Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P1955
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Nº do Documento: SJ200807030019555
Data do Acordão: 07/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :

I - A fixação de jurisprudência, como recurso extraordinário que é, não está vocacionada para resolver uma questão particular do sujeito processual interessado (pois pressupõe o prévio trânsito em julgado do acórdão recorrido), embora, reflexamente, possa vir a ter essa consequência final. Dirige-se primordialmente a uniformizar a jurisprudência e, por isso, tem como principais destinatários os tribunais e a comunidade jurídica em geral, em relação a qualquer questão jurídica que tenha sido decidida pelos tribunais superiores em sentido oposto.

II - Daí que, tratando-se de um meio jurídico que está para além dos previstos ordinariamente pela lei processual e em que se faz intervir um tribunal próprio, expressamente constituído para esse fim, com o seu peso e solenidade – o Pleno das Secções Criminais do STJ – é necessário, como requisito prévio, que tenha havido decisões jurídicas fundamentadas e expressas sobre o mesmo ponto de direito, por dois tribunais superiores e em sentido oposto.

III - Não bastará, portanto, para que haja oposição de julgados relevante que um tribunal superior tenha decidido fundamentadamente num sentido e que outro da mesma ou maior hierarquia tenha decidido em sentido oposto sem se debruçar especificamente sobre a questão jurídica que esteve na base da decisão diferente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. A, arguido no processo n.º 9820/07-5 do Tribunal da Relação de Lisboa, veio, em 22/04/2008, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos art.ºs 437.º e seguintes do CPP, do acórdão desse Tribunal de 26 de Fevereiro de 2008, transitado em julgado em 01/04/2008, que confirmou, em recurso, a sua condenação como autor de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. no art.º 108.º do Dec.-Lei n.º 422/89, de 2/12, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 10/95, de 19/01, com o fundamento de que a interpretação sobre o conceito legal de jogo de fortuna ou azar se encontra em oposição, no domínio da mesma legislação, com o adoptado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/11/2007, no processo n.º 3186/07-3, transitado em julgado em 12 de Dezembro de 2007 e publicado na base de dados do M. da Justiça.

Concluiu do seguinte modo (transcrição):

1. Em ambos os acórdãos, para preenchimento do tipo de crime ali imputado, foi analisada a mesma questão de direito: qualificação de jogo de fortuna ou azar (art.º 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89 de 2 de Dezembro).

2. As características das máquinas e dos jogos desenvolvidos nas máquinas identificadas em ambos os acórdãos são idênticos (facto que resulta também do próprio acórdão recorrido, vide fls. 23, paragrafo 3°: “Por último, o acórdão do STJ de 28 de Novembro de 2007, debruçou-se sobre a inclusão do jogo de uma máquina, com um modo de funcionamento semelhante à que foi apreendida nos presentes autos...) (sublinhado nosso).

3. A interpretação que foi feita no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, exposta nas motivações que antecedem e que aqui se tem por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, foi diversa.

4. No acórdão recorrido o jogo desenvolvido pela máquina foi considerado tema próprio de jogo de fortuna ou azar e consequentemente julgado preenchido o tipo legal previsto pelo art.º 108°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, condenando-se o arguido, aqui recorrente com interesse em agir.

5. O acórdão fundamento considerou que o jogo desenvolvido pelas máquinas não explorava temas próprios dos jogos de fortuna e azar e consequentemente julgou não preenchido o tipo legal previsto pelo art.º 115°, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, absolvendo-se o arguido.

6. Assim, versando os dois acórdão com base em factos idênticos, sobre a mesma questão de direito mas assentando em soluções opostas, deverá ser fixada jurisprudência sobre esta matéria, no sentido expresso no acórdão fundamento, ou seja, que os jogos que as máquinas dos autos proporcionam embora os resultados dependessem da sorte e não da perícia do utilizador não exploravam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nos termos do art.º 4.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro e o facto de os prémios serem em dinheiro não lhe retira a natureza de modalidades afins.

7. Nestes termos deve ser admitido o recurso reconhecendo a oposição dos dois acórdãos e prosseguindo os autos e a final ser fixada jurisprudência no sentido expresso no acórdão fundamento.

2. O M. P.º na Relação não respondeu ao recurso e no STJ limitou-se a promover o prosseguimento do recurso extraordinário.

3. Colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal, cumpre decidir.

O ora recorrente foi condenado no processo comum n.º 406/00.5PCALM do 1° Juízo Criminal de Almada como autor de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelo artigo 108.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, na pena de cem (100) dias de multa, à taxa diária de 10 (dez) euros.

Recorreu dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa e, entre outras questões, suscitou a da sua conduta não preencher o tipo legal de exploração ilícita de jogo, previsto pelo artigo 108° citado e, quando muito, preencher o tipo do artigo 159.° do mesmo Decreto-Lei, que prevê para os jogos afins aos de fortuna ou azar uma contra-ordenação.

O Tribunal da Relação de Lisboa, porém, negou provimento ao recurso e, quanto àquela questão da qualificação jurídica dos factos, desenvolveu extensa fundamentação e, no essencial, concluiu o seguinte:

«Conforme se escreveu mais acima, o jogo em causa nos autos só terá assento na categoria dos jogos de fortuna ou azar se se concluir que:

"Desenvolve temas próprios dos jogos de fortuna ou azar"; ou

"Apresenta como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte".

Considerando a descrição do jogo constante dos pontos n.ºs 4 a 9 da matéria assente, torna-se claro que não se está perante um jogo que "apresenta como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte".

Deste modo, a única via para o jogo aceder ao estatuto de jogo de fortuna ou azar é considerando-o "um jogo em máquina que desenvolve temas próprios dos jogos de fortuna ou azar".

Podemos resumir o tema do jogo em questão nos autos nos seguintes termos: um jogador apostava 100 escudos em 3 números escolhidos aleatoriamente e habilitava-se a ganhar prémios em dinheiro que variavam entre os 500 e os 10 000$00.

O jogo funcionava, assim, como uma espécie de lotaria instantânea (1). Na verdade, à semelhança do que sucede com esta, o jogo era vendido através de bilhetes (no caso os que se encontravam dentro da bola de plástico) onde figurava um número que determinava de forma automática a atribuição do prémio em dinheiro.

Concluo, assim, que o jogo da máquina desenvolvia um tema próprio dos jogos de fortuna ou azar, pelo que a sua exploração no estabelecimento de café preenche o tipo legal previsto pelo artigo 108°, n.º 1, do Decreto-Lei 422/89.»

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/11/2007, no processo n.º 3186/07-3, que tal como o anterior também já transitou em julgado, foi chamado a pronunciar-se sobre se o jogo desenvolvido por máquinas em tudo similares era de fortuna ou azar e, também após longa fundamentação, concluiu do seguinte modo:

«Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte (artigo 1º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro), e que estão tipificados no artigo 4º, nº 1 do mesmo diploma.

No que releva para o caso, dado que o elemento essencial está ligado à detenção de determinadas máquinas de jogos, as alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89 considera como tipos (modalidades) de jogos de fortuna ou azar os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte».

Fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados também dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, na disciplina da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, com regulamentação e consequências próprias.

Verifica-se, assim, que os jogos que as referidas máquinas proporcionavam, embora os resultados dependessem da sorte e não da perícia do utilizador, não exploravam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas.

Faltam, deste modo, as características essenciais que permitam qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos descritos e definidos no artigo 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 422/89 de 2 de Dezembro.

Tanto basta para que as referidas máquinas não possam ser consideradas como «material ou utensílios» «caracterizadamente» destinados à prática de jogos de fortuna ou azar.

As características e os elementos dos jogos proporcionados revertem antes para as modalidades afins referidas no artigo 159º do referido diploma.»

O Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas. O recurso é interposto do acórdão proferido em último lugar (n.º 1 do art. 437.º do CPP), sendo ainda necessário que o acórdão fundamento seja anterior e tenha transitado em julgado (n.º 4).
O mesmo é aplicável quando um tribunal de Relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (n.º 2).
Esse recurso é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (n.º 1 do art.º 438.º do CPP).
Ora, no acórdão preliminar a que se refere o art.º 441.º do CPP, deve o Supremo Tribunal de Justiça verificar se há oposição de julgados.
No recurso extraordinário para fixação de jurisprudência a oposição de julgados exige que:
- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito;
- as decisões em oposição sejam expressas;
- as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos. A expressão «soluções opostas», pressupõe que nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos.

Os factos em ambos os acórdãos (no que toca à questão debatida) são essencialmente iguais, pois as máquinas de jogo em causa têm um funcionamento similar, embora se revistam em cada um dos casos com “roupagem” de disfarce um pouco diversa, mas sem relevo para a decisão jurídica:

A) No acórdão recorrido: «Assim, no dia 3 de Abril de 2000, pelas 23 horas e 30 minutos, encontrava-se em exploração no mencionado café "B" a referida máquina de jogos e um cartaz denominado "Especial Slot".

4. A máquina em causa, depois de accionada pela introdução de uma moeda de 100$00, e após o jogador rodar o manipulo até ao ponto de bloqueamento, liberta uma pequena bola oval de plástico, no interior da qual se encontram três senhas/rifas, contendo cada uma a referência à série 1625, o desenho de um carro de corridas e um número com 4 dígitos.

5. O cartaz com a designação de "Especíal Slot" é composto, além do mais, por um rectângulo branco com a identificação da série 1625; um círculo oval rosa com o valor de 100$00, que corresponde ao preço de cada bola a extrair do expositor; um quadro azul, em coluna, contendo um plano de prémios com a seguinte estrutura: 5 x 10000 - rádio; 10 x 5 000 - bola; 20 x 1 000 - peluche e 19 x 500 - carteira; o desenho com o rato Mickey; a frase "remate final 12 500 ou rádio", a significar a existência de um prémio extra de 10 000$00, destinado ao jogador que adquirir a última bola do expositor e um quadro azul, em fundo branco, contendo 54 pequenos rectângulos dispostos em 9 linhas e 6 colunas, identificados por números salteados de 4 dígitos e separados entre si por um picotado.

6. O plano de prémios impresso no cartaz supra referido corresponde aos prémios a atribuir aos números mencionados no picotado.

7. Este plano corresponde, por convenção, a 5 prémios de 10 000$00; 10 prémios de 5 000$00; 20 prémios de 1 000$00 e 19 prémios de 500$00.

8. Após o jogador retirar as senhas/rifas da bolar, os números obtidos são confrontados com os que estão impressos nos rectângulos destacáveis podendo o resultado ser: a) Nenhuma das senhas contem um número de 4 dígitos que seja coincidente com alguns dos que identificam os 54 rectângulos existentes no quadro do cartaz e o jogador não tem direito a qualquer prémio; b) o número das senhas coincide com um dos que identificam os 54 rectângulos existentes no cartaz e é, então, destacado do cartaz pelo picotado, deixando à vista um outro número, que pode variar entre 500 e 10 000 e que corresponde ao prémio monetário ganho pelo jogador, que, por convenção, varia, entre 500$00 e 10 000$00, conforme o plano de prémios definido no cartaz e supra descrito.

9. Existe ainda um último prémio denominado remate final que cabe ao jogador que adquirir a última bola do expositor no valor de 10 000$00.

10. Sendo que a alusão a "rádio", "bola", "peluche" e "carteira" apenas tem como objectivo tentar iludir as autoridades, uma vez que nenhuma daqueles objectos se encontrava no estabelecimento explorado pelo arguido e supra identificado.

11. O jogo desenvolvido, conforme supra exposto, conduz a resultados que dependem única e exclusivamente da sorte, consistindo na atribuição aleatória de prémios pecuniários ao jogador que arrisca na esperança de ganhar mais dinheiro.»

B) No acórdão fundamento: «6) essas máquinas, com funcionamento e jogos semelhantes, eram compostas por tal expositor com um dispositivo para introdução de moedas de 100$00, contendo no seu interior as citadas cápsulas/bolas de plástico, que, por sua vez, tinham, cada uma, três senhas/rifas com um número, sendo fechadas através de dispositivo com chave;

7) em particular as denominadas “.........” tinham ainda um expositor exterior com vários objectos como relógios ou isqueiros, em que neles estavam colados números, e um cartaz com a designação “........”, no qual constavam vinte e quatro pequenos rectângulos com um número em cada, e, na parte de baixo, um outro rectângulo, subdividido em trinta rectângulos picotados também com números em cada um, em que sob esse picotado descrevia-se o prémio pecuniário atribuído;

8) assim, o seu utilizador ao introduzir nessas máquinas uma moeda de 100$00 que se depositava num cofre, após rodar o respectivo manípulo saía aleatoriamente uma cápsula/bola que continha as três senhas/rifas com um número cada;

9) nas situações em que a numeração da senha/rifa não coincidia com as existentes no cartaz o jogador não tinha direito a qualquer prémio;

10) essencialmente, se a senha/rifa contivesse no seu interior qualquer dos números que estavam impressos nos rectângulos picotados do citado cartaz era descolado o número por esse picotado e pago em dinheiro ao utilizador a quantia descrita sob o mesmo, que podia variar entre 500$00 e 7.500$00, ou ainda, se o número da senha/rifa coincidisse com o número que se encontrava impresso em qualquer objecto do expositor exterior, teria o utilizador o direito a esse objecto;»

A aplicação do direito quanto ao conceito legal de “jogos de fortuna ou azar” teve, em ambos os acórdãos, as mesmas premissas e conclusões:

A) No acórdão recorrido o jogo de fortuna ou azar é o que «"Desenvolve temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresenta como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte".

B) No acórdão fundamento, «Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte... as alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89 consideram como tipos (modalidades) de jogos de fortuna ou azar os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte».

Os dois acórdãos divergiram apenas quanto à integração do jogo desenvolvido pelas máquinas como próprio dos de fortuna ou azar, pois o acórdão recorrido decidiu que o mesmo era equivalente à “lotaria instantânea” e o outro nem sequer considerou essa hipótese, pelo que não se verifica uma divergência expressa sobre o conceito jurídico de “lotaria instantânea”.

Com efeito, o acórdão recorrido considerou que “O jogo funcionava, assim, como uma espécie de lotaria instantânea. Na verdade, à semelhança do que sucede com esta, o jogo era vendido através de bilhetes (no caso os que se encontravam dentro da bola de plástico) onde figurava um número que determinava de forma automática a atribuição do prémio em dinheiro.

Já o acórdão fundamento limitou-se à asserção de que se “Verifica[-se], assim, que os jogos que as referidas máquinas proporcionavam... não exploravam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar”.

Ora, quanto a este aspecto, o acórdão recorrido expõe o que, no seu entender, é o conceito jurídico de “lotaria instantânea”, não só porque remete em nota de rodapé para preceitos legais que a regulamentam, mas porque, alegadamente, é o jogo que é “vendido através de bilhetes” com “um número que determina[va] de forma automática a atribuição do prémio em dinheiro”.

Já no acórdão fundamento não se equacionou sequer a hipótese de se tratar de uma “lotaria instantânea”, pelo que não está expresso qualquer conceito jurídico sobre o que seja ou o que é a “lotaria instantânea”.

Já dissemos anteriormente que a oposição de julgados exige que, além do mais, haja uma “expressa resolução de direito”.

Na verdade, a fixação de jurisprudência, como recurso extraordinário que é, não está vocacionada para resolver uma questão particular do sujeito processual interessado (pois pressupõe o prévio trânsito em julgado do acórdão recorrido), embora, reflexamente, possa vir a ter essa consequência final. Dirige-se primordialmente a uniformizar a jurisprudência e, por isso, tem como principais destinatários os tribunais e a comunidade jurídica em geral, em relação a qualquer questão jurídica que tenha sido decidida pelos tribunais superiores em sentido oposto. Daí que, tratando-se de um meio jurídico que está para além dos previstos ordinariamente pela lei processual e em que se faz intervir um tribunal próprio, expressamente constituído para esse fim, com o seu peso e solenidade – o Pleno das Secções Criminais do STJ – é necessário, como requisito prévio, que tenha havido decisões jurídicas fundamentadas e expressas sobre o mesmo ponto de direito, por dois tribunais superiores e em sentido oposto.

Não bastará, portanto, para que haja oposição de julgados relevante que um tribunal superior tenha decidido fundamentadamente num sentido e que outro da mesma ou maior hierarquia tenha decidido em sentido oposto sem se debruçar especificamente sobre a questão jurídica que esteve na base da decisão diferente.

É o que sucede no caso dos autos, pois, apesar das decisões serem opostas, um dos tribunais não se pronunciou sobre a questão de direito que levou o outro tribunal a tomar a sua decisão (ser um jogo equivalente à lotaria instantânea), porque entendeu, de modo genérico e não especificamente fundamentado, que a lei sobre os jogos da categoria em que, entre outros, também cabe a lotaria instantânea não se aplicava à situação em apreço.

A falta de uma decisão específica pode levar-nos a questionar se o acórdão fundamento colocou, para a decisão que tomou, a questão jurídica de saber se as máquinas apreendidas desenvolvem ou não uma lotaria instantânea, pois é possível que nem se tenha apercebido dessa possibilidade. Pode, até, ter havido uma errada ou incompleta avaliação sobre as características mecânicas das máquinas apreendidas, caso em que a divergência com o acórdão recorrido nasceria de diferentes interpretações sobre a matéria de facto e não sobre a matéria de direito.

Mesmo no acórdão do STJ de 27-02-2008, proc. n.º 293/08-3, com o mesmo relator do acórdão fundamento (Conselheiro Henriques Gaspar), em que de forma muito cuidada e exemplar se faz uma minuciosa distinção entre os jogos de fortuna ou azar e os das modalidades afins e em que se afirma que “As modalidades afins e outras formas de jogo não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, «nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos» (sublinhado nosso), não se pode afirmar com segurança que o jogo em apreço nesse processo (igual ao destes autos) tenha sido recusado como de “lotaria instantânea”, pois não há uma fundamentação expressa num ou noutro sentido.

Isto é, não é seguro que os dois tribunais tenham diferentes concepções jurídicas sobre o que é uma “lotaria instantânea” (2).

Em conclusão: a divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento nasce da circunstância do primeiro ter entendido que o jogo desenvolvido pelas máquinas apreendidas é equivalente ao da lotaria instantânea, o qual é inequivocamente um jogo de fortuna ou azar, enquanto que o segundo não configurou essa hipótese, nem no sentido positivo nem no sentido negativo, pelo que, ao não o fazer, decidiu que o jogo desenvolvido pelas máquinas não era de fortuna ou azar. Não há, assim, oposição de julgados sobre o único ponto de direito que poderia ser controverso – que é o de saber se as máquinas em questão desenvolvem um jogo equivalente ao da lotaria instantânea - por falta de decisão expressa do acórdão fundamento.

4. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, por falta de oposição de julgados.

Fixa-se em 4 UC a taxa de justiça a cargo do recorrente, com metade de procuradoria.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Julho de 2008

Santos Carvalho (Relator)
Rodrigues da Costa

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(1) O direito de organizar e explorar o jogo denominado de "Lotaria Instantânea" em regime de exclusividade para todo o território nacional foi concedido à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pelo Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro. Por seu turno, a Portaria n.º 940-B/95, de 27 de Julho de 1995 aprovou o regulamento geral da lotaria instantânea.

(2) «Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de Dezembro: Artigo 1.º - 1 - É concedido à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) o direito de organizar e explorar um jogo denominado «Lotaria Instantânea», em regime de exclusivo, para todo o território nacional. 2 - Por Lotaria Instantânea entende-se um jogo vendido através de bilhetes onde figura, em zona reservada e vedada por película de segurança, a remover pelo jogador, um conjunto de símbolos ou números que determinarão, de forma automática, a atribuição de prémio, conforme regras indicadas no próprio bilhete».