Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1082/19.7T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. No caso dos autos, verifica-se que a acepção em que a Relação utilizou a expressão “dano biológico” corresponde essencialmente àquela que se afigura ser predominante na jurisprudência do STJ: “dano biológico” enquanto consequências patrimoniais da incapacidade geral ou funcional do lesado.

II. O aumento da penosidade e esforço do lesado para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras é atendível no domínio das consequências patrimoniais da lesão corporal, e não apenas no domínio das consequências não patrimoniais, na medida em que se entenda provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da sua capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.

III. A indemnização pela afectação da capacidade geral ou funcional, sendo indeterminável, deve ser fixada com recurso à equidade (cfr. art. 566.º, n.º 3, do CC), em função dos seguintes factores: (i) a idade do lesado (a partir da qual se pode determinar a sua esperança média de vida à data do acidente); (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; (iii) as suas potencialidades de ganho e de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; (iv) a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui, tendo em conta as suas qualificações e competências).

IV. No caso dos autos: (i) tendo o lesado 34 anos à data do sinistro; (ii) tendo-lhe sido fixado um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos; (iii) tendo apenas sido feita prova do seu rendimento anual ao tempo do acidente (€ 7.798,00); (iv) e resultando da factualidade dada como provada que, com elevada probabilidade, as lesões por ele sofridas terão significativa repercussão negativa sobre o desempenho da profissão de serralheiro cujo exercício exige um elevado nível de força e de destreza físicas ao nível dos membros superiores (atingidos pelas lesões); conclui-se ser mais justo e adequado o quantum indemnizatório de €50.000,00 atribuído pela 1.ª instância do que o montante de €30.000,00 atribuído pelo acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 171.249,83 (cento e setenta e um mil duzentos e quarenta e nove euros e oitenta e três cêntimos), acrescida do pagamento de procuradoria condigna, juros legais vencidos e vincendos e custas. E ainda, a pagar-lhe o que se vier a remeter para liquidação em razão de danos futuros e não contemplados no pedido líquido.

Para o efeito, alega que, no dia 27 de Julho de 2017, pelas 13.45 horas, na EN ..., concelho da ..., ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo com a matrícula ...-...-LA, seguro na R., e o motociclo ...-SP-..., por si conduzido.

O motociclo ...-SP-... circulava na EN ... no sentido ...; e o veículo ...-...-LA circulava na Rua ... no sentido ... que entronca na EN ...; antes do entroncamento quem provém da Rua ... encontra sinalização vertical e marca rodoviária de Stop. O A. circulava normalmente quando, de forma repentina, foi surpreendido à direita pelo condutor do veículo ...-...-LA que invadiu a sua via de trânsito; em face daquela manobra não conseguiu o A. evitar o embate entre a frente do seu veículo e a lateral esquerda do veículo seguro na R., sendo o A. projectado no solo e ficando ferido.

A R. aceitou a responsabilidade pelo acidente e indemnizou o A. pelos danos materiais; porém, não o indenizou pelos demais danos sofridos.

Após o acidente, o A. deu entrada no Hospital ..., na ..., por traumatismo nos punhos, membros superiores, anca e testículo esquerdo, tendo, no dia seguinte, sido transferido para o Hospital ..., de onde teve alta hospitalar com indicação de repouso. Foi posteriormente submetido a intervenção cirúrgica e a tratamentos de fisioterapia.

É trabalhador independente colectado como serralheiro civil, auferia à data do acidente uma retribuição anual de € 7.798,00, declarando no ano de 2016 um lucro tributável de € 776,34. Como consequência do acidente ficou com várias sequelas, deixando de auferir quaisquer rendimentos durante esse período, tendo, porém, sido indemnizado em 70% por acidente de trabalho.

À data do acidente, tinha 35 [sic] anos; foi-lhe atribuído um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 13 pontos, perspectivando-se a ocorrência de danos futuros.

Após o acidente e durante o período de recuperação sofreu fortíssimas e intensas dores, esteve internado durante um dia e esteve dois meses em repouso, com necessidade de ajuda de terceira pessoa para as actividades, e continuando a padecer de dores.

Necessita de esforços acrescidos para fazer o mesmo trabalho que fazia antes do acidente, com o consequente agravamento do cansaço.

Apresenta dano estético, inerente às cicatrizes com que ficou; as lesões causaram-lhe uma repercussão permanente nas actividades físicas e de lazer, o que o deixa triste e angustiado. Apresenta ainda um prejuízo de actividade sexual devido às limitações de que padece.

Pretende ser indemnizado pelas lesões sofridas e pelas sequelas delas resultantes, nos diferentes níveis da sua vida.

Citada, a R. veio contestar, declarando aceitar a ocorrência do acidente, bem como a responsabilidade do seu segurado na produção do mesmo; e impugnando a factualidade relativa ao sinistro invocada pelo A., por não ter conhecimento directo da mesma.

Quanto aos danos alegados e suas sequelas, impugna expressamente os mesmos, por não serem factos que conheça, nem que tenha obrigação de conhecer pessoalmente, afirmando serem, em qualquer caso, exagerados os valores indemnizatórios reclamados pelo A.. Mais alega que terá de ser atendido que o A. já foi indemnizado pela seguradora de acidentes de trabalho, não podendo ser duplamente indemnizado.

Deduziu ainda incidente de intervenção principal provocada da Fidelidade Companhia de Seguros, S.A..

Concluiu pela improcedência da acção.

Foi ordenada a citação da Segurança Social, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de Fevereiro, não tendo a mesma vindo deduzir qualquer pretensão.

Admitida a Intervenção Principal da Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., e citada a mesma, veio esta declarar nada ter a reclamar da R. por já ter sido por esta reembolsada das despesas suportadas na qualidade de seguradora do acidente de trabalho sofrido pelo A., no montante total de € 14.525,51.

Por sentença de 11 de Janeiro de 2021, foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, condeno a R. Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A. a pagar ao A. AA:

a) a título de indemnização pelos danos já liquidados resultantes do acidente dos autos, a quantia de € 70.419,00 (setenta mil quatrocentos e dezanove euros).

b) a ainda, a pagar-lhe o que se vier a apurar em liquidação em razão de dano futuro que venha a verificar-se.

Custas pela R. e pelo A. na medida do decaimento.»

Sendo que a parte liquidada da indemnização resulta das seguintes parcelas: €419,00 pelos lucros perdidos no exercício de actividade laboral independente durante o período de 197 dias em que o lesado padeceu de incapacidade total e parcial para o exercício dessa actividade; €50.000,00 pelos danos patrimoniais resultantes do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que o lesado ficou a padecer; e €20.000,00 a título de danos não patrimoniais suportados pelo lesado.

Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., pedindo a reapreciação da decisão de direito. Por acórdão de 17 de Junho de 2021, foi decidido, com um voto de vencido, o seguinte:

«Tudo visto acordam os juízes na 2.ª secção desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso no que toca à indemnização pelo dano biológico cujo valor é reduzido para 30.000,00 (trinta mil euros), já actualizado, mantem-se o valor atribuído pela compensação dos danos não patrimoniais de 20 mil euros, consequentemente o valor global da indemnização referido na alínea a) da decisão recorrida é reduzido para 50.419,00 euros (cinquenta mil, quatrocentos e dezanove euros), mantendo-se o mais constante da alínea b) da decisão recorrida.»


2. Vem o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«I. Crê o A., com o devido respeito, que andou mal o tribunal a quo ao revogar a sentença de primeira instância que tinha fixado a indemnização ao A. a título de dano biológico em 50.000,00€.

II. O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 8º nº 3, 483º, 496º e 562º, todos do Código Civil, o que a não ter acontecido teria conduzido a uma solução conforme preconizada pelo ora recorrente, a fixação do quantum indemnizatório a título de dano biológico em 50.000,00€ ao invés dos 30.000,00€, tal como decidido em primeira instância.

III. Da gravidade dos factos provados, da jurisprudência de casos análogos, recente Ac. STJ de 20-05-2021, processo n.º 826/18.9T8CTB.C1.S1 – 7ª Secção, e a bem da Justiça, impunha-se manter o valor indemnizatório fixado pela primeira instância de 50.000,00€ a título de dano biológico.

IV. Para determinação do montante indemnizatório o tribunal a quo partiu de um pressuposto puramente matemático e não levou em linha de consideração os casos análogos, a progressividade da retribuição e os aumentos dos prémios de seguro de responsabilidade civil automóvel que devem, por conseguinte, conduzir a um aumento gradual das respetivas indemnizações reparadoras.

V. Apesar do respeito pela gravidade do caso inserto no Ac. STJ de 24-05-2021, o caso dos autos é manifestamente mais gravoso, merecendo, portanto, a fixação de uma indemnização global superior a 60.000,00€, tal qual havia entendido a primeira instância.

VI. Por conseguinte, atendendo aos casos análogos, como o fez o tribunal de primeira instância, deve fixar-se a indemnização pelo dano biológico em 50.000,00€ e tal como fundamentado naquele tribunal.

VII. Convém relembrar, que a atualização dos capitais mínimos obrigatórios de responsabilidade civil no seguro automóvel em Portugal, tem vindo a ocorrer desde 20.10.2007, sendo que atualmente e desde 01.06.2017, em virtude do disposto no artº 12º do Dec. Lei 291/ 2007 de 21 de agosto que estabelece a respetiva revisão de cinco em cinco anos a partir de 01.06.20.12, sob proposta da Comissão Europeia , em função do índice europeu de preços no consumidor, é de 6 070 000,00€ para acidentes com Danos Corporais e 1 220 000 para Danos Materiais;

VIII. Posto isto e considerando que os pagamentos dos prémios de seguro devem (presumivelmente) acautelar o pagamento do risco inerente à circulação rodoviária e responder pelos sinistros que possam ocorrer, está na altura de utilizar a favor dos lesados, os capitais seguros que todos ajudamos a pagar;

IX. Estamos no século XXI e na altura de prover condignamente pelos direitos dos lesados, motivo da natureza obrigatória do seguro e dos limites mínimos. Numa sociedade em mudança vertiginosa, em que os paradigmas, nomeadamente do mercado de emprego são hoje altamente competitivos, incertos e efémeros.;

X. Os anos de 2020 e 2021 ficarão marcados historicamente pela Pandemia do COVID 19 que veio acrescentar e acelerar fatores de incerteza enormes a nível de saúde, emprego, económico e financeiro, quer a nível nacional, quer a nível mundial, reforçando o medo e profundo receio em relação ao futuro que legitimamente se sente;

XI. Se assim é para todos nós, mais ainda, para quem se viu antecipadamente coartado nas suas aptidões e capacidades físicas, emocionais e psicológicas;

XII. Pede-se Justiça mantendo a decisão de primeira instância».


A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«1.º Vem o Autor AA insurgir-se, com a interposição do presente recurso, contra o montante que lhe foi arbitrado pelo douto Tribunal da Relação ... a título de dano biológico, alegando que tal indemnização deveria ter sido fixada no valor de, pelo menos, € 50.000,00, em vez do valor € 30.000,00 fixado.

2.º Posição com a qual a ora Recorrida, evidentemente, não concorda, conforme já deixou explícito em sede de recurso de apelação.

3.º Atendendo aos danos concretamente sofridos pelo lesado, bem como à efetiva incapacidade funcional sofrida em virtude dos danos que para este advieram, afigura- se equitativa a quantia de € 30.000,00 arbitrada pelo Tribunal da Relação, tanto mais que tal montante encontra-se em conformidade com o atribuído em casos semelhantes ao do Autor, ora Recorrente.

4.º Por dano biológico deve entender-se qualquer lesão da integridade psicofísica que possa prejudicar quaisquer atividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afetiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade. O que significa que, o dano biológico é constituído pela lesão à integridade físico-psíquica, à saúde da pessoa em si e por si considerada, independentemente das consequências de ordem patrimonial.

5.º Ora, dito isto, para aferir o quantum indemnizatório a atribuir ao ora Recorrente a este título, sempre teremos de ter em conta que resultou provado que o mesmo ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, sendo tal défice compatível com o exercício da sua atividade habitual, implicando apenas esforços suplementares – cf. relatório do INML de fls... e alíneas nn) e qq) dos factos provados.

6.º Tal défice diz única e exclusivamente respeito à incapacidade geral (fisiológica ou funcional), ou seja, às tarefas comuns e indiferenciadas da vida corrente e que interessa a todos os indivíduos, independentemente da sua idade ou profissão, dado que o Autor não logrou demonstrar que tivesse ficado impossibilitado de trabalhar.

7.º Ademais, importa referir que, o ressarcimento dos danos futuros depende da sua previsibilidade e determinabilidade - artigo 564, n.º 2 do CC – sendo que os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente previsíveis como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente por virtude de lesão corporal.

8.º Vem salientando o Supremo Tribunal de Justiça que as tabelas financeiras têm um mero caráter auxiliar, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade, que deve ser deduzida a importância que o próprio lesado gastará consigo mesmo durante a sua vida (em média um terço dos proventos auferidos).

9.º Ademais, tendo sido estabelecidos vários critérios pelos Tribunais Superiores para apurar o montante indemnizatório a atribuir pelo dano biológico, de que são exemplos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1 de 25-05-2017 e o         Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1 de 14-12-2016.

10.º Importa esclarecer que, o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de que o Autor ficou a padecer em resultado do acidente de viação em causa nos autos traduz-se, no que à capacidade de trabalho diz respeito, em mero esforço suplementar.

11.º Quer isto dizer que as sequelas são perfeitamente compatíveis com o exercício de atividade profissional por parte do Autor mas implicam, apenas, esforços acrescidos no exercício da sua atividade profissional.

12.º Atento o exposto, tal incapacidade não é, em concreto, passível de gerar danos patrimoniais presentes e que se traduz em meros danos de acréscimo de esforço, não gerando necessariamente danos patrimoniais futuros. Isto vale por dizer que não existe qualquer certeza quanto à futura ocorrência de danos patrimoniais na esfera jurídica do Recorrente em consequência dos danos em causa nos autos.

13.º Efetivamente, o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica do Autor não o impede de continuar a trabalhar e não resulta em qualquer perda de capacidade de ganho.

14.º Sendo certo que, o dano de acréscimo de esforço, que serve de fundamento e limite ao montante a atribuir como compensação, nunca poderá ser valorado de forma equivalente a uma hipotética perda de rendimento.

15.º Por outro lado, deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia.

16.º No entendimento supra exposto, a fixação do montante a atribuir pela indemnização a título de compensação por danos patrimoniais resultantes do alegado Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica/ dano biológico do Autor nunca poderá ser o peticionado pelo mesmo em sede de alegações de recurso, sob pena de violação do disposto no artigo 8.º, n.º 3 do CC.

17.º Ora, considerando o disposto no artigo 8.º do CC, a justiça do caso concreto há de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais.

18.º Neste sentido, veja-se alguns Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma matéria, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 184/04.9TBARC.P2.S1, de 29/03/2012 – em que foi atribuída uma indemnização de € 40.000,00 a título de dano biológico, a uma lesada com 35 anos e com um grau de desvalorização de 30%;

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2, de 16/06/2016 – em que foi atribuída uma indemnização de € 25.000,00 a título de dano biológico, a uma lesada com 40 anos e com uma incapacidade de 6%;

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 7614/15.2T8GMR.G1.S1., de 29/10/2019 – em que ao lesado, com 34 anos, foi atribuído uma indemnização no valor de € 36.000,00, para compensar o défice funcional de 16 pontos que ficou a padecer na sequência das lesões sofridas, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional;

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 203/14.0T2AVR.P1.S1., de 07/03/2019 – no qual foi atribuída uma indemnização por dano biológico no valor de € 40.000,00, a uma lesada com 35 anos, com uma incapacidade avaliável em 19 pontos, compatíveis com o exercício da sua atividade profissional mas implicando esforços suplementares, que auferia como empregada de mesa o vencimento mensal base de € 475,00.

19.º Ora, da análise dos casos semelhantes (alguns mais gravosos até) facilmente se constata que o valor de € 30.000,00 arbitrado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência do recurso de apelação interposto pela ora Recorrida, afigura-se justo e equitativo, não devendo ser aumentado, sob pena de verificar-se um claro enriquecimento do lesado à custa do evento lesivo.

20.º De facto, e conforme oportunamente explanado em sede de recurso de apelação pela ora Recorrida, o valor indemnizatório atribuído pelo Tribunal de 1.ª Instância afigurava-se manifestamente exagerado, face às circunstâncias do caso concreto e por comparação com casos semelhantes, não devendo ser represtinada a decisão da 1.ª Instância, conforme requerido pelo Autor, ora Recorrente, sob pena de clara violação do disposto nos artigos 8.º, n.º 3; 483.º, n.º 1; 494.º; 496.º; 562.º, 563.º, 564.º e 566.º, n.º 3 todos do CC.

21. Nessa medida, e atendendo a tudo quanto ficou exposto, deverão improceder, in totum, as conclusões tecidas pelo Recorrente nas suas doutas alegações de recurso, sob pena de, conforme supra referido, a aumentar-se o quantum indemnizatório fixado a título de dano biológico, serem violados os artigos 8.º; 483.º, n.º 1; 494.º; 496; 562.º, 563.º, 564.º e 566.º, n.º 3 do CC.

22.º De facto, entende a ora Recorrida que o Recorrente não tem qualquer razão para se insurgir contra a decisão proferida no que diz respeito ao quantum indemnizatório que lhe foi arbitrado a título de dano biológico.»

Cumpre apreciar e decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a estrutura e a redacção das instâncias):

a) No dia 27 de Julho de 2017, pelas 13 horas e 45 minutos, na Estrada Nacional ..., concelho da ..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes s veículos com matrícula ...-...-LA e o ...-SP-....

b) O LA, um automóvel ligeiro de passageiros, era conduzido por BB.

c) O SP, um motociclo, era conduzido pelo A. e propriedade deste.

d) A faixa de rodagem no local é constituída por 2 vias, uma para cada sentido, sem separador central.

e) O A. circulava na EN ... no sentido ...;

f) O LA circulava na Rua ... no sentido ... que entronca na EN ....

g) Antes do entroncamento, quem provém da Rua ... encontra sinalização vertical do tipo b2 "STOP" e sinalização com marca rodoviária "STOP".

h) Naquele circunstancialismo de modo e lugar, o A. circulava normalmente quando de forma repentina é surpreendido à direita pelo condutor do LA que provindo da Rua ... não lhe cede a passagem.

i) E invade a via de trânsito do A..

j) Daquela manobra o A. não conseguiu evitar o embate entre a frente do SP e a lateral esquerda do LA.

k) Em ato contínuo o A. e o SP são projetados ao solo.

1) O A. ficou ferido pelo que foi assistido no local e transportado de emergência para o hospital ....

m) Ao local deslocou-se a PSP da Esquadra de Trânsito da ... que lavrou auto de ocorrência.

n) Posteriormente, o sinistro foi participado à R. que assumiu a responsabilidade pelo sinistro e indemnizou o A. pelos danos materiais.

o) A responsabilidade civil inerente à circulação do veículo de matrícula ...-...-LA estava, à data do acidente, transferida para a R. através do contrato de seguro titulado pela Apólice ...

p) O A.  deu entrada pelas urgências do hospital ..., por traumatismo dos punhos bilateralmente com dor e edema direito, ferida a nível do braço esquerdo e

4º dedo da mão esquerda com pequena hemorragia, dor moderada na região lombar.

q)  Fez exames de diagnóstico como Raio X que revelaram fraturas de ambos os punhos e imobilização dos membros superiores e tratamentos das feridas.

r) Foi medicado e transferido para o hospital de residência, ...;

s) Assim no dia 28 de julho de 2017 o A. foi admitido no Hospital ..., transportado pelos bombeiros e em cadeira de rodas, com prioridade "Urgente".

t) A entrada no Hospital ... apresentava traumatismo dos membros superiores, com fratura a apófise estiloide de rádio bilateral, sem compromisso neurovascular; múltiplas escoriações

a nível de antebraço esquerdo, com ferida em D4, como mobilidade articular normal, sem dor na tabaqueira anatómica bilateral, com mobilidade de punho mantida, sem dor à palpação do carpo, embora com dor à palpação do rádio bilateralmente.

u) Foi tratado conservadoramente, tendo-lhe sido aplicado gesso.

v) Teve alta no próprio dia, orientado para consulta externa, com indicação para manter repouso e cumprir analgesia.

w) Mantendo dores passou a ser seguido pela seguradora de acidentes de trabalho no ... Hospital onde viria a ser internado em 14 de Agosto de 2017, por instabilidade pós-traumática do carpo.

x) Ali foi submetido a intervenção cirúrgica: osteossíntese percutânea do escafoide com parafusos

sob controlo radiológico e artroscópico.

y) Fez imobilização gessada antebraquipalmar.

z) Teve alta no dia seguinte, a 15 de Agosto de 2017, com indicação para troca de pensos, manter

mão elevada, cumprir analgesia e aplicar gelo no local de dor.

aa) Em Setembro de 2017 iniciou tratamentos de fisioterapia na P... Lda., em ... para recuperação, que terminou em Janeiro de 2018.

bb) O A. é trabalhador independente colectado como serralheiro civil.

cc) O A., para efeitos de responsabilidade emergente de acidente de trabalho, transferida para a seguradora Fidelidade Companhia de Seguros, S.A. declarou uma retribuição anual de €7.798,00.

dd) Em 2016 o A. declarou um lucro tributável de € 776,34.

ee) As lesões sofridas pelo A.  na sequência do acidente de viação dos autos tiveram uma repercussão temporária na atividade profissional total entre 27 de Julho de 2017 e 6 de Novembro de 2017, num total de 103 dias.

ff) As lesões sofridas pelo A.  na sequência do acidente de viação dos autos tiveram uma repercussão temporária na atividade profissional parcial entre 7 de Novembro de 2017 e 8 de Fevereiro de 2018, num total de 94 dias.

gg) A título de perdas salariais a Fidelidade Companhia de Seguros, S.A. pagou ao A. a quantia de € 1.991,64.

hh) Como consequência do acidente o A. apresenta as seguintes sequelas:

- Membro superior direito: rigidez dolorosa do punho nos movimentos de flexão de 40° e extensão de 40°; desvio radial de 30° e ulnar de 10°; supinação de 80°.

- Membro superior esquerdo:  cicatriz nacarada, linear, longitudinal, quase inaparente, no bordo radial do punho, medindo 3cm de comprimento; vestígio ciatricial nacarado, mediano, na face posterior do punho, medindo 0,5cm de diâmetro; sem amitrofias; força muscular contra a resistência; discreta rigidez dolorosa do punho no movimento de dorsiflexão, embora com arco de movimento útil.

ii) As lesões sofridas pelo A. na sequência do acidente de viação dos autos determinaram um défice funcional temporário total entre 27 de Julho de 2017 e 24 de Setembro de 2017, num total de 60 dias.

jj) As lesões sofridas pelo A. na sequência do acidente de viação dos autos determinaram um défice funcional temporário parcial entre 25 de Setembro de 2017 e 8 de Fevereiro de 2018, num total de 137 dias.

kk) O A. sofreu fortes dores nos membros superiores.

11) O A. sentiu dores intensas no corpo no pós impacto.

mm) O A. esteve internado durante 1 dia e foi submetido a intervenção cirúrgica.

nn) Na sequência das sequelas resultantes do acidente de viação, ao A. é atribuído um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 9 pontos por referência à Tabela Nacional das Incapacidades em Direito Civil.

oo) O quantum doloris do A. é fixado no grau 4/7.

pp) O dano estético permanente é fixado no grau 2/7.

qq) As sequelas descritas em hh) são em termos de repercussão permanente na atividade profissional compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

rr) Esteve 2 meses em recuperação com necessidade de ajuda de terceira pessoa para as atividades da vida diária como alimentar-se, vestir-se e cuidar da higiene.

ss) No período referido em rr) quem prestou assistência do A. foi a sua companheira, a qual rescindiu o seu contrato de trabalho para cuidar do mesmo.

tt) Tem dores esporádicas, ligeiras a moderadas nos punhos, desencadeadas pela realização das tarefas profissionais, particularmente no punho direito.

uu) As sequelas descritas em hh) são em termos de repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixadas no grau 1/7.

vv) O A. está limitado na execução da prática de wakeboard, o que o deixa triste.

ww) Antes do acidente, o A. passeava e brincava com os seus filhos e fazia wakeboard aos fins-de-

semana, durante o Verão, o que o fazia sentir-se bem e alegre.

xx) Após o acidente o A. teve alguma dificuldade em pegar ao colo a sua filha com 8 anos de idade.

yy) O A. poderá vir a necessitar de consultas e tratamentos devido à perspetiva da existência de dano futuro.

zz) Após o acidente e durante a sua recuperação o A. foi acompanhado clinicamente pelos serviços

médicos da sua seguradora de acidentes de trabalho Fidelidade Companhia de Seguros, S.A..

aaa) No seguimento do processo especial emergente de acidente de trabalho, que correu termos no   Tribunal de Trabalho ..., sob n.° de processo 3245/16...., a Fidelidade Companhia   de Seguros, S.A., assumiu a transferência da responsabilidade infortunística da entidade patronal do A., por via da apólice de seguro que garantia, e reconhecido o acidente em causa naqueles autos como de trabalho.

bbb) A Fidelidade Companhia de Seguros, S.A.. no âmbito do referido processo de acidente de trabalho foi condenada a pagar ao A., o capital de remição da pensão anual e remível de € 478,28, e ainda a quantia de € 15,00 de despesas com deslocações àquele Tribunal, tendo ainda assumido   perante o A. o pagamento de todas as indemnizações legais, despesas médicas, medicamentosas e de transporte do A.

cec) A Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., solicitou à R. o reembolso de todas as quantias despendidas, as quais totalizaram o valor de € 14.525,51:

I - €1.791,64-salários;

II - €828,88 - consultas;

III - €3.588,01 - despesas médicas;

FV - €193,21 - elementos auxiliares de diagnóstico;

V - €21,10 - aparelhos e próteses;

VI - €27,05 - transportes;

VII - €61,20 - despesas tribunal;

VIII - €220,37-pensões;

IX - €7.794,05 - remições; montante que a R. lhe pagou.

ddd) O A. nasceu em .../.../1982, tendo na data do acidente, de 34 anos de idade.


Factos dados como não provados:

- Que à entrada nas urgências do hospital ..., o A. apresentasse traumatismo do testículo esquerdo.

- Que devido ao traumatismo do testículo esquerdo o A. passou a ser acompanhado em Urologia.

- Que o A. auferia à data do acidente uma retribuição anual de 7.798,00€.

- Que entre a data do acidente e 8 de Fevereiro de 2018 o A. deixou de auferir € 7.798,00.

- Que o A. sofreu fortíssimas dores no testículo esquerdo.

- Que o A. necessita de medicação para as dores.

- Que o A. tem dores nos punhos que limitam diariamente na sua vida social.

- Que o A. sinta um agravamento do cansaço, atendendo às tarefas próprias de serralheiro, em função das sequelas resultantes do acidente de viação dos autos.

- Que o A. esteja impossibilitado de realizar atividades lúdicas e de recreio com os seus filhos de 5 e 6 anos de idade, nem totalmente impossibilitado de realizar passeios de mota de água.

- Que o A. esteja bastante triste e angustiado em função das repercussões das sequelas nas suas atividades lúdicas e de lazer.

- Que em razão das sequelas resultantes do acidente de viação dos autos o o A. nunca mais vai poder fazer wakeboard, nem passeios de mota de água.

- Que o A. apresenta prejuízo de atividade sexual, nem que tenha passado a sofrer quaisquer limitações para essa atividade, nem que sente dor no ato sexual.

- Que, para além das limitações resultantes das sequelas referidas em hh), a vida do A. tenha mudado e para pior em consequências das mesmas.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem unicamente como objecto a seguinte questão:

- Montante indemnizatório devido a título de “dano biológico”, sendo que a 1.ª instância ficou tal montante em €50.000,00 e a Relação o reduziu para €30.000,00.


5. Antes de mais, e nas palavras da relatora do presente acórdão (in «O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo», Revista Julgar, n.º 46, em curso de publicação, págs. 268 e seg.,), assinale-se que:

«Coexistem na doutrina e na jurisprudência diferentes acepções de dano biológico. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, actualmente o significado com que mais frequentemente tal expressão é aquele que correspondente à de consequências patrimoniais da incapacidade geral ou genérica do lesado, aferida em função das Tabelas de Incapacidade Geral Permanente em Direito Civil. Mas este significado coexiste com outros, designadamente com o de dano biológico como consequência não patrimonial de uma lesão psicofísica. É, por isso, conveniente que, ao fazer-se uso da dita expressão (seja num texto de índole doutrinal seja numa decisão judicial), se comece por definir a acepção em que a mesma é utilizada.».

No caso dos autos, a intervenção deste Supremo Tribunal encontra-se facilitada porque o acórdão recorrido não apenas identificou o referido problema terminológico, como se pronunciou expressamente nos termos seguintes:

«Adianta-se, desde já, que o Tribunal recorrido qualificou o dano biológico como dano patrimonial futuro. Não obstante a polémica doutrinária e jurisprudencial em torno da qualificação do dano biológico, seguiremos a posição - que supomos maioritária ao nível do Supremo - no sentido de considerar que o dano biológico, independentemente do rebate profissional e de comprovadamente afectar a capacidade aquisitiva salarial ou de rendimentos, deve ser considerado um dano patrimonial futuro na medida em que, afectando a capacidade funcional do lesado, exigirá, no futuro, esforços acrescidos para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras e é susceptível de reparação como dano patrimonial autónomo». [negritos nossos]

Analisada a desenvolvida fundamentação teórica do acórdão recorrido – e ainda que se justifique tecer duas considerações complementares a respeito do teor da parte final da passagem aqui transcrita (ver infra, ponto 6. do presente acórdão) – entende-se que a acepção em que a Relação utilizou a expressão “dano biológico” corresponde essencialmente àquela que se afigura ser predominante na jurisprudência deste Supremo Tribunal: “dano biológico” enquanto consequências patrimoniais da incapacidade geral ou funcional do lesado.

Se alguma dúvida houvesse, ficaria esclarecida com o teor da seguinte passagem da fundamentação do acórdão recorrido:

«111.3.7. Esta afectação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios - como dano biológico - porque é determinante de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado e, especificamente da sua actividade laboral, designadamente, numa pessoa de 34 anos de idade à data do acidente (ddd), diminuindo as alternativas que lhe seriam possíveis ou oferecendo menores possibilidades de trabalho, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.» [negritos nossos]

Temos, pois, que o sentido em que a expressão “dano biológico” foi utilizada pela Relação não corresponde ao sentido invocado pela Recorrida em sede de contra-alegações («Por dano biológico deve entender-se qualquer lesão da integridade psicofísica que possa prejudicar quaisquer atividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afetiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade. O que significa que, o dano biológico é constituído pela lesão à integridade físico-psíquica, à saúde da pessoa em si e por si considerada, independentemente das consequências de ordem patrimonial» - negrito nosso). Não quer dizer que este significado seja, em si mesmo, incorrecto, mas apenas que o mesmo corresponde ao uso da expressão “dano biológico” como dano-evento, ao passo que as instâncias a utilizaram no sentido de dano-consequência (de natureza patrimonial).


6. As considerações complementares, a respeito da afirmação feita no acórdão recorrido segundo a qual o “dano biológico” releva na medida em que, «afectando a capacidade funcional do lesado, exigirá, no futuro, esforços acrescidos para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras e é susceptível de reparação como dano patrimonial autónomo», são as seguintes:

- O aumento da penosidade e esforço para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras é, efectivamente, atendível no domínio das consequências patrimoniais da lesão corporal, e não apenas no domínio das consequências não patrimoniais, na medida em que se entenda provado que «tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.» (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2017, proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt);

- Na expressão «dano patrimonial autónomo», a autonomia define-se por contraposição ao dano patrimonial resultante da afectação da capacidade para o exercício da profissão habitual do lesado. Quer isto dizer que ambas as formas de incapacidade – incapacidade geral ou funcional e incapacidade para a profissão habitual – se podem traduzir em perdas de rendimento certas ou com elevada probabilidade de ocorrência.

Como se afirma no supra citado artigo da relatora do presente acórdão (ob. cit., em curso de publicação):

«É possível formular a seguinte conclusão: se, ao longo da segunda metade do século XX, bem como dos primeiros anos do século XXI, a jurisprudência nacional foi aperfeiçoando os critérios a ponderar na fixação equitativa da indemnização por danos patrimoniais futuros (traduzidos em perda de rendimentos) causados pela incapacidade laboral específica, isto é, causada pela afectação da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional à data da ocorrência da lesão física, os procedimentos utilizados não tinham em conta – ao menos de forma sistemática – a circunstância de que a afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral genérica das vítimas é, também ela, susceptível de determinar perdas de rendimentos e, portanto, danos patrimoniais futuros. Esta omissão mostrava-se especialmente evidente nas seguintes situações:

a) Situação de lesado menor de idade que, em razão da idade, não exerce qualquer profissão no momento do evento danoso;

b) Situação de lesado que, não sendo afectado na sua capacidade laboral específica, é, porém, afectado na sua capacidade laboral genérica;

c) Situação de lesado que, em razão de circunstâncias várias de idade, saúde, dedicação à família, etc., não exerce profissão à data de ocorrência da lesão, sendo, contudo, afectado na sua capacidade laboral genérica.

Na peculiar evolução que a utilização do conceito de dano biológico tem tido na jurisprudência nacional, pode, com segurança, afirmar-se que, com tal utilização, se pretendeu precisamente dar resposta a este tipo de situações.». [negritos nossos]

O caso dos autos, no qual foi dado como provado que, «Na sequência das sequelas resultantes do acidente de viação, ao A. é atribuído um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 9 pontos por referência à Tabela Nacional das Incapacidades em Direito Civil» e que «As sequelas descritas em hh) são em termos de repercussão permanente na atividade profissional compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares», enquadra-se na hipótese indicada na alínea b): situação de lesado que, não ficando afectado na sua capacidade laboral específica, fica, porém, afectado na sua capacidade genérica ou funcional, o que, com elevada probabilidade – atendendo ademais à sua idade à data do sinistro (34 anos), assim como ao facto de a sua profissão (serralheiro) assentar na força e destrezas físicas – implicará, no futuro, uma perda de rendimentos.

Contrariamente ao alegado pela Recorrida nas conclusões 7ª a 14ª das respectivas contra-alegações, estamos perante danos futuros previsíveis que devem ressarcidos (cfr. art. 564.º, n.º 2, do Código Civil).

Nas esclarecedoras palavras do recente acórdão deste Supremo Tribunal de 04.11.2021 (proc. n.º 590/13.8TVLSB.L1.S1)[1], consultável em www.dgsi.pt:

«Conforme o art. 564.º, n.º 2, do CC, “Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior”.

Os danos futuros previsíveis são, pois, atendíveis. Assim, entre os danos ressarcíveis encontram-se aqueles que o lesado ainda não sofreu, ao tempo da atribuição da indemnização, mas que seguramente ou muito provavelmente virá a sofrer no futuro, por causa do facto ilícito do lesante.

Danos futuros são os prejuízos que não produzem efeitos imediatamente após o evento danoso, mas que se manifestam ulteriormente. Trata-se de danos não ainda presentes ao tempo em que é exigida e concedida a reparação, mas que se verificarão seguramente no futuro. São danos de natureza patrimonial. Não se tendo ainda produzido, a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico.

(...)

Na verdade, os danos futuros previsíveis são certos ou altamente prováveis. Para serem indemnizados, devem ser provados pelo lesado, pois é sobre ele que impende o ónus da prova da existência do dano (o an), da sua medida (o quantum) e do nexo de causalidade entre ele e o facto ilícito. No caso de os danos futuros previsíveis não serem determináveis, a fixação da respetiva indemnização é remetida para decisão ulterior (art. 564.º, n.º 2, do CC). Por seu turno, na hipótese de não poder ser provada a sua medida precisa, i.e., quando os elementos, considerados suficientes, não consintam a determinação certa do quantum do dano, a fixação da correspondente indemnização tem lugar segundo a equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC).

Naturalmente que o grau de certeza que deve existir para tornar o dano futuro ressarcível – para que seja considerado como previsível - não é o mesmo daquela que carateriza o dano presente. A especificidade dos danos futuros previsíveis reside justamente no facto de, não se tendo ainda verificado no momento da atribuição da indemnização, virem verossimilmente a produzir-se segundo um grau de elevada probabilidade com base no critério do id quod plerumque accidit.

A previsibilidade dos danos futuros inculca, pois, um elevado grau de probabilidade, atendendo aos efeitos geralmente associados à lesão causada e às especificidades das circunstâncias concretas do lesado e do evento. Daqui resulta a necessidade da existência de “suficiente segurança”: i.e., os danos futuros devem ser previsíveis com segurança bastante. Se o não forem, o tribunal não pode condenar o lesante a reparar danos que não se sabe se virão a produzir-se. Por conseguinte, se os danos futuros não forem previsíveis com segurança bastante, o seu ressarcimento apenas pode ser exigido quando ocorrerem [2: Cf. Henrique Sousa Antunes, “Anotação ao Artigo 564.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.561.].

Conforme mencionado supra, a previsibilidade com segurança dos danos pode resultar da verosimilhança ou de probabilidades da sua produção: a certeza dos danos futuros pode decorrer do facto de serem o desenvolvimento seguro de danos atuais, mesmo que o respetivo quantum seja incerto. Entre a certeza e a elevada probabilidade subsiste, ainda, uma margem significativa de apreciação para os tribunais, de acordo com as regras da experiência comum [3: Cf. Henrique Sousa Antunes, “Anotação ao Artigo 564.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.561.].

De um lado, não basta a mera eventualidade de um prejuízo futuro para justificar a condenação do lesante no pagamento da respetiva indemnização, i.e., para afirmar o dano futuro como imediatamente ressarcível. De outro lado, afigura-se suficiente a atendibilidade fundada de que o dano se venha a produzir segundo a normalidade e regularidade do desenvolvimento causal; a probabilidade relevante de consequências prejudiciais é configurável como dano futuro imediatamente indemnizável sempre que a efetiva diminuição patrimonial surja como resultado da evolução natural de factos concretamente assentes e inequivocamente sintomáticos daquela probabilidade, segundo um critério de normalidade fundado nas circunstâncias do caso concreto. (...).». [negritos nossos]

Que, com elevada probabilidade, ocorrerá no futuro uma diminuição patrimonial para o lesado em resultado da evolução natural do facto de ter ficado a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, encontra-se explicitado na fundamentação do acórdão deste Supremo Tribunal de 20 de Maio de 2010 (proc. n.º 103/2002.L1.S1)[2], disponível em www.dgsi.pt, em termos que vêm sendo reiteradamente convocados por decisões posteriores do mesmo Tribunal (cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 13.04.2011 (proc. n.º 843/07.4TBETR.C1), de 03.11.2016 (proc. n.º 1971/12.0TBLLE.E1.S1) e de 13.07.2017 (proc. n.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1), publicados em www.dgsi.pt):

«Parece-nos importante começar por distinguir os problemas da ressarcibilidade do dano biológico e do seu enquadramento ou qualificação jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano moral – ou eventualmente como «tertium genus», como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afectação da saúde e plena integridade física do lesado: é que, qualquer que seja o enquadramento jurídico que, no caso, se entenda reflectir mais adequadamente a natureza das coisas, é indiscutível que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui seguramente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da «teoria da diferença»; ou, não sendo perspectiváveis perdas patrimoniais próximas ou previsíveis, a penosidade acrescida no exercício das tarefas profissionais e do dia a dia constitui seguramente um dano não patrimonial que, pela sua gravidade, não poderá deixar de merecer a tutela do direito.

Essa natureza híbrida ou mista do dano biológico é perfeitamente detectável no caso dos autos, em que estamos confrontados com relevantes limitações funcionais da lesada que, de nenhum modo, se podem perspectivar como pequenas invalidades permanentes, geradoras de um mero «dano de complacência» (veja-se a situação analisada no Ac. deste Supremo de 20/1/2010, no p.203/99): na verdade, embora tais sequelas incapacitantes não tenham um imediato reflexo no nível de remuneração auferida na concreta actividade profissional (de gerente da sua própria micro-empresa) da lesada, elas poderão revelar-se plenamente se, porventura , esta, no decurso da vida profissional que lhe resta, quiser ou tiver de mudar de actividade.

Ou seja: pelo menos nos casos em que a não previsível e imediata diminuição de rendimentos profissionais, potencialmente associada às sequelas das lesões, ocorre por o lesado ainda não exercer uma actividade profissional ou exercer, no momento, actividade concreta que não é substancialmente afectada pelas sequelas físicas ou psíquicas que restringem as suas capacidades pessoais, é indiscutível que o lesado vê diminuída a amplitude de escolha, o leque das actividades laborais que pode perspectivar exercer ainda no futuro, ficando necessariamente condicionado e «acantonado» no exercício de actividades menos exigentes – o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho (facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador).

Em suma: pelo menos para quem não está irremediavelmente afastado do ciclo laboral, a perda relevante de capacidades funcionais – embora não imediatamente reflectida nos rendimentos salariais auferidos na profissão exercida – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» do lesado num mercado laboral em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, constituindo, deste modo, fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar como verdadeiros danos patrimoniais.». [negritos no original]

Concluindo-se, assim, pela correcção dos fundamentos teóricos do acórdão da Relação no que à reparabilidade das consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral ou funcional do lesado diz respeito, passar-se-á, em seguida, a apreciar da correcção dos parâmetros utilizados para a fixação do concreto quantum indemnizatório.


7. De acordo com a orientação reiterada da jurisprudência deste Supremo Tribunal, e nas palavras do acórdão de 14.12.2016 (proc. n.º   37/13.0TBMTR.G1.S1),[3] in www.dgsi.pt:

«Estamos no domínio dos danos patrimoniais indetermináveis, cuja reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cfr. art. 566º, nº 3, do Código Civil). Ora, como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), em princípio, “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça “a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”. Para além disso, a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade (ao abrigo do regime do art. 13º da Constituição e do art. 8º, nº 3, do Código Civil), o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.». [negritos nossos]

Tendo presente estas orientações de ordem geral, consideremos os parâmetros em que o tribunal a quo assentou a sua decisão:

«III.3.11. A jurisprudência do STJ está hoje (2021) mais ou menos estabilizada nas seguintes considerações que se reportam aos artigos 494, 496, 564 e 566 do CC:

1 - O dano biológico – o dano-evento real sofrido pela pessoa no seu corpo, - pode levar a danos-consequências patrimoniais e não patrimoniais.

2 - Estes danos patrimoniais são as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos

3 - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica com uma certa percentagem abrange mais do que uma incapacidade profissional permanente com igual percentagem (e, por isso, dir-se-ia que se tiver sido fixada uma indemnização laboral pela incapacidade profissional, a indemnização do défice funcional complementa-a na medida em que ultrapasse aquela - embora aqui existam acórdãos em divergência).

4 - Essa perda da capacidade geral de ganho - quando não for, ou não for só, a perda concretizada de rendimentos da profissão (por a pessoa não estar a trabalhar, no caso de estar desempregado, ainda não trabalhar por ser estudante, já não trabalhar por ser aposentado/desempregado, ou não se verificar incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual, apesar de o lesado ter de fazer esforços suplementares/acrescidos para o efeito, - é indeterminável, pelo que o seu valor deve ser fixado com recurso à equidade (por força do art. 566/3 do CC), em função dos seguintes factores: (i) a idade do lesado e a sua esperança de vida; (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente (isto é, a percentagem do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica); (iii) as suas potencialidades de ganho em profissão ou actividades económicas compatíveis com as suas qualificações e aquele défice; (iv) outros que se revelem no caso; e (v) jurisprudência anterior; e não pela aplicação das tabelas utilizadas para determinação dos danos patrimoniais resultantes da IPP para o exercício da profissão profissão habitual [embora neste ponto continue a haver uma corrente forte de acórdãos do STJ que se continuam a referir a esta forma de cálculo como base para o posterior funcionamento da equidade].». [negritos nossos]

Não merecem censura os critérios enunciados pelo acórdão recorrido numa fórmula que, aliás, corresponde essencialmente à utilizada nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 16.03.2017 (proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1), de 25.05.2017 (proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1), de 06.12.2017 (proc. n.º 559/10.4TBVCT.G1.S1), de 29.10.2020 (proc. n.º 111/17.3T8MAC.G1.S1) e de 22.01.2022 (proc. n.º 6158/18.5T8SNT.L1.S1)[4], consultáveis em www.dgsi.pt, ainda que nestes se tenha autonomizado um factor que não se encontra indicado na enunciação feita no acórdão recorrido, a saber, a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui, tendo em conta as suas qualificações e competências).

Temos assim que, numa formulação mais completa e rigorosa, os critérios a ter em conta serão os seguintes: (i) a idade do lesado (a partir da qual se pode determinar a sua esperança média de vida à data do acidente); (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; (iii) as suas potencialidades de ganho e de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; (iv) a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui, tendo em conta as suas qualificações e competências).

Relevam os seguintes factos provados:

bb) O A. é trabalhador independente colectado como serralheiro civil.

cc) O A., para efeitos de responsabilidade emergente de acidente de trabalho, transferida para a seguradora Fidelidade Companhia de Seguros, S.A. declarou uma retribuição anual de €7.798,00.

hh) Como consequência do acidente o A. apresenta as seguintes sequelas:

- Membro superior direito: rigidez dolorosa do punho nos movimentos de flexão de 40° e extensão de 40°; desvio radial de 30° e ulnar de 10°; supinação de 80°.

- Membro superior esquerdo:  cicatriz nacarada, linear, longitudinal, quase inaparente, no bordo radial do punho, medindo 3cm de comprimento; vestígio ciatricial nacarado, mediano, na face posterior do punho, medindo 0,5cm de diâmetro; sem amitrofias; força muscular contra a resistência; discreta rigidez dolorosa do punho no movimento de dorsiflexão, embora com arco de movimento útil.

nn) Na sequência das sequelas resultantes do acidente de viação, ao A. é atribuído um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 9 pontos por referência à Tabela Nacional das Incapacidades em Direito Civil.

qq) As sequelas descritas em hh) são em termos de repercussão permanente na atividade profissional compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

ddd) O A. nasceu em .../.../1982, tendo na data do acidente, de 34 anos de idade.

Pronunciou-se o acórdão recorrido da seguinte forma:

«III.3.12 Sendo a esperança média de vida em 2017, para os homens, de 77,8 anos, em termos puramente aritméticos, daria o seguinte: 7.798,00 x 43,8 x 0,09 = 30.739,71 euros a que se abateria, equitativamente, já em razão de receber de uma só vez o capital, o que daria 23.054,78 euros. Mas. ainda assim, não se incluem outras variáveis que as tabelas incluem pelo que o valor fixado de 30 mil euros é justo proporcional e adequado.».

Temos assim que, no acórdão recorrido:

- Foi tida em conta a idade do lesado à data do acidente (34 anos) para, em função dela, se aferir a sua esperança média de vida [assinale-se, contudo, que, em rigor, a esperança de vida que releva é a esperança de vida à data do acidente (2017) dos homens nascidos em 1982 e não dos homens nascidos em 2017., sendo que a primeira deverá ser ligeiramente inferior à segunda];

- Foi tido em conta o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado ao lesado (9 pontos);

- Foi aplicada uma percentagem de 9% sobre o valor do rendimento anual do lesado ao tempo do acidente (€ 7.798,00), multiplicada pelo número expectável de anos de vida;

- O resultado assim obtido foi sujeito a um juízo equitativo que fixou em €30.000,00 o montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral ou funcional de trabalho (em vez do montante de €50.000,00 atribuído pela 1.ª instância).

Da apreciação feita pelo tribunal a quo, e para além da dificuldade técnica de estabelecer a correspondência exacta entre índice de défice funcional e percentagem de incapacidade geral, aquilo que se destaca é a circunstância não se ter tido em conta o critério que enunciamos como a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado.

Isto é, não se atendeu, de forma específica, à factualidade dada como provada nos autos da qual resulta que, com elevada probabilidade, as lesões sofridas pelo A. terão repercussão (negativa) sobre o desempenho da profissão de serralheiro cujo exercício exige um elevado nível de força e de destreza físicas ao nível dos membros superiores. Na verdade, tendo tais lesões atingido ambos os membros superiores do A., afectando-o tanto no punho direito como no punho esquerdo, as consequências das ditas lesões na capacidade de ganho do lesado serão, com elevada probabilidade, muito significativas. Tanto basta para se concluir ser mais justo e adequado o quantum indemnizatório de € 50.000,00 atribuído pela 1.ª instância do que o valor de € 30.000,00 atribuído pelo acórdão recorrido.

O que dizer, porém, em função da comparação com o decidido noutros casos sujeitos à apreciação deste Supremo Tribunal, dando origem a arestos que Recorrente e Recorrida invocam em sentidos contrapostos – invocando concretamente, os acórdãos de 29.03.2012 (proc. n.º 184/04.9TBARC.P2.S1), de 16.06.2016 (proc. n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2), de 07.03.2019 (proc. n.º 203/14.0T2AVR.P1.S1.), de 29.10.2019 (proc. 7614/15.2T8GMR.G1.S1) e de 20.05.2021 (proc. n.º 826/18.9T8CTB.C1.S1) – todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Se, como se viu supra, «a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade (ao abrigo do regime do art. 13º da Constituição e do art. 8º, nº 3, do Código Civil)», afigura-se ser evidente que um juízo comparativo incidente sobre montantes indemnizatório apenas poderá ser realizado em relação a decisões temporalmente próximas e nas quais estejam em causa situações fácticas essencialmente similares.

Ora, o mais antigo dos acórdãos invocados data de há dez atrás, não sendo assim de trazer à colação para efeitos ponderação do respeito pelo princípio da igualdade. Quanto aos demais arestos indicados, compulsada a respectiva fundamentação, verifica-se serem de tal forma diversas tanto as lesões concretamente sofridas por cada um dos lesados como as exigências das profissões e actividades de natureza económica para as quais cada um deles se encontra habilitado ou tecnicamente preparado, que se torna particamente inviável proceder a juízos comparativos, valendo aqui as seguintes considerações:

«Pretender indemnizar a perda da capacidade geral mediante recurso a comparações com outros casos decididos pelos tribunais, tendo designadamente em conta a idade do lesado à data do sinistro, o índice de incapacidade funcional e o valor indemnizatório fixado, mas esquecendo a referida exigência de ponderação das potencialidades de ganho e de aumento de ganho do lesado, anteriores à lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências, assim como de avaliação da conexão entre as lesões psicofísicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas do lesado, compatíveis com as suas habilitações ou preparação técnica, constitui, a nosso ver, uma grave falha nos pressupostos do juízo equitativo porque leva a comparar entre si situações factuais não comparáveis..». [negritos nossos] (Maria da Graça Trigo, ob. cit., em curso de publicação, pág. 268.)

Concluindo-se pelo acerto dos fundamentos teóricos do acórdão recorrido, na parte relativa à questão em apreço no presente recurso de revista (montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral ou funcional do lesado), mas verificando-se uma falha na ponderação dos contornos do caso concreto, considera-se ser de repristinar, nessa parte, a decisão da 1.ª instância, fixando-se o valor da indemnização pelo denominado “dano biológico” em € 50.000,00.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se, na parte impugnada, a decisão do acórdão recorrido e condenando-se a Ré a indemnizar o Autor por “dano biológico”, no sentido de consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral ou funcional deste, no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).


Custas pela Recorrida.


Lisboa, 24 de Fevereiro de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

______

[1] Relatado pela Conselheira Maria João Vaz Tomé.
[2] Relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego.
[3] Relatado pela relatora do presente acórdão.
[4] Relatados pela relatora do presente acórdão.