Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1982/18.1T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
AÇÃO PENAL
AÇÃO CÍVEL
CAUSA DE PEDIR
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
EXCEÇÃO DO CASO JULGADO
QUESTÃO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O pedido de indemnização civil deduzido na acção penal é restrito à responsabilidade civil extracontratual.

II. Daí que, por falta de identidade de causa de pedir, não ocorra a excepção de caso julgado entre o pedido de indemnização civil deduzido em acção penal com base na responsabilidade extracontratual e idêntico pedido deduzido em acção cível com base na responsabilidade contratual, ainda que com invocação de substrato factual idêntico.

III. Nem é invocável a autoridade de caso julgado porquanto não há relação de prejudicialidade entre os dois títulos de responsabilidade civil – contratual e extracontratual.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA

INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA


ENTRE

AA

(aqui patrocinada por BB, adv.)

Autora / Apelada / Recorrida

CONTRA

CC

e consorte

DD

(aqui patrocinados por EE, adv.)

Réus / Apelantes / Recorrentes



I – Relatório

   A Autora, invocando a qualidade de única e universal herdeira de seu pai, intentou a presente acção pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia global de  77.613,50 € (43.350 € e 10.000 € de capital e juros vencidos até 31MAI2018) e juros vincendos à taxa acordada de 5,5% desde 01JUN2018, a título de reembolso e indemnização pela mora referente a mútuo de seu pai ao Réu marido, que utilizou a quantia mutuada em proveito comum do seu casal, que para o efeito aceitou duas letras representativas do capital mutuado e juros vencidos até 31MAR2004 (as quais, no entanto, não tem na sua posse por terem sido furtadas); subsidiariamente invoca enriquecimento sem causa.

 Os Réus contestaram excepcionando o caso julgado (formado em pedido cível formulado em acção penal) e a prescrição quer dos juros quer do direito à restituição por enriquecimento sem causa, bem como o pagamento.

  A Autora respondeu às excepções, propugnando pela sua improcedência.

  No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções da caso julgado e prescrição dos juros e do direito à restituição por enriquecimento sem causa.

  A final foi proferida sentença que, considerando a ocorrência dos alegados mútuos e a não demonstração da correspondente restituição, julgou a acção integralmente procedente.

   Inconformados, apelaram os Réus concluindo, em síntese, pela ocorrência de caso julgado, pela impugnação da matéria de facto e por erro de julgamento.

   A Relação, considerando inexistir excepção de caso julgado ou ofensa da autoridade de caso julgado, caber aos Réus o ónus da prova do por si invocado pagamento, e alterando a matéria de facto no sentido de os juros moratórios apenas serem devidos apenas desde 31MAR2011 e 17NOV2010, confirmou, sem voto de vencido, a sentença recorrida com a correcção relativamente à apontada contagem de juros, condenando os Réus a pagarem à Autora a quantia de 53.350 (43.350 € + 10.000 €) e juros vencidos e vincendos desde 31MAR2011 e 17NOV2010, à taxa de 5,5%.

  Ainda irresignados vieram os Réus interpor recurso de revista com fundamento na violação do caso julgado (artigos 629, nº 2, al. a), do CPC) e recurso de revista excepcional relativamente à «falta física dos documentos/letras, ou seja dos títulos que subjazem à relação obrigacional» com fundamento na oposição de acórdãos (art.º 672º, nº 1, al. c), do CPC) [sendo que, no entanto, no corpo da alegação invocam também as alíneas a) e b) do mesmo nº 1], concluindo, em síntese, pela nulidade de falta de fundamentação, pela ofensa do caso julgado, pela impossibilidade de cobrança sem apresentação respectivo título cartular e consequente violação de direito probatório material, pela nulidade da prova testemunhal e consequente alteração do elenco factual fixado nas instâncias, e por erro na determinação na forma de contagem de juros moratórios. Juntou «para preenchimento do referido pressuposto [contradição de acórdãos]» versão dactilografada de cinco acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.

  Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A revista excepcional não foi admitida pela formação a que alude o art.º 672º, nº 3, do CPC.

A revista nos termos gerais mostra-se já admitida, embora circunscrita à apreciação do respectivo fundamento – ofensa do caso julgado.

           

      Destarte, o recurso merece conhecimento.

      Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

  Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são a única questão a resolver por este Tribunal é a de saber se ocorre violação do caso julgado.


III – Os factos

  Para apreciação da questão solvenda relevam os seguintes factos:

1. O pai da Autora, em 24MAI2011, denunciou perante o Ministério Público o Réu marido, imputando-lhe a prática dos crimes previstos e punidos pelos artigos 190º, 191º, 203º e 259º, todos do Código Penal, porquanto se teria apropriado ilegitimamente de duas letras de câmbio, que retirou do interior da casa do denunciante, onde se logrou introduzir utilizando chave a abusivamente possuía, letras essas que, aceites pelos ora Réus, titulavam os mútuos invocados na presente acção.

2. Tal denúncia deu origem ao processo comum singular nº 135/11...., no qual o pai da Autora se constituiu como assistente, posição em que a Autora veio a ser habilitada.

3. Nesse processo veio a ser deduzida acusação contra o Réu marido imputando-se-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de danificação ou subtração de documento e notação técnica previsto e punidos pelo art.º 259º, nº 1, e um crime de violação de domicílio previsto e punido pelo art.º 109º, nºs 1 e 3, todos do Código Penal.

4. Nesse processo criminal foi deduzido pedido de indemnização civil contra os ora Réus, pedindo-se a condenação dos mesmos a pagar ao demandante a quantia de 62.152,75 € a título de danos patrimoniais e 5.000 € a título de danos não patrimoniais.

5. Foi proferida sentença, entretanto transitada em julgado, que:

- por falta de prova absolveu o arguido dos crimes que lhe eram imputados;

- por falta de prova absolveu o arguido do pedido civil contra si formulado;

- por não ser arguida, e por isso carecer de legitimidade, absolveu da instância civil a demandada, ora Ré.

           


IV – O direito

  O pedido de indemnização civil em sede de processo crime, conforme o prescrito no artigo 71º do CPP, apenas é admissível quanto aos factos objecto de ilícito-crime, que poderão dar origem à indemnização do lesado por via da responsabilidade extracontratual, sendo apenas este tipo de responsabilidade que é sujeito à apreciação do tribunal criminal. Do âmbito desse pedido está excluída a apreciação de eventual responsabilidade contratual, ainda que adveniente dos mesmos factos.

Entendimento esse já perfilhado no Assento 7/99 (DR, 1ª Série - A, 03AGO1999).

E do conteúdo da sentença proferida no processo criminal resulta manifesto que não foi nela apreciada qualquer responsabilidade civil contratual. Com efeito, e desde logo, a Ré mulher foi aí absolvida da instância; por outro lado a responsabilidade do Réu varão foi exclusivamente apreciada à luz do artigo 483º do CCiv, conforme expressamente assumido na respectiva sentença:

           

  Assim a primeira conclusão a extrair é que na acção penal o que estava em causa e foi objecto de julgamento foi a responsabilidade civil decorrente do ilícito criminal da subtracção de letras de câmbio. E não já, ainda que se considere que tal foi alegado a título subsidiário, a responsabilidade civil contratual decorrente dos mútuos subjacentes.

  E em função dessa conclusão torna-se patente que, como bem decidiu a Relação, não ocorre violação do caso julgado.

Desde logo, na sua vertente negativa (excepção de caso julgado), porque inexiste identidade da causa de pedir. Na acção penal, a responsabilidade extracontratual derivada da prática do crime de subtração de documento; nesta acção, a responsabilidade contratual derivada do incumprimento das obrigações decorrentes de contrato de mútuo, ou, subsidiariamente, de enriquecimento sem causa.

A diferenciação de causas de pedir em função dessas diferentes tipologias processuais foi já afirmada no acórdão do STJ, 26SET2013, proc. 1202/11.0TBBRG.G1.S1; e entre a responsabilidade civil e o enriquecimento sem causa no acórdão do STJ de 26JAN2016, proc. 310/13.7TBVLG.P1.S1.

Mas também na sua vertente positiva (autoridade de caso julgado) uma vez que, e sem necessidade de discorrer agora sobre a possibilidade de extensão da autoridade do caso julgado a terceiros (a ora Ré que na acção penal foi absolvida da instância por ilegitimidade), entre aqueles dois tipos de responsabilidade não ocorre uma relação de prejudicialidade. A obrigação de restituição do capital mutuado ou o prejuízo resultante do seu não cumprimento não está dependente da existência ou inexistência de um correlativo título cambiário.

      


V – Decisão

Termos em que se nega a revista, confirmando a decisão recorrida.

Custas da revista pelos Recorrentes.

                                                                      

Lisboa, 21ABR2022

Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista