Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
896/07.5TBSTS.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
HIPOTECA
ENCARGOS
CADUCIDADE
PUBLICIDADE
EDITAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/22/2015
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO EXECUTIVO / VENDA DE BENS EXECUTADOS.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO ( REALIZAÇÃO COATIVA DA PRESTAÇÃO ) / ACÇÃO DE CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO ( AÇÃO DE CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO ).
Doutrina:
- Ana Carolina Sequeira, “A Extinção e Direitos por Venda Executiva”, Garantias das Obrigações, pp. 23 e 43.
- Oliveira Ascensão, in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 45, p.363 e ss..
- Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, p. 321.
- Henrique Mesquita, in RLJ, 127.º, p. 223.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 824.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16-09-2014, PROC. N.º 351/09TVLSB.L1.S1; DE 27-05-2010, PROC. N.º 5425/03.7TBSXL.S1; DE 5-02-2009, PROC. N.º 4087/08, DOCUMENTO N.º SJ200902050040872, IN WWW.DGSI.PT ; DE 28-06-2007, PROC. N.º 1838/07, E DE 31-10-2006, PROC. N.º 3241/06.
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SUMÁRIO DO ACÓRDÃO, DE 9 DE JULHO DE 2015, 6.ª SECÇÃO, IN WWW.STJ.PT .
Sumário :
I - Em processo executivo e, concretamente, na venda em execução são essenciais a clareza e o rigor da publicitação da venda porquanto é perante essa publicidade que, de um modo geral, os potenciais compradores definem os seus interesses e formam as respectivas vontades em relação ao bem a alienar.

II - A simples inscrição na publicitação da venda não faz nascer um ónus ou limitação que nunca existiu nem impede a morte de um ónus ou limitação que caduca por força da própria venda executiva.

III - Não é, pois, a circunstância de no edital que anunciava a venda em execução se fazer constar que o bem se encontra onerado por um arrendamento a favor de A. que faz nascer o ónus desse arrendamento (se acaso não existia) ou que evita a sua morte ou os seus efeitos se, tendo existido, deva ter-se por inoponível ao comprador ou caducado por força e como efeito da própria venda.

IV - Quer se considere a dimensão real do arrendamento quer tão só e apenas a dimensão obrigacional do contrato que o substancia, o que importa é definir se o ónus ocorreu antes ou depois do arresto, penhora ou garantia com os quais o credor/exequente se protegeu.

V - O STJ, preocupado sobretudo com a dimensão real do arrendamento, vem decidindo uniformemente que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC.

VI - Tendo a arrendatária celebrado dois contratos de arrendamento – um anterior e outro posterior ao registo da hipoteca –, uma vez que a celebração do segundo contrato de arrendamento só pode ter como pressuposto, ou como efeito, a extinção ou cessação do primeiro, o contrato de arrendamento a considerar é o posterior à hipoteca o qual, face ao referido em V, caducou com a venda judicial da fracção a que respeita.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




BANCO AA, S.A.

instaurou, em 12 de Fevereiro de 2007,  no Tribunal Judicial de Santo Tirso, acção de execução para pagamento de quantia certa (que corre sob o nº896/07.5TBSTS, no 1º Juízo Cível ) contra

BB sustentando que

por escritura pública celebrada em 5 de Março de 2002, no Cartório Notarial de Vila do Conde, celebrou com o executado um contrato de mútuo com hipoteca, tendo-lhe emprestado a prazo a quantia de 65 000,00 euros, empréstimo para cuja garantia constituiu, sobre o imóvel que descreve, hipoteca que está registada a seu favor;

está em dívida, neste momento, de capital e juros, o montante global de 67 883,11 euros.

Indicou à penhora exactamente o bem hipotecado - a fracção autónoma designada pela letra “AA”, para habitação, correspondente ao 4º andar esquerdo do prédio situado na Rua …, Lugar de …, freguesia de São Martinho do Bougado, concelho de Santo Tirso, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº ....

No dia 10 de Dezembro de 2007 a fracção foi penhorada (fls.66 e 69) e a penhora foi registada.

Posteriormente, para a venda deste bem mediante propostas em carta fechada foi designado, por despacho de fls.112, o dia 5 de Novembro de 2009, com publicação dos editais com o texto de fls.115, dos quais consta a descrição pura e simples do “bem a vender”.

Antes porém, em 2 de Novembro de 2009 (fls.119), veio CC, afirmando-se arrendatária do imóvel em causa e acrescentando que «o edital da venda do imóvel não menciona o ónus que sobre o imóvel impende, mormente o arrendamento a si conferido»,

requerer a convocação de nova venda, dando-se a conhecer aos potenciais adquirentes que sobre a referida fracção incide o contrato de arrendamento de que é titular, alegando, em resumo, que reside na referida fracção, da qual é arrendatária desde, pelo menos, o ano 2000, e que não foi notificada para exercer o direito de preferência de que é titular.

Para instruir este seu requerimento, junta documentos vários, entre os quais o “contrato de Arrendamento para Habitação” celebrado com DD, datado de 5 de Abril de 2000 (fls.131), e o “Contrato de Arrendamento” celebrado com o executado BB, datado de 11 de Março de 2002 (fls.132 ), ambos referentes ao mesmo prédio penhorado.

Perante este requerimento, e no aprazado dia 5 de Novembro de 2009, foi elaborado um “Auto de Abertura de Propostas em Carta Fechada” (fls.145) no qual se declarou que «não se procedeu à diligência de venda por propostas em carta fechada do imóvel penhorado por esta ter sido dada sem efeito pela Exma Dra Juíza, após análise do requerimento de fls. junto aos autos pela arrendatária do referido imóvel CC», determinando-se a notificação de exequente e executado para eventual contraditório.

A fls.156 foi proferido o seguinte despacho:

«Se sobre o prédio penhorado incide ou não arrendamento, é questão de particular importância designadamente para efeitos de venda, pois adquirir um imóvel devoluto de pessoas e bens é completamente diferente de adquirir um imóvel que arrasta consigo um inquilino.

Não é só o direito de preferência que aqui está em causa, mas muito mais.

O Tribunal, para avançar para uma venda, tem de estar munido de elementos suficientes para aferir da credibilidade de tal contrato, tanto mais que os editais e os anúncios têm de fazer constar a existência, a existir esse contrato.

Por esse facto se deu sem efeito a abertura de propostas em carta fechada


Posto isto:

Determino que se notifique o executado do teor do contrato em causa para, em dez dias, se pronunciar… »

O exequente AA, S.A. ( fls. 159 ) impugnou todo o alegado e, bem assim, os documentos apresentados pela requerente para sustentar a sua alegação.

Defendeu ainda que o apuramento da veracidade do alegado contrato de arrendamento implicaria produção de prova, não sendo esta execução processualmente idónea para tanto, nem o juiz de execução competente.

Finalizando, pediu o agendamento de nova data para a venda, com a citação da propalada arrendatária, no caso de o Tribunal considerar pertinentes e suficientes os elementos juntos aos autos para comprovar a existência do invocado arrendamento, ou sem a realização da referida notificação, sendo a requerente remetida para os meios processuais comuns.

Após algumas diligências instrutórias, e sem que houvesse qualquer outra pronúncia sobre os requerimentos antes referidos, foi por despacho de fls. 210 designada nova data para abertura de propostas – 30 de Março de 2011 - fazendo-se constar do respectivo edital (fls. 238) que «o bem se encontra onerado por um arrendamento a favor de CC» e notificando-se do acto a arrendatária, nesta qualidade.

Da notificação ao exequente AA (fls.213) não consta a indicação de qualquer arrendamento que recaia sobre o prédio a vender.

No dia marcado procedeu-se (fls. 254) à abertura da única proposta em carta fechada, apresentada pelo exequente, no valor de 57 900,00 euros.

O exequente requereu à solicitadora de execução, em 14 de Novembro de 2012 (fls. 310) , com base no título de aquisição e nos termos do artigo 901.º, 930.º e 840.º do Código de Processo Civil, a entrega daquela fracção, com o auxílio da força pública e arrombamento de portas, se necessário.

A Solicitadora de Execução veio (fls.320) requerer, «nos termos do art840º, nº2 do CPCivil, autorização do auxílio da força pública  para entrar na posse do imóvel já adjudicado ao exequente |porquanto| sabe que o imóvel em causa encontra-se fechado, sem ninguém no local para abrir a porta, uma vez que o executado está em parte incerta e que será necessário proceder ao arrombamento da porta … », requerimento que foi deferido por despacho de fls. 322.

Todavia, a requerente CC (338) veio reafirmar ser arrendatária desde, pelo menos, o ano 2000 da fracção adquirida pela exequente pelo que, sendo o arrendamento anterior ao registo da hipoteca a favor desta, os direitos e obrigações do senhorio se transmitiram para a mesma.

Em consequência, pediu o indeferimento da pretensão de entrega da fracção referida à exequente, a revogação do eventual despacho a ordenar tal entrega e informação sobre a data da adjudicação do imóvel à exequente para que lhe pagar as rendas.

Juntou cópia de acórdão da Relação de Coimbra no proc. nº1734/107TBFIG (Albertina Pedroso) de 09-10-2012 e arrolou ainda prova testemunhal, que todavia não foi ouvida.

Renovando o pedido de entrega já formulado, opôs-se o exequente (fls. 363), alegando em suma não reconhecer a requerente como arrendatária, qualidade que também não lhe foi reconhecida em processo judicial autónomo, que tem, necessariamente, de correr para o efeito por se tratar de discussão que não pode ser travada nestes autos.

A fls. 376, a senhora Solicitadora de Execução, cumprindo notificação que lhe foi feita, veio dizer que «o imóvel adjudicado ao exequente encontra-se habitado por duas pessoas, mãe e filha. A Senhora CC é uma senhora de avançada idade, doente e com muitas limitações na locomoção. A AE tem vindo a diligenciar a entrega do referido imóvel sem recurso à força pública, devido ao estado de saúde da referida senhora CC».

Notificada para juntar o contrato de arrendamento invocado, juntou a requerente CC cópia do requerimento e documentos já apresentados no dia 2 de Novembro de 2009, incluindo os dois contratos de fls. 131 e 132.

De novo se pronunciou o exequente, alegando, em suma, que a existir algum contrato de arrendamento anterior à aquisição da fracção autónoma pelo executado o mesmo foi resolvido ou caducou com a celebração de novo contrato de arrendamento entre a requerente e o executado. Sendo este último contrato posterior à constituição da hipoteca deve considerar-se extinto, por caducidade, com a venda judicial do imóvel arrendado.

Renovou ainda o pedido de entrega das chaves da aludida fracção.

Em 27 de Janeiro de 2014 (fls. 497), foi proferido o seguinte despacho:

Como resulta dos autos, a existir qualquer contrato de arrendamento celebrado a favor de CC por parte do executado BB apenas podemos estar a referir-nos ao contrato celebrado a 11/03/2002, nos autos a fls. 131, não sendo oponível a qualquer das partes, nem as vinculando, qualquer contrato celebrado em momento anterior à aquisição da fracção por parte do executado, pois que em momento anterior, este não poderia ter celebrado qualquer contrato.

No caso em apreço, a escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada entre a Exequente e o Executado é de 05/03/2002, onde este declara que a aquisição da fracção é destinada exclusivamente à sua habitação própria permanente, declarando a vendedora que a fracção é vendida livre de ónus e encargos.

A hipoteca encontra-se registada desde 08/02/2002.

A penhora foi registada em 10/12/2007.

O arrendamento em causa nunca foi participado às Finanças.

Seja em termos económicos, seja em termos jurídicos, o contrato de arrendamento não pode deixar de ser reconduzido ao conceito de ónus.

Sendo já uma questão debatida largamente na doutrina e na jurisprudência, diremos que, nos casos como o dos autos, em que o contrato de arrendamento é posterior ao registo da hipoteca, defendemos o entendimento que na expressão direitos reais mencionada no art.824º nº 2 do Código Civil se inclui, por analogia, o contrato de arrendamento.

Tal implica a caducidade do contrato de arrendamento.

No sentido sufragado veja-se, entre outros, os Acs. da Relação do Porto de 20/12/2004, 22/01/2004, 06/02/2007, Acs. da Relação de Coimbra de 26/02/2013, 14/03/2006 e 21/10/2008 e Acs. do STJ de 7/05/2010, 05/02/2009 e 11/05/2007, todos disponíveis no endereço electrónico ww.dgsi.pt.

Assim, e em face de todo o exposto, outra conclusão não se impõe que não seja julgar verificada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado pelo executado a 11/03/2002 com a venda celebrada nos autos.

Destarte, indefiro o Requerido a fls. 340, devendo a Sr. (ª) Agente de Execução diligenciar pela entrega efectiva do imóvel ao seu adquirente”.

Inconformada, apelou a requerente CC (fls. 454).

Por acórdão da Relação do Porto, de fls. 512 a 522, datado de 16 de Setembro de 2014, foi concedido provimento ao recurso e, consequentemente, revogado na íntegra o despacho recorrido.

Inconformado, é agora o exequente/apelado a recorrer de revista (fls. 529), CONCLUINDO:

1. O Recorrente sempre expôs nos autos a sua oposição ao reconhecimento do contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrida e o executado, não só quanto à forma como o mesmo foi invocado, mas também quanto a matéria que dele a Recorrida tentou extrair para sustentar a sua posição.

2. Conforme estabelece o artigo 817º n.º 4 do CPCivil, estando pendente decisão sobre algum facto objecto de litígio entre as partes, deve tal facto constar dos anúncios de venda, sob pena de nulidade do acto que vier a ser praticado, não se querendo com isto dizer que tal imposição legal imponha a uma das partes o reconhecimento tácito da improcedência da sua posição contraditada, apenas porque tal ficou a constar do anúncio.

3. Não se podendo assim retirar a conclusão de que o Recorrente ao apresentar a proposta de compra aceitou implicitamente a existência daquele contrato, conformando-se com tal facto, por entendimento ser errado e legalmente infundado.

4. O Recorrente sempre agiu na convicção de que não estava (como nunca esteve) reconhecido qualquer contrato de arrendamento na altura em que formulou a sua proposta de compra, face à impugnação que deduziu para efeitos de não reconhecimento desse contrato.

5. Sem prejuízo de tal proposta de aquisição ter sido realizada na expectativa legítima que, a ser eventualmente reconhecido tal contrato, o mesmo teria de caducar com a venda, por ter sido celebrado após o registo da hipoteca a seu favor.

6. Pelo que, atendendo não só ao não reconhecimento expresso do referido contrato de arrendamento por parte do Recorrente, mas também, à caducidade do mesmo, o requerido e alegado pela Recorrida teria de ser julgado improcedente por falta de fundamento legal, o que, por sua vez, implicaria decisão contrária àquela que foi proferida pelo acórdão recorrido e, bem assim, mantida a decisão de entrega do imóvel ao Recorrente.

7. O Recorrente foi notificado da venda apenas nos termos e para os efeitos do disposto no anterior artigo 886º-A n.º 6 e 890º n.º 2 do CPCivil, nada sendo aí referido quanto ao aludido contrato de arrendamento, não tendo tido assim conhecimento de que dos anúncios constava outro texto no qual se incluía a existência do citado contrato, não tendo participada na redacção do texto do anúncio nem tão pouco na sua publicação, incumbências do Solicitador de Execução nomeado nos autos.

8. O Acórdão recorrido entra em contradição patente com outras decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, que se subscrevem, designadamente, o Acórdão proferido pelo STJ de 27.05.2010 (Proc. n.º 5425/03.7TBSXL.S1, Álvaro Rodrigues).

9. O que, além do mais, fundamenta também a apresentação do presente recurso de revista, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 671º n.º 2, al. b) do CPCivil.

10. Ao contrário do que sustenta o Acórdão recorrido, o disposto no artigo 824º n.º 2 do CCivil estabelece um conceito de peremptoriedade, no sentido de que os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer registo de garantia, nomeadamente, de hipoteca.

11. Pois que a ratio legis daquela norma é, precisamente, a tutela dos direitos dos credores titulares de garantias reais, registadas com anterioridade relativamente ao estabelecimento da invocada relação locatária.

12. De outra forma, a admitir-se a tese sufragada no acórdão recorrido, de nada serviria o reconhecimento da garantia hipotecária a favor do Recorrente na salvaguarda dos direitos legalmente inerentes, posta em causa por um mero anúncio de venda judicial, fazendo-se ainda tábua rasa da impugnação judicial feita processualmente pelo Banco relativamente à existência e da data de celebração do alegado contrato de arrendamento.

13. Pelo que, mesmo na hipótese de se admitir o reconhecimento do contrato de arrendamento – o que não se admite -, sempre o Acórdão recorrido deveria ter concluído pela sua caducidade nos termos do disposto no artigo 824º n.º 2 do CCivil, julgando assim improcedente a apelação da Recorrida e mantendo a decisão proferida em primeira instância.

14. O Acórdão recorrido põe ainda em causa o princípio da segurança jurídica, implícito no Artº 890º do CPCivil e plasmado no Artº 202º nº 2 da CRP, ao contrário de o defender.

15. Posto que dos autos e até à altura da venda (e mesmo depois com a decisão proferida em primeira instância) não resulta qualquer decisão sobre existência de um contrato de arrendamento, quer ainda que o mesmo tenha sido celebrado com data anterior à do registo de hipoteca a favor do Banco.

16. E portanto a decisão de propor a compra de um imóvel por parte do Banco partiu desta premissa e não na inversa, conforme sugerido no acórdão recorrido.

17. Se a publicidade da venda é de especial importância para a realização da mesma, devendo qualquer alienação levada a cabo num processo judicial reger-se pelos princípios da transparência e da confiança,

18. Então não poderá nunca ser posta em causa, por uma mera inserção num anúncio da existência de um contrato de arrendamento, tudo o alegado entre as partes, exaustivamente, durante a execução judicial pendente, posto que o Banco agiu na convicção de que não estava (como não esteve) reconhecido qualquer contrato de arrendamento na altura em que formulou a sua proposta de compra, face à impugnação de que o mesmo foi alvo da sua parte.

19. O Banco recorrente agiu pois com a legítima expectativa legítima de que o referido contrato, a vir a ser eventualmente reconhecido, sempre caducaria com a venda, por ter sido celebrado após o registo da hipoteca a seu favor.

20. Foi esta premissa com que apresentou a proposta de compra nos autos, agindo com o pressuposto de que a sua actuação, assim como as suas expectativas, mereciam defesa por parte da lei, civil geral e processual civil, regendo-se pelos princípios de confiança e transparência aludidos no Acórdão recorrido.

21. O Banco não é um comprador qualquer, na venda judicial efectuada nos autos, que teve conhecimento da venda efectuada pelos anúncios publicados, mas sim um comprador privilegiado, com garantia real sobre o imóvel, exequente e credor reclamante nos autos, tendo intervindo nos mesmos desde o seu início.

22. Agiu pois nos autos, requerendo a adjudicação do imóvel e requerendo a sua posterior entrega efectiva, na medida das legítimas expectativas que lhe foram sendo criadas ao longo do processo, em que houve uma total ausência de prévio reconhecimento, implícito ou explícito, JUDICIAL, do ónus do contrato de arrendamento sobre aquele prédio, ao contrário do que é dado a entender no Acórdão recorrido.

23. Tendo em consideração que a ora Recorrida foi notificada para proceder à entrega do imóvel arrendado nos termos do disposto no artigo 901º e 930º e seguintes, na anterior redacção do CPC, e não tendo esta promovido pela dedução dos respectivos embargos de terceiro, em tempo, sempre lhe assistiria a dedução de oposição à execução para invocação dos respectivos direitos e eventual reconhecimento do contrato de arrendamento, em defesa da sua qualidade de alegada arrendatária e possuidora do imóvel penhorado e vendido.

24. Não o tendo feito, a Recorrida perdeu a oportunidade de fazer valer nesta acção os seus alegados direitos de arrendatária contra a ofensa da posse do imóvel arrendado.

25. O meio empregue pela ora Recorrida para fazer valer os seus pretensos direitos na acção executiva em curso não é, assim, o meio processualmente admissível.

26. Facto que não podia deixar de ser atendido pela decisão do Acórdão recorrido, concluindo que, além de infundado, o peticionado pela ora Recorrida é legal e processualmente insustentável, merecendo, assim, a improcedência da apelação formulada.

27. Concluindo-se que o acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do direito aos factos, justificando o presente recurso de revista.

28. Por outro lado, o Acórdão recorrido está em clara oposição com o Acórdão fundamento que supra se expôs, tendo decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de Direito – a caducidade do contrato de arrendamento por força do disposto no artigo 824º n.º 2 do CCivil.

29. Resultando do exposto que o Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 824º n.º 2 do Cód. Civil, artigos 817º n.º 4, 827º e 861º do CPC, bem como o próprio artigo 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa.

Contra-alegou a recorrida (fls. 626), defendendo a confirmação do julgado. 

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Com atenção à dinâmica processual que se veio relatando e aos FACTOS que, por via documental, se podem retirar dos autos. A saber:

a) Por escrito particular, datado de 5 de Abril de 2000, cuja cópia faz fls. 131, DD declarou dar de arrendamento a CC, mediante o pagamento mensal da contrapartida de 13.000$00, a fracção autónoma designada pelas letras “AA”, 4º andar esquerdo, para habitação, do prédio urbano situado na Rua …, Lugar de …, freguesia de São Martinho do Bougado, concelho de Santo Tirso, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … e descrita na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº ….

b) Por escritura pública outorgada no dia 5 de Março de 2002, cuja cópia certificada está junta a fls. 7-15, DD declarou vender a BB e este declarou comprar-lhe a referida fracção autónoma.

c) Na mesma escritura outorgou ainda o Banco AA, SA, Sociedade Aberta, o qual declarou emprestar ao referido BB a quantia de € 65 000,00, constituindo este a favor daquele hipoteca sobre a dita fracção autónoma para garantia do pagamento.

d) A hipoteca encontra-se registada desde 08/02/2002.

e) Por escrito particular de 11 de Março de 2002, fotocopiado a fls. 132, BB declarou dar de arrendamento a CC, mediante o pagamento mensal da contrapartida de € 65,00, a aludida fracção autónoma designada pelas letras “AA”.

f) A penhora foi registada em 10/12/2007.


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Em processo executivo e, concretamente, na venda em execução, são essenciais a clareza e o rigor da publicitação da venda porquanto, como se acentua no acórdão recorrido – e se transcreve - «é perante [ess]a publicidade que, de um modo geral, os potenciais compradores definem os seus interesses e formam a[s] respectivas vontades em relação ao bem a alienar. Por isso mesmo, nos termos do artigo 890º, nº3 do CPCivil que vigorava à época, do anúncio da venda devem constar “o nome do executado, a identificação do agente de execução, o dia, hora e local da abertura das propostas, a identificação sumária dos bens e o valor a anunciar para a venda … [s]e, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito (…)” – artigo 908.º n.º 1 do Código de Processo Civil ».

Estamos naturalmente a pensar num ónus ou limitação que exista, actuante e vivo, e situações em que o comprador veja reduzido o valor da coisa que comprou (e que o Estado, no exercício do seu poder executivo, lhe “ofereceu” à compra) perante o respeito que é devido ao titular desse mesmo ónus ou encargo.

Assim se protege não só o comprador como o titular do ónus ou limitação, como se protege o exequente e mesmo o próprio executado pela maior disponibilidade e confiança com que o universo de potenciais compradores se aproxima de uma limpa e exigente venda judicial, permitindo um valor de venda mais justo.

Mas não é a sua simples inscrição na publicitação da venda que faz nascer um ónus ou limitação que nunca existiu ou que impede a morte de um ónus ou limitação que caduca por força da própria venda executiva.

Não é, pois, a circunstância de no edital que anunciava a venda em execução em 30 de Março de 2011 se fazer constar que «o bem se encontra onerado por uma arrendamento a favor de CC » que faz nascer o ónus deste arrendamento ( se acaso não existia ) ou que evita a sua morte ou os seus efeitos se, tendo existido, deva ter-se por inoponível ao comprador ou caducado por força e como efeito da própria venda.

Deve aliás notar-se que,

se é verdade que no edital da primeira venda designada para 5 de Novembro de 2009, não constava a indicação de qualquer arrendamento (o que possibilitou o requerimento da mencionada CC para a marcação de nova data para a venda e o despacho que sobre ele recaiu preocupado não só com o direito de preferência por ela invocado mas também porque o tribunal, para avançar para uma venda, tem de estar munido de elementos suficientes para aferir da credibilidade de tal contrato, tanto mais que os editais e anúncios têm de fazer constar a existência, a existir esse contrato ),

não é menos verdade que o edital da segunda venda inclui a menção do arrendamento sem que, todavia, tenha havido qualquer pronúncia sobre isso mesmo, sobre a existência e credibilidade do arrendamento invocado. E, se houve a preocupação de notificar do acto a arrendatária, não houve na notificação feita ao exequente (que veio a ser o comprador) a indicação de qualquer arrendamento a recair sobre o prédio a vender (e a comprar).

De modo que tudo se reconduz a saber se existia ou não sobre o prédio vendido um arrendamento, que arrendamento, em que tempo nascido se nasceu.

É óbvio, é óbvio de um ponto de vista socio-económico, que arrendamento que incida sobre um determinado imóvel, constitui um pesado ónus incidindo sobre este.

E é essencial isso mesmo (saber do arrendamento e do seu tempo) porque quer se considere a dimensão real do arrendamento quer tão só e apenas a dimensão obrigacional do contrato que o substancia, o que importa é definir se o ónus (ou o contrato que formalizou a sua criação) ocorreu antes ou depois do arresto, penhora ou garantia com os quais o credor/exequente se protegeu e que, se posteriores, na sua dimensão real o fazem caducar por deverem ter o tratamento previsto no nº2 do art.824º do CCivil ou, na sua dimensão puramente obrigacional o tornam inoponível ao comprador por não estar o devedor inteiramente livre para dispor dos bens a seu bel prazer, condicionado que está pela garantia que sobre ele o credor fez recair.

E é assim que este Supremo Tribunal, preocupado sobretudo com a dimensão real do arrendamento (do arrendamento se realizou em concreto e não ficou apenas na dimensão obrigacional do contrato que o sustenta ou parece sustentá-lo), vem decidindo uniformemente no sentido assumido no sumário do acórdão da 6ª SECÇÃO deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Julho de 2015 (João Camilo), que se transcreve - «com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do art.824.º do CCivil ».

Neste mesmo acórdão se podem respigar as referências doutrinárias e jurisprudenciais que exactamente sustentam a ideia de que ao direito do arrendatário deve ser aplicado por analogia o disposto no mencionado artigo – Oliveira Ascenção, in Revista da Ordem dos Advogados, nº 45, pág. 363 e segs.;  Henrique Mesquita, in RLJ, 127º, 223; Romano Martinez, in “ Da Cessação do Contrato “, pág. 321; Ana Carolina Sequeira, in “ A Extinção e Direitos por Venda Executiva”, in ” Garantias das Obrigações”, págs. 23 e 43.

E, na jurisprudência, e por mais recentes, os acórdãos de 16-09-2014, no proc. nº 351/09TVLSB.L1.S1; de 27-05-2010 no proc. nº5425/03.7TBSXL.S1; de 5-02-2009 no proc. nº SJ200902050040872; de 28-06-2007, no proc. nº 1838/07 e de 31-10-2006, no proc. nº 3241/06.

In casu, o que temos?

Temos apenas, esgrimidos pela recorrida CC, dois contratos de arrendamento da mesma fracção – a fracção vendida – no primeiro dos quais, datado de 5 de Abril de 2000, DD declarou dar de arrendamento a CC; o segundo, datado de 11 de Março de 2002, no qual o ora executado BB, que adquirira a mesmíssima fracção à mesmíssima DD, declarou dar de arrendamento a CC.

Em nenhum momento está afirmada, sequer, a já referida dimensão real de qualquer deles. Veja-se que a senhora Solicitadora de Execução, num primeiro momento (fls. 320) requerer a intervenção da força pública porque « o imóvel em causa se encontra fechado, sem ninguém no local para abrir a porta, uma vez que o executado está ausente em parte incerta … E só posteriormente o veio dizer, então, « habitado por duas pessoas, mãe e filha, uma das quais a CC, de avançada idade, doente e com muitas dificuldades de locomoção ».

Mas seja como for, o que acontece é a celebração do segundo contrato de arrendamento só pode ter como pressuposto, ou como efeito, a extinção ou cessação do primeiro desses contratos.

Sendo ela, como é, quem em ambos os contratos se apresenta como locatária, a CC só poderia celebrar, com o executado BB, o contrato de arrendamento de 11 de Março de 2002, se acaso a fracção dada de arrendamento não estivesse já liberta, por extensão, do contrato celebrado em 5 de Abril de 2000.

O contrato que tem por objecto, agora, a fracção que foi vendida, é o contrato que foi celebrado em 11 de Março de 2002 e não outro que eventualmente tenha sido celebrado antes com a anterior proprietária da fracção.

Ora, este contrato, o contrato de arrendamento a considerar, é posterior à hipoteca inscrita pelo exequente para garantia do seu pagamento futuro, celebrada em 5 de Março de 2002 e com registo de 8 de Fevereiro desse mesmo ano.

Este arrendamento caducou com a venda judicial da fracção.


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D   E   C   I   S   à  O



Na procedência do recurso,

concede-se a revista e, revogando-se o acórdão recorrido, recupera-se a decisão de primeira instância indeferindo-se o requerido a fls. 340, devendo a Srª Agente de Execução diligenciar pela entrega do imóvel ao seu adquirente.

Custas a cargo da recorrida.

LISBOA, 22 de Outubro de 2015


Pires da Rosa (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Fernanda Isabel Pereira (vencida, conforme declaração que segue)

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Declaração de voto


Voto vencida por entender que, no caso em análise, não está em causa um mero contrato de arrendamento outorgado pelo executado, na qualidade de locador, após a constituição e registo de hipoteca sobre o imóvel que dele foi objecto, situação em que, a relação locatícia estabelecida por via desse contrato seria inoponível ao adquirente do imóvel em venda executiva.

O caso vertente apresenta uma singularidade: a fracção autónoma judicialmente vendida na acção executiva terá sido objecto de dois contratos de arrendamento que se sucederam no tempo, assumindo a recorrida em ambos a posição de arrendatária.

Um primeiro (datado de 5 de Abril de 2000) celebrado entre a recorrida CC, então proprietária e ulterior vendedora da fracção “AA” ao executado, contrato que terá perdurado até à data em que o executado, após a aquisição daquela fracção, viria a outorgar com a recorrida um outro contrato de arrendamento respeitante à fracção autónoma em causa (datado de 11 de Março de 2002).

Realidade que, a provar-se, levaria a que se tivesse operado a transmissão da posição da locadora para o executado por força do estatuído no artigo 1057º do Código Civil (emptio non tollit locatum), qualidade que adviria do primeiro contrato de arrendamento, anterior quer à escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca (5 de Março de 2002), quer ao registo da hipoteca (8 de Fevereiro de 2002).

Importaria, assim, averiguar esta facticidade e, bem assim, qual o propósito ou razão subjacente à alegada realização de um segundo contrato de arrendamento (em 11 de Março de 2002), idêntico ao primeiro, entre o executado e a recorrida, alegadamente, já arrendatária da aludida fracção na data da constituição e do registo da hipoteca.

Isto porque o exequente (credor hipotecário) conhecia, pelo menos, a possibilidade séria da existência de contrato de arrendamento validamente celebrado, aceitou a publicitação da venda judicial da fracção com essa menção expressa e, ainda assim, comprou a fracção, não tendo ocorrido, por conseguinte, qualquer desconformidade entre o que foi anunciado e o que foi vendido ao exequente.

Essa averiguação não é, contudo, processualmente compatível com o incidente de entrega da fracção judicialmente vendida ao exequente no âmbito desta acção executiva ao abrigo do estabelecido no artigo 930º do Código de Processo Civil, na versão anterior ao DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, (aqui aplicável, por força do disposto nos respectivos artigos 11º nº 1 e 12º nº 1).

Para resolver estas situações o legislador previu no Código de Processo Civil de 1939 o processo especial de posse ou entrega judicial (artigos 1043º e segs.), no âmbito do qual o arrendatário (possuidor em nome alheio) poderia opor ao requerente o uso e fruição legítimos do prédio com base em contrato de arrendamento, situação em que, provada a existência de um tal contrato, não poderia ser conferida ao requerente a posse material e efectiva, mas, tão-somente, a posse jurídica (vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I – Reimpressão, Coimbra Editora 1982, p. 468).

Eliminado este processo especial do nosso ordenamento jurídico-processual e perante as circunstâncias concretas do caso, entendo que recorrente/exequente e recorrida deveriam discutir em acção própria a existência ou não de contrato de arrendamento legitimador da ocupação pela recorrida da fracção comprada por aquele. Não julgaria, assim, verificada nesta execução a caducidade do contrato de arrendamento por não disporem, a meu ver, estes autos de elementos que permitam compreender se o arrendamento titulado por escrito particular com data de 11 de Março de 2002 constituía uma extensão do contrato de arrendamento alegadamente outorgado em 5 de Abril de 2000 entre a recorrida e a anterior proprietária da fracção ou um contrato perfeitamente autónomo daquele, posterior à hipoteca inscrita a favor do exequente, hipótese em que operaria, então, a caducidade por efeito do disposto no artigo 824º nº 2 do Código Civil.

Negaria, por conseguinte, a revista e confirmaria o acórdão recorrido.

22 de Outubro de 2015