Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
656/20.8T8VCD-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
BENS COMUNS DO CASAL
BENS PRÓPRIOS
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
INCAPACIDADE
INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
CONHECIMENTO DO MÉRITO
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Reconhecendo-se que a admissibilidade da revista no âmbito de decisão de incidente de reclamação de bens não se apresenta como pacífica na jurisprudência do STJ, acompanha-se a posição favorável, considerando-se que tal decisão, uma vez que interfere materialmente na partilha, se enquadra no conceito de decisão de mérito prevista no n.º 1 do art. 671.º do CPC.

II. Em virtude de as indemnizações devidas a título de incapacidade para o trabalho se destinarem a compensar a perda das remunerações recebidas como contrapartida do trabalho (art. 48.º, n.ºs 1 e 2, da LAT), os montantes recebidos pelo sinistrado a título indemnizatório revestem a natureza de bens comuns do casal.

III. Em relação à questão subsidiária, dada a plena conformidade e correspondência, no que se refere ao teor da verba da relação de bens em discussão, entre a decisão proferida pelo acórdão recorrido e a pretensão invocada pelo ora recorrente em sede de recurso de apelação, o respeito pelo princípio do dispositivo leva a que não se possa proceder à reapreciação da matéria em sede de recurso de revista.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1.  Nos autos de inventário para separação de meações que AA intentou contra BB, veio esta, enquanto interessada e cabeça de casal, apresentar a relação de bens que consta de fls. 41-42 e segs..

No que ora importa, apresentou o interessado reclamação à relação de bens (ref. ...25), pedindo a exclusão da verba n.º 1 do activo - “Créditos salariais, indemnização, resultante de acção de acidente de trabalho pendente no Tribunal de Trabalho ...”, alegando:

- Que o divórcio entre o requerente e a requerida foi decretado em ... de Janeiro de 2019, pelo que, como é unanimemente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, se extinguem os efeitos patrimoniais do casamento. Deste modo, uma vez que o divórcio foi decretado e transitou em julgado nesse mesmo dia, extinguiram-se as relações patrimoniais entre o requerente e a cabeça de casal. Ao relacionar a verba n.º 1 do activo, a requerida está a perpetuar os efeitos patrimoniais muito para além do divórcio, uma vez que a sentença que atribuiu uma indemnização ao requerente foi proferida em 23 de Julho de 2020;

- De todo o modo, o que está em causa na verba n.º 1 do activo é o direito do requerente a uma indemnização por acidente de trabalho por si sofrido, pelo qual foi ferido o seu direito moral e a integridade física, critérios que basearam a indemnização a auferir. E mesmo que o requerente e a cabeça de casal ainda fossem casados à data em que se venceu o direito daquele a uma indemnização por força do acidente de trabalho, o que não sucedeu, tal bem seria próprio do requerente e, como tal, incomunicável à cabeça de casal;

- Por tudo isto, e uma vez que a verba n.º 1 se refere a rendimentos próprios e/ou a rendimentos obtidos pelo requerente após o divórcio, essa verba deverá ser excluída da relação de bens.

Notificada, a cabeça de casal veio pugnar pela improcedência da reclamação devendo manter-se nos seus precisos termos a relação de bens apresentada, alegando, quanto à exclusão da verba n.º 1 do activo, o seguinte:

a) Antes de mais, importa esclarecer que a circunstância de ter sido recebida pelo interessado no estado de divorciado uma indemnização resultante do processo n.º1992/16...., não implica que não deva ser considerada como bem comum do dissolvido casal, pela simples razão de que, se é certo que, no que se refere às relações patrimoniais entre os cônjuges, o divórcio produz efeitos a partir da propositura da acção (art. 1789.º, n.º 1, do Código Civil), aquele montante tem como causa/origem a prestação laboral (desde 07.11.2011) e a data do acidente de trabalho (09.04.2015) e correlativo crédito laboral vencido, ambos ocorridos antes da propositura da acção de divórcio e em pleno decurso do casamento, ao contrário do que alega o interessado.

b) Por outro lado, não olvidamos que foi a cabeça de casal que sempre teve a iniciativa, acompanhou o processo desde o início (Abril de 2015) e em quem o interessado se encontrava ancorado e dependente. A cabeça de casal acompanhou-o em consultas (ortopedia, fisioterapia, psicologia), falava com os médicos, faltava ao trabalho, fazia telefonemas relacionados com a recuperação do interessado, implicando um enorme esforço e sacrifício comum do casal para que o processo chegasse a bom porto e não fossem prejudicados. Foram muitas as sequelas para o extinto casal. Para além das consequências físicas no interessado, consequências de natureza psíquica, familiar e social ocorreram em ambos os cônjuges. Tanto mais que, foi com a intervenção da cabeça de casal que o interessado passou a ter direito a uma quantia não inferior a € 400,00 mensais, como prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, no caso a cabeça de casal, quantia essa que o interessado recebeu até à data do divórcio e a própria cabeça de casal chegou também a ser acompanhada pela mesma psicóloga que o interessado, atendendo ao desgaste que o acidente provocou na cabeça de casal.

c) Por outro lado, apesar de não resultar da sentença (junta com a reclamação), os valores parcelares efectivamente recebidos pelo interessado, para um melhor apuramento do valor a integrar na verba n.º 1 do activo, é certo que, conforme resulta dos factos provados o interessado recebeu todas as quantias referentes a indemnização por incapacidade temporária, o mesmo é dizer que lhe foi pago o correspondente aos salários que deixou de auferir desde a data do acidente até 09.10.2017. E ainda, após essa data, 10.10.2017, o interessado teve direito a uma pensão anual de € 17.480, no ano de 2018 a uma pensão anual de € 17.794,64 e em Janeiro de 2019 a uma pensão anual de € 18.079,35, tudo isto, independentemente, da responsabilidade de pagamento ter sido atribuída à Seguradora (€12.093,84) ou à entidade empregadora (€5.792,01) do interessado.

d) Neste contexto, tendo o interessado requerido a remição parcial da pensão, no caso, esse pagamento antecipado, admitido no valor de € 4.588,50 anual, deverá também esse montante ser considerado bem comum.

Por decisão de 29.11.2021 foi a reclamação julgada improcedente, mantendo-se a verba n.º 1 do activo.

Desta decisão interpôs o reclamante recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que subiu em separado. Por acórdão de 10.11.2022, foi o recurso julgado parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e «substituindo[-se] essa mesma decisão no sentido de incluir na verba nº 1 apenas o montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho” no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019».


2. Novamente inconformado, vem AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«I. Por decisão datada de ... de Janeiro de 2019, transitada em julgado nesse dia, proferida pela Conservatória de Registo Civil, foi decretada a dissolução do casamento celebrado entre recorrente e recorrida – cfr. item 2 dos factos considerados provados.

II. A sentença que atribuiu uma pensão anual vitalícia ao recorrente pelo acidente de trabalho por si sofrido é datada de 23 de julho de 2019 – cfr. item 6 dos factos provados - ou seja, após o trânsito em julgado do divórcio.

III. Nos termos do nº 1 do art. 1789º do Código Civil, “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotaem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”.

IV. “I- A extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha.”, Ac. do Tribunal da Relação do Porto, processo nº3275/06.8TBPVZ.P1. Disponível em www.dgsi.pt.

V. Deste modo, no dia ... .01.2019, uma vez que o divórcio foi decretado e transitou em julgado nesse mesmo dia, extinguiram-se as relações patrimoniais entre recorrente e recorrida.

VI. Assim, uma vez que com o divórcio cessam as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges e porque a indemnização em crise nestes autos foi atribuída ao recorrente em data posterior ao divórcio, a verba nº 1 do ativo não constitui bem comum, mas antes bem próprio do recorrente – cfr., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de outubro de 2011, proferida no proc. 2119/10.

VII. A verba nº1 do ativo, como tal, deverá ser excluída da relação de bens, sendo o acórdão recorrido forçosamente revogado.

VIII. Sem prescindir, sempre se dirá que o que está em causa na verba nº 1 do ativo é o direito do Recorrente a uma indemnização/pensão anual vitalícia por um acidente de trabalho por si sofrido, onde viu ferido o seu direito a moral e a integridade física, critérios que basearam a indemnização a auferir.

IX. Nos termos do artigo 1733º, nº 1, do Código Civil, são sempre bens incomunicáveis: “d) As indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios.”

X. Se tal regime de incomunicabilidade se prevê para o regime da comunhão geral de bens, impossível seria não entender tal como subjacente de per si ao regime da comunhão de adquiridos.

XI. Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 4260/03, “A indemnização devida por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges, é bem próprio de cada cônjuge, não por efeito da aplicação analógica do disposto na al. d) do art. 1733º n.º 1, mas sim de acordo com o disposto no art. 1722º n.º 1 al. c). É que existindo uma violação de um direito pessoal, evidentemente que a indemnização correspondente é resultante de direito próprio anterior (v.g., o direito à integridade física). De resto, os correspondentes bens (resultantes de indemnizações por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges) são até incomunicáveis, de acordo com o disposto nos arts. 1699º n.º 1, al. d) e 1733º n.º 1 al. d). Ou seja, tais bens são incomunicáveis por força da lei (neste sentido P. Coelho, Curso de Direito de Família, 1977, pág. 410). Disponível em www.dgsi.pt.

XII. Em sentido idêntico pronunciou-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 10.11.2015 (processo n.º 2281/11.5 TBFIG-B.C1), publicado com o seguinte sumário: «1. É a afectação estritamente individual dos bens que justifica a incomunicabilidade prevista no art.º 1733º, do CC. 2. Perante situações de perda do emprego por facto não imputável ao trabalhador (v. g., em caso de encerramento da empresa), o valor correspondente à compensação por antiguidade destina-se a ressarcir as consequências inerentes à perca do direito ao trabalho, que é de índole pessoal (intuitu personae). 3. Trata-se, pois, de um bem pessoal (próprio) do cônjuge, que, em princípio/regra - sem prejuízo do posicionamento dos cônjuges ou ex-cônjuges e porventura de outros aspectos relacionados com a relação conjugal - deverá ser excluído da comunhão conjugal …».

XIII. Segundo o Prof. J. P. Remédio Marques “(anotação ao artigo 1773º in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Coord. Clara Sottomayor, Almedina, 2020, pág. 457) quando anota: «Todavia, parece que as indemnizações que se alicerçam na supressão ou na diminuição da capacidade de ganho de qualquer um dos cônjuges desfrutam de natureza de direitos estritamente pessoais, pelo que, neste sentido, devem ser excetuados da massa dos bens comuns, ao abrigo do disposto nas alíneas d) e e) do art. 1733 CC, aplicável a fortiori ao regime da comunhão de adquiridos».”

XIV. Defende o Dr. Jorge Duarte Pinheiro, referindo-se às indemnizações por acidentes de trabalho, em “O Direito de Família Contemporâneo, Almedina, 5.ª edição, pág. 432”, que “estas indemnizações são bens próprios nos termos dos artigos 1699.º, n.º 1, al. d), e 1733.º, n.º 1, al. d), do Código Civil.”

XV. O direito a uma indemnização por acidente de trabalho é um bem próprio, nos termos do art. 1733º do Código Civil, sendo incomunicável ao cônjuge, uma vez que visa compensar o sinistrado pela ofensa do direito à integridade física, bem pessoal.

XVI. Mesmo que o Recorrente e a Recorrida fossem casados à data em que se venceu o direito daquele a uma indemnização por força do acidente de trabalho, o que não sucedeu, tal bem seria próprio do Recorrente e, como tal, incomunicável à recorrida.

XVII. Respeitando a verba nº 1 do ativo a rendimentos próprios e/ou a rendimentos obtidos pelo recorrente após o divórcio, essa verba deverá ser excluída da relação de bens, devendo o acórdão recorrido ser revogado nessa parte.

XVIII. Sem prescindir, e a entender-se que a indemnização a receber é bem comum, sempre se dirá que o recorrente recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 30 de dezembro de 2018.

XIX. Conforme consta do acórdão recorrido “Ficou igualmente provado que entre o dia 09 de Abril de 2015, data do acidente, e o final do ano de 2018, o recorrente já recebeu €66.478,06”. Acrescentando que “O referido valor de € 66.478,06 foi pago ao Apelante nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, ou seja, na constância do matrimónio”.

XX. E como não podia deixar de ser, até porque a recorrida beneficia do apoio judiciário e aufere parcos rendimentos, foi com base nos valores auferidos pelo recorrente que o casal fez face às despesas comuns, nomeadamente habitação, vestuário e alimentação, a exemplo do que sempre sucedeu desde que recorrente e recorrida casaram.

XXI. A indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, terá como datas limite, o período compreendido entre os dias 1 e ... de Janeiro de 2019, data em que se operou o divórcio entre recorrente e recorrida e em que cessaram as relações pessoais e patrimoniais.

XXII. Não podemos estar a partilhar rendimentos auferidos pelo recorrente e que já entraram no património comum do casal, podendo, no limite, partilhar as contas comuns do casal ou contas bancárias de que o recorrente fosse titular à data do divórcio.

XXIII. O despacho recorrido viola, entre outros, o disposto nos artigos 1733º, 1788º e 1789º do Código Civil.».

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido com a prolação de decisão de exclusão da verba n.º 1 do activo.

A requerente contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«II. O Recurso apresentado não pode sequer ser admitido.

III. O recorrente fundamenta o Recurso em apreço nos artigos art. 629º, nº 2, al. d), 671º, nº 2, al. a), 673º todos do Código de Processo Civil, sendo que neste último artigo não concretiza qual a alínea “exceção”.

IV. Sendo o fundamento na contradição de acórdãos sobre a mesma questão de Direito.

V. A saga de recursos por parte do Recorrente tem o seu início do Recurso de Apelação de uma decisão interlocutória, qual seja, a douta decisão do incidente sobre a reclamação da relação de bens com a ref. ...33, apresentada nos autos.

VI. Em 11.11.2022 recorrente e recorrida foram notificados do Douto Acórdão da Relação do Porto de 10.11.2022 que decidiu “no sentido de incluir na verba nº 1 apenas o montante de créditos salariais, indemnização resultante de ação de acidente de trabalho no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019.”

VII. Ora, não se conformado com aquele veredito com a ref. ...71, vem agora interpor recurso ordinário de REVISTA, nos termos expostos e que passamos a detalhar.

VIII. Interpôs o Recorrente Revista nos termos gerais e não a título excecional.

IX. Nos termos do art. 629.º, n.º1 do C.P.C. o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

X. O aludido normativo faz depender a admissibilidade do recurso de dois requisitos cumulativos: o valor da causa e o valor da sucumbência, tendo em vista restringir as questões que devem ser submetidas à apreciação dos Tribunais superiores, evitando que conheçam de decisões em processos, cujo valor ou sucumbência não exceda determinado montante.

XI. Neste sentido, Professor Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, reimpressão, 3.ª edição 1952, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, página 220.

XII. Ora, em boa verdade no caso sub judice o valor da causa ainda não está fixado, e por conseguinte, o valor da sucumbência também não está determinado.

XIII. Não estando fixadas as verbas a compor a relação de bens, o valor do inventário não está apurado.

XIV. Porquanto, concluímos que estão inverificados estes requisitos formais de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o que, logo em primeira linha, importaria a inadmissibilidade do interposto recurso de revista, em termos gerais.

XV. Decorre ainda da interposição do recurso a admissibilidade da revista em termos gerais, ao abrigo do art.º 629º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Civil.

XVI. Assim, temos como primeiro pressuposto substancial de admissibilidade do recurso, a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos, pela mesma ou diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário, por motivo estranho à alçada do tribunal, sendo que a enunciada contradição dos julgados, não implica que os mesmos se revelem frontalmente opostos, mas antes que as soluções aí adotadas, sejam diferentes entre si.

XVII. Mesmo que por mera hipótese, se admita verificada a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos, pela mesma ou diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, temos como pressuposto substancial de admissibilidade do recurso de revista a circunstância de que não caiba recurso ordinário do acórdão proferido, por motivo estranho à alçada do tribunal, o que resto não distinguimos no caso trazido a Juízo.

XVIII. Estamos no âmbito de uma decisão interlocutória proferida num incidente de reclamação da relação de bens, apenso a um processo de inventário (processo especial), à qual não existe norma que estabeleça a inadmissibilidade do recurso por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, como decorre a contrário do art.1123.º do Código de Processo Civil, importando, assim, considerar que o presente litigio se rege pelos requisitos gerais estabelecidos no n.º 1 do art.º 629º do Código de Processo Civil, ou seja, em função do valor da causa e da sucumbência, inexistindo, assim, para o caso sub iudice, norma de direito adjetivo civil que estabeleça como limite recursório o Tribunal da Relação.

XIX. A este propósito impõe-se sublinhar e reconhecer que o proémio do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil não se aplica à respetiva alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil.

XX. Vide nesse sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Junho de 2016 (Processo n.º 2023/13.0TJLSB.L1.S1) e Acórdão de 8 de outubro de 2020, (processo n.º 824/17.0T8PTL-A.G1-A.S1) in, www.dgsi.pt, que acompanhamos de perto.

XXI. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, página 54.

XXII. E Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2 de junho de 2015, (Blog do Instituto Português de Processo Civil), segundo o qual “o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC só é aplicável se houver uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tenha a ver com a relação entre o valor da causa e a alçada do tribunal ou, mais em concreto, se a lei excluir a admissibilidade de uma revista que, de outro modo, seria admissível”.

XXIII. Conclui o autor que (…) a ratio do recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC - que visa garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações em processos que, pela especialidade da matéria, não têm possibilidade de alcançar o Supremo Tribunal de Justiça, por nunca ser admissível o recurso de revista por motivo estranho à alçada (…).

XXIV. A propósito de interpretação normativa este Tribunal teve, recentemente, oportunidade de retomar, no âmbito do Acórdão n.º 253/2018, a afirmação do Acórdão n.º 701/2005 de que “nenhuma norma ou princípio constitucional impõe a obrigatoriedade de recurso para o Supremo, para uniformização de jurisprudência, de todos os acórdãos proferidos pelas Relações; concretamente, nenhuma norma ou princípio constitucional impõe a obrigatoriedade de recurso para o Supremo, para uniformização de jurisprudência, de acórdão da Relação do qual não seja possível recorrer por motivo respeitante à alçada da Relação”.

XXV. Portanto, a alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil – ao restringir a admissibilidade do recurso de revista à hipótese de o acórdão recorrido estar em oposição com outro - também não dispensa, de todo, a verificação das condições gerais de admissibilidade de recurso, entre as quais figura a relação entre o valor da causa (e da sucumbência) e a alçada.

XXVI. No caso dos autos temos de reconhecer que o interposto recurso de revista, em termos gerais, não se encontra contemplado pela previsão normativa do art.º 629º n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, não só porque não encerra cabimento de recurso por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido, como também, porque a causa trazida a Juízo não tem valor fixado e a decisão impugnada, apesar de desfavorável para o Recorrente, por entender que cabeça de casal nada tem direito e tudo se resume a “bem próprio” do interessado, o valor da sucumbência de igual forma não se pode assumir como inferior a metade da alçada desse Tribunal Relação, importando a conclusão que se destaca, da inadmissibilidade da revista em termos gerais.

XXVII. Quanto à invocação do art.673.º do Código de processo Civil, o mesmo não concretiza qualquer das alíneas, pelo que não será apreciado.

XXVIII. A questão fundamental de Direito nos autos é a de, além do mais, saber se os créditos salariais (incluindo indemnização/pensão anual) vencidos na pendência do casamento, devem ser considerados bens comuns e por isso, ser objeto de partilha entre os (ex)cônjuges.

XXIX. Com a particularidade de os mesmos ter sido recebidos posteriormente à data do divórcio, em resultado da ação nº1992/16.... do Tribunal de Trabalho ... - Juiz ... - com entrada no Tribunal em 18.04.2016.

XXX. No entanto, o Acórdão padece de um lapso, originado pela informação da Companhia de seguros, junta aos autos em 30 de setembro de 2021.

XXXI. A Companhia ... Seguros, S.A. veio informar, a pedido da cabeça de casal, que à data de 30 de setembro de 2021, os montantes pagos ao recorrente, por referência à data de acidente, até então desconhecidos da cabeça de casal e do Tribunal foram:

“- O sinistrado recebeu indemnização por incapacidade temporária absoluta, no período entre 09/04/2015 e 09/10/2017, no valor de 27.334,73 €;

- O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2015 foi de 7.276,84 €, por incapacidade temporária;

- O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2016 foi de 11.611,98 €, por incapacidade temporária;

- O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2017 foi de 11.292,15 €, por incapacidade temporária;

- O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2018 foi de 8.962,36 €, por incapacidade temporária, e de 2.460,98 €, a título de pensão anual e vitalícia;

- Até ao ano de 2018, não ocorreu qualquer remição parcial.

XXXII. Em momento algum refere as datas e modo de pagamento dos montantes mencionados, pelo que, é errado e precipitado considerar que esses montantes foram recebidos na constância do casamento, no valor de 66.478,06€.

XXXIII. Reconhece a recorrida, que em abono da verdade material terá de ser feita essa diligência instrutória, antes de se fixar os bens constantes da verba 1 da relação de bens.

XXXIV. Todas as somas elencadas na relação de bens, vieram substituir os salários “cessantes”, em virtude de o recorrente não trabalhar (na altura) em consequência do acidente, pelo que, têm a qualidade de bens comuns e devem entrar para o património comum.

XXXV. Neste sentido vide recentemente o Ac. TRE de 14.01.2021 (processo n.º 980/20.0T8FAR-A.E1); Ac. TRC de 02.07.2013 (processo n.º 988/12.9TMCBR- A.C1) e ainda, Ac. TRL de 25.01.2011 (processo n.º 2119/10.0TMLSB-A.L1-7).

XXXVI. Por outro lado, por força da presunção de comunicabilidade estabelecida no artigo 1725.º do Código Civil, haverá de concluir-se que a indemnização/pensão anual, apesar de ter sido fixada em sentença posterior à dissolução do casamento, reporta-se a acidente laboral e a créditos salariais vencidos na pendência do casamento pelo que são bens comuns e por isso deve ser objeto de partilha entre os (ex)cônjuges, mantendo-se, por isso, a verba nº 1 do ativo.

XXXVII. A recorrida apenas reclamou os créditos salariais, incluindo indemnização/pensão anual vitalícia, até à data do divórcio, como bem reconhece o recorrente.

XXXVIII. Com início à data do acidente, na medida em que a cabeça de casal não teve acesso a qualquer quantia recebida pelo recorrente, inclusive uma prestação suplementar para assistência por terceira pessoa (cabeça de casal), uma vez que o recorrente era completamente dependente.

XXXIX. Todavia, resulta apenas da matéria de facto provada (ponto 7) da douta sentença do Tribunal de Trabalho datada de 23.07.2020, que a seguradora procedeu ao pagamento das indemnizações relativas ao período de incapacidade temporária (ITA), sem referência a quaisquer datas de pagamento, o mesmo é dizer que lhe foi pago o correspondente aos salários que deixou de auferir desde a data do acidente até 09.10.2017.

XL. E ainda, após essa data, 10.10.2017 o interessado teve direito a uma pensão anual de 17.480€, no ano de 2018 a uma pensão anual de 17.794,64€ e em janeiro de 2019 a uma pensão anual de 18.079,35€, tudo isto, independentemente, da responsabilidade de pagamento ter sido atribuída à Seguradora (12.093,84€) ou à Entidade Empregadora (5.792,01€) do interessado, a que a recorrida não teve acesso.

XLI. Atenta a falta de memória do recorrente, acerca dos valores recebidos, os mesmos só foram conhecidos em sede de incidente, pelo que, não se pode concluir, sem mais, que foram pagas na constância do casamento.

XLII. É de elementar justiça, que a recorrida tendo-se dedicado quase em exclusivo à assistência e cuidados do recorrido, no período compreendido pelo menos, desde o dia 9 de abril de 2017 (data do acidente) até ao dia ... de Janeiro de 2019 (data do divórcio), veja o seu esforço reconhecido.

XLIII. Pelo exposto, os créditos laborais vencidos, desde a data do acidente, devem ser considerados bens comuns a relacionar na verba 1 da relação de bens, desde a data do acidente (09.04.2015) até à data do divórcio (... .01.2019).

XLIV. Caso assim não se entenda, admite-se que deverá ser apurado, com rigor, quando e como foram pagas todas as quantias derivadas do processo nº 1992/16...., iniciado com a participação do acidente a 18.04.2016.

Termos em que deverá ser dado provimento às contra-alegações, não devendo ser admitido o recurso de revista nos termos e fundamentos do recurso apresentado pelo recorrente, e ainda, ser corrigido o lapso do Acórdão recorrido no sentido de incluir na verba nº 1 da relação de bens comuns, o montante de créditos salariais, indemnização resultante de ação de acidente de trabalho no que se reporta ao período compreendido entre o dia 09 de abril de 2015 e o dia ... de Janeiro de 2019.

Caso assim não se entenda, deverá em prol da boa decisão da causa e da verdade material, por não constarem todos os elementos que permitam o apuramento do recebimento das quantias pagas, devendo proceder-se às diligências tidas por necessárias ao conveniente esclarecimento da situação».


3. De acordo com as conclusões recursórias apresentadas pelo Recorrente, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Saber se a indemnização por acidente de trabalho tem a natureza de bem próprio e não de bem comum dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos;

- Subsidiariamente, saber se, ainda que a indemnização seja considerada bem comum dos cônjuges, se terá de corrigir a verba n.º 1 do activo, atendendo a que, alegadamente, o interessado «recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 30 de dezembro de 2018», pelo que «a indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, [apenas] terá como datas limite, o período compreendido entre os dias 1 e ... de Janeiro de 2019».

Importa clarificar que, do alegado pela Recorrida em sede de contra-alegações, ao pugnar pela inadmissibilidade do recurso, pela correcção de um invocado lapso do acórdão recorrido e ainda pela realização de diligências de prova complementares, apenas a primeira alegação, relativa à inadmissibilidade do recurso, pode ser considerada.

Com efeito, e uma vez que a decisão do acórdão recorrido não padece de qualquer lapso de escrita, verifica-se que a pretensão de que «corrigido o lapso do Acórdão recorrido no sentido de incluir na verba nº 1 da relação de bens comuns, o montante de créditos salariais, indemnização resultante de ação de acidente de trabalho no que se reporta ao período compreendido entre o dia 09 de abril de 2015 e o dia ... de Janeiro de 2019» corresponde à invocação de um erro de julgamento, o que apenas poderia ser realizado mediante interposição de recurso pela interessada e cabeça de casal.

Quanto à pretensão de realização de diligências probatórias complementares, deveria ter sido apresentada pela ora Recorrida, ao abrigo do art. 636.º, n.º 2, do CPC, em sede de impugnação subsidiária da matéria de facto fixada pelo tribunal da 1.ª instância. Tendo a Recorrida optado por não utilizar essa via impugnatória, a decisão relativa à matéria de facto consolidou-se, apenas podendo este Supremo Tribunal determinar a ampliação da mesma caso viesse a entender ser a mesma insuficiente para a prolação da decisão de direito (cfr. art. 682.º, n.º 3, do CPC).


4. Invoca a Recorrida não ser o presente recurso de revista admissível por não ter sido fixado ao incidente qualquer valor, desconhecendo-se igualmente o valor da sucumbência. Invoca ainda que o fundamento recursório previsto no art. 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, invocado pelo Recorrente, não tem aplicação ao caso dos autos.

Vejamos.

4.1. Compulsados os autos, verifica-se que, efectivamente, não foi fixado o valor do incidente. Da análise do requerimento inicial, resulta que o requerente, ora Recorrente, indicou como valor do inventário € 30.000,01, valor esse que não foi impugnado pela requerida (cfr. art. 305.º, n.º 4, do CPC), pelo que, nos termos do art. 629.º, n.º 1, do CPC, será o valor a considerar para efeitos de valor da causa.

Relativamente à sucumbência, deve ter-se em conta o disposto no n.º 2 do art. 629.º do CPC, de acordo com o qual, não sendo possível determinar o valor da sucumbência, se deve atender ao valor da causa. Ora, no caso dos autos: na relação de bens não foi indicado qualquer valor relativamente à verba n.º 1 em discussão; também na sentença não foi referido qualquer valor a respeito da dita verba; e, por fim, no acórdão recorrido, apesar de se limitar temporalmente o período a que diz respeito a indemnização, também não foi feita referência ao valor da mesma; pelo que não se mostra possível determinar a sucumbência, de forma objectiva, sendo assim de considerar o valor da acção para efeitos de sucumbência.

Temos, pois, que, quanto ao valor da acção e à sucumbência, não existe impedimento à admissibilidade do recurso.

4.2. Antes de apreciar da aplicabilidade ao caso dos autos do regime do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, importa apurar se o recurso é ou não admissível nos termos gerais. 

O presente processo de inventário segue os termos definidos na nova lei do inventário, a Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro, que alterou o Código de Processo Civil de 2013, estabelecendo um regime específico de recursos, previsto no respectivo art. 1123.º do mesmo Código:

«1 - Aplicam-se ao processo de inventário as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos.

2 - Cabe ainda apelação autónoma:

a) Da decisão sobre a competência, a nomeação ou a remoção do cabeça de casal;

b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha;

c) Da sentença homologatória da partilha.

3 - O juiz pode atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto nos termos da alínea b) do número anterior, se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.

4 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea b) do n.º 2 os recursos em que se pretendam impugnar decisões proferidas até esse momento, subindo todas elas em conjunto ao tribunal superior, em separado dos autos principais.

5 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea c) do n.º 2 os recursos em que se impugnem despachos posteriores à decisão de saneamento do processo.».

António Abrantes Geraldes / Miguel Teixeira de Sousa / Carlos Lopes do Rego / Pedro Pinheiro Torres (O novo regime do processo de inventário e outras alterações na legislação processual civil, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 138-139), em comentário ao novo regime do art. 1123.º do CPC, explicam que foi instituído um modelo de apelação autónoma, paralelo ao regime do art. 644.º, n.º 2, do CPC, e que constitui uma inovação em relação ao que estava previsto no Código de Processo Civil de 1961, no qual:

«[C]constituía entendimento geral que a decisão sobre a reclamação quanto à relação de bens não era qualificada como incidente autónomo para efeitos de recurso de apelação com subida imediata (…). Tal solução encontra-se agora prejudicada face à diversa opção que decorre explicitamente do n.º 2, al. b), no segmento em que se alude à decisão sobre a “determinação dos bens a partilhar”, que inclui quer a decisão sobre a reclamação de bens (cf. arts. 1104.º, n.º 1, al. d) e 1105.º, n.º 3) quer a decisão do incidente de sonegação de bens (…).».

A respeito do regime do recurso de revista, os referidos autores destacam a remissão do n.º 1 do art. 1123.º para o regime geral do n.º 1 do art. 671.º, do CPC, com a restrição do n.º 3 do mesmo preceito (ob. cit., págs. 139-140). Mais acrescentam que:

«[A] restrição à admissibilidade da revista que decorre do art. 671.º, n.º 2, se reporta unicamente aos acórdãos da Relação que incindam sobre decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaiam sobre a relação processual. Ficam arredados deste regime outros acórdãos em que a Relação tenha reapreciado decisões da 1.ª instância sobre questões ligadas ao mérito, como é o caso, por exemplo, de decisões de dívidas da herança (arts. 1106.º e 1107.º) ou de decisões que tenham incidido sobre a definição dos direitos dos interessados directos na partilha (art. 1110.º, n.º 2, al. a)). Afinal, nestas hipóteses, trata-se de decisões que, embora de natureza interlocutória, incidem sobre o mérito do inventário, ficando englobadas, por isso, na regra geral do art. 671.º, n.º 1». (ob. cit., pág.140). [negritos nossos]

No mesmo sentido, se pronunciam António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 615), em anotação ao referido art. 1123.º do CPC, quando se referem às decisões que respeitam à «definição dos direitos dos interessados na partilha», indicando expressamente como exemplo as decisões previstas no respectivo n.º 2, alínea b) (nas quais se inclui a decisão da reclamação à relação de bens), enquanto decisões de natureza interlocutória, mas que decidem sobre o mérito, uma vez que interferem materialmente na partilha, estando, por isso, abrangidas pela regra geral do n.º 1 do art. 671.º do CPC.

Assim, reconhecendo-se embora que a questão da admissibilidade da revista no âmbito de decisão de incidente de reclamação de bens não se apresenta como pacífica na jurisprudência deste Supremo Tribunal, acompanha-se a posição favorável à admissibilidade, considerando-se que tal decisão se enquadra no conceito de decisão de mérito prevista no n.º 1 do art. 671.º do CPC. Neste sentido, ainda que sem discussão expressa da questão da admissibilidade, ver os acórdãos deste Supremo Tribunal de 22-02-2022 (proc. n.º 359/16.8T8PTG-B.E1.S1), in www.dgsi.pt, de 14-07-2022 (proc. n.º 4106/20.1T8VNG-B.P1.S1), não publicado, de 13-10-2022 (proc. n.º 32/22.8T8BRG-A.G1.S1), in www.dgsi.pt e de 29-11-2022 (proc. n.º 1530/20.3T8VNF.G1.S1), in www.dgsi.pt.

De forma expressa, pronuncia-se sobre a questão da admissibilidade o acórdão de 29-04-2021 (proc. n.º 705/14.9TBPTL.G1.S1), in www.dgsi.pt, no qual se entendeu que a revista sobre decisão da reclamação à relação de bens não se subsume ao n.º 2 do art. 671.º, do CPC, porque, apesar de ser uma decisão interlocutória, não é uma decisão que recaia sobre a relação processual, mas antes uma decisão sobre a matéria substantiva, tendo natureza material, atendendo a que tal decisão tem influência na partilha.

Deste modo, considera-se que o presente recurso de revista, interposto da decisão do incidente de reclamação de bens, é uma decisão subsumível ao regime do n.º 1 do art. 671.º do CPC.

Aqui chegados, e considerando que não se verifica dupla conforme entre as decisões das instâncias (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC), conclui-se ser o recurso admissível nos termos gerais, ficando prejudicada a apreciação do fundamento recursório (previsão do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC) invocado pelo Recorrente.


5. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1. O reclamante, AA, e a cabeça-de-casal, BB, contraíram casamento católico entre si no dia ... de Junho de 2000, sem convenção antenupcial cfr. teor de fls. 28 e 29;

2. Por decisão datada de ... de Janeiro de 2019, transitada em julgado nesse dia, proferida pela Conservatória de Registo Civil, foi decretada a dissolução do casamento mencionado em 1), cfr. teor de fls. 3 a 8 e 29 que aqui e dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais;

3. No âmbito dos presentes autos foi nomeada cabeça-de-casal BB.

4. A cabeça-de-casal veio apresentar a relação de bens que consta de fls. 41 e 42 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, constando da mesma, entre outras, as seguintes verbas:

“Activo: Verba nº 1

Créditos salariais, indemnização, resultante de acção de acidente de trabalho pendente no Tribunal de Trabalho ...”

 (…)

Verba nº 4

Empréstimo à ... - € 3.200,00

Dívida aos condomínios - € 200,00”

5. Reclamante e reclamada acordaram em 18/11/2021 o seguinte:

“1) relativamente à verba nº 4 do passivo constante da relação de bens - empréstimo da ..., acordam em eliminar;

2) quanto á verba nº 5 do passivo constante da relação de bens relegam a sua apreciação para a conferência de interessados”

Da reclamação

6. Por sentença datada de 23 de Julho de 2019, transitada em julgado, que correu termos sob o nº 1992/16.... do Juiz ... do Tribunal de Trabalho ..., denominada acidente de trabalho, foi condenada:

a) a ré Companhia de Seguros A... condenada a pagar a AA, que trabalhava para a empresa D... Lda, a pensão anual vitalícia e actualizável devida desde 10/10/2017, no valor de € 11.880,00, actualizada em 01/01/2018 para € 12.093,84 e em 01/01/2019, para € 12.287,34 deduzindo-se os valores entretanto pagos a título de pensão provisória; a pagar ao aí autor a quantia de € 5.533,68 a título de subsídio de elevada incapacidade acrescido de juros de mora à taxa de 4% contados desde 10/10/2017 e até efectivo pagamento; a pagar ao autor a quantia de € 80,00 a título de despesas de transportes acrescido de juros de mora à taxa de 4% contados desde 17/05/2019 e até efectivo pagamento;

(…)

b) A ré D... Lda

- a pagar ao Autor uma pensão anual vitalícia e actualizável devida desde 10/10/2017 no valor de €5.600,00 actualizada em 01/01/2018 para € 5.700,80 e em 01/01/2019 para € 5.792,01 deduzindo-se os valores entretanto pagos a título de pensão provisoria;

Deferindo a requerida remissão parcial da pensão ordeno o cálculo de capital de remissão da pensão devida ao sinistrado pelo valor de € 4.588,50 mantendo-se a responsabilidade do pagamento do remanescente da pensão por ambas as entidades na mesma proporção.”

7. O interessado recebeu da ré Tranquilidade a indemnização por incapacidade temporária absoluta no período entre 9/04/2015 e 09/10/2017 no valor de € 27.334,73; no ano de 2015 recebeu o montante anual de € 7.276,84; no ano de 2016 o montante de € 11.611,98 por incapacidade temporária; no ano de 2017 o montante anual de € 11.292,15 por incapacidade temporária; no ano de 2018 o montante anual de € 8.962,36 por incapacidade temporária e de € 2.460,98 a título de pensão anual vitalícia; até ao ano de 2018 não ocorreu qualquer remissão parcial, cfr. teor de fls. 130 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.


6. Recordemos que o presente recurso tem como objecto a seguintes questões:

- Saber se, diversamente do considerado pelo acórdão recorrido, a indemnização por acidente de trabalho tem a natureza de bem próprio e não de bem comum dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos;

- Subsidiariamente, saber se, ainda que a indemnização seja considerada bem comum dos cônjuges, se terá de corrigir a verba n.º 1 do activo, atendendo a que, alegadamente, o interessado «recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 30 de dezembro de 2018», pelo que «a indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, [apenas] terá como datas limite, o período compreendido entre os dias 1 e ... de Janeiro de 2019».


7. Relativamente à questão de saber se a indemnização por acidente de trabalho, tal como delimitada pelo acórdão recorrido (o «montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho” no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019»), tem a natureza de bem próprio e não de bem comum dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos, está em causa a interpretação e aplicação do art. 1733.º do Código Civil, que, sob a epígrafe «Bens incomunicáveis», preceitua que:

«São exceptuados da comunhão:

(...) d) As indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios; (…)».

Em anotação a este preceito legal, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 442), afirmam ser «o carácter eminentemente pessoal das indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges quer se trate de ressarcir danos patrimoniais, quer não patrimoniais), bem como dos seguros vencidos em favor da pessoa de cada um deles, que justifica a natureza incomunicável do direito a essas prestações, prescritas nas alíneas d) e e).».

Sobre a aplicação desta norma do Código Civil às indemnizações atribuídas no domínio das relações laborais, afirmam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família (e-book), Vol. I - Introdução ao Direito Matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016,[1] págs. 631-632) o seguinte:

«Não é pacífico que mereça este regime as indemnizações que pretendam reparar uma incapacidade de ganho ou se meçam por uma perda de salários. Será o caso das indemnizações recebidas por acidentes de trabalho, doenças profissionais, reforma antecipada, despedimento, etc. Nestes casos, as somas recebidas vêm substituir os salários “cessantes”, que teriam a qualidade de bens comuns; as indemnizações deviam entrar para o património comum.». [negrito nosso]

Também Maria João Vaz Tomé (Código Civil Anotado, Livro IV - Direito da Família, coordenadora: Clara Sottomayor, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 425-426), em anotação ao art. 1724.º do CC, entende que:

«De acordo com a al. a), o “produto do trabalho dos cônjuges” faz parte da comunhão. Assim, todos os proventos – prestações patrimoniais, periódicas ou não, em dinheiro ou em espécie – recebidos por um dos cônjuges, por força de um contrato de trabalho, de prestação de serviço ou de qualquer outro contrato que enquadre a prestação efetuada ao cônjuge, são bens comuns do casal.

De acordo com a doutrina, todas as prestações patrimoniais que representem a contrapartida da realização de uma prestação por um dos cônjuges, em que este aplique as suas aptidões físicas ou intelectuais, assim como aquelas que sejam auferidas como indemnização pela redução da capacidade de aquisitiva (art. 1733º/1, d), integram o património comum do casal». [negrito nosso]

No mesmo sentido, acompanhando a posição de Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, pronuncia-se Hélder Roque («Da partilha parcial em divórcio por mútuo consentimento convolado, da parcela respeitante à indemnização por cessação do contrato de trabalho de um dos ex-cônjuges vencida na constância do matrimónio», in Revista Julgar, n.º 40, 2020, pág. 45), concluindo que fazem parte da comunhão conjugal «as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho».

Em sentido divergente, porém, ver Jorge Duarte Pinheiro (O Direito de Família Contemporâneo, 6.ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2019, pág. 420, nota 917) e J.P. Remédio Marques (anotação ao artigo 1733.º, in Código Civil Anotado, Livro IV - Direito da Família, ob. cit., pág. 457).

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tanto quanto foi possível apurar, apenas se pronunciou, ainda que acerca da questão, não inteiramente coincidente, da qualificação da indemnização por cessação do contrato de trabalho, o acórdão de 02-11-2010 (proc. n.º 726/08.0TBESP-D.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt. Fê-lo qualificando tal indemnização como bem comum, conforme resulta do ponto V do respectivo sumário:

«Encontrando-se os cônjuges ainda casados, por ocasião em que a compensação pecuniária, de natureza global, referente a indemnização em substituição de créditos laborais, foi recebida por um deles, o mesmo bem, ao entrar na esfera patrimonial deste, assumiu, imediatamente, a qualidade de bem comum do casal, passando a estar sujeito, desde a propositura da acção, ao regime da partilha dos bens comuns, em consequência de divórcio».

Quid iuris?

8. Para aferir da natureza da indemnização em causa («montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho” no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019»), importa averiguar qual o escopo da mesma, recorrendo à interpretação das seguintes normas relevantes da Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT) - Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que Regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais:

Artigo 23.º

«Princípio geral

O direito à reparação compreende as seguintes prestações:

a) Em espécie - prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa;

b) Em dinheiro - indemnizações, pensões, prestações e subsídios previstos na presente lei.»

Artigo 47.º

«Prestações em dinheiro

«1 - As prestações em dinheiro previstas na alínea b) do artigo 23.º compreendem:

a) A indemnização por incapacidade temporária para o trabalho;

b) A pensão provisória;

c) A indemnização em capital e pensão por incapacidade permanente para o trabalho;

d) O subsídio por situação de elevada incapacidade permanente;

e) O subsídio por morte;

f) O subsídio por despesas de funeral;

g) A pensão por morte;

h) A prestação suplementar para assistência de terceira pessoa;

i) O subsídio para readaptação de habitação;

j) O subsídio para a frequência de acções no âmbito da reabilitação profissional necessárias e adequadas à reintegração do sinistrado no mercado de trabalho.

2 - O subsídio previsto na alínea j) é cumulável com as prestações referidas nas alíneas a), b), c) e i) do número anterior, não podendo no seu conjunto ultrapassar, mensalmente, o montante equivalente a seis vezes o valor de 1,1 do indexante de apoios sociais (IAS).

3 - A indemnização em capital, o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, os subsídios por morte e despesas de funeral e o subsídio para readaptação de habitação são prestações de atribuição única, sendo de atribuição continuada ou periódica todas as restantes prestações previstas no n.º 1.».

Da análise da tipologia das prestações devidas por acidente de trabalho, afigura-se que as prestações em espécie (art. 23.º, alínea a), da LAT) visam a reparação in natura dos danos corporais sofridos pelo sinistrado, enquanto as prestações em dinheiro revestem finalidades diversas, tornando-se necessário aferir em função da concreta prestação em causa.

No caso dos autos, está em discussão a natureza da verba n.º 1 do activo, tal como delimitada pelo acórdão recorrido: o «montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho” no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019».

Para melhor se compreender aquilo que está efectivamente em causa, há que ter presente que foi dado como provado que:

6. Por sentença datada de 23 de Julho de 2019, transitada em julgado, que correu termos sob o nº 1992/16.... do Juiz ... do Tribunal de Trabalho ..., denominada acidente de trabalho, foi condenada:

a) a ré Companhia de Seguros A... condenada a pagar a AA, que trabalhava para a empresa D... Lda, a pensão anual vitalícia e actualizável devida desde 10/10/2017, no valor de € 11.880,00, actualizada em 01/01/2018 para € 12.093,84 e em 01/01/2019, para € 12.287,34 deduzindo-se os valores entretanto pagos a título de pensão provisória; a pagar ao aí autor a quantia de € 5.533,68 a título de subsídio de elevada incapacidade acrescido de juros de mora à taxa de 4% contados desde 10/10/2017 e até efectivo pagamento; a pagar ao autor a quantia de € 80,00 a título de despesas de transportes acrescido de juros de mora à taxa de 4% contados desde 17/05/2019 e até efectivo pagamento;

(…)

b) A ré D... Lda.

- a pagar ao Autor uma pensão anual vitalícia e actualizável devida desde 10/10/2017 no valor de €5.600,00 actualizada em 01/01/2018 para € 5.700,80 e em 01/01/2019 para € 5.792,01 deduzindo-se os valores entretanto pagos a título de pensão provisoria;

Deferindo a requerida remissão parcial da pensão ordeno o cálculo de capital de remissão da pensão devida ao sinistrado pelo valor de € 4.588,50 mantendo-se a responsabilidade do pagamento do remanescente da pensão por ambas as entidades na mesma proporção.”

7. O interessado recebeu da ré Tranquilidade a indemnização por incapacidade temporária absoluta no período entre 9/04/2015 e 09/10/2017 no valor de € 27.334,73; no ano de 2015 recebeu o montante anual de € 7.276,84; no ano de 2016 o montante de € 11.611,98 por incapacidade temporária; no ano de 2017 o montante anual de € 11.292,15 por incapacidade temporária; no ano de 2018 o montante anual de € 8.962,36 por incapacidade temporária e de € 2.460,98 a título de pensão anual vitalícia; até ao ano de 2018 não ocorreu qualquer remissão parcial, cfr. teor de fls. 130 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

A disputa entre as partes centra-se, assim, na qualificação da indemnização (ou indemnizações) do sinistrado por incapacidade para o trabalho (incapacidade temporária e incapacidade permanente) cuja(s) finalidade(s) se encontra(m) definida(s) pelo art. 48.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, da seguinte forma:

«1 - A indemnização por incapacidade temporária para o trabalho destina-se a compensar o sinistrado, durante um período de tempo limitado, pela perda ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho.

2 - A indemnização em capital e a pensão por incapacidade permanente e o subsídio de elevada incapacidade permanente são prestações destinadas a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho».

A nosso ver, e na linha da distinção realizada por Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., págs. 443-444), ao afirmar que «[n]o caso das pensões de aposentação, das rendas vitalícias (...) e direitos de natureza semelhante, haverá que distinguir entre o direito à pensão ou à renda, que é pessoal e incomunicável, e as prestações recebidas ao abrigo do direito, que são coisas comuns», deve entender-se que apenas o cônjuge sinistrado é titular do direito a serem indemnizados, mas, que, em virtude de ambas as indemnizações devidas a título de incapacidade para o trabalho se destinarem a compensar a perda das remunerações recebidas como contrapartida do trabalho, os montantes recebidos pelo sinistrado a título indemnizatório revestem, tal como entenderam as instâncias, a natureza de bens comuns do casal.  

Afigura-se assim que o regime de incomunicabilidade previsto no art. 1733.º, alínea d), do CC («São exceptuados da comunhão (...) As indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges») não é aplicável aos montantes indemnizatórios em causa atendendo a que, no direito constituído, a responsabilidade civil por acidentes de trabalho tem uma finalidade bem mais limitada do que a responsabilidade civil em geral. Nas palavras de Júlio Manuel Vieira Gomes («Nótula sobre o tratamento jurisprudencial dos acidentes que merecem a qualificação simultaneamente de acidentes de trabalho e de acidentes de viação», in Revista Julgar, n.º 46, 2022, págs. 250 e seg.):

«Como é sabido, o dano reparável em sede de responsabilidade por acidente de trabalho é muito limitado, abrangendo apenas a perda da capacidade de trabalho ou de ganho (de rendimento salarial), sendo questionável se se poderão ter em conta outros danos mesmos profissionais (como o dano da perda de chance de uma progressão salarial ou o esforço acrescido para o exercício das mesmas funções), ao que se poderá acrescentar a equiparação de certas despesas a danos e um núcleo muito restrito de outros danos patrimoniais (danos a ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação de limitações funcionais de que o sinistrado já era portador, por exemplo, por força do artigo 43.º da LAT).

Não são abrangidos muitos outros danos; desde logo, os danos não patrimoniais, o sofrimento, o prejuízo estético (que não se traduz em perda da capacidade de ganho), o dano na vida de relação, para mencionar apenas alguns exemplos. E a evolução da responsabilidade civil “geral” tem-se caracterizado pela “descoberta” de novos danos, no afã de conseguir uma reparação genuinamente integral, incluindo danos patrimoniais que a responsabilidade por acidente de trabalho não contempla.».

Deste modo, conclui-se pela improcedência da pretensão inicial do Recorrente.


9. Aqui chegados, importa conhecer da questão subsidiária objecto do presente recurso: saber se, não obstante a indemnização ser considerada bem comum dos cônjuges, se terá de corrigir a verba n.º 1 do activo, atendendo a que, alegadamente, o interessado «recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 30 de dezembro de 2018», pelo que «a indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, [apenas] terá como datas limite, o período compreendido entre os dias 1 e ... de Janeiro de 2019».

Vejamos.

O tribunal a quo julgou parcialmente procedente a apelação do reclamante, revogando a decisão recorrida e «substituindo[-se] essa mesma decisão no sentido de incluir na verba nº 1 apenas o montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho” no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019».

Consideremos a fundamentação de tal decisão, na parte ora relevante:

«(...) com base na informação prestada nos autos pela Generali Seguros, S.A. em 30 de Setembro de 2021 , o sinistrado, ora Apelante, recebeu indemnização por incapacidade temporária absoluta, no período entre 09/04/2015 e 09/10/2017, no valor de 27.334,73€; O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2015 foi de 7.276,84€, por incapacidade temporária; O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2016 foi de 11.611,98€, por incapacidade temporária; O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2017 foi de 11.292,15€, por incapacidade temporária; O montante anual recebido pelo sinistrado no ano de 2018 foi de 8.962,36€, por incapacidade temporária, e de 2.460,98€, a título de pensão anual e vitalícia - cfr. item 7 dos factos considerados provados.

Ficou igualmente provado que entre o dia 09 de Abril de 2015, data do acidente, e o final do ano de 2018, o recorrente já recebeu €66.478,06.

O referido valor de €66.478,06 foi pago ao Apelante nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, ou seja, na constância do matrimónio.

Conforme consta do despacho recorrido, “Por outro lado, apesar de não resultar da Sentença (junta com a reclamação) os valores parcelares efectivamente recebidos pelo interessado, para um melhor apuramento do valor a integrar na verba 1 do activo, é certo que, conforme resulta dos factos provados o interessado recebeu todas as quantias referentes a indemnização por incapacidade temporária, o mesmo é dizer que que lhe foi pago o correspondente aos salários que deixou de auferir desde a data do acidente até 09.10.2017.”

Portanto, o Apelante recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 9 de Outubro de 2017.

Aqui chegados, nesta linha de raciocínio somos forçados a concluir que a indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, terá como datas limite, o período compreendido entre o mês de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019, data em que se operou o divórcio entre Apelante e Apelada e em que cessaram as relações pessoais e patrimoniais entre ambos.

Por conseguinte, a indemnização/pensão anual vitalícia fixada pelo Tribunal de Trabalho apenas poderá ser relacionada como verba nº 1 no período compreendido entre o mês de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019, data em que foi decretado o divórcio entre Apelante e a Apelada e em que cessaram as relações pessoais e patrimoniais.

Com efeito, dispõe o artigo 1789º, n.º 1 do Código Civil que “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotaem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges”.

A extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha. - cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 3275/06.8TBPVZ.P1. disponível em www.dgsi.pt.

Deste modo, no dia ... de Janeiro de 2019, uma vez que o divórcio foi decretado e transitou em julgado nesse mesmo dia, extinguiram-se as relações patrimoniais entre Apelante e Apelada.

Por conseguinte, as quantias devidas ao sinistrado, aqui Apelante, fixadas pelo Tribunal de Trabalho ..., apenas poderão ser relacionadas como verba nº 1 no que respeita ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019, data em que foi decretado o divórcio entre Apelante e a Apelada e em que cessaram as relações pessoais e patrimoniais.

Em conformidade com todo o exposto, é de conceder parcial provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, substituindo essa mesma decisão no sentido de incluir na verba n° 1 apenas o montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho “no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019.» [negritos nossos]

Analisado o teor da fundamentação transcrita, verifica-se que o acórdão recorrido, ainda que tendo concluído que a indemnização devida por acidente de trabalho é um bem comum do casal, julgou parcialmente procedente o recurso de apelação do reclamante por ter ficado provado (facto 7) e por ter sido declarado no despacho da 1.ª instância que parte significativa dos montantes indemnizatórios em causa fora recebida pelo reclamante na constância do matrimónio, acolhendo implicitamente a tese do apelante de acordo com a qual «[n]ão podemos estar a partilhar rendimentos auferidos pelo recorrente e que já entraram no património comum do casal».

No presente recurso, o Recorrente vem invocar que este juízo padece de erro, alegando estar provado (cfr. facto 7) que «recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 30 de dezembro de 2018», pelo que «a indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, [apenas] terá como datas limite, o período compreendido entre os dias 1 e ... de Janeiro de 2019».

Ora, independentemente da relevância a atribuir ao conteúdo do facto provado sob o n.º 7, certo é que a decisão do acórdão recorrido correspondeu à pretensão subsidiária apresentada pelo apelante, ora Recorrente, em sede de recurso de apelação, nos seguintes termos:

«XXVI. Conforme consta do despacho recorrido, “Por outro lado, apesar de não resultar da Sentença (junta com a reclamação) os valores parcelares efectivamente recebidos pelo interessado, para um melhor apuramento do valor a integrar na verba 1 do activo, é certo que, conforme resulta dos factos provados o interessado recebeu todas as quantias referentes a indemnização por incapacidade temporária, o mesmo é dizer que que lhe foi pago o correspondente aos salários que deixou de auferir desde a data do acidente até 09.10.2017.”

XXVII. O recorrente recebeu na constância do matrimónio todos os rendimentos a que tinha direito até ao dia 09 de outubro de 2017.

XXVIII. E como não podia deixar de ser, até porque a recorrida beneficia do apoio judiciário e aufere parcos rendimentos, foi com base nos valores auferidos pelo recorrente que o casal fez face às despesas comuns, nomeadamente habitação, vestuário e alimentação, a exemplo do que sempre sucedeu desde que recorrente e recorrida casaram.

XXIX. A indemnização/pensão anual vitalícia, a ser relacionada, terá como datas limite, o período compreendido entre o mês de outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019, data em que se operou o divórcio entre recorrente e recorrida e em que cessaram as relações pessoais e patrimoniais.». [negrito nosso]

Dada a plena conformidade e correspondência, no que se refere ao teor da verba n.º 1 do activo, entre a decisão proferida pelo acórdão recorrido («(...) incluir na verba nº 1 apenas o montante de “créditos salariais, indemnização resultante de acção de acidente de trabalho” no que se reporta ao período compreendido entre o dia 10 de Outubro de 2017 e o dia ... de Janeiro de 2019») e a pretensão invocada pelo ora Recorrente em sede de recurso de apelação, o respeito pelo princípio do dispositivo leva a que não se possa proceder à reapreciação da matéria em sede de recurso de revista.


10. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 11 de Maio de 2023


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra (com declaração de voto anexa)

João Cura Mariano


***

Declaração de voto


Vencida (apenas) quanto à admissibilidade da revista.

Entendo que, em coerência com anteriores decisões deste Supremo Tribunal de Justiça, o recurso de revista respeitante a Acórdão que incidiu sobre despacho que, por sua vez, decidiu um incidente de reclamação da relação de bens no processo de inventário não é, em princípio, admissível porque não é uma decisão final.

A meu ver, o Acórdão que decide a sentença homologatória da partilha é a decisão em que devem pôr-se, a final, todas as questões, sob pena de duplicação do acesso ao recurso e de desigualdade de tratamento relativamente a situações idênticas (i.e., outras decisões interlocutórias).

(Catarina Serra)

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[1] Disponível em:

http://www.centrodedireitodafamilia.org/sites/cdb-dru7-ph5.dd/files/eBook_-_Curso_de_Direito.pdf.