Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
39/21.2YGLSB-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: ESCUSA
IMPARCIALIDADE
JUIZ NATURAL
INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Deve ser concedida escusa de intervir na instrução que lhe foi distribuída, a juíza que mantém com a denunciada uma relação de amizade de mais de 30 anos, que não se limita à estima e consideração naturais entre quem partilha o espaço de uma sala de audiência durante anos, antes se traduz numa relação sólida e próxima, que as leva a relacionarem-se com regularidade, almoçando e jantando com amigas comuns, por vezes em casa da denunciada, partilhando momentos de especial significado pessoal e familiar para ambas, o que é do conhecimento do meio forense da região onde se inserem e onde são pessoas conhecidas
Decisão Texto Integral:

            Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I. AA, Juíza Conselheira em exercício de funções na ... secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, veio, nos termos dos arts. 43.º e 45.º. n.º 1, al. b), do CPP, apresentar pedido de escusa para intervir nos autos de instrução n.º 39/21.2YGL, invocando o seguinte:

« - à requerente foi-lhe distribuído em 25.11.2021 os autos de instrução n.º 39/21.2YGLSB, no qual foi proferido em 20.09.2021 despacho de arquivamento do inquérito instaurado contra a Srª. Procuradora-Geral Regional do ..., Srª. Drª. BB, notificado ao denunciante CC em 22.09.2021 e, apesar do dito inquérito ter sido objeto de visto em correição em 5.11 passado (por nessa data já se ter esgotado o prazo para reagir contra aquele despacho, fosse pela via da intervenção hierárquica ou fosse pela via da abertura da instrução), aquele mesmo denunciante que, entretanto, em 22.10.2021 foi admitido a constituir-se assistente, veio requerer a abertura de instrução, através de requerimento (entrado em 22.11.2021) expedido em 19.11.2021;

- sucede que a Srª. Procuradora-Geral Regional do ..., Srª. Drª. BB (que entretanto já se jubilou), é uma pessoa de reconhecido mérito, bem conhecida a nível nacional e, particularmente, no norte do país, onde exerceu durante vários anos funções como Magistrada do Ministério Público, que faz parte do círculo de amigos mais próximos da requerente;

- com efeito, apesar de terem começado por se conhecer a nível profissional por volta dos anos 90 do século passado, as suas relações profissionais foram-se sedimentando quando trabalharam juntas nas Varas Criminais do ... (onde a requerente exercia funções como Magistrada Judicial), designadamente em processos altamente complexos, onde aquela Magistrada defendeu em julgamento as acusações públicas que deduziu nesses processos, cuja investigação nos respetivos inquéritos presidiu;

- com o passar do tempo, deixando de ter contacto profissional, estreitaram as relações pessoais, criando-se uma amizade muito sólida e próxima, inclusive chegando ambas a conhecer os familiares mais próximos de uma e de outra;

- para além disso, é frequente encontrarem-se com regularidade, juntamente com outras duas amigas que fazem parte do mesmo grupo (quando possível, dependendo do trabalho de cada uma, mensalmente) para almoçar ou, mesmo jantar (incluindo em casa da Srª. Drª. BB);

- assim como, trocam prendas, ainda que simbólicas, para comemorarem e lembrarem os respetivos aniversários;

- além de, igualmente partilharem, momentos de especial significado pessoal e familiar de ambas (sejam momentos de alegria e festejo, sejam momentos de tristeza e de dor, por falecimento de familiares próximos ou mesmo momentos de preocupação, como os relativos à saúde) e, quando é o caso, na companhia de outras pessoas Amigas, do círculo de amizades próximas daquela;

- e mesmo quando a requerente exercia funções no Tribunal da Relação do ... (o que sucedeu durante cerca de 8 anos), ou ali se deslocava quando estava em comissão de serviço (o que sucedeu durante cerca de 7 anos), era frequente, como era público e do conhecimento de todos os que frequentavam aquelas instalações, deslocar-se à PGD do ..., que se situa no ... piso do ..., do lado do TR.., cumprimentar e conversar com a então Srª. Procuradora-Geral Regional do ..., Srª. Drª. BB, altura em que, dependendo da hora e das agendas de ambas, também podia eventualmente com ela almoçar, como o fazem naturalmente duas boas amigas que se conhecem há vários anos;

- contacto que sempre mantivemos (hoje já passados cerca de 30 anos), fosse presencialmente, fosse via telefónica (o que também acontece com regularidade), ou mesmo por mensagens, sempre marcando a nossa amizade;

- inclusivamente a requerente, também pelo elevado valor profissional da homenageada, no passado dia 13 de Novembro, participou no almoço de homenagem à Srª. Procuradora-Geral Regional do ..., Srª. Drª. BB.

Tudo o que acima se expôs é público e notório no meio judiciário, designadamente, na área do ..., onde a requerente também é conhecida.

Apesar de tal materialidade não afetar a capacidade da requerente apreciar e decidir, de forma imparcial e isenta, na instrução que lhe foi distribuída, mesmo sendo visada a Srª. Drª. BB, a verdade é que no plano das representações da comunidade, o que se expôs pode constituir um motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade de qualquer decisão que ali viesse a proferir e, nessa medida, iria criar desconfiança também no sistema de Justiça, considerado como um todo, o que também põe em causa o próprio Estado de direito.

E, é compreensível que a intervenção de quem decide em qualquer processo e, portanto também nesta instrução, perante as circunstâncias acima indicadas, seja alvo de um escrutínio muito particular pela comunidade, mormente quanto às condições de objetividade e imparcialidade, precisamente para que haja confiança na administração da Justiça.

Assim, ao abrigo do disposto no art. 43.º, nº. 1, do CPP, venho por este meio requerer a V. Exª. que se digne escusar-me de intervir na presente instrução».


       II. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


   Resulta do estatuído no nº 1 do artº 43º do CPP que “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

   O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, “mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2” – nº 3 do artº 43º do CPP.

  Tratando-se de juiz do Supremo Tribunal de Justiça, o pedido de escusa deve ser apresentado na secção criminal do mesmo – artº 45º, nº 1, al. b) do CPP.

  O princípio do juiz natural, com consagração constitucional no artº 32º, nº 9 da CRP, encontra-se estabelecido em benefício e defesa do arguido e constitui uma garantia de que o processo - o seu processo - será julgado pelo juiz do tribunal determinado - por lei anterior - competente para o efeito.

  Tal princípio só há-de ser arredado em situações extremas e, nomeadamente, naquelas em que o juiz natural não oferece as garantias de imparcialidade e de isenção, necessárias à função de julgar (naquele caso concreto, como é óbvio).

   Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 132 e segs, afirma – em anotação ao artº 43º do CPP - que a imparcialidade do juiz pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. “O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. (…) A existência de relações pessoais do juiz com os sujeitos processuais não constitui necessariamente motivo de suspeição. (…) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade. (…) Tratando-se de um tribunal colectivo ou do júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal (acórdão do TEDH Sander v. Reino Unido, de 9.5.2000)”.

         Assim colocadas as coisas:

  - A denunciada, Drª. BB, faz parte do círculo de amigos mais próximos da requerente;

- Requerente e denunciada relacionam-se há cerca de ... anos: tal relacionamento, que começou por ser profissional, evoluiu para uma amizade, qualificada pela requerente como “muito sólida e próxima”;

- Encontram-se com regularidade, juntamente com outras duas amigas que fazem parte do mesmo grupo (quando possível, dependendo do trabalho de cada uma, mensalmente) para almoçar ou, mesmo jantar (incluindo em casa da denunciada);

- Trocam prendas, ainda que simbólicas, para comemorarem e lembrarem os respetivos aniversários e partilham momentos de especial significado pessoal e familiar de ambas;

- Quando a requerente exercia funções no Tribunal da Relação do ...  ou ali se deslocava quando estava em comissão de serviço, era frequente, como era público e do conhecimento de todos os que frequentavam aquelas instalações, deslocar-se à PGD do ..., que se situa no ... piso do ..., do lado do TR.., para cumprimentar e conversar com a denunciada, altura em que, dependendo da hora e das agendas de ambas, também podia eventualmente com ela almoçar, como o fazem naturalmente duas boas amigas que se conhecem há vários anos;

- A requerente participou no almoço de homenagem à denunciada, Drª. BB, realizado no passado dia .... de Novembro;

- Tais factos são públicos e conhecidos no meio judiciário, designadamente, na área do ..., onde a requerente também é conhecida.

        Ora,

  Sendo assim, não beliscada a imparcialidade da Exmª Juíza Conselheira requerente no teste subjectivo (nem se descortinam motivos para tal), convém recordar, com Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, 1981, I, 237, que “não importa, aliás, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição”.

  No meio judiciário da área do ..., onde a existência de um processo desta natureza não passa seguramente despercebida, desde logo porque nele é denunciada uma ex-Procuradora-Geral Distrital do ..., o conhecimento de que a Juíza Conselheira a quem, no Supremo Tribunal de Justiça, cabe decidir da abertura da instrução contra ela requerida e dos seus termos subsequentes, é sua amiga há mais de 30 anos, num relacionamento que, para além de duradouro, se mostra estável, íntimo (o que as leva a almoçar ou jantar mensalmente, com outras amigas comuns, por vezes em casa da denunciada) “sólido e próximo”, na expressão utilizada pela requerente, é susceptível de gerar alguma compreensível apreensão, gerando desnecessárias (e, seguramente, infundadas) dúvidas sobre a imparcialidade e isenção da julgadora, o que cumpre acautelar e evitar.

   Uma relação de amizade como a descrita (que, no caso em apreço, não se reconduz à natural estima e consideração que uma relação profissional de anos entre juízes e procuradores, que partilham o espaço de uma mesma sala de audiências, sempre acaba por gerar), sendo naturalmente do conhecimento público e, em particular, do meio judiciário do ..., onde requerente e denunciada são, naturalmente, conhecidas, pode criar, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 5/7/2007, Proc. 07P2565, “um mosaico de aparências capaz de sustentar, no juízo do público conhecedor daquelas situações de relacionamento (profundo, duradouro e exposto), apreensão, dúvidas, desconfianças ou suspeitas sobre a indispensável imparcialidade do julgador e sobre o modo de funcionamento da justiça, devendo ser concedida a pedida escusa”  .

     Em suma: não basta saber que o juiz reúne as condições necessárias ao exercício imparcial das suas funções; é, ainda, necessário que essa imparcialidade surja clara e linear para o comum dos cidadãos: ao juiz, como à mulher de César, não basta ser, também tem que parecer.

    Ou, como se afirma no Ac. STJ de 7/12/2005, Proc. 2799/05, “para que a recusa seja concedida, o prisma a que se tem de atender não é o particular ponto de vista do requerente (isto é, a desconfiança que ele possa ter do juiz que vai julgar a causa), mas a situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade”.


     III. Há, assim, que concluir que a intervenção da Exmª requerente na instrução que lhe foi distribuída e que supra se mostra identificada, pode gerar risco sério de ser considerada suspeita. E, subscrevendo o que dito se mostra no acórdão deste Supremo Tribunal de 15/7/2020, Proc. 375/18.5PALSB.L1-A.S1, afirmar: «Com o TEDH, entende este tribunal que, neste domínio, as aparências têm importância, “a justiça não só deve realizar-se, também deve ver-se que se realiza. O que está em jogo é a confiança que deve inspirar no público um tribunal numa sociedade democrática. Assim, qualquer juiz sobre que recaia uma legítima razão para temer falta de imparcialidade deve retirar-se” ou ser apartado».


   Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em deferir o pedido formulado pela Exmª Srª Juíza Conselheira AA e escusá-la de intervir na instrução nº 39/21.2YGLSB, que corre termos neste Supremo Tribunal.

   Sem custas.


Lisboa, 15 de Dezembro de 2021 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)