-se preenchido o tipo legal de crime em análise, a pena aplicada ao recorrente, de sete anos de prisão, sempre seria excessiva, em duas vertentes:

22ª - Por um lado, em situações análogas, tem este Supremo optado por penas muito menos severas: por exemplo, no seu Acórdão de 2008.06.25 (Proc. n° 06P1398, in JusNet n° 2833/2008), onde foi considerado estar verificada a prática do crime aqui em causa, agravado pelo resultado (um trabalhador faleceu e outro ficou ferido), foi aplicada à arguida uma pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos.

23ª - Por outro, nada nos autos autoriza a concluir que o recorrente se absteve de fazer a entivação «consciente e voluntariamente», não obstante «se encontrar bem ciente» da «probabilidade de criação de significativa perigosidade» «com tudo, no entanto, se conformando», como diz o Acórdão recorrido.

24ª - Inversamente, tudo nos autos permite concluir que ele fez tudo quanto era obrigatório, que actuou como um «bónus pater famílias».

25ª - À semelhança do que é referido no Acórdão citado na precedente 22ª conclusão: «(...) era-lhe   [à  arguida]   possível   prever  a  criação  deste perigo, quer pelo critério objectivo do homem normal perante aquela situação concreta, quer em face das concretas condições pessoais da arguida. Todavia, a arguida não previu efectivamente tal ocorrência. Donde se conclui que relativamente à criação do perigo a conduta da arguida é apenas negligente, preenchendo unicamente o tipo legal de crime previsto no art. 277° n° 2 do Código Penal».

26ª - Na hipótese improvável de se entender encontrar-se preenchido o tipo legal de crime, não é legítimo considerar que o recorrente teria agido com dolo eventual (mesmo o anterior acidente no «Edifício 1», citado no Acórdão «sub censura», resultou de um abatimento do terreno, que não de um deslizamento de terras) a sua apenas se poderia classificar de negligente.

27ª - Estão, por isso, no Acórdão recorrido, interpretados de forma inexacta, salvo o devido respeito, os normativos citados nas precedentes 2ª, 4ª, 10ª e 25ª conclusões, bem como os art.s 70° e 71° do Cód. Penal.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogado o Acórdão proferido, em conformidade com as conclusões que antecedem, mormente decretando-se a absolvição do recorrente.

                                               

           O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra apresentou a resposta de fls. 2081 a 2091, concluindo:

1. Na medida em que o Tribunal da Relação de Coimbra alterou o acórdão absolutório da Iª instância e que aplicou ao arguido uma pena de 7 anos de prisão, sendo esta uma segunda pronúncia sobre o objecto do processo e assegurado que fica o duplo grau de jurisdição em recurso, deverá o seu recurso para o STJ ser rejeitado, de acordo com os artigos 414°, n.° 2 e 3, 417°, n.° 6 al. a) e b), 420°, n.° 1 todos do CPP por, nos termos dos art.º 432°, n.° 1 al. b) e 400°, n.° 1 al. f) do mesmo diploma legal, não ser o mesmo admissível.

2. Não se atendendo a esta questão prévia, na medida em que nenhuma censura merece o douto Acórdão proferido por este Tribunal da Relação, atentos os fundamentos nele expostos, não deverá o mesmo recurso ser provido

3. Assim, quanto ao facto de se imputar ao tribunal ter partido de um princípio de presunção de culpa do recorrente nos factos, violando os princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro re, tal não acontece no douto acórdão recorrido, pois que o recorrente não tinha, nem teve perante o tribunal a obrigação de provar o que quer que fosse. O que se lhe exigia era que tivesse determinado a execução dos trabalhos, cumprindo as regras de segurança e ficou demonstrado não o ter feito.

4. Quanto à reanálise proposta ao Supremo Tribunal de Justiça para concluir que o concreto risco criado não se deveu à falta de entivação, não cabe no âmbito das suas atribuições conhecer da matéria de facto, mas tão só conhecer de direito relativamente à matéria de facto dada por definitivamente assente na 2ª instância.

5. Por fim, a subsunção legal dos factos à lei penal e a pena aplicada mostram-se devidamente ponderadas, não merecendo censura.

Deverá, assim, para a hipótese de ser admitido o recurso, este ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente o douto acórdão recorrido.

                                              

       O recurso foi admitido por despacho de fls. 2093, consignando-se não se evidenciar o respectivo incabimento legal suscitado na resposta do M.º P.º.

                                                             

          O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer de fls. 2106 a 2113, não acompanhando a resposta do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra no que toca à questão prévia da irrecorribilidade, que tem por improcedente, e colocando de forma fundamentada várias questões relativamente ao acórdão recorrido, que entende padecer de vícios, terminando no sentido de que:
2.2.1 – É de declarar nulo o Acórdão sob reexame por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1/c) do CPP; e/ou verificado o vício a que se refere a alínea a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício esse relativo à questão da culpabilidade, ou, assim se não entendendo, à questão da determinação da sanção;
2.2.2 – E de decretar por isso o reenvio do processo ao Tribunal da Relação, nos termos do n.º 2 do art. 426.º do CPP, tendo em vista o suprimento dos apontados vícios.

                                            

            Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido ora recorrente silenciou.

                                    

         Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

                                           

         Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                          

         Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, proferido no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

    Questões a apreciar

            Tendo em conta as conclusões apresentadas pelo recorrente, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido, são as seguintes as questões a apreciar:

Questão I – Não preenchimento do crime do artigo 277.º, n.º 1, do Código Penal – Conclusões 1.ª a 20.ª

Questão II – Crime doloso ou negligente? – Conclusões 25.ª e 26.ª

Questão III – Medida da pena – Conclusões 21.ª a 25.ª e 27.ª

         Liminarmente, apreciar-se-á a Questão Prévia de inadmissibilidade do recurso, suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra.

  

       Apreciando. Fundamentação de facto

        Factos Provados

                   Segue a exposição da matéria de facto assente na primeira instância, dada por provada e não provada, e efectivamente, como se verá, de todo inalterada pela Relação.

          Não se procedeu a transcrição integral do conteúdo dos pontos 4 e 7, respeitantes a factos relativos a co-arguidos sem relevância na determinação da culpabilidade, relacionados apenas com o dono da obra, e abreviou-se nas condições pessoais dos arguidos não recorrentes, nos pontos 49 a 56.

 1 – No dia 14.06.2007, em Leiria, encontrava-se a ser erigida uma obra nova, a construção de um edifício habitacional, denominado de Edifício II, com 8 pisos, sendo 4 acima da cota da soleira e 4 abaixo da mesma cota, entre a Rua.......e a Rua Dr. .........., com o alvará de obras de construção nova n° .../00, a que corresponde o processo camarário n° 00000.

2 – A construção da referida obra foi devidamente autorizada e licenciada pela Câmara Municipal de Leiria em face dos elementos apresentados pela sociedade JJ, requerente do licenciamento.

3 – O alvará de obras e construção foi emitido após o pagamento das correspondentes taxas, no valor de € 195.832,74, suportado pela sociedade JJ, tendo a Câmara Municipal de Leiria, em data anterior à emissão do mesmo alvará, deliberado autorizar a sua emissão.

4 – Para a emissão do alvará de licença de construção, o arguido AA, na qualidade de representante da sociedade JJ, requereu em 30.01.2007, a emissão do mesmo, apresentando junto da Câmara e no âmbito do processo de licenciamento os seguintes elementos: (…). 

5 – A Câmara Municipal de Leiria emitiu o correspondente alvará de licença de construção com o plano de segurança e saúde apresentado no processo de licenciamento.

6 – No local da obra existia um talude com cerca de 8 metros de altura e cerca de 27 metros de comprimento, do lado da ............

7 – O dono da obra era a empresa JJ - , Lda., com o objecto social de indústria de construção civil, compra e venda de propriedades e revenda das adquiridas para esse fim, arrendamento, administração, gestão e operações sobre imóveis, empreendimentos e investimentos turísticos e imobiliários, com sede na Avenida ..... Lote ..., ....Dt.º, Leiria, sendo seus representantes legais os arguidos AA e BB, obrigando-se a sociedade pela intervenção de dois gerentes ou só pela intervenção do gerente AA, nos seguintes actos: (…).

8 – Por contrato de empreitada, celebrado em 27 de Outubro de 2006, a sociedade JJ Ldª adjudicou à sociedade LL..... Ldª os trabalhos respeitantes à construção do edifício referido em 1, designadamente execução de desaterros, movimentação de terras para implantação do edifício, fundações, estruturas, paredes, coberturas e trabalhos de alvenaria.

9 – No contrato referido em 8 não se encontra prevista a realização de trabalhos em subempreitada.

10 – A sociedade LL..... Ldª tem como objecto social a construção civil, compra e venda de imóveis, revenda de adquiridos para esse fim e obras públicas, com sede em Rua da P....., n° ...... Vale da ..... C......... – Leiria, sendo seu representante legal o arguido DD.

11 – Por contrato de subempreitada, a sociedade LL..... Ldª adjudicou à sociedade MM Ldª os trabalhos referentes à cofragem das fundações, pilares, muros, lajes maciças, cortinas e fornecimento de todo o escoramento, toda a madeira, chapas metálicas para pilares e muros óleos para os mesmos e pregos.

12 – A sociedade MM Ldª tem como objecto social a execução de cofragens e construção civil, com sede em Rua ............, ......, Moita da.........., Souto da Carpalhosa, Leiria, sendo seus representantes legais os aqui arguidos GG e HH.

13 – No âmbito do contrato referido em 11 cabia à sociedade MM a execução dos trabalhos de cofragem inerentes à construção dos muros de suporte do talude referido em 6.

14 – No local da referida construção inexistia livro de registo do trabalho suplementar e o livro de obra continha à data dos factos um único registo, relativo ao do início dos trabalhos.

15 – A sociedade LL..... Ldª havia contratado com a sociedade NN Ldª o corte do terreno, a execução das escavações e a movimentação e remoção de terras necessárias, tendo o seu sócio gerente OO operado, entre outras, com a escavadora giratória que operava no estaleiro.

16 – OO exercia a sua actividade de acordo com as instruções que lhe eram dadas pelos arguidos DD e pelo encarregado da obra, trabalhador da sociedade LL..... Ldª, o arguido FF.

17 – O início dos trabalhos teve lugar cerca de sete semanas antes do dia do acidente, 14.06.2007, permanecendo o talude a céu aberto todo o tempo, sem qualquer protecção ou escoramento.

18 – OO deu início aos trabalhos de escavação começando por fazer degraus com cerca de um metro de largura, com início no limite do prédio já existente no local, o denominado edifício I, largura essa que se ia esbatendo ao longo do talude.

19 – Da parte de cima do talude referido em 6 existia uma estrada com tráfego automóvel regular, que constituía uma fonte de vibrações.

20 – No mês de Fevereiro de 2007, no decurso dos trabalhos de execução do denominado edifício I, a que corresponde um processo administrativo e de licenciamento autónomo, executados pela sociedade LL..... Ldª e em que era dono da obra a sociedade JJ Ldª e director técnico da obra o arguido CC, contíguo ao edifício II havia caído parte da Rua Drº. ..........., tendo sido interrompida a circulação do trânsito.

21 – Na sequência do referido em 20 as sociedades JJ e LL..... Ldª, bem como o arguido CC foram notificados para tomar todas as medidas necessárias, por forma a garantir a segurança de pessoas e bens, bem como a reposição da rua e das infra-estruturas entretanto danificadas. (Realce do original).

22 – O talude referido em 6, antes do acidente, não foi entivado, não foi protegido ou escorado, não foi projectado nem injectado cimento no mesmo, através de furos, a fim de o sustentar e não foi construída uma bacia de recolha de águas pluviais.

23 – No dia 14.06.2007, PP, QQ e RR, trabalhadores da sociedade MM Ldª, sob as ordens, direcção e fiscalização do arguido GG, encontravam-se a montar as estruturas de cofragem, junto ao talude referido em 6.

24 – No local encontrava-se também o arguido II que seguindo as instruções dadas pelo arguido GG, executava trabalhos de cofragem para a construção do muro de suporte.

25 – PP, PP e um outro trabalhador da sociedade MM de nome Fernando encontravam-se em cima das sapatas, entre a cofragem do muro de suporte e o talude, estes separados por uma distância de dois metros, a fim de procederem ao aperto dos parafusos da cofragem metálica para a construção do muro de suporte, encontrando-se RR em cima da cofragem e o arguido II junto à parte do muro que já se encontrava construído, do lado interior da obra.

26 – Cerca das 12 horas e 55 minutos ocorreu um desprendimento de terras do talude referido em 6, as quais soterraram por completo PP e QQ e projectaram RR de cima da cofragem para o solo.

27 – De imediato acorreram ao local elementos dos Bombeiros Municipais e Voluntários de Leiria, do INEM, da Protecção Civil, da PSP de Leiria e da Inspecção Geral de Trabalho, tendo os corpos de PP e QQ sido retirados debaixo da terra e das pedras com o auxilio da máquina giratória que se encontrava no local.

28 – A morte de PP foi devida a lesões traumáticas meningo-encefálicas, vértebro-meningo-medularescervico-dorsais, toraco-abdomino-pélvicas e do membro inferior direito e a de QQ foi devida a lesões traumáticas meningo-encefálicas e toraco-abdomino-pélvicas.

29 – Em consequência da queda referida em 26, RR sofreu lombalgias, traumatismos da bacia e coluna lombar com fractura do acetábulo direito sem desvio e diminuição da capacidade de flexão da coluna lombar, lesões estas que determinaram, directa e necessariamente 187 dias de doença, com igual período de tempo de incapacidade quer para o trabalho em geral quer para o trabalho profissional, com lombalgias residuais.

30 – Os arguidos AA e BB não solicitaram a elaboração de um estudo geotécnico do local, não diligenciaram pela elaboração de um plano de segurança e saúde que previsse todos os riscos inerentes às operações em curso no estaleiro, não nomearam um Coordenador de Segurança e não comunicaram à Inspecção Geral do Trabalho a abertura do estaleiro.

31 – O arguido BB, não obstante ser sócio gerente da sociedade JJ Ldª, não tem qualquer poder de decisão e não exerce quaisquer funções relacionadas com a efectividade da gerência, sendo todas as decisões respeitantes á actividade da sociedade tomadas unicamente pelo arguido AA.

32 – A sociedade JJ Ldª não procede à actividade de construção, adjudicando a empresas empreiteiras essa função, delegando o arguido AA tais funções, na qualidade de representante do dono da obra.

33 – A elaboração dos projectos de arquitectura e de especialidades são entregues pela sociedade JJ a técnicos qualificados para o efeito, exercendo apenas esta sociedade a actividade de promoção imobiliária e posterior comercialização.

34 – Os arguidos AA e BB não exercem qualquer actividade de planeamento, direcção ou execução de obras, não detendo qualquer dos arguidos qualificações para exercer qualquer actividade técnica de planeamento, licenciamento, direcção ou execução de obras.

35 – Os arguidos AA e BB não detêm conhecimentos técnicos para averiguar o conteúdo de qualquer plano de segurança e saúde e para a decisão de elaborar ou não um estudo geotécnico para uma obra.

36 – Posteriormente ao acidente a sociedade JJ nomeou um coordenador de segurança, face às exigências da Inspecção Geral de Trabalho.

37 – A Câmara Municipal de Leiria, entre 2004 e 2007 não exigia estudos geotécnicos para os licenciamentos de construção de edifícios habitacionais.

38 – O arguido CC na qualidade de engenheiro técnico elaborou o projecto de estabilidade da obra em causa, exercia funções na qualidade de Director Técnico da Obra, indicado pela empresa JJ, Ldª, tendo como função fazer cumprir o projecto aprovado, incumbindo-lhe também efectuar visitas mensais à obra e efectuar o competente registo das mesmas no livro de obra.

39 – A nomeação do arguido CC como director técnico da obra ocorreu em momento anterior ao início de execução da obra, numa fase de licenciamento e a pedido do dono da obra, o qual para obter e levantar a licença de construção necessitava de apresentar na Câmara Municipal um termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra.

40 – Por força do circunstancialismo referido em 39, o arguido CC assinou o termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra.

41 – O arguido CC não pertence nem nunca pertenceu aos quadros técnicos da sociedade LL..... Ldª, não lhe cabendo exercer funções para esta, no âmbito do contrato de empreitada referido em 8.

42 – O arguido CC esteve no local da obra, aquando do início dos trabalhos de limpeza do terreno, em 20.05.2007, tendo sido a única visita que efectuou.

43 – EE exercia funções por conta da empresa LL....., Lda. enquanto Técnica de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho, e foi a autora do plano de segurança e saúde aprovado pela sociedade JJ, Lda., na pessoa do arguido AA.

44 – FF e II exerciam funções, mediante contrato de trabalho, respectivamente, por conta das empresas LL....., Lda. e MM, Lda., ambos enquanto Encarregados de obra, tendo essencialmente como função coordenar, na ausência respectivamente dos arguidos DD e GG, e participar na execução dos trabalhos, sob a direcção destes.

45 – O arguido FF tem o 6.º ano de escolaridade e não possui qualquer curso profissional para a profissão de encarregado de construção que exerce.

46 – No dia 18.06.2007 foi realizada uma reunião no Quartel dos Bombeiros Municipais de Leiria acerca do ocorrido no dia 14.06.2007 na obra mencionada supra, onde estiveram presentes representantes do Serviço Municipal de Protecção Civil de Leiria, do Departamentos de Obras Municipais, do Departamento de Operações Urbanísticas e da Divisão de Conservação de Edifícios, Vias e Obras de Arte da Câmara Municipal de Leiria, das empresas JJ, Lda. e LL....., Lda., o Director Técnico da Obra CC e a Técnica de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho EE.

47 – Na reunião referida em 46 ficou definido que o dono da obra deveria, entre o mais realizar um estudo geotécnico, apresentar um projecto de consolidação da barreira, com base naquele, bem como a execução de uma bacia de recolha de águas pluviais para receber as águas provenientes da Rua ............

48 – Em consequência dos factos referidos de 23 a 28, correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Leiria sob o nº 559/07.1TTLRA uns autos de acidente de trabalho em que foi proferida sentença condenando a sociedade MM Ldª e respectiva seguradora a pagarem aos ali autores as quantias referidas na certidão de fls 1540 ss, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

49 – Do relatório social do arguido AA consta, além do mais o seguinte: (…)

50 – Do relatório social do arguido GG consta, além do mais o seguinte: (…)

51 – Do relatório social da arguida HH consta, além do mais o seguinte: (…)

52 – Do relatório social do arguido FF consta, além do mais o seguinte: (…)

53 – Do relatório social do arguido II consta, além do mais o seguinte: (…)

54 – Do relatório social do arguido BB consta, além do mais o seguinte: (…)

55 – Do relatório social da arguida EE consta, além do mais o seguinte: (…)

56 – Do relatório social do arguido CC consta, além do mais o seguinte: (…)

57 – Os arguidos não têm antecedentes criminais.
                                                                           *

Factos não provados     

Foram dados por não provados os seguintes factos da pronúncia (apenas os que relevam para a solução do caso):

a) - (…)

b) O talude referido em 6 era constituído essencialmente por barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade.

c) e d ) - (…)

e) A queda referida em 20 tenha sido provocada por um deslizamento de terras e que tenha ocorrido quando estavam a decorrer os trabalhos no edifício I.

f) a q) - (…)

r) A empresa LL....., Lda., representada por DD, não desenvolveu nem especificou adequadamente o plano de segurança e saúde para a execução da obra, não deu a conhecer aos subempreiteiros o plano de segurança e saúde, não cuidando pela sua efectiva e eficaz aplicação, não previu, avaliou e hierarquizou todos os riscos inerentes aos trabalhos em curso no estaleiro (trabalhos de risco especial), designadamente os riscos inerentes à construção do muro de suporte com um talude com 8 metros de altura situado a 2 metros de distância do local da execução do muro, não previu nem implementou as técnicas adequadas de prevenção destinadas a impedir a ocorrência de situações causadoras de lesões aos trabalhadores da obra, não cuidou de assegurar o cumprimento pelos subempreiteiros das obrigações a que estes estavam adstritos.

s), t), u) e v) – (…)

x) O talude referido em 6 não foi objecto de qualquer inclinação e não foi objecto de escavação em lanços de curto comprimento.

z) Os arguidos tenham colocado directamente em perigo a vida e a integridade física de todos os trabalhadores que laboravam na referida obra.

aa) Se os arguidos tivessem procedido de outro modo teriam evitado o desprendimento e o deslizamento das terras do talude, o consequente soterramento e morte de PP e QQ e a projecção ao solo de RR com a ocorrência neste dos ferimentos que sofreu.

bb) Os arguidos agiram todos conscientes, livres e deliberadamente, cientes de que, com a sua conduta omissiva, infringiam regras legais, regulamentares e técnicas em vigor, que, no âmbito da sua actividade profissional, estavam legal e pessoalmente obrigados a observar no planeamento, direcção e execução da obra mencionada supra e que ao agirem dessa forma, necessariamente, criavam uma situação de perigo grave para a vida e a integridade física dos trabalhadores da referida obra.


    Questão Prévia - Admissibilidade do recurso

         Como vimos o Exmo. PGA no Tribunal da Relação de Coimbra na resposta apresentada – cfr. conclusão 1.ª – colocou a questão da inadmissibilidade do recurso.

         Em primeiro lugar, há que dizer que, em função da concreta pena de prisão aplicada – 7 (sete) anos de prisão – é admissível recurso do acórdão recorrido para este Supremo Tribunal.

        Não se trata no caso de uma decisão condenatória proferida por um tribunal colectivo ou do júri, a aplicar pena de prisão superior a cinco anos (artigo 432.º, n.º 1, alínea c) do CPP).

         Mas tratando-se de um acórdão final, de uma condenação proferida (se bem que em primeira via) pelo Tribunal da Relação, em recurso, aplicando pena privativa de liberdade superior a cinco anos, é a mesma recorrível, nos termos conjugados do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea b) e no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, este “a contrario”.

 Sendo assim, tem-se por adquirido que o processo comportará um duplo grau de recurso, tendo o primeiro sido interposto pelo M.º P.º e o segundo a ser interposto pelo arguido, ora condenado.

 Neste sentido, o acórdão de 09-11-2011, por nós relatado no processo n.º 43/09.9PAAMD.L1.S1, em que após absolvição do arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes e na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação condenou o arguido na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.  

       Ademais sempre se dirá que os acórdãos do Tribunal Constitucional invocados pelo Ministério Público junto da Relação de Coimbra não sustentam a defesa de inadmissibilidade de recurso em casos como o presente, pois que todos se pronunciaram sobre situações muito diferentes da presente e alguns mesmo em quadro legal diverso do vigente desde 15-09-2007 (versão da Lei n.º 59/98).

       Assim, desde logo o acórdão n.º 49/2003, de 29 de Janeiro, proferido no processo n.º 81/2002, da 3.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 16-04-2003 e em ATC, volume 55, p. 335 a 341, versando sobre caso de acórdão condenatório da Relação, que não confirma a decisão absolutória proferida em primeira instância e a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98.

       Estava em causa um acórdão da Relação em processo por crime a que era aplicável pena de multa ou de prisão não superior a cinco anos, tendo a arguida sido condenada na pena de multa de 120 dias e em prisão subsidiária pela prática de crime de difamação por meio de imprensa.

       O acórdão n.º 640/2004, de 12-11-2004-3.ª Secção, sumariado in ATC, volume 60.º, p. 933, não julgou inconstitucionais as normas das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na interpretação segundo a qual, tendo sido confirmada pelo Tribunal da Relação, uma condenação em pena de prisão de 4 anos, por crime cuja moldura penal abstracta é superior a 8 anos de prisão, não é admissível recurso do acórdão da Relação para o STJ, quando o recurso for interposto apenas no interesse da defesa.

       Neste caso houve confirmação de condenação em pena de 4 anos de prisão, pelo que igualmente não deve ser chamado à colação.

       Os acórdãos n.º 255/2005, de 24-05-2005, processo n.º 159/05-1.ª Secção, sumariado em ATC, volume 62.º, p. 1283, e n.º 487/2006, de 20-09-2006, processo n.º 622/06-2.ª Secção, com sumário in ATC, volume 66.º, p. 815, confirmaram decisão sumária que não julgou inconstitucional a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.

       Ora na redacção anterior a 2007, a alínea e) reportava-se a recursos respeitantes a crimes em que a pena aplicável era a de multa ou de prisão não superior a cinco anos.  
       Por seu turno, o acórdão n.º 424/2009, de 14 de Agosto, proferido no processo 591/09-2.ª Secção, com sumário in ATC, volume 75.º, p. 758, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 48/2007, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva.
       O patamar mínimo de recorribilidade, diferentemente do que aqui ocorre, não se verificou no caso versado em que foi aplicada pena de prisão não superior a 5 anos.
          Por último, no acórdão n.º 385/2011, de 27-07-2011, proferido no processo n.º 470/11, da 2.ª Secção, foi decidido “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado”.

       No caso apreciado no acórdão, ao contrário do acórdão ora recorrido, houve confirmação da decisão de primeira instância.

    

      Concluindo: reafirma-se a admissibilidade do presente recurso, atenta a medida de pena de prisão aplicada em primeira via pela Relação.

   Vícios do acórdão recorrido

       No caso presente ocorre circunstância obstativa do conhecimento do recurso, por se mostrar presente a existência de vícios, cuja indagação constitui um prius relativamente à análise do bem fundado do decidido em matéria de direito.
      O acórdão recorrido padece dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, que por inultrapassáveis e insusceptíveis de saneamento, conduzirão a reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do mesmo Código.
       
      Vejamos porquê.      

      Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, inalterada nas subsequentes onze modificações:
      «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova».

      Os vícios previstos no preceito são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

      Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4, Fasc. 1 - Janeiro-Março 1994 (em anotação a acórdão do STJ, de 6-05-1992, Colectânea de Jurisprudência 1992, tomo 4, p. 5).

     Adianta a Autora a págs. 121/3: “Nesta disposição legal, estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência da «fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal». (Texto presente nos acórdãos de 13-10-2010, processo n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª e do mesmo relator o de 09-02-2012, processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1).

     “O artigo 374.º, n.º 2, impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena de nulidade da sentença (…), enquanto o artigo 410.º, n.º 2, concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objectivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410.º, n.º 2, não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 – isso é feito através do mecanismo da arguição da nulidade –, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão”. Conclui que por serem vícios que contendem directamente com «a boa decisão da causa», tendo o tribunal de recurso o poder-dever de fundar a «boa decisão de direito» numa «boa decisão de facto», o seu conhecimento é oficioso.

      Segundo o acórdão de 20-06-2002, processo n.º 4250/01-5.ª, os vícios do artigo 410.º são vícios da sentença final, e só, da matéria de facto.

      No dizer do acórdão de 3-03-2010, processo n.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª, são vícios graves de confecção técnica da sentença, impeditivos de bem se decidir no plano objectivo e subjectivo, viciando as premissas decisórias, inclusive a conclusão de direito, comprometendo a eficácia das decisões ante os seus destinatários directos e até os mais remotos, sendo por isso de conhecimento oficioso.       

        Conforme jurisprudência uniforme e já remota deste Supremo Tribunal, entende-se que os vícios têm que resultar, só relevam se decorrerem do texto da própria decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como declarações ou depoimentos ou documentos colhidos ao longo do processo, ou até mesmo produzidos em julgamento (salvo se os factos forem contraditados por documentos que fazem prova plena, não arguidos de falsidade) - acórdãos do STJ de 29-11-1989, processo n.º 40255/89-3.ª; de 19-12-1990, processo n.º 41327/90-3.ª; de 31-05-1991, BMJ n.º 407, p. 377; de 13-02-1992, BMJ n.º 414, p. 389; de 22-09-1993, proferido no processo n.º 43829, citando acórdão proferido no processo n.º 41327, de 19-12-1990, in CJSTJ 1993, tomo 3, p. 210; de 11-12-1996, processo n.º 1188/96, in SASTJ, n.º 6, p. 58; de 19-11-1997, processo n.º 873/97-3.ª; de 20-11-1997, processo n.º 1242/97-3.ª; de 28-10-1998, processo n.º 887/98 e de 29-10-1998, processo n.º 525/98, ambos in BMJ n.º 480, pp. 83 e 292; de 17-02-2000, processo n.º 292/97, BMJ n.º 494, p. 227, de 24-03-2004, processo n.º 4043/03-3.ª, de 19-01-2006, processo n.º 2636/05-5.ª, de 08-02-2006, processo n.º 98/06-3.ª.

E mais recentemente: de 15-02-2007, processo n.º 3174/06 - 5.ª; de 14-03-2007, processo n.º 617/07 - 3.ª; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07 - 3.ª; de 11-07-2007, processo n.º 1416/07 - 3.ª; de 27-07-2007, processo n.º 2057/07-3.ª; de 24-10-2007, processo 3338/07-3.ª; de 17-01-2008, processo n.º 2696/07-5.ª, CJSTJ, 2008, tomo I, p. 206; de 09-04-2008, processo n.º 999/08-3.ª; de 6-10-2010, processo n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1-3.ª (versando sobre o vício da alínea c) e presunções naturais).

Como se extrai dos acórdãos do STJ de 29-02-1996, BMJ n.º 454, p. 531, de 11-12-1996, processo n.º 900/96, BMJ n.º 462, p. 207, e de 12-11-1997, processo n.º 32507, característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento quando insanáveis no tribunal da recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.

       A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP, tem um âmbito restrito. A possibilidade de introdução do Tribunal ad quem no domínio da facticidade sempre será parcial, mitigada, restrita, limitada e indirecta; a indagação não pode ir além do suporte textual, sem recurso a elementos estranhos à peça escrita. A indagação possível terá sempre presente o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, e apenas dele - acórdãos de 12-06-2008, processo n.º 4375/07 (Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma), de 22-10-2008, processo n.º 215/08, de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1, de 14-07-2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1 e de 12-07-2012, processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1, todos da 3.ª Secção.

O artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, determina que:

“Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio”.

           Estabelece o artigo 430.º do mesmo Código (Renovação da prova) no n.º 1 que:

           “Quando deva conhecer de facto e de direito, a relação admite a renovação da prova se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo”.

E de acordo com o artigo 431.º do CPP (Modificabilidade da decisão recorrida):

Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.

        

         Perante a verificação de algum vício decisório, o julgador pode fazer uma de duas coisas: ou não tem elementos disponíveis, como será a regra, e reenvia o processo para julgamento, ou resolve logo, se for possível decidir da causa, se na concreta circunstância, estiver de posse dos elementos necessários e imprescindíveis à nova solução, mas aqui há que agir em conformidade com a opção e na sequência dar, em resultado dessa verificação, uma nova versão/composição ao conjunto dos factos provados e não provados, se for caso disso.

        Ocorrendo um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o tribunal ad quem só deverá reenviar os autos para novo julgamento se não lhe for possível proferir decisão sobre a causa, o que afasta o reenvio automático. A modificabilidade à luz dos vícios está contemplada na ressalva inicial do artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º”.

         Assim se decidiu, no acórdão deste Supremo Tribunal de 20-04-2005, processo n.º 3434/04 - 3.ª e no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 21-01-2004, processo n.º 3176/03 - 3.ª, in SASTJ, n.º 77.

       Como consta do acórdão de 23-03-2006, processo n.º 547/06-5.ª (citado no acórdão de 17-01-2008, processo n.º 2696/07-5.ª, CJSTJ 2008, tomo 1, p. 206), mesmo quando se verifique algum dos vícios do artigo 410.º- 2, o reenvio só deve ser ordenado se não for possível decidir da causa (cfr. art. 426.º-1), isto é, se do processo não constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ou se não for possível a renovação da prova (art. 431.º).

       Assim se decidiu igualmente no acórdão de 15-10-2008, processo n.º 1964/08, desta secção, relatado pelo ora relator, num caso específico de prova documental, em que se considerou não haver lugar a reenvio, se a solução para a contradição na fundamentação puder ser encontrada adentro da lógica e da economia do texto da decisão recorrida, encarado na sua globalidade, mesmo com recurso ao que consta de certidão constante dos autos, desde que no texto da decisão recorrida se faça menção a tal documento autêntico como uma das “piéces à conviction” em que o tribunal se ancorou, e no acórdão de 12-07-2012, processo n.º 2/09.1PAETZ.S1-3.ª.

Do vício da contradição insanável da fundamentação

            A contradição insanável da fundamentação, segundo o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Verbo, volume III, pág. 325, «respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto (fundamento da decisão de direito). Assim, tanto constitui fundamento de recurso ao abrigo da alínea b) do nº 2 do art. 410º a contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, pois pode existir contradição insanável não só entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto», sendo de notar que estamos perante edição anterior a reforma de 1998 (a edição é de 1994).
            Para Simas Santos - Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, 2008, p. 75, o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão traduz-se na incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
         Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.

         Pela sua especificidade este vício, constando necessariamente apenas do texto e a ele se confinando a análise da existência do mesmo, não permite para se concluir pela sua existência, a invocação das regras da experiência comum – neste sentido, os acórdãos do STJ de 31-05-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 3, p. 23, de 16-10-1991, processo n.º 41587, BMJ n.º 410, p. 610, de 13-01-1998, processo n.º 1169/97, de 09-04-2008, processo n.º 999/08 e de 12-07-2012, processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1-3.ª Secção e segundo Simas Santos-Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, p. 81/2, as regras da experiência comum não podem ser invocadas quando se trate deste vício, porque a contradição só pode resultar do próprio texto da decisão, como é óbvio.
                
         Como se dizia no acórdão do STJ de 22-05-1996, processo n.º 306/96, o vício ocorre quando constam do texto, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis, como dar o mesmo facto como provado e não provado, em situações que não possam ser ultrapassadas pelo tribunal de recurso.
          Segundo o acórdão de 4-12-1996, processo n.º 47271, SASTJ, n.º 6, p. 52, a contradição insanável na fundamentação terá que consistir na consagração de dois factos que não podem ter acontecido nos termos em que são descritos, por se excluírem reciprocamente.
     Na expressão do acórdão de 11-12-1996, processo n.º 900/96, BMJ n.º 462, p. 207, a contradição insanável prevista na alínea b) traduz um vício ao nível das premissas, determinando a formação defeituosa da conclusão. Se as premissas se contradizem, a conclusão correcta é impossível, não passa de simples falácia. Se a conclusão é correcta, então não deriva das premissas, carece de fundamento.  
      Ou, como se refere no acórdão de 08-10-1997, processo n.º 671/97, quando se verifica oposição entre factos que mutuamente se excluem por impossibilidade lógica ou de outra ordem, por versarem a mesma realidade.
     Ou, ainda, como no acórdão de 25-03-1998, processo n.º 53/98 - 3.ª, BMJ n.º 475, p. 502, existe contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que não é perfeita a compatibilidade de todos os factos provados.
      Para o acórdão de 29-10-1998, processo n.º 525/98, in BMJ n.º 480, p. 292, a contradição insanável da fundamentação verifica-se quando se dá como provado e não provado o mesmo facto, quando se afirma e nega a mesma coisa ao mesmo tempo, quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando se constata oposição entre a fundamentação probatória da matéria de facto.   

      Como resulta do acórdão de 17-02-2000, proferido no processo n.º 292/97-5.ª, publicado no BMJ n.º 494, p. 227, há contradição insanável da fundamentação quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto – ver em sentido semelhante ou próximo, os acórdãos de 19-05-1993, processo n.º 43.851, in CJSTJ 1993, tomo 1, p. 232 e de 25-09-1996, processo n.º 48 731, 3.ª Secção e de 31-10-1996, proferido no processo n.º 692/96, 3.ª Secção, in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 3, p. 59, e n.º 4, p. 96.

     Pronunciaram-se sobre este vício, i. a., os acórdãos deste Supremo Tribunal, de:

15-02-2007, processo n.º 3174/06 - 5.ª – «A contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação, ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou na contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão»;

22-02-2007, processo n.º 147/07 - 5.ª – «(…) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum»;

02-05-2007, processo n.º 1017/07 - 3.ª – «A contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito»;
19-09-2007, processo especial de extradição n.º 3338/07 - 3.ª – A contradição insanável da fundamentação é a contradição ou oposição intrínseca na matéria de facto ou na respectiva fundamentação; consiste na afirmação de factos animados de sinal contrário, cuja verificação simultânea é impossível, sendo a sua coexistência inexoravelmente inconciliável; terá que consistir na consagração de dois factos que não podem ter acontecido nos termos em que são descritos, por se excluírem reciprocamente.
         O vício em causa supõe oposições factuais ou a existência de factos contraditórios na factualidade apurada, e a partir de 1 de Janeiro de 1999, oposição entre a matéria de facto e/ou a fundamentação desta e a decisão. (A inovação da revisão de 1998 consistiu na introdução da alternativa final da alínea b) – ou entre a fundamentação e a decisão – o que veio alargar o leque das disfunções do texto passíveis de integrarem o vício da sentença em referência) – cfr. acórdãos do STJ, de 12-09-2007, processo n.º 2583/07, de 24-10-2007, processo n.º 3238/07, de 09-04-2008, processo n.º 999/08 (contradição nos antecedentes criminais), de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 e de 22-10-2008, processo n.º 215/08, relatados como o anterior pelo ora relator.

22-11-2007, processo n.º 3756/07 - 3.ª – «(…) o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando ocorre uma situação de conflito inultrapassável da fundamentação, ou seja, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre factos provados e não provados e as provas que serviram de base para formar a convicção do tribunal, bem como quando se verifica uma contradição irredutível na motivação, ou seja, entre as provas que serviram para formar a convicção do tribunal e, bem assim, quando estamos face a conflito inultrapassável entre a fundamentação e a decisão».

13-10-2010, processo n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª - verifica-se uma contradição insanável da fundamentação, sempre que através de um raciocínio lógico se conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos.
      
      Como referimos, a decisão recorrida, visto o respectivo texto na sua globalidade, padece do vício assinalado.

 Versando o caso concreto.

      Como vimos, o Tribunal Colectivo de Leiria absolveu todos (os nove) arguidos pronunciados por crime de infracção às regras de construção agravado pelo resultado e na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, que se limitou à parte da decisão que absolveu os arguidos DD e GG, a Relação de Coimbra condenou os dois arguidos, respectivamente, sócios gerentes das empresas LL..... Lda., empreiteira executante da obra de construção de um edifício habitacional, denominado Edifício II, entre a Rua ......e a ..........., em Leiria, e MM Lda., subempreiteira contratada para os trabalhos de cofragem do muro de sustentação de terras.

      O que estava em causa – enquadramento da questão

      

       Em causa a determinação da responsabilidade criminal pelo desprendimento de terras na referida obra, que causou a morte a dois trabalhadores e ferimentos num outro, incontornavelmente certa, em termos factuais, sendo a omissão da entivação/contenção/escoramento de um talude resultante das escavações e desaterros inerentes às próprias obras, com cerca de 8 metros de altura e de 27 metros de comprimento, colocando-se a questão de apuramento de eventual incumbência legal da protecção do referido talude e a quem a mesma competia.

        Em discussão nos autos, pois, a observância do disposto no artigo 67.º do Decreto n.º 41821, de 11-08-1958, que aprovou o Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil (aplicável por força do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 273/2003), de acordo com o qual é indispensável a entivação do solo nas frentes de escavação, devendo ser do tipo mais adequado à natureza e constituição do solo, profundidade de escavação, grau de humidade e sobrecargas acidentais, estáticas e dinâmicas, a suportar pelas superfícies dos terrenos adjacentes.

        No parágrafo único desta disposição legal, preceitua-se uma excepção a esta obrigação, quando as escavações são efectuadas em rochas e argilas duras.

        Desde logo, pois, a evidenciar-se, como essencial, a questão da caracterização do solo onde vai ser implantada a obra, pois, da sua natureza e constituição, dependerá a necessidade ou não de observância da injunção legal de entivação.

       Começando pelas razões de absolvição (ou, no dizer da decisão recorrida, pelo Juízo jurídico-absolutório).

            

        Desde logo, na parte final da exposição da motivação, ao proceder à análise crítica da prova produzida, após enunciar afirmações feitas pelas testemunhas ouvidas, que trabalharam no local e outras conhecedoras do mesmo, afirma o Colectivo de Leiria, a fls. 1915: “Não dispomos de qualquer outra prova que infirme ou sustente tais afirmações, no que se refere à natureza do solo no local, bem como quais as causas do desprendimento de terras, designadamente prova pericial que não foi oportunamente realizada, sendo que na presente data já não o pode ser, atenta a conclusão da construção, pelo que se nos oferecem dúvidas sobre quais os comportamentos exigíveis aos arguidos DD e GG sob cujas ordens os demais actuaram, designadamente quanto à necessidade de medidas de protecção do talude em causa e quais. 

        Por esta razão se deu como não provada a factualidade constante da alínea b) referente à pronúncia, c), d) z) (contrariados pela testemunha OO), e), aa), bb) e cc) da pronúncia”

        Mais à frente, na discussão do direito, a fls. 1923, afirma o mesmo Colectivo:

        “Um juízo feito à posteriori, leva-nos a concluir que se o talude tivesse sido objecto de qualquer protecção, as terras que do mesmo se desprenderam teriam ficado retidas o que teria impedido a sua queda e soterramento subsequente dos trabalhadores falecidos.

        Porém, os autos não permitem concluir positivamente pela infracção do disposto no artº 67º, desde logo por não estar determinada a natureza geológica do solo, designadamente porque não se apurou que o talude em causa era constituído essencialmente por barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade.

        Na ausência desta prova, não nos é possível determinar se o talude em causa, pela natureza do solo que o compunha, exigia ou não qualquer tipo de entivação.

        Uma vez mais, na falta de tal prova e na dúvida sobre qual a natureza do terreno no local onde ocorreu o desprendimento de terras e, consequentemente sobre as concretas causas deste, não podem os arguidos ser desfavorecidos.

       Em suma, relativamente a todos os arguidos não resultou positivamente apurado que tivesse havido violação de qualquer regra legal, regulamentar ou técnica que se lhes impusesse no concreto circunstancialismo em que se apresentava o local de implantação do edifício, o que implica a sua absolvição da prática do crime de que vêm pronunciados”.

O recurso do Ministério Público da deliberação absolutória de Leiria  

      O recurso do Ministério Público foi limitado à parte da deliberação de Leiria, que absolveu os arguidos DD e GG.

      O arguido, ora recorrente, notificado a fls. 1940, abdicou de apresentar resposta; apenas o arguido GG respondeu (fls. 1945 a 1955, e em original, de fls. 1959 a 1969).

      O Ministério Público não lançou mão da forma de impugnação mais ampla e abrangente, consentida pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, mas antes dos vícios da decisão absolutória, referenciando os três vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, e requerendo renovação da prova, ou ainda o reenvio do processo para suprimento de insuficiência de matéria de facto, quanto a apuramento da natureza e composição do solo do talude.

       Vejamos, para melhor compreensão, o quadro de divergência com a absolvição traçado pelo recorrente Ministério Público.

Na conclusão 5.ª, invocou o M.º P.º ter o acórdão de Leiria incorrido em erro notório na apreciação da prova e em contradição insanável entre a fundamentação de facto e a decisão, pelo que, quer por incorrectamente julgada, quer por padecer de tais vícios, deveria ser alterada a matéria de facto nesta parte em relação aos arguidos DD e GG, dando-se como provado que os mesmos causaram tal perigo com as suas condutas omissivas e que agiram representando como possível a existência de perigo que o seu comportamento omissivo gerava com o incumprimento das regras de segurança, para a vida e integridade física dos trabalhadores e apesar disso, mantiveram a decisão de não adoptar tais medidas.

         Insistiu ainda o M.º P.º neste aspecto, na conclusão 7.ª, dizendo deverem estes factos ser dados como assentes em relação aos referidos arguidos, com modificação da decisão da 1.ª instância quanto à matéria de facto nesta parte, em conformidade com o referido na conclusão 5.ª, com revogação da decisão e condenação dos dois arguidos.

        Na conclusão 8.ª, avançava então o recorrente Ministério Público que, a não se entender assim e, “porque foi junto aos autos um estudo geotécnico do solo, deve proceder-se à renovação da prova, nos termos do disposto no artº 430° nº 1 do C.P.Penal, para apuramento da natureza e composição do solo do talude, porquanto, revelando-se este facto essencial para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa – dele depende a verificação ou não da infracção às regras de segurança – a sua omissão na matéria de facto provada configura o vício previsto na alínea a) do nº 2 do artº 410° do mesmo diploma legal, ou, ordenar-se o reenvio do processo, ao abrigo do disposto no artº 426° nº 1 do C.P.Penal, a fim de se colmatar a insuficiência da matéria de facto para a decisão nesta parte, porquanto, existindo aquele estudo nos autos, o tribunal podia investigar tal facto e não investigou”.(sublinhados nossos).

     O acórdão recorrido

          O acórdão recorrido deu como verificado o vício da contradição (ilógica, que não insanável) entre a fundamentação e a decisão absolutória de primeira instância, mas acabando por proceder à respectiva reparação (ponto 2, a fls. 2032), nos termos que seguem transcritos para melhor compreensão, na íntegra, incluídos os realces.

Afirma-se de fls. 2030 a 2032: 

«§ 1.º - Corrupção lógico-silogística do julgado, por contradição entre a fundamentação e entre esta e a solução deliberativo-absolutória

1 – Como se observa da enunciada/transcrita explicação, a operada desresponsabilização criminal dos dois id.ºs sujeitos-arguidos DD e GG – única ainda recursivamente questionada – fundou-se exclusivamente no suposto/assumido desconhecimento da natureza e estabilidade do material geológico constitutivo do referenciado talude.

Trata-se, porém – com o devido respeito –, dum irracional e incompreensível equívoco, posto que, havendo ocorrido um considerável/acentuado desprendimento de terras duma das frentes da escavação da caracterizada obra, [do lado da ..........., (cfr. ponto-de-facto n.º 6)], com volumétrica aptidão ao completo soterramento, esmagamento e morte de dois trabalhadores, e à produção de graves ferimentos noutro, como factualmente foi reconhecido, (cfr. pontos-de-facto ns. 26, 28 e 29) – e, sendo conhecido, ademais, que já no pretérito mês de Fevereiro (de 2007), no decurso dos trabalhos de execução do denominado edifício I, contíguo, titulado e executado pelas mesmas entidades, (respectivamente JJ Ld.ª e LL..... Ld.ª), houvera acontecido outro similar episódio, felizmente de menor gravidade, (ponto-de-facto n.º 20) –, sempre axiomaticamente se imporia concluir pela fragilidade e instabilidade do respectivo solo, asserção obviamente inconciliável com a despropositadamente conjecturada hipótese de se formar (o solo) de coesa matéria rochosa, cuja ponderabilidade, aliás, se encontrava juridicamente vedada ao colégio julgador, porquanto, reportando-se ao excepcional condicionalismo eventualmente justificativo da desvinculação do dever legal de entivação (contenção/escoramento) ou de qualquer outra idónea forma de suporte do impulso do terreno do talude (declive) resultante da operada escavação – estabelecido pelos arts. 66.º, n.º 1, 67.º, proémio, e 68.º, (e tecnicamente caracterizado pelos 69.º/72.º), do Decreto n.º 41.821/58, de 11/08/1958, (Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil), aplicável por força do art.º 29.º do D.L. n.º 273/2003, de 29.10, (Regulamento das Condições de Segurança e de Saúde no Trabalho em Estaleiros Temporários ou Móveis) –, apenas teria jurídica acuidade no caso de se haver concludentemente demonstrado (provado) tal caracterização rochosa, posto que o convocado § único do referido normativo 67.º do Decreto n.º 41.821/58 (de 11/08/1958) apenas libera o/s respectivo/s responsável/eis do cumprimento de tal encargo quando as escavações incidam sobre rochas ou argilas duras, o que manifestamente não aconteceu. Ou seja, irrevelada e indemonstrada a natureza rochosa da massa geológica do referido talude, sempre necessariamente se imporia ajuizar pela subsistência da obrigação da respectiva entivação/contenção, como inescapavelmente estabelecido pelo comando normativo resultante da conjugada interpretação dos preceitos ínsitos sob os enunciados arts. 66.º, n.º 1, e 67.º, proémio, 68.º e 69.º/72.º, do Decreto n.º 41.821/58, de 11/08/1958.

2 – Demanda-se, pois, deste tribunal de 2.ª instância, verificada tal ilógica contradição entre a pertinente fundamentação e a sindicada produção deliberativo-absolutória, ora proceder à correspondente reparação, no enunciado sentido do reconhecimento e asseveração da clara natureza terrosa do material geológico constitutivo do talude resultante da operada escavação na referenciada obra, e, por conseguinte, pela inevitável obrigação legal de respectiva entivação/contenção/escoramento, [cfr. art.º 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal]».

De seguida, o acórdão recorrido aborda a questão da imputação, a fls. 2032/5, nestes termos:

«§ 2.º - Determinação do/s vinculado/s por tal dever de sustentação do talude

1 – Vinculado a tal especial dever de sustentação do dito talude antes da realização de qualquer outra operação referente aos projectados trabalhos de construção, mormente na sua base, de molde a evitar qualquer risco de derrocada e soterramento de quaisquer pessoas que por aí se pudessem vir a movimentar, encontrava-se, indubitavelmente, e desde logo, a entidade executante da obra, LL..... Ld.ª, representada pelo seu sócio-gerente, ora arguido, DD, em razão dos respectivos compromissos assumidos pelo respeitante contrato de empreitada, dentre os quais o de proceder às pertinentes escavações e remoção de terras, (cfr. pontos-de-facto ns. 8 e 10), e da disciplina legal estabelecida sob a dimensão normativa resultante da conjugada interpretação dos arts. 1.º, 2.º, als. a) e c), 3.º, ns. 1, al. h), e 2, 5.º, ns. 3 e 4, 7.º, al. a), 10.º, 11.º, n.º 1, als. a), c) e f), e 20.º, als. a) e d), do citado D.L. n.º 273/2003, de 29.10, e dos enunciados dispositivos 66.º, n.º 1, e 67.º, proémio, do Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil, aprovado pelo Decreto n.º 41.821/58, de 11/08/1958.

Verificada, pois, a inequívoca relação de causa e efeito – de causalidade adequada – entre a respectiva omissão, o ocorrido desprendimento de terras e o consequente atingimento e morte de dois trabalhadores e grave ferimento doutro, impende, particular, objectiva e inexoravelmente, sobre o id.º representante societário, DD, a assacada e correspondente responsabilidade criminal pelo pessoal cometimento dum crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado (duas mortes e um ferido grave), p. e p. pelos arts. 277.º, n.º 1, al. a), e 285.º, do Código Penal, (cfr. ainda arts. 10.º, ns. 1 e 2, e 26.º, do mesmo compêndio legal)».

Importa, contudo, indagar da natureza e grau do nexo de imputação subjectiva à sua pessoa quer da referida conduta omissiva de entivação/sustentação do dito talude quer do decorrente aumento de perigo para quem por ele ou pela sua base se houvesse entretanto de movimentar (mormente em actividade laboral), cuja avaliação e definição – com referência a ambos os id.os arguidos, DD e GG – o recorrente (M.º P.º) sustenta dever-se respectivamente situar no plano doloso (pelo menos no grau de dolo eventual) e negligente – est’último prevenido sob o n.º 2 do citado art.º 277.º do C. Penal, como circunstância condicionante da redução da moldura penal base para 1 (um) mês a 5 (cinco) anos de prisão.

Reconhece-se, de facto, como bastantemente legitimada tal interpretação jurídico-qualificativa quanto à natureza dolosa (consciente e voluntariamente assumida) – pelo menos a título de dolo eventual (definido sob o n.º 3 do art.º 14.º do C. Penal) – da criticada conduta omissiva do id.º sujeito DD, que, porém, com o devido respeito, em razão da pungente conjugação da conhecida realidade, se não poderá, outrossim, deixar de extensivamente realizar e ajuizar tocantemente à própria criação de perigo pessoal para os potenciais utentes (mormente trabalhadores) de tal desprotegida vertente da caracterizada obra, fundamentalmente por empírico e óbvio efeito do incontornável conhecimento pelo próprio sujeito DD da referida instabilidade geológica, incontestavelmente adquirido, mais que não fosse, na sequência do anterior abatimento do terreno (em Fevereiro de 2007) no decurso das obras de construção do contíguo edifício I, (cfr. ponto-de-facto n.º 20), e da consequente instância pelos pertinentes serviços camarários para a adopção das necessárias medidas de garantia da segurança de pessoas e bens, (cfr. ponto-de-facto n.º 21), volubilidade essa naturalmente potenciada pelas vibrações produzidas pelo tráfego automóvel no troço de estrada que encimava o dito talude, (cfr. ponto-de-facto n.º 19); pelas consideráveis dimensões – de altura (cerca de 8 metros) e comprimento (cerca de 27 metros) – do próprio talude, (cfr. ponto-de-facto n.º 6); e pela respectiva permanência a céu-aberto, sem qualquer protecção ou escoramento durante cerca de sete semanas, até à data do fatal desmoronamento, de 14/06/2007, (cfr. ponto-de-facto n.º 17), o que, correlacionado, necessariamente concorreria para o significativo aumento da perigosidade das condições de trabalho no local, cuja existência e respectivo dever de correspondente supressão o próprio id.º empreiteiro DD, executante da obra, enquanto profissional de construção civil, não podia de modo algum ignorar.

Por conseguinte, concluindo, impõe-se apodicticamente ajuizar que o dito cidadão, profissional de construção civil, DD, necessariamente conhecedor das basilares regras técnico-legais de protecção/consolidação das paredes da referida escavação, consciente e voluntariamente se absteve de diligenciar pela entivação/sustentação do talude resultante de tal operação, não obstante, em razão das respectivas características e da sua prolongada sujeição a potenciais factores erosivos, se encontrar bem ciente da consequente probabilidade de criação de significativa perigosidade para a integridade física e/ou a própria vida de quem por essa desprotegida vertente da enunciada obra se houvesse de movimentar (mormente trabalhadores), com tudo, no entanto, se conformando.

Revelando-se, assim, por demais evidente a incompatibilidade lógica entre este inescapável ajuizamento e o que o colégio julgador negativamente produzira e subordinara às alíneas z) aa) e bb) da respectiva vertente (descritiva da factualidade tida por não provada) do sindicado acórdão, no que ao id.º sujeito-arguido DD respeita, haver-se-lo-á (referido juízo negativo do Tribunal Colectivo), naturalmente, que idêntica e juridicamente compaginar, pelo sentido e modo ora enunciado, e pela consequente extirpação do respectivo vício, por si ainda obviamente apto à corrupção lógico-jurídica do operado juízo absolutório da sua pessoa».

Analisando.

               Em causa, como se referiu, a necessidade de entivação ou não de talude, sabido que será desnecessária no caso de o solo ser rochoso ou de argilas duras.

O núcleo da questão em debate gira em torno do que consta dos pontos de factos dados por provados sob os n.ºs 6, 22 e 26 e não provados das alíneas b), z), aa) e bb).

Em causa a existência no local da obra de um talude com cerca de 8 metros de altura e cerca de 27 metros de comprimento, o qual, antes do acidente, não foi entivado, protegido ou escorado, sendo que no dia 14-06-2007, cerca das 12 horas e 55 minutos, ocorreu um desprendimento de terras do talude, as quais soterraram por completo dois trabalhadores e projectaram um outro de cima da cofragem para o solo.

Manteve-se como facto não provado o constante da alínea b) “O talude referido em 6 era constituído essencialmente por barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade”.

Dos factos dados por não provados nas alíneas z), aa) e bb) resultava afastada a necessária colocação em perigo da vida e integridade física dos trabalhadores que laboravam na obra e a imputação de que os arguidos tivessem actuado de forma deliberada. 

         O acórdão recorrido após proceder à “corrupção lógico-silogística do julgado” avança para os terrenos da superestrutura, com a declaração do dever de sustentação do talude e sua imputação aos recorridos, esquecendo a efectiva modificação de facto que se imporia na sua lógica reparadora, olvidando a implementação dos caboucos, da imprescindível infraestrutura, ao nível do alicerce, da conjunção dos necessários factos base do edifício jurídico, com sério risco de desabamento da construção teórica.

Visto o acórdão recorrido, hialino é que:  

   1 – Verifica-se clara e cabal omissão de pronúncia sobre o pedido de renovação da prova e sobre o vício do artigo 410.º, n.º 2, a), do CPP, quanto ao apuramento da natureza e composição do solo do talude, imprescindível para verificação ou não do dever de entivação, não se referindo sequer uma única vez ao estudo geotécnico. 

        Efectivamente, o acórdão ora recorrido não se pronunciou sobre o que constava da conclusão 8.ª do recurso do M.º P.º e quanto aos vícios invocados apenas versou a contradição insanável, não procedendo a uma modificação da matéria de facto, entendida na circunstância como possível e viável, mas a uma mera construção jurídica, sem apoio, arrimo, substracto factual, ou âncora na matéria de facto dada por provada, que pudesse sustentar, apoiar, guarnecer, a nova tese, antes caminhou afoitamente para a construção da configuração do vício da insanável contradição, esquecendo por completo, que o vício decisório estará no texto, tem de emergir da matéria de facto constante do texto decisório, do complexo do provado e não provado conjugado com a fundamentação de direito e a própria decisão, e não numa qualquer construção de enquadramento jurídico criminal. 

     2 - A afirmação da “clara natureza terrosa do material geológico constitutivo do talude”, constante de fls. 2032, está em frontal, inultrapassável, irredutível, irreparável contradição com o que consta da alínea b) dos factos não provados, onde uma tal constituição do solo não foi dada por provada (o facto dado por não provado não comporta, não significa a afirmação do contrário), subsistindo a dúvida, que não pode suportar condenação e deve ser resolvida, verificando-se neste aspecto insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois só certificada tal composição se poderá dar como verificada infracção ao dever de entivação, como já acentuara o M.º P.º no recurso interposto na conclusão 8.ª e o Exmo. PGA no parecer emitido.  

       O Exmo. PGA defende ter o acórdão recorrido incorrido em excesso de pronúncia, mas salvo o devido respeito, parece-nos que no caso o acórdão recorrido não se excedeu.

       O excesso pressupunha uma modificação efectiva na enumeração da matéria de facto provada e não provada, que não ocorreu, que não foi assumida preto no branco e consistiria o excesso no suposto quadro em a Relação ter decidido desde logo a contradição em vez de proceder ao reenvio para julgamento.

     Diversamente, o acórdão recorrido ficou muito aquém das expectativas de apreciação/cognição da temática do recurso, pois não cumpriu a “vinculação temática” proposta no recurso do Ministério Público, quedando-se pela reparação de uma ilógica contradição, que não era insanável e, pois, ultrapassável, como o foi, com a assunção do juízo substitutivo.

     O acórdão recorrido avançou, mantendo a descrição do quadro factual traçado na primeira instância, tendo em conta outros, bem diversos pressupostos, para a verificação do dever de entivação que impendia sobre os recorridos e do dolo eventual, num quadro em que falecem, rotundamente, de forma cabal, clara, factos que o substanciem, pois na acusação e pronúncia era imputada a conduta e a criação de perigo, a título de dolo, que não ficou provado e daí que na lógica da argumentação reparadora resulte inexplicável a manutenção dos factos respeitantes ao elemento subjectivo, vertidos nas alíneas z), aa) e bb), no lote dos factos não provados.

      E tudo isto, mantendo-se como facto não provado o constante da alínea b), o que vale por dizer que, conforme refere o Exmo. PGA no seu parecer, que não estando provado que o talude referido em 6 era constituído essencialmente por barro e solos de aterro mal compactados e sem estabilidade, ficou sem se apurar então qual era a natureza geológica do solo, facto essencial para se determinar se foi ou não violado o art. 67.º do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958, atento o disposto no seu parágrafo único.

       O acórdão recorrido parte do pressuposto de que a desvinculação do dever legal de entivação do terreno do talude apenas teria acuidade jurídica no caso de se haver concludentemente demonstrado a caracterização do terreno como rochosa - fls. 2032 -, o que significa que a dúvida da primeira instância foi convertida em inexorável, incontornável, definitiva, axiomática, verdade, mesmo que sem base de mínima sustentação ao nível dos factos, construindo-se um arquétipo, uma solução final, resultante da aposição de um molde a um barro que não sustentava, não podia suportar, uma tal construção teórica. 

        Pretender fazer um juízo substitutivo, no caso apenas ao nível da integração jurídica e depois deixar, porque manifestamente olvidado, em sede de descrição do acervo fáctico adquirido, tudo como dantes, só pode conduzir à confusão nos termos e à inevitável contradição entre os factos dados por provados e os não provados, a fundamentação de direito e a decisão.

      Os factos dados por provados e não provados na primeira instância, enunciados e dispostos, simetricamente, em sinal contrário, em antagonismo próprio da dialéctica processual, no acórdão do Colectivo de Leiria, faziam sentido em resultado do que foi apurado e não apurado em julgamento; eram coerentes no seu antagonismo, estabeleciam e reflectiam a dialéctica presente, emergente do julgamento.

      Pretender mudar em 360 graus o juízo sobre a culpa do arguido empreiteiro e deixar intocado o que constava da matéria de facto, que não conduzia a tal construção, não tendo o mínimo e elementar cuidado de conferir ao novo texto/contexto, as óbvias e expectáveis coerência e harmonização, não procedendo o inovador acórdão revogatório às inevitáveis alterações na constelação fáctica dada por provada e não provada em primeira instância, não faz, de todo, qualquer sentido.

     E mais. Não pode, obviamente, conduzir a bom porto.

     Perguntar-se-á onde está no acórdão recorrido a descrição da imprescindível factualidade que ancore o elemento subjectivo do crime, sabido que enquadrado no dolo eventual.

      Debalde se procurará alcançar resposta, pois a nível de integração do elemento subjectivo, do dolo, apenas presentes as alíneas z), aa) e bb) no sector dos factos não provados, onde de resto foi vazado o que constava dos pontos 81, 82 e 83 da acusação e pronúncia (fls. 969-970), integrantes de dolo reportado a todos os arguidos.

      Nem se configura, mesmo já a nível de enquadramento jurídico, a existência de algo que substancie o preenchimento da figura do dolo eventual.

      Apenas a afirmação da sua verificação, da natureza dolosa da conduta omissiva e da própria criação de perigo “pelo menos a título de dolo eventual”, como consta a fls. 2036 e a mera transcrição em nota de rodapé da definição que se contém no n.º 3 do artigo 14.º do Código Penal.

       Debalde se encontrará igualmente justificação em sede factual para a definição da natureza e estabilidade do solo.

      Onde está “preto no branco” que o terreno tinha natureza terrosa, de modo a ser de impor a observância de cuidados de protecção do talude? E sempre se questionará como defender esta posição, mantendo como não provado o que consta da alínea b) dos factos não provados.

       Por outro lado, desconhece-se o que diz o estudo geotécnico do solo junto aos autos, a que alude o Ministério Público no recurso - conclusão 8.ª - e o Exmo. PGA no Tribunal da Relação de Coimbra, a fls. 1987, no parecer emitido, onde chega a defender nulidade por falta de fundamentação com a devida apreciação da referida prova documental, questão a que o acórdão ora recorrido não pronunciou uma palavra, colocando-se a questão de saber se tal estudo é no mínimo esclarecedor.

       Acresce que a incompatibilidade tem de ser entre factos, fundamentação e decisão e não entre entendimentos ou ajuizamentos - cfr. fls. 2038.

      Não basta afirmar uma contradição, há que redefinir o quadro fáctico em consonância com o novo figurino, mas mesmo que tivesse sido feito estaria em contradição com o constante da referida alínea b). 

       Ao decretar que havia uma contradição e que a mesma era sanável, na recomposição do conjunto dos factos provados e não provados, na composição da nova imagem global do que ficava provado e não provado, o acórdão recorrido deveria ter observado o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, pelo que mesmo que de vício não padecesse, sempre incorreria em nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP (É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º), preceito correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do artigo 425.º do CPP, por violação daquele comando, por não se terem enumerado os factos provados e não provados, alinhando a nova composição factual emergente do juízo substitutivo, suposta a bondade deste.

 

        Concluindo.

        Verifica-se contradição insanável entre os factos não provados vertidos nas alíneas z), aa) e bb) e a afirmação da verificação do dolo eventual na conduta omissiva e na igualmente dolosa, mas não explicada, criação do perigo para os trabalhadores afirmada a fls. 2036

        Verifica-se contradição insanável entre a manutenção da alínea b) dos factos não provados com a axiomática afirmação conclusiva no sentido da fragilidade e instabilidade do respectivo solo, conforme fls. 2031 ao alto, e asseveração da clara natureza terrosa do material geológico constitutivo do talude, como se afirma a fls. 2032. 

        Como refere o Exmo. PGA a fls. 2110, a propósito da manutenção da alínea b) no segmento dos factos não provados: “Ora, mantendo-se aquele facto como “não provado”, só seria lícito concluir que o arguido violou regras legais, regulamentares e técnicas em vigor – maxime a do art. 67.º do DL n.º 41821, de 11.08.58 – se se tivesse dado como provada, a final, a efectiva natureza do solo, e mais concretamente que ele não era rochoso ou composto de argilas duras. E, como nesta parte muito bem sustenta o recorrente, perante aquele facto não provado, “afirmar que não teria resultado da discussão da causa que o solo «era rochoso ou composto de argilas duras», é inverter a situação, em desconformidade com o antes propugnado, constante da referida peça”, e assim o próprio ónus da prova daquele facto, que é encargo da acusação, que não da defesa.

Convenhamos pois que, continuando a não estar provado aquele facto, que foi objecto de discussão e de prova em julgamento, nomeadamente testemunhal e até técnico-pericial, ficou por apurar então qual era, em definitivo, a natureza geológica do solo, facto que é essencial para uma adequada decisão de direito”.

    

       Muito embora o acórdão recorrido refira, a fls. 2032, o “art. 410.º 2, al. b) do Código de Processo Penal”, e a fls. 2038, aluda a “extirpação do respectivo vício”, a verdade é que não é esse vício que está na base do decidido na Relação.  

       Como acima se assinalou, o vício em causa tem de resultar da análise do texto e não há lugar a recurso a regras da experiência comum.

       Com efeito, a contradição relevante há-de buscar-se no texto da decisão recorrida e não em resultado do confronto entre o que entende o tribunal superior e o que consta do texto da decisão recorrida, como parece entender o acórdão ora recorrido, quando a fls. 2032 afirma que “(…) verificada tal ilógica contradição entre a pertinente fundamentação e a sindicada produção deliberativo–absolutória”, pois que no acórdão de primeira instância não há contradição entre a fundamentação e esta e a decisão (o antagonismo dos factos provados e não provados, permitindo a invocação do princípio in dubio pro reo conduz à absolvição).

        De igual modo, ao afirmar, a fls. 2038 «Revelando-se, assim, por demais evidente a incompatibilidade lógica entre este inescapável ajuizamento e o que o colégio julgador negativamente produzira e subordinara às alíneas z) aa) e bb) da respectiva vertente (descritiva da factualidade tida por não provada) do sindicado acórdão, no que ao id.º sujeito-arguido DD respeita, haver-se-lo-á (referido juízo negativo do Tribunal Colectivo), naturalmente, que idêntica e juridicamente compaginar, pelo sentido e modo ora enunciado, e pela consequente extirpação do respectivo vício, por si ainda obviamente apto à corrupção lógico-jurídica do operado juízo absolutório da sua pessoa».

        Ora, a contradição relevante para caracterização do vício é a emergente da fundamentação de facto, de direito e decisão, colocando-se o antagonismo na fundamentação de facto e não em ajuizamentos.

      Por último convirá focar dois aspectos em que se verifica falta de sintonia e alguma discrepância, incongruência e mesmo contradição na matéria de facto fixada na primeira instância, relativamente à qual nada foi dito no acórdão recorrido e que embora num caso não tenha que ver directamente com o recorrente, pode ter algum reflexo na análise global dos factos.

      Como resulta do ponto de facto provado n.º 7, o dono da obra era a empresa JJ-Construção Civil, Lda., sendo gerentes os arguidos BB e AA, sendo este o único gerente efectivo e a tomar decisões, como resulta do ponto de facto provado n.º 31.

No ponto de facto provado n.º 30 consta que estes arguidos não diligenciaram pela elaboração de um plano de segurança e saúde e no ponto de facto provado n.º 35 foi dado por provado que tais arguidos “não detêm conhecimentos técnicos para averiguar o conteúdo de qualquer plano de segurança e saúde”.

Mas, pelo ponto n.º 43 se alcança que não só o plano de segurança e saúde foi elaborado, sendo sua autora a arguida EE, que exercia funções de técnica de segurança por conta da LL..... Lda. (cfr. ponto de facto n.º 55, a fls. 1900), como esse plano foi aprovado pela dona da obra, justamente pelo referido AA, que no ponto de facto n.º 35 se vira completamente desqualificado para o acto…

A declaração de existência do plano está em sintonia com o que foi vertido no ponto r) dos factos dados por não provados, quando dá por não provado que a empresa LL..... Lda. não desenvolveu nem especificou adequadamente o plano de segurança e saúde e ainda na alínea u) dos factos não provados.

Por outro lado, verifica-se discrepância quanto ao início da obra, o que não será de todo inócuo, até por ter servido na argumentação do acórdão recorrido.

No ponto de facto n.º 17 ficou consignado que o início dos trabalhos teve lugar cerca de sete semanas antes do dia do acidente, 14-06-2007, o que atiraria o início para finais, última semana, de Abril.

O ponto n.º 42 situa o início dos trabalhos de limpeza em 20-05-2007, ou seja, menos de quatro semanas antes do acidente.

Este ponto pode ter alguma importância, pois que o acórdão recorrido argumentou sempre com as sete semanas, como se vê de fls. 2037 (aqui ainda com a referência a “prolongada sujeição a potenciais factores erosivos”) e 2043. 

       Em conclusão: o acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável na fundamentação, que determinará o reenvio para novo julgamento.

      Passando ao vício de

       Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

No caso verifica-se este vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, pois que, para além do referido quanto a falta de definição concreta da natureza do terreno, falece por completo base factual para determinação da medida da pena aplicada ao recorrente, como assinalou o Exmo. PGA no parecer citado.  

A propósito da pena aplicada o recorrente apenas se refere à sua medida, entendendo-a como excessiva nas conclusões 21.ª a 25.ª e 27.ª.

Tem-se colocado a questão de saber a quem cabe a competência para fixação da espécie e medida da pena nas situações em que em recurso de decisão absolutória de primeira instância o juízo substitutivo na Relação conduz a decisão condenatória, como aconteceu no caso presente.

      No acórdão de 09-11-2011, por nós relatado no processo n.º 43/09.9PAAMD.L1.S1, defendeu-se a competência da Relação desde que presentes os elementos necessários para a determinação da pena a aplicar, mas havendo que distinguir consoante a pena aplicada admita ou não recurso.

      Sendo certa a competência para a fixação de pena, o presente caso será o exemplo acabado de situação em que não deveria ter lugar essa fixação por total ausência, no concreto, de pressupostos fácticos para aplicação de pena, como de resto bem assinala o Exmo. PGA no parecer emitido, em que sustenta justamente a ocorrência do vício em causa.

      Uma coisa será a competência para efectuar a escolha da espécie e determinar a medida concreta da pena a fixar, em primeira via, outra, estarem ou não reunidas as condições indispensáveis para o seu exercício.

      O acórdão recorrido, no segmento do “Legal sancionamento”, após enunciar os fins das penas, diz, a fls. 2041/2:

      «Com tais premissas, haverão que ser individualizadas em função da culpa pessoal e dos demais critérios previstos no art.º 71.º, n.º 2, do C. Penal, com particular atenção ao grau da ilicitude procedimental e gravidade das respectivas consequências, sem descurar a própria personalidade/carácter, aferida/o, desde logo, pelos comportamentos típicos judicialmente reconhecidos, e neles espelhada/o.

       Os identificados sujeitos-arguidos, pessoas de aparente normal capacidade de entendimento dos valores fundamentais e das basilares/padronizadas regras de conduta convivenciais vigentes no país, que a liberdade pessoal de todos e a sua própria limitam, sem que alguma ponderosa razão o justificasse determinaram-se livremente à abstenção dos pessoais e caracterizados deveres profissionais de salvaguarda da segurança da integridade física e da própria vida dos executores das críticas fases iniciais da questionada obra de construção de edifício urbano, cuja sorte assim levianamente desprezaram, com as fatídicas e lamentáveis consequências para três trabalhadores – mortais para dois, (PP e QQ) –, dessarte revelando marcada má-formação e incivilidade.

        São, pois, objecto de manifesto juízo de culpa e, por conseguinte, de viva censura ético-jurídica.

       Consequentemente, haver-se-lhes-á que definir e impor expressivas medidas punitivas, dotadas de necessária função e eficácia reprovativa dos pessoais comportamentos delitivos, bem como de inescusável aptidão inibitória quer doutros seus eventuais impulsos criminógenos, máxime de idêntica natureza, quer, essencialmente, dos de terceiros em análogas condições que das respectivas condenações venham a tomar conhecimento, dessarte idealmente se pugnando pela contenção de similares volições comportamentais cuja iníqua tendência se vem preocupantemente sedimentando no território nacional, como é de presumível conhecimento comum, com desassombrado sentimento de impunidade, desideratos apenas virtualmente alcançáveis com reacções sancionatórias de essência compressiva da pessoal liberdade, únicas no sistema penal vigente com potencial idoneidade a assegurar as prementes necessidades de protecção dos valores e interesses legalmente tutelados e das expectativas comunitárias

Na já citada obra Recursos em Processo Penal, 2008, p. 72, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é definido como “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher. (…) só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria da facto com interesse para a decisão”.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, quando existe uma lacuna, deficiência ou omissão onde não devia, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

       A insuficiência prevista na alínea a) determina a formação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa. Insuficiência em termos quantitativos, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.
    A propósito do vício em referência é dado adquirido que a matéria de facto só é insuficiente para a decisão proferida quando se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, quando os factos assentes não são substracto necessário e suficiente para justificar a decisão de direito assumida. 

       Para o acórdão de 3-10-1996, processo n.º 440/96-3.ª secção, in Sumários do STJ, n.º 4, p. 71, «a insuficiência da matéria de facto consiste em não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito» - no mesmo sentido, acórdãos de 22-05-1997, processo n.º 1389/96-3.ª, de 4-11-1998, processo n.º 588/98-3.ª, de 18-11-1998, processo n.º 855/98-3.ª e de 26-11-1998, processo n.º 504/98-3.ª, in Sumários do STJ, n.º 11, pp. 87/8; e n.º 25, pp. 78, 89 e 92, respectivamente.  

Tal vício só pode ter-se como evidente quando a factualidade provada não chega para justificar a decisão de direito, ou seja, para a subsunção na norma incriminadora, considerando todos os seus elementos típicos – cfr. acórdão do STJ de 13-01-1998, processo n.º 877/97 - 3.ª, BMJ n.º 473, pág. 307.

         Ou, como se diz no acórdão do STJ, de 25-03-1998, processo n.º 53/98 - 3.ª, BMJ n.º 475, p. 502, está-se na presença de tal vício quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado.

       No acórdão de 28-10-1998, processo n.º 887/98, BMJ n.º 480, p. 83, na linha dos acórdãos de 21-12-1996, processo n.º 694/96, de 11-12-1996, processo n.º 1188/96, in SASTJ, n.º 6, p. 58 (só se verifica insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando esta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, resulta inepta para fundar o julgamento); de 21-01-1998, processo n.º 1104/97 e de 23-09-1998, processo n.º 665/98, afirma-se: «A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido à apreciação do tribunal»      

       E acrescenta «os factos que ficaram por apurar têm de ser factos que, num juízo de prognose, se admita virem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica da matéria de facto ou da medida concreta da pena ou de ambas».

Para o acórdão de 29-10-1998, processo n.º 525/98, in BMJ n.º 480, p. 292, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

        Ou ainda, na formulação do acórdão de 20-10-1999, processo n.º 1452/99-3.ª, o vício só pode considerar-se verificado “quando os factos apurados são insuficientes para se decidir sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crimes verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito e é de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão”.

        E segundo o acórdão de 17-02-2000, processo n.º 292/97-5.ª, BMJ n.º 494, p. 227 «este vício pressupõe que haja factos constantes dos autos que o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou, mas que ainda é possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir. Ponto é que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum».

Noutra formulação, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura; a “insuficiência” relevante não pode ser considerada apenas em relação a uma concreta decisão que esteja em causa, devendo atender-se, para aferir a carência factual para uma decisão segura, ao quadro das várias soluções plausíveis da questão de direito -  acórdãos do STJ, de 24-04-2006, processo n.º 363/06; de 24-05-2006, processo n.º 816/06; de 20-12-2006, processo n.º 3379/06 (o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura), sendo os dois primeiros citados no acórdão de 23-04-2008, processo n.º 1127/08, todos da 3.ª secção – cfr. ainda, i.a., os acórdãos do STJ, de 22-10-1997, processo n.º 612/97; de 12-03-1998, processo n.º 1404/97, BMJ n.º 475, pág. 492 (em caso de reincidência e falta de indagação sobre a personalidade do arguido e seu reflexo na medida judicial da pena); de 09-12-1998, processo n.º 1165/98; de 13-01-1999, processo n.º 1169/98-3.ª, in BMJ n.º 483, pág. 49 e em via reduzida na CJSTJ 1999, tomo 1, p. 175 (convocando os acórdãos de 21-12-1996, de 11-12-1996, de 19-12-1996, de 21-01-1998, de 23-09-1998, processos n.ºs 694/96, 1188/96, 348/96, 1104/97 e 665/98, todos da 3.ª secção); de 02-06-1999, processo n.º 288/99; de 15-05-2002, processo n.º 857/02 - 3.ª (insuficiência para formulação de juízo sobre a correcção da pena aplicada); de 01-07-2004, processo n.º 2691/04 - 5.ª (insuficiência no segmento em que se decidira do condicionamento da suspensão da pena).  

Na formulação constante do acórdão do STJ de 15-02-2007 (processo n.º 3174/06 - 5.ª), o vício a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
       Do acórdão do STJ de 05-09-2007, processo n.º 2078/07 - 3.ª, extrai-se o seguinte: «O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada resulta da circunstância de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, ou seja, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite esse seu dever, conduzindo a que, no limite, se não possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Trata-se, pois, de vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – art. 340.º, n.º 1, do CPP.
E como se referia no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-05-1994, processo n.º 45829, in CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 224 e BMJ n.º 437, pág. 228, não integra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem qualquer outro dos outros previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o facto de o recorrente pretender «contrapor às conclusões fácticas do tribunal a sua própria versão dos acontecimentos, o que desejaria ter
visto provado e não o foi».

      No acórdão de 09-04-2008, processo n.º 999/08-3.ª foi versada a insuficiência de determinação da idade da vítima de crime de violação para efeitos determinação de vulnerabilidade daquela e determinação da pena.

     No acórdão de 13-10-2010, processo n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo.

      Segundo o acórdão de 27-02-2013, processo n.º 1336/06.2TAFUN.L1.S1-3.ª, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um conceito jurídico-processual, que ao subsumir-se ao disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada, no sentido de que a decisão em matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito.
  
Revertendo ao caso concreto.

Do texto da decisão recorrida, por si só considerado, perfila-se a existência do vício aludido na alínea a) do n.º 2 do artº 410º do CPP. sem suprimento do qual é impossível decidir a causa, na sua especificidade concreta.

       In casu, a matéria de facto provada não é bastante para a decisão de direito, no que respeita a determinação da pena a aplicar, pois verifica-se lacuna de indicação de dados sobre a personalidade e inserção familiar, social ou profissional do arguido, não faz parte do que foi dado por provado factualidade susceptível de conduzir a uma  correcta determinação da sanção aplicável do que decorre a impossibilidade de decidir da causa em aspecto que a lei considera fundamental.

       De acordo com o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, alíneas d) e e) f) - as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, devendo conforme o n.º 3 serem expressamente referidos na sentença os fundamentos da medida da pena.    
       Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (artigos 369.º e ss. do CPP), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais, sendo certo que a lei prevê mesmo a possibilidade de produção de prova suplementar, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência – artigo 371.º do CPP.

       Quanto a condições pessoais e sócio económicas apenas constam as dos arguidos AA, GG, HH, FF, II, BB, EE e CC, constantes do que se contém nos relatórios sociais a eles respeitantes conforme pontos de factos provados n.º s 49 a 56.

        Curiosamente, os elementos necessários constam quanto a todos os arguidos, exactamente menos do recorrente, residente no estrangeiro, em Luanda, e que requereu em 02-09-2011, a fls. 1783, que a audiência se realizasse sem a sua presença, nos termos dos n.ºs 2 e 4 do artigo 334.º do CPP.

       O único facto provado relativo ao arguido DD é a ausência de antecedentes criminais, facto comum a todos os arguidos conforme ponto de facto provado n.º 57.

       O condenado/recorrente é o único arguido sobre o qual nada se sabe, o que não impediu a imposição da pena de 7 anos de prisão 

       Há assim que reenviar o processo para novo julgamento também por este motivo – insuficiência para determinação da sanção –, de forma a suprir-se o vício apontado.

       A existência dos vícios supra referidos, torna impossível decidir a causa.

       Estabelece o n.º 2 do artigo 426.º do CPP que: “O reenvio decretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de recurso interposto, em 2.ª instância, de acórdão da relação é feito para este tribunal, que admite a renovação da prova ou reenvia o processo para novo julgamento em 1.ª instância”.

       O reenvio é limitado à responsabilidade do recorrente e questões assinaladas, mas sem prejuízo do disposto no artigo 403.º, n.º 3, do CPP, se for caso disso.

         Perante a solução encontrada, tendo-se determinado reenvio, nos termos dos artigos 137.º e 660.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 4.º do CPP, fica prejudicada a apreciação do mérito do recurso interposto, no caso das questões colocadas pelo recorrente como a da culpabilidade, configuração de dolo eventual ou mera negligência e medida da pena. (Assim: acórdãos de 18-09-1997, processo n.º 534/97, CJSTJ 1997, tomo 3, p. 176, de 12-03-1998, processo n.º 1404/97, BMJ n.º 475, p. 492 e de 09-04-2008, processo n.º 999/08-3.ª).

Decisão

Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção, no recurso interposto pelo arguido DD em julgar verificados os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, determinando o reenvio do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 426.º, n.º 2, do CPP, de modo a serem supridos os apontados vícios.

Sem custas.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.

 Lisboa, 14 de Março de 2013

Raul Borges (Relator)

Henriques Gaspar