Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4778/11.8JFLSB-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
CONDENAÇÃO
METADADOS
DADOS DE LOCALIZAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
DIRETIVA COMUNITÁRIA
INVALIDADE
SENTENÇA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 04/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Nos termos da al. f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando seja declarada, pelo Tribunal Constitucional (TC), a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

II. Carecendo de interpretação conforme à Constituição, o conteúdo da norma limita-se restritivamente, em conjugação com o n.º 3 do artigo 282.º da lei fundamental: só poderá ocorrer revisão com este fundamento, no pressuposto de que tal norma tem natureza penal de conteúdo menos favorável ao arguido, quando o TC proferir decisão em contrário à ressalva do caso julgado constitucionalmente imposta; não havendo decisão em contrário, ficam intocados todos os casos julgados que tenham aplicado a norma declarada inconstitucional.

III. As normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que o TC declarou inconstitucionais, com força obrigatória geral, no acórdão n.º 268/2022, relacionam-se com a conservação, durante o período de um ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro, pelas autoridades nacionais competentes.

IV. A Lei n.º 32/2008 transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, de 15 de março, que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, de 12 de Junho, adotada com base no artigo 95.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (que dizia respeito ao funcionamento do mercado interno, antigo 1.º pilar da União), que teve como principal objetivo harmonizar as disposições dos Estados-Membros relativas às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações assegurarem a conservação desses dados, em derrogação aos artigos 5.º, 6.º e 9.º da Diretiva 2002/58/CE, que transpôs os princípios estabelecidos na Diretiva 95/46/CE (transposta para o direito interno pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, substituída pelo RGPD) para regras específicas do sector das comunicações eletrónicas.

V. O n.º 1 do artigo 15.º º da Diretiva 2002/58/CE, transposta para o direito interno pela Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, prevê que, com aquela finalidade, os Estados-membros possam adotar medidas legislativas e enumera as condições de restrição da confidencialidade e de proibição do armazenamento de dados de tráfego e de localização, mas não é aplicável às atividades do Estado em matéria de direito penal, que constituía domínio de cooperação intergovernamental (anterior 3.º pilar da União).

VI. Havendo sempre que distinguir, entre atividades de conservação de dados, regulada por normas de “direito comunitário” (anterior 1.º pilar), e atividades de acesso aos dados, regulada por normas processuais penais nacionais e do anterior 3.º pilar da União (distinção que deve manter-se após o Tratado de Lisboa, com a abolição da “pilarização” de Maastricht), que constituem operações de tratamento de dados pessoais diferentes e, enquanto tal, ingerências distintas em direito fundamentais, cabe ao direito nacional determinar as condições em que os prestadores de serviços devem conceder às autoridades nacionais competentes o acesso aos dados de que dispõem (ingerência no direito à privacidade), para investigação da criminalidade grave, com respeito pelos princípios e regras do processo penal, nomeadamente pelo princípio da proporcionalidade, do controlo prévio de um órgão jurisdicional, do contraditório e do processo equitativo (cfr. acórdãos TJUE de 21.12.2016, Tele2 Sverige AB, proc. C‑203/15; de 6.10.2020, La Quadrature du Net e o., proc. C-511/18, C-512/18 e C-520/18;  de 2.3.2021, H. K. e Prokuratuur, proc. C-746/18; e de 5.4.2022, G. D. e Commissioner of An Garda Síochána e o., proc. C-140/20).

VII. O acesso a dados pessoais, pelas autoridades competentes, para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, que respeita estas regras e princípios, rege-se atualmente pela Diretiva (UE) 2016/680, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes, no âmbito das investigações e dos processos penais, transposta para o direito interno pela Lei n.º 59/2019, de 08 de agosto (cfr. art.ºs 1.º e 2.º, n.º 1).

VIII. Situando-se numa dimensão diversa, a Lei n.º 32/2008 não revogou nem estabeleceu normas de natureza penal ou processual penal, de que as autoridades judiciárias se devam socorrer para acesso e aquisição da prova ou para assegurar a sua validade no processo; tais atividades dispõem de regime próprio definido pelas leis penais e processuais penais nacionais e, no que se refere aos domínios de competência da União Europeia (UE) no espaço de liberdade, segurança e justiça – que constitui competência repartida entre a UE e os Estados-Membros (artigo 5.º, n.º 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE) –, pelo artigo 82.º do TFUE e pela citada Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, transposta pela Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto.

IX. A obtenção, no processo penal, de dados em posse de fornecedores de serviços de comunicações é regulada por outras disposições legais: pelos artigos 187.º a 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do CPP e pela Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), que transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro n.º 2005/222/JAI, de 24 de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa (Budapeste, 2001; RAR n.º 88/2009 e DPR n.º 91/2009, de 15 de setembro).

X. O Tribunal Constitucional não declarou que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral nos termos do acórdão n.º 268/2022 se estendem ao caso julgado, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º da Constituição, pelo que esta declaração de inconstitucionalidade não constitui fundamento de revisão de sentença previsto alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP.

XI. A declaração de invalidade da Diretiva n.º 2006/24/CE pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), por acórdão de 08.04.2014, em pedidos de decisão prejudicial apresentados nos termos do artigo 267.º do TFUE (nos processos apensos Digital Rights Ireland Ltd (C‑293/12) e Kärntner Landesregierung (C‑594/12), anterior ao acórdão em que o recorrente foi condenado, não constitui fundamento de revisão da sentença a que se refere a al. g) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, segundo o qual a revisão é admissível quando “uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça”.

XII. Para além de a lei exigir que a sentença proferida por uma instância internacional seja posterior à condenação, a sentença do TJUE – não do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, para que a norma foi particularmente pensada, tendo presente o n.º 1 do artigo 46.º (sob a epígrafe “Força vinculativa e execução das sentenças”) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – não constitui, “uma sentença vinculativa” do Estado Português, na aceção deste preceito.

XIII. Uma sentença do TJUE que, em recurso prejudicial, declara, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, uma diretiva inválida apenas se dirige diretamente ao órgão jurisdicional que colocou a questão ao TJUE; o facto de qualquer outro órgão jurisdicional dever considerar tal ato inválido, em resultado da obrigação geral de garantir o primado do direito da União, abstendo-se de praticar atos contrários que prejudiquem a sua efetividade (neste sentido se podendo falar de uma eficácia erga omnes – cfr. o acórdão TJUE C-66/80, de 13.5.1981), não lhe confere o estatuto de sujeito processual destinatário daquela decisão, de modo a que se deva considerar como uma sentença vinculativa fundamento da revisão.

XIV. Assim, não havendo fundamento, é negada a revisão da sentença condenatória.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. AA, com a identificação dos autos, interpõe recurso extraordinário de revisão do acórdão do tribunal de júri de 27 de Maio de 2016, da Instância Central Criminal ..., confirmado, com alteração da condenação na parte cível, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Fevereiro de 2017, transitado em julgado a 20 de Abril de 2017, e que o condenou pela prática, entre outros, de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1 e n.º 3, al. a), do Código Penal (CP), na pena de 3 (três) anos de prisão, e, consequentemente, ao pagamento de indemnização ao demandante BB no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).

2. Fundando o recurso na alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal (CPP) – declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19 de abril de 2022, das normas dos artigos 4.º, 6.º, e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações –, conclui a motivação dizendo, em conclusões (transcrição):

“I. O Recorrente foi condenado, por meio de Acórdão prolatado a 27 de Maio de 2016, pela prática do crime de denúncia caluniosa, p.p. pelo artigo 365.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de 3 (três) anos de prisão, e, consequentemente, ao pagamento de indemnização ao demandante BB no montante de € 25,000,00 (vinte e cinco mil euros).

II. O Recorrente sempre afirmou, em todas as fases do processo, que não foi o autor material ou moral deste ilícito, mas que teve conhecimento à posteriori da autoria por parte do autor confesso e que não o denunciou.

III. O Acórdão condenatório, transitado em julgado a 20 de Abril de 2017, alicerçou a sustentabilidade da sua decisão, concretamente a fundamentação dos factos provados que se demonstravam essenciais à condenação do Recorrente, datados de 2011, em localizações celulares e faturação detalhada, cuja legalidade de obtenção encontrou abrigo na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, em vigor à data, com especial enfoque do disposto nos números 6 e 7 do no seu artigo 4º, conjugado com o artigo 6º desse normativo, sem prejuízo que esta Lei se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União Europeia, encontrando-se, portanto, diretamente vinculada pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta), no seu artigo 51.º, n.º 1.

IV. Foi à luz desse plasmado normativo (Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho) que neste processo se legitimaram as obtenções de identificações de IMEI´s, identificação de titularidade de números de telemóvel, faturação detalhada e localizações celulares,

V. Quer do telefone móvel do Recorrente, quer do telefone móvel do autor material confesso, mas “convertido”, surpreendentemente, em testemunha, CC, quer às testemunhas DD e EE.

VI. Por douto Acórdão n.º 268/2022, proferido a 19 de Abril de 2022 pelo Tribunal Constitucional, já transitado em julgado, foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dos artigos 4.º, conjugado com o artigo 6.º, e artigo 9.º da supra identificada Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, comummente denominada como Lei dos Metadados, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º, do n.º 1 do artigo 20.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

VII. É justamente em virtude da vinculação da legislação nacional à Carta que, no seguimento das decisões do TJUE ,a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) emitiu a Deliberação n.º 641/2017, de 9 de Maio, onde expôs a sua perspectiva sobre a Lei n.º 32/2008, considerando que a mesma contém normas que prevêem a restrição ou ingerência nos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e pelas comunicações e à protecção dos dados pessoais com grande amplitude e intensidade, em violação do princípio da proporcionalidade,  portanto, em violação do n.º 1 do artigo 52.º da Carta, bem como uma restrição desproporcionada dos direitos à reserva da intimidade da vida privada, à inviolabilidade das comunicações  e à protecção de dados pessoais, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

VIII. Acresce que, e não menos importante, na data em que o Recorrente foi condenado, 27 de Maio de 2016, já era conhecida a posição do TJUE que, por Acórdão proferido a 08 de Abril de 2014, declarou a invalidade da referida Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade pela restrição que a Directiva opera dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à protecção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7.º e 8.º da Carta.

IX. Ou seja, o Recorrente sofreu condenação baseada em faturação detalhada e localizações celulares, por aplicação da Lei 32/2008, de 17 de Julho, mesmo sabendo-se que, à data, já havia sido declarada a invalidade pelo TJUE Diretiva n.º 2006/24/CE pelo Acórdão proferido a 08 de Abril de 2014 pelo TJUE, que não foi acatada no nosso ordenamento jurídico, ficando o Recorrente numa situação de intolerável injustiça e que deve ser reposta.

X. Não podendo ser exigido ao Recorrente que se conforme com uma decisão tão injusta, pelo facto de só agora, em 2022, se ter sido decidido um pedido de tanto melindre, com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.

Senão, vejamos,

XI. Resultaram provados em sede do Acórdão Condenatório, os factos 54 a 107, constantes de fls. 32 a 38, e com interesse para o presente recurso, os factos 72, 79, 81 e 88:

“72. Seguidamente, no dia 19.12.11, pelas 19h30m, o arguido AA chamou CC às instalações da Sporting Clube de Portugal, no Complexo Alvalade XXI, na Rua ..., em Lisboa, e pediu-lhe que viajasse até ao Funchal e que ali procedesse ao depósito da quantia de 2.000,00€ na conta do árbitro BB [fls.232-233 e 237].

79. Pelas 14h16m, CC telefonou ao arguido AA dando-lhe conta da realização do depósito [fls. 283, 315, 450-463 e 506-519].

81. Pelas 22h08m, CC telefonou ao arguido AA, dizendo-lhe que já retornara a Lisboa.

88. CC entregou o referido envelope ao arguido AA, na residência deste, na ..., na ....01, apartamento ...07, em Lisboa. “

XII. Ou seja, dos factos provados e que são essenciais à decisão condenatória do ora Recorrente, quanto ao crime de denúncia caluniosa, incluindo os que acima se transcreveram, a sustentação probatória assenta nas declarações da testemunha/autor confesso CC e em Metadados – localizações celulares e faturação detalhada de comunicações móveis, o que é assumido pela própria decisão, na motivação, de fls. 54 a 57.

“No que tange aos pontos 54 a 107 (do depósito de €2.000,00 na conta bancária de BB e a denúncia criminal efectuada em sequência) o arguido AA negou a autoria e/ou participação activa (consciente) nos mesmos.

Todavia, a prova recolhida sustentou, inequivocamente, toda a matéria dada por assente.

Com efeito, o depoimento da testemunha CC que, detalhadamente, explicou a situação, designadamente a viagem/deslocação à Madeira e o depósito bancário (em consonância com a prova documental de fls. 82, 90, 115 e 122 /124, imagens de videovigilância de fls. 57/61, 146/150 e 159/160 e localização celular de fls. 232 e 233) “a pedido” do arguido AA mereceu, efectiva, credibilidade. Na verdade, não havendo dúvidas do ponto de vista objectivo quanto ao comportamento de CC não é crível (como sustentou o arguido AA) que este tivesse agido por iniciativa própria, dada a relação de proximidade que, então, existia entre ambos e, principalmente, a dependência/subserviência (por ambos confirmada) de CC em relação ao arguido. Isto não quer dizer, no entanto, que o depoimento de CC nos mereceu total credibilidade. Efectivamente, não se vislumbra como possível que tenha actuado sem consciência (do alcance) dos seus actos, atentas as mais elementares regras da experiência e até pelo modo como ele próprio descreveu os factos (a necessidade de usar um boné para ocultar a face, o ter destruído a roupa que utilizou, o conhecimento que o depósito tinha sido efectuado na conta de “um tal Cardinal”). Pese embora as evidências de uma participação clara e consciente por parte de CC nos factos provados, a verdade é que aquando do despacho de encerramento do inquérito foi proferida (quanto a ele) decisão de arquivamento, pelo que, sendo a prova carreada a mesma que já existia em sede de inquérito, não é possível (daqui) extrair qualquer consequência jurídica.

De igual modo, o depoimento de EE, à data secretária de AA, não obstante os evidentes constrangimentos com que depôs, numa clara tentativa de mitigar(além da sua) a responsabilidade de AA, acabou por confirmar aquilo que (mais) importava, ou seja, a compra da viagem e o transporte de CC, a pedido de AA, factualidade, aliás, já plenamente provada documentalmente (fls. 122, 124 510, 511 e 532). De notar que, também quanto a esta testemunha, a prova reunida aponta no sentido de que a mesma colaborou activa e conscientemente no plano do arguido AA. De facto, a própria, aquando da aquisição das viagens para o CC forneceu um número de telefone de contacto e uma morada “inventados”, com manifesta semelhança com o seu número de telefone e a sua antiga morada (fls. 124, 655, 796, 824 e 1589).

- está plenamente provado que o CC foi estabelecendo contacto telefónico com o arguido a dar-lhe conta da execução das várias fases do plano (facturação de fls. 513 e 515); - o registo de entradas no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI de fls. 2009 confirma a credibilidade do depoimento do CC relativamente à entrega do talão de depósito a EE e o recebimento (desta) do envelope para entrega a AA;

- a localização celular de fls. 233 prova que, logo de seguida, o CC se deslocou a casa do arguido, tal como ele afirmou, para entrega do envelope;

- a versão do arguido AA de que o envelope (contendo o talão de depósito e a denúncia) teria sido deixado na segurança do edifício Multidesportivo e entregue a ele não tem qualquer cabimento, dado que no dia em causa o primeiro registo de entrada do mesmo no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI é pelas 10H15 (fls. 2008) o que é igualmente corroborado pela localização celular do seu telemóvel (fls. 516) e que cerca das 09H07 o arguido já se encontrava na zona das Portagens da Ponte Vasco da Gama, no sentido Lisboa - Alcochete (fls. 515 e 1796)

No que respeita à dinâmica factual (tempos e sequências) atinentes à entrega do envelope por parte de AA à testemunha DD e à denúncia da situação às autoridades verificou-se uma clara discrepância entre as declarações do arguido AA, os depoimentos das testemunhas DD, FF e GG e a prova objectiva existente - localização celular de AA de fls. 515 a 518, localização celular da testemunha DD de fls. 2031 a 2033 (Vodafone) e 1522 (TMN), os respectivos registos de Via Verde das viaturas conduzidas por cada um(fls.1796 e 1799) bem como os registos de entrada e saída no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI de AA (fls. 2008) - pelo que, naturalmente, deu-se por assente os tempos e sequências que objectivamente resultam destes elemento-cumpre consignar, na sequência do atrás referido, quanto à participação, colaboração activa e consciente de CC e EE na execução do plano, que se procedeu à substituição das expressões “ordenou” e “determinou” por “pediu”; - não se tendo provado em concreto a autoria dos escritos da (suposta) denúncia anónima e dos dizeres apostos no envelope deu-se como assente, apenas, a autoria moral do arguido AA.”

XIII. A prova a que o Acórdão condenatório se socorreu para sustentar a condenação do ora Recorrente, como autor material da prática de 1 (um)crime de denúncia caluniosa, abrange as declarações do autor material confesso/testemunha CC, cuja credibilidade é posta em causa na própria decisão condenatória; as declarações da testemunha EE que corroborou integralmente a versão dos factos apresentada pelo Recorrente; a faturação detalhada de um dos telefones do Recorrente de fls. 513 e 515; as localizações celulares do Recorrente, constantes de fls. 232, 233 e 515 a 518 e as localizações celulares do Eng. DD de fls. 1522 e 2031 a 2033.

XIV. A versão que a testemunha CC, o autor material confesso do depósito de € 2000 na conta do Assistente BB, apresentou em julgamento é divergente da versão factual apresentada pelo Recorrente e sua credibilidade é ali colocada em causa, uma vez que o Tribunal a quo não acolheu a versão de que CC desconhecia da ilicitude da sua atuação, bem como no “empurrar” toda a responsabilidade material e moral para o Recorrente. Aliás, enquanto arguido, na fase inquérito, mesmo tendo confessado a prática dos factos, CC foi premiado, de forma absolutamente inexplicável, com um despacho de arquivamento, o que, aliás, é realçado a fls. 55 do Acórdão condenatório, motivo pelo qual o depoimento testemunhal prestado por CC perdeu a força probatória que poderia atingir, não fosse o caso de ter sido apurada a sua falta de credibilidade:

“Efectivamente, não se vislumbra como possível que tenha actuado sem consciência (do alcance) dos seus actos, atentas as mais elementares regras da experiência e até pelo modo como ele próprio descreveu os factos (a necessidade de usar um boné para ocultar a face, o ter destruído a roupa que utilizou, o conhecimento que o depósito tinha sido efectuado na conta de “um tal Cardinal”).

Pese embora as evidências de uma participação clara e consciente por parte de CC nos factos provados, a verdade é que aquando do despacho de encerramento do inquérito foi proferida (quanto a ele) decisão de arquivamento, pelo que, sendo a prova carreada a mesma que já existia em sede de inquérito, não é possível (daqui) extrair qualquer consequência jurídica.”

XV. Consequentemente, se as mesmas são desprovidas de total credibilidade, o Tribunal a quo teve que sustentar a sua decisão em algo mais e que justificasse uma condenação, razão pela qual, o Acórdão recorrido “agarrou-se com unhas e dentes” às localizações celulares e faturação detalhada para dar como comprovada a versão factual apresentada pela testemunha, classificada pelo próprio Tribunal como não credível.

XVI. Sem recurso a esses elementos de prova, o Acórdão recorrido não teria como sustentar uma condenação fundada em factos provados com base numa versão apresentada por quem não se demonstrou credível.

XVII. Isto é, o fundamento “cola” que sustentou a versão de CC, devidamente preparada, e sustentou a condenação do Recorrente pela prática do crime de denúncia caluniosa assentou nas localizações celulares e faturação telefónica detalhada do identificado CC e do Recorrente, as quais foram solicitadas e obtidas junto da operadora de telecomunicações MEO, à data TMN, na fase de inquérito (no decurso de 2012).

XVIII. E é este motivo que nos traz a esta sede do Recurso de Revisão, o qual vem interposto na sequência da declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas previstas nos artigos 4.º, conjugado com o 6.º, e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, comummente denominada como Lei dos Metadados, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º, do n.º 1 do artigo 20º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da CRP, uma vez que os Metadados (faturação e localizações celulares) já identificados e usadas no Acórdão Condenatório como elemento de prova e fundamento de condenação, foram recolhidos com base naqueles acervos normativos declarados inconstitucionais, com força obrigatória geral, o que é claramente menos favorável ao Recorrente, conforme resulta amplamente comprovado no supra explanado.

XIX. Neste sentido, Vicente Gimeno Sendra, Derecho Procesal Penal, Editorial Colex, 1.ª edição, 2004, pág. 769:” A reparação da decisão, condenatória ou absolutória, reputada de materialmente injusta, pressupõe que a certeza, a paz e a segurança jurídicas que o caso julgado encerra (a justiça formal, traduzida em sentença transitada em julgado), devem ceder perante a verdade material; por esta razão, trata-se de um recurso marcadamente excepcional e com fundamentos taxativos.”

XX. Mais do que meros interesses individuais, são ponderosas razões de interesse público que ditam a existência desta última garantia, cuja teleologia se reconduz em fazer prevalecer a justiça (material, real ou extraprocessual), sobre a segurança jurídica – José Maria Rifá Soler e José Francisco Valls Gombau, Derecho Procesal Penal, Madrid, Iurgium Editores, pág. 310.

XXI. Sem esquecer da posição do TJUE que, por Acórdão proferido a 08 de Abril de 2014, declarou a invalidade da referida Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade pela restrição que a Directiva opera dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à protecção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7.º e 8.º da Carta.

XXII. Consagra a alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal que a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação, sendo que esta consagração da revisão de sentença na lei ordinária é uma decorrência constitucional, que actualmente encontra assento no art. 29.º da Lei Fundamental, todo ele subordinado à aplicação da lei criminal.

XXIII. Pelo que, encontram-se preenchidos todos os requisitos legais de admissibilidade, legitimidade e oportunidade de interposição, pelo Recorrente, do presente recurso extraordinário de revisão, nos termos  e ao abrigo do disposto da supra referida alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, devendo o mesmo ser admitido e apreciado, impondo-se a anulação do Acórdão condenatório ora recorrido, que sustentou a prova, no que à denúncia caluniosa respeita, em Metatados cuja utilização está ferida de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e viola claramente decisão do TJUE, uma vez que a manutenção da sua utilização é intolerável e violadora dos mais elementares direitos do Recorrente e Princípios Basilares do Processo Penal, nomeadamente os Princípios da Igualdade, da Legalidade e do Processo Equitativo, previstos nos artigos 13.º, 29.º, n.º 6, 32.º, n.º 5, 20.º, n.º 4 da CRP e artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que se argui nos termos e com as respetivas consequências legais.

XXIV. Mesmo que a legislação nacional em questão «não seja inteiramente determinada» pelo direito da União Europeia - podendo, nessa medida, os órgãos jurisdicionais nacionais aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais - em caso algum poderá dessa aplicação resultar um nível de protecção menos elevado do que aquele garantido pela Carta (acórdãos do TJUE de 26 de fevereiro de 2013, Melloni, C-399/11, n.º 60 e Âkerberg Fransson, C-617/10, n.º 29).

XXV. Face ao exposto, deve Acórdão condenatório, proferido a 27 de Maio de 2016, ser revogado e substituído por outro que aplique o Princípio do In Dubio Pro Reo e, consequentemente, absolva o Recorrente da prática do crime de denúncia caluniosa, p. p. pelo artigo 365.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), do Código Penal, bem como, consequentemente, absolva o Recorrente do pagamento da indemnização no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) ao assistente/demandante BB.

Termos em que e nos demais que este douto Tribunal ad quem certamente suprirá deve ser dado provimento ao presente recurso de revisão e, por via dele, ser revogado o Acórdão condenatório, proferido a 27 de Maio de 2016, e substituído por outro que aplique o Princípio do In Dubio Pro Reo e, consequentemente, absolva o Recorrente da prática do crime de denúncia caluniosa, p.p. pelo artigo 365º, n.ºs 1 e 3, alínea a), do Código Penal, bem como, consequentemente, absolva o Recorrente do pagamento da indemnização no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) ao assistente/demandante BB (…)»

3. Respondeu o Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, dizendo, no sentido da improcedência do recurso (transcrição):

“(…)

Cremos (…) que não lhe assiste razão.

Conforme decorre do disposto no art.º 449.º do Código de Processo Penal, a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando se verificar qualquer dos fundamentos aí elencados.

Mais concretamente, dispõe a alínea f) daquele preceito legal que é admissível a revisão quando “seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação”.

Como refere o Conselheiro Pereira Madeira, “o recurso extraordinário de revisão tem em vista superar, dentro dos limites que impõe, eventuais injustiças a que a imutabilidade absoluta do caso julgado poderia conduzir…A revisão tem a natureza de um recurso, em regra, sobre a questão de facto. Não se trata de uma revisão do julgado, mas de um julgado novo sobre novos elementos. Em regra, a revisão funda-se em matéria de facto e só excepcionalmente algumas legislações a admitem com base em matéria de direito. Será o caso da previsão das alíneas e), f) e g), aditadas pela Lei nº 48/2007 de 29.8.” (in Código de Processo Penal anotado, Almedina, 2014, pags. 1609-1610).

Por outro lado, escreve o Dr. Maia Gonçalves, em anotação ao referido art.º 449.º do Código de Processo Penal, que “como se vinha entendendo pacificamente nos últimos anos de vigência do CPP de 1929, deve também agora entender-se que os factos ou meios de prova devem ser novos, no sentido de não terem sido apresentados no processo que conduziu à acusação, embora não fossem ignorados pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar” (in CPP Anotado 17ª ed., p. 1062).

Ora, no caso em apreço, há, desde logo, que considerar que evidenciam os autos que a presente condenação transitou em julgado no dia 20.04.2017.

Por outro lado, analisando a petição, não se vislumbram, com todo o respeito, quaisquer factos novos ou quaisquer outros fundamentos subsumíveis à previsão do n.º 1 do mencionado preceito legal e que sejam suscetíveis de suscitar dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

E sendo que, de acordo com o estabelecido no n.º 3 do art.º 282.º da Constituição da República Portuguesa, que regula os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional, quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social, e for de conteúdo menos favorável ao arguido … como sucede no caso dos autos, em que o T.C. nada decidiu em contrário.

Acrescendo que as provas que serviram de base à condenação do recorrente vão muito para além do meio de prova invocado pelo mesmo na sua pretensão (Metadados), como bem evidencia o douto acórdão condenatório: prova por declarações (dos arguidos, do assistente e dos demandantes civis), testemunhal, documental e pericial, analisados de uma forma global e à luz dos princípios definidos no art.º 127.º do Código de Processo Penal.

Assim, deflui do texto da decisão revidenda que tal meio de prova não foi determinante para a condenação do recorrente.

Em suma, afigura-se-nos que a decisão do T.C. não é, nem inconciliável com a condenação, nem suscita graves dúvidas sobre a sua justiça, pelo que não se verificam os fundamentos indicados pelo recorrente para que o Supremo Tribunal de Justiça possa autorizar a revisão da decisão condenatória.

Nesta conformidade, sem vermos necessidade de tecer mais alongadas considerações, e em conclusão, somos de parecer que deve ser negada a revisão pedida pelo condenado, em virtude do pedido formulado ser manifestamente infundado.»

4. Respondeu também o assistente BB, dizendo, em conclusões que (transcrição):

«1. O recurso é extemporâneo;

2. A decisão do T.C. não é inconciliável com a condenação do Recorrente;

3. Nem se suscitam graves (ou menos graves!) dúvidas sobre a sua Justiça;

4. Os referidos Metadados não foram relevantes (1) quer para a condenação penal (2) quer para a condenação cível do Recorrente;

5. Não se verificam os fundamentos necessários à pretendida revisão

5. Pronunciando-se sobre o mérito do pedido, de acordo com o disposto no artigo 454.º do CPP, consigna a Senhora Juíza do processo, concluindo pela denegação da revisão (transcrição):

“O condenado recorrente funda a sua pretensão para ver revista a decisão que o condenou no disposto no art. 449.º, al. f) do CPP.

Nos termos desse normativo legal, constitui fundamento de revisão a circunstância de ter sido declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha serviço de fundamento à condenação.

Traz à colação, para o efeito, a declaração de inconstitucionalidade proferida no Ac. Acórdão n.º 268/2022 de 19 de abril, proferido pelo Tribunal Constitucional.

Circunscrito que está, deste modo, o fundamento do recurso, analisemos, na nossa perspetiva, a bondade da sua procedência.

Dispõe o art. 282.º da CRP, sob a epígrafe, “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade” que:

1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.

3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

Deflui expressa e claramente do n.º 3 que os efeitos plasmados no n.º 1 sofrem a exceção decorrente do caso julgado, salvo expressa determinação do Tribunal Constitucional, quando a norma expurgada do ordenamento jurídico disser respeito a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

Ora, do Acórdão 268/2022 de 19 de abril não consta que o Tribunal Constitucional tenha expressamente afastado a ressalva de aplicação automática consagrada no nº 3 da citada norma constitucional, permanecendo aplicável, ipso facto, a regra da salvaguarda do caso julgado.

Desta feita, sendo certo que a norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma Lei, foi considerada nula e que a declaração de inconstitucionalidade implica efeitos retroativos ao momento da sua entrada em vigor, também é certo que o Tribunal Constitucional, ao não restringir os respetivos efeitos, deixou intocável a salvaguarda direta constitucionalmente prevista no nº 3 para os casos julgados, que assim permanecem imunes a essa declaração.

Em face ao exposto, ficam, a nosso ver, prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso de revisão interposto pelo arguido e mais não restará do que o julgar improcedente, porquanto o Ac. do Tribunal Constitucional em que se que funda o recurso não atinge o caso julgado.»

6. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 455.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer, também no sentido da denegação da revisão (transcrição):

“(...)

1. Questão prévia: extemporaneidade do recurso (suscitada pelo assistente)

No que respeita à extemporaneidade do recurso apresentado pelo condenado, o assistente defende a aplicação do disposto no artigo 697.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil (por via do artigo 4.º do CPP) que fixa o prazo de 60 dias a contar da data em que o requerente teve conhecimento do facto que constitui de fundamento ao recurso de revisão, o qual já teria decorrido.

Atendendo ao regime próprio do recurso de revisão consagrado no CPP e aos fundamentos aí expressos taxativamente para tanto no artigo 449.º, considera-se não ser de aplicar o aludido prazo fixado para o processo civil. Ou seja, o recurso de revisão pode ser interposto a todo o tempo, mesmo nos casos em que se funda no disposto no artigo 449.º, n.º 1, al. f) do CPP, em função dos valores que se pretendem acautelar no processo penal com o instituto (artigo 29.º, n.º 6 da Constituição).

Assim sendo, conclui-se que o recurso é tempestivo, por inexistir prazo legal aplicável para o recurso de revisão no processo penal.

2. O condenado interpõe o recurso ao abrigo da al. f), do n.º 1, do art. 449.º do CPP, invocando o Acórdão n.º 268/2022 do TC que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 4.º, conjugada com as dos artigos 6.º, e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17.07. O fundamento para a revisão está previsto nos seguintes termos: “Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação”.

Para além da invocação da inconstitucionalidade, no requerimento da revisão também se menciona a invalidade da Directiva n.º 2006/24/CE que transpôs para a nossa ordem jurídica a legislação que continha as normas declaradas inconstitucionais.

Como é manifesto esta alegação não tem a virtualidade de permitir uma hipotética revisão, face ao disposto na norma que fundamenta o pedido, pelo que não cabe a esta instância tomar posição sobre as eventuais consequências da mesma e suas implicações no caso julgado.

3. Nos termos do artigo 282.º, n.º 3 da Constituição ficam ressalvados os casos julgados, não obstante a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória, salvo quando o Tribunal Constitucional tenha decidido o contrário e as normas respeitarem a matéria penal e for de conteúdo menos favorável ao arguido (princípio da salvaguarda do caso julgado penal ou da intangibilidade do caso julgado). A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, ou seja, é como se a mesma não existisse na ordem jurídica.

Sobre o alcance do disposto no artigo 282.º, n.º 3 da Constituição, Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem que o sentido mais adequado da norma atinge-se do seguinte modo: 1) Por regra, a declaração de inconstitucionalidade não atinge o caso julgado em que se tenha aplicado uma norma declarada inconstitucional; 2) Todavia, em casos julgados que incidam sobre matéria penal (ou equiparada) poderão ser revistos, se da revisão resultar (por efeito da desaplicação da norma constitucional) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. artigo 29.º, n.º 4 da Constituição) (in Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 1041).

Do exposto resulta que a imutabilidade implicitamente atribuída pelo artigo 282.º, n.º 3, da Constituição não é absoluta pois comporta excepções. Ou seja, a relativização do caso julgado pode resultar da decisão do TC relativamente aos casos antes julgados com aplicação da norma declarada inconstitucional e que esta possua conteúdo menos favorável ao arguido (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.5.2015, in Processo n.º 248/07.7PDPRT – CS1).

No caso em apreço, o TC não afastou a regra da intangibilidade das sentenças transitadas em julgado que possam ter recorrido a provas obtidas eventualmente ao abrigo das citadas normas da Lei n.º 32/2008 declaradas inconstitucionais pelo TC.

Nestes termos, há que concluir, desde logo, que ocorre um obstáculo legal que inviabiliza a requerida revisão.

4. Este Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre o problema conhecendo-se dois acórdãos, ainda inéditos.

No Acórdão de 6.9.2022 (in Processo n.º 618/16.0SMPRT-B.S1) em síntese foi considerado o seguinte: a) Na inexistência de “decisão em contrário” do TC, nos termos do artigo 282.º, n.º 3, 2.ª parte da Constituição, deve manter-se o caso julgado; b) A ratio decidendi da condenação não assenta na Lei n.º 32/2008, nem se prevaleceu do disposto nos seus artigos 4.º, 6.º e 9.º, concluindo-se que o tribunal da condenação não se prevaleceu para tanto de provas proibidas nem o Acórdão do TC obrigava à pretendida revisão.

No Acórdão de 6.9.2022 (in Processo n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1) e com interesse para o presente caso refere-se o seguinte: “A decisão prevista na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 282.º da CRP implica a ponderação, a efetuar pelo Tribunal Constitucional, de diversos elementos, entre outros, o período de vigência da norma, a natureza da inconstitucionalidade e da própria norma declarada inconstitucional, sempre vinculada à Lei Fundamental e aos princípios constitucionais”; “Trata-se, pois, de uma decisão vinculada, não obrigatória e necessariamente expressa, sem a qual permanece a ressalva dos casos julgados”; e “As normas em causa no Acórdão do TC não têm natureza substantiva e não afetam, quer o núcleo essencial do meio de obtenção da prova em causa, quer os direitos fundamentais do arguido”.

5.1. No caso concreto, a admitir que teria de existir ponderação sobre a utilização dos aludidos meios de prova, importa dizer que a aferição tem de fazer-se a partir da fundamentação da decisão condenatória para se apurar em que termos os dados obtidos o foram ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais e serviram para motivar a prova dos factos que fundamentaram a prática do ilícito criminal. Estão em causa os artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2018, de 17/7, que obrigavam as operadoras de comunicações a guardar, de forma sistemática, dados referentes a comunicações para que os mesmos, com certas condições e limitações, possam ser utilizados na investigação da prática de crimes.

Defende-se que as situações em que os metadados tenham sido decisivos para a condenação são os seguintes: 1) Ter sido através da prévia obtenção dos metadados que foi possível dirigir a investigação e obter as provas que sustentaram a condenação; 2) Nas condenações com base em prova indiciária, tenham sido os metadados que permitiram retirar dos indícios a prova dos factos constitutivos do crime. Apenas nos casos em que os metadados foi a prova que “permitiu chegar a todas as outras” e contaminar o seu efeito à distância, é que poderá haver fundamento para a revisão (cfr. neste sentido Duarte Rodrigues Nunes, “Impedirá o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 a obtenção e a valoração, para fins de investigação criminal, de metadados conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas ao abrigo da lei actualmente em vigor?”, Revista do Ministério Público, n.º 170, pp. 42-43).

Por último, tem ainda de apurar-se se as provas obtidas através dos metadados poderiam (ou não) ter sido obtidas por outra via, que não as normas declaradas inconstitucionais. Na verdade, existem outras normas que permitem obter os metadados conservados para o processo, a saber: artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 109/2009 (no caso dos dados de base e de localização) e, no caso dos dados de tráfego, os artigos 18.º, n.º 2 da Lei n.º 109/2009 e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, podendo ainda ser possível lançar mão do disposto no art. 12.º da Lei n.º 1009/2009 (no que tange à preservação dos dados).

5.2. De acordo com a fundamentação de facto do acórdão e relativamente aos factos apontados no recurso a decisão é clara no sentido de se ter baseado essencialmente nos depoimentos das testemunhas, não tendo sido a localização celular e a facturação detalhada determinante para a prova de qualquer deles. E, no acórdão do Tribunal da Relação que conheceu de facto, confirmou-se que a prova testemunhal e as declarações do arguido haviam sido decisivas para a não alteração da matéria de facto, sem esquecer como se preenchem os elementos constitutivos do tipo legal em causa (crime de denúncia caluniosa).

Acresce ainda não resultar que tais elementos tenham sido obtidos ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais, face ao quadro legislativo mencionado que permitia a sua obtenção e face aos termos da decisão.

Em suma, por estas razões, também deverá ser denegada a revisão requerida. (…)

Em função do exposto emite-se parecer nos seguintes termos:

1.º- Deverá ser julgada a improcedente a questão prévia relativa à eventual extemporaneidade do recurso de revisão suscitada pelo assistente;

2.º- Deverá ser julgado o recurso de revisão improcedente e denegada a revisão requerida atendendo ao acima expresso, a saber: a) Face ao disposto no artigo 282.º, n.º 3, 2.ª parte da Constituição e perante aos termos do Acórdão do TC n.º 268/2022 que julgou inconstitucionais as normas relativas à obtenção dos meios de prova relativos aos chamados metadados por inexistir decisão em contrário do TC; b) E, caso assim não se entenda, por não resultar do acórdão condenatório que estes tenham sido decisivos para a comprovação dos factos que levaram à condenação pela prática do crime de denúncia caluniosa e por também não constar que tenham sido obtidas ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais.»

7. O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP).

Nada obstando ao conhecimento do recurso, colhidos os vistos foi o processo remetido à conferência para decisão (artigo 455.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

II. Fundamentação

8. A sentença recorrida, cuja revisão agora se pretende, julgou provados, na parte que agora interessa, os seguintes factos, com base na motivação que se segue:

8.1. Factos provados

“Discutida a causa resultou provado que:

1.    O arguido AA foi, desde 26.3.11 até 14.6.12, ... da Sporting Clube de Portugal, pessoa colectiva de utilidade pública [doravante Sporting], sendo responsável pelas áreas do património, infra-estruturas, operações e contacto com as claques [fls. 317].

(…)

54.  BB é Arbitro Assistente de Ia Categoria, integrante do Quadro de Árbitros Assistentes de Futebol de 11, da Associação de Futebol do Porto, da Federação Portuguesa de Futebol [fls. 10-11].

55.  No dia 16.12.11, BB foi designado para arbitrar, na qualidade de árbitro assistente, o jogo da 6.ª Eliminatória (Quartos-de-Final) da Taça de Portugal de Futebol de 11, competição organizada pela Federação Portuguesa de Futebol, a disputar entre a Sporting, SAD e a Marítimo Madeira, S.A.D.,

56.  no Estádio Alvalade XXI, em Lisboa, no dia 22.12.11, pelas 21h00m [fls. 9].

57.  A designação de BB desagradou ao arguido AA,

58.  isto porque BB, tendo arbitrado o jogo entre a Sporting, SAD e o Sporting Clube Olhanense, relativo à 1.ª jornada da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, realizado em 13.8.11, não terá assinalado falta cometida pelo Sporting Clube Olhanense na sua grande área, segundo o entendimento de dirigentes da Sporting, SAD [fls. 310-314],

59.  assim como assinalou falta de fora de jogo a jogador da Sporting, SAD que nesse lance fez a bola entrar na baliza contrária,

60.  tendo o jogo terminado empatado, 

61.  tendo os dirigentes da Sporting, SAD reclamado para a Comissão de Arbitragem da Liga Portuguesa de Futebol Profissional do relatório do Observador do jogo, que classificou aquele árbitro com a nota de 3,4 (numa escala de 0 a 5),

62.  episódio subsequente a um outro ocorrido na final da Taça da Liga de Futebol Profissional da época 2008-2009, onde BB assinalou falta na grande área da Sporting, SAD, cometida por jogador desta, tendo a mesma perdido o desafio no desempate por pontapés da marca de grande penalidade,

63.  tendo sido entendimento dos seus dirigentes que aquela falta não fora cometida,

64.  o arguido AA decidiu então que tudo faria para evitar que BB interviesse como árbitro no referido jogo,

65.  pelo que gizou um plano mediante o qual faria depositar por desconhecido, no Funchal, em conta bancária do árbitro, uma determinada quantia em dinheiro, faria entregar o respectivo talão de depósito às autoridades de polícia, assim criando a suspeita e fabricando indícios materiais da prática de crimes de corrupção pelo referido árbitro e por alguém da Marítimo Madeira, S.A.D., sedeada no Funchal.

66.  Em 19.12.11, o arguido AA, na qualidade de ... do Sporting, solicitou a HH, Directora ... da SPM, sociedade que presta ao Sporting serviços administrativos e financeiros, que lhe entregasse a quantia de 3.000€.

67.  O arguido AA entregou a HH recibos de pagamentos efectuados ao serviço do clube, com combustível, portagens e refeições, no valor de 1.236,02€, dizendo-lhe que mais tarde justificaria a restante quantia de 1.763,98€ [fls. 1804].

68.  HH entregou a quantia de 3.000,00€ ao arguido AA, justificando o adiantamento de 1.763,986 mediante um vale de caixa, procedimento contabilístico habitual nas situações de adiantamentos de dinheiro [fls. 1805].

69.  Assim, o arguido AA pediu a EE, sua Secretária no Sporting Clube de Portugal, que se dirigisse no dia 19.12.11 ao Aeroporto de Lisboa, a fim de ali adquirir, junto da companhia de aviação EasyJet, um bilhete Lisboa/Funchal/Lisboa, para CC [fls. 504, 532-539 e 546].

70.  No dia 19.12.11, pelas 18h00m, EE dirigiu-se ao Aeroporto da Portela, em Lisboa, utilizando um táxi, tendo adquirido, no balcão da companhia de aviação EasyJet, um bilhete de ida e volta Lisboa/Funchal/Lisboa, para o dia 20.12.11, para o passageiro CC [fls. 122-124],

71.  tendo pago, em numerário, a quantia de 308,98€.

72.  Seguidamente, no dia 19.12.11, pelas 19h30m, o arguido AA chamou CC às instalações da Sporting Clube de Portugal, no Complexo  Alvalade XXI, na Rua ..., em Lisboa, e pediu-lhe que viajasse até ao Funchal e que ali procedesse ao depósito da quantia de 2.000,00€ na conta do árbitro BB [fls. 232-233 e237],

73.  entregando-lhe para o efeito a quantia de 2.000,00€ em numerário e o NIB da conta em questão, retirado da listagem referida em 56. [fls. 20 do Apenso EE].

74.  O arguido AA pediu a EE que entregasse o bilhete de avião a CC e que, no dia seguinte, o transportasse ao Aeroporto de Lisboa, assim como o fosse buscar à chegada.

75.  Depois de ter sido transportado ao Aeroporto de Lisboa por EE, CC tomou o voo EasyJet Lisboa/Funchal, no dia 20.12.11, no Aeroporto da Portela, pelas 8h35m, tendo chegado ao Funchal pelas 10hl4m [fls. 81-83, 143-150 e 156-161].

76.  CC dirigiu-se a uma agência da Caixa Geral de Depósitos, sita na Avenida ..., ..., no Funchal [fls. 51-62 e 129-136].

77.  CC depositou na conta n.°  ...00, titulada por BB, a quantia de 2.000€ em numerário, pelas 1 lh58m.

78.  CC saiu da agência levando consigo o talão atinente à operação de depósito efectuada.

79.  Pelas 14hl6m, CC telefonou ao arguido AA dando-lhe conta da realização do depósito [fls. 283, 315, 450-463 e 506-519],

80.  CC tomou o voo EasyJet Funchal/Lisboa, no dia 20.12.11, pelas 20h40m, no Aeroporto do Funchal, tendo chegado a Lisboa pelas 22h05m [fls. 89-91].

81.  Pelas 22h08m, CC telefonou ao arguido AA, dizendo-lhe que já retornara a Lisboa.

82.  Como combinado, EE aguardava o arguido CC à chegada ao aeroporto [fls. 2009],

83.  e dirigiram-se ao Complexo Alvalade XXI, onde chegaram pelas 22h22m [fls. 2009],

84.  onde CC entregou o talão de depósito a EE.

85.  EE colocou o talão de depósito e uma folha A4 dentro de um envelope.

86.  A referida folha A4 continha, escritos, efectuados por pessoa não identificada, a pedido do arguido AA, através de processador de texto computadorizado e impressos com impressora de tinta, os dizeres "Senhor doutor DD O senhor é sério e merece a informação Estou farta de privar com um homem que vive na podridão e na corrupção Veja um exemplo da "impoluta" equipa de arbitragem vai ter no jogo com o Marítimo Acho que o resto tem a mesma tabela Não interessa quem eu sou e só me interessa que o senhor ajude a limpar este lixo da sociedade Faça o que quiser com esta prova que me chegou às mãos".

87.  EE entregou a CC o envelope ora descrito para que este o entregasse ao arguido AA.

88.  CC entregou o referido envelope ao arguido AA, na residência deste, na ..., na ....01, apartamento ...07, em Lisboa,

89.  Pelo arguido AA ou por alguém a seu pedido foi escrito no exterior do mesmo envelope os dizeres "senhor doutor DD Confidencial e Urgente".

90.  No dia 21.12.11, o arguido dirigiu-se para a Academia do Sporting, sita em Alcochete, tendo passado na Ponte Vasco da Gama, no sentido norte-sul, pelas 9h07m [fls. 515].

91.  Pelas 9h41m, DD, Presidente do Sporting, chegou à Academia de Alcochete [fls. 2031].

92.  O arguido AA entregou a DD o envelope supra referido.

93.  DD abriu o envelope, tomou conhecimento do seu conteúdo e comunicou o sucedido a II, Presidente da Federação Portuguesa de Futebol [doravante FPF], telefonicamente.

94.  O Presidente da FPF pediu ao Presidente do Sporting que lhe enviasse o envelope recebido.

95.  AA retornou a Lisboa, tendo passado na portagem da Ponte Vasco da Gama, sentido sul-norte, pelas 9h57m [fls. 1796], entrando no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI, pelas 10hl5m [fls. 2008].

96.  DD fez entregar o envelope e o seu conteúdo, ao Presidente da FPF, através de JJ, seu motorista, pelas 11h30m do dia 21.12.11 [fls. 1799].

97.  O Presidente da FPF deu conhecimento do assim sucedido a KK, Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF, pelas 15h00m do dia 21.12.11.

98.  O árbitro BB tomou conhecimento do depósito na sua conta bancária e solicitou dispensa de actuação no jogo para que estava designado, ao Presidente do Conselho de Arbitragem, pelas 17h00m do dia 21.12.11, dispensa que foi aceite [fls. 95-96].

99.  Ainda no dia 21.12.11, BB doou a quantia de 2.000,00€ à Associação do Porto de Paralisia Cerebral.

100. Ao final da tarde do dia 21.12.11, o arguido AA telefonou a LL, Coordenador de Investigação Criminal da ... Secção da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, sita na Avenida ..., em Lisboa, e comunicou-lhe a recepção do envelope por DD, bem como o teor do envelope e do seu conteúdo.

101. Seguidamente, o arguido entregou pessoalmente a LL cópias da folha A4 e do talão de depósito contidos no envelope.

102. No dia 22.12.11, o Presidente da Federação Portuguesa de Futebol fez chegar à Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária o envelope e o seu conteúdo, acompanhado de um memorando por si redigido.

103. No mesmo dia, o Presidente da FPF fez chegar à Procuradoria-Geral da República cópia do memorando, do envelope e do seu conteúdo.

104. O expediente referido deu origem ao presente inquérito, com o NUIPC 4778/11.8JFLSB, para investigação dos factos denunciados, integradores da prática de crimes de corrupção, previstos nos arts. 8º, n.° 1 e 12°, n.° 1 e 9º, n.° 1 e 12°, n.° 2 da Lei n.° 50/07, de 31/8,

105. ao qual foram juntos os documentos referidos em 108. [fls. 2-6, 8 e 31-38].

106. O arguido AA pediu a CC que deitasse no lixo a indumentária utilizada na deslocação ao Funchal, o que este fez.

107. Em 29.12.11, o arguido AA solicitou a HH que lhe devolvesse os recibos justificativos da utilização da quantia de 1.236,00€., e que fizesse constar da contabilidade que lhe haviam sido entregues 3.000,00€ para despesas confidenciais, o que HH fez, mediante a entrega de uma declaração por parte do arguido AA, atestando o recebimento daquela quantia [fls. 1803 e 1806].

108. Em Abril de 2012, CC recebeu a remuneração que lhe era devida pela P..., relativa ao mês de Março de 2012, em numerário, da mão de MM.

(…)

116. O arguido AA praticou todos os actos necessários para criar a suspeita de que alguém depositara quantia em dinheiro em conta bancária do árbitro BB, agindo de modo a que fosse gerado um talão de depósito efectuado por desconhecido, tendo ainda levado tais suspeitas, bem como aquele elemento probatório, ao conhecimento das autoridades de polícia criminal, com a intenção de que contra o árbitro fosse aberto procedimento criminal.

117. O arguido AA, na sua qualidade de ... do Sporting, pessoa colectiva de utilidade pública, conseguiu que a Direcção Financeira da SPM lhe entregasse a quantia de 3.000,00€, a que podia aceder em razão do exercício daquela função, para fins pessoais, estranhos aos do Sporting.

118. As condutas supra descritas, imputadas ao arguido AA, no exercício da função de dirigente desportivo, constituem-se em desvio dos poderes que em razão daquela qualidade lhe foram atribuídos e ingerência na actividade de outros agentes desportivos e órgãos disciplinadores, com manifesto desprezo pelas regras e valores desportivos que lhe cabia preservar. (…)»

8.2. Da motivação em matéria de facto consta que o tribunal da condenação fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:

«(…)

cumpre referir que o tribunal se baseou nos seguintes meios de prova:

Declarações: (…)

Testemunhal: (…)

Documental: (…)

Pericial: (…)

Em concreto: (…)

No que tange aos pontos 54 a 107 (do depósito de €2.000,00 na conta bancária de BB e a denúncia criminal efectuada em sequência) o arguido AA negou a autoria e/ou participação activa (consciente) nos mesmos.

Todavia, a prova recolhida sustentou, inequivocamente, toda a matéria dada por assente.

Com efeito, o depoimento da testemunha CC que, detalhadamente, explicou a situação, designadamente a viagem/deslocação à Madeira e o depósito bancário (em consonância com a prova documental de fls. 82, 90, 115 e 122 /124, imagens de videovigilância de fls. 57/61, 146/150 e 159/160 e localização celular de fls. 232 e 233) "a pedido" do arguido AA mereceu, efectiva, credibilidade. Na verdade, não havendo dúvidas do ponto de vista objectivo quanto ao comportamento de CC não é crível (como sustentou o arguido AA) que este tivesse agido por iniciativa própria, dada a relação de proximidade que, então, existia entre ambos e, principalmente, a dependência/subserviência (por ambos confirmada) de CC em relação ao arguido. Isto não quer dizer, no entanto, que o depoimento de CC nos mereceu total credibilidade. Efectivamente, não se vislumbra como possível que tenha actuado sem consciência (do alcance) dos seus actos, atentas as mais elementares regras da experiência e até pelo modo como ele próprio descreveu os factos (a necessidade de usar um boné para ocultar a face, o ter destruído a roupa que utilizou, o conhecimento que o depósito tinha sido efectuado na conta de "um tal Cardinal"). Pese embora as evidências de uma participação clara e consciente por parte de CC nos factos provados, a verdade é que aquando do despacho de encerramento do inquérito foi proferida (quanto a ele) decisão de arquivamento, pelo que, sendo a prova carreada a mesma que já existia em sede de inquérito, não é possível (daqui) extrair qualquer consequência jurídica.

De igual modo, o depoimento de EE, à data secretária de AA, não obstante os evidentes constrangimentos com que depôs, muna clara tentativa de mitigar (além da sua) a responsabilidade de AA, acabou por confirmar aquilo que (mais) importava, ou seja, a compra da viagem e o transporte de CC, a pedido de AA, factualidade, aliás, já plenamente provada documentalmente (fls. 122, 124 510, 511 e 532). De notar que, também quanto a esta testemunha, a prova reunida aponta no sentido de que a mesma colaborou activa e conscientemente no plano do arguido AA. De facto, a própria, aquando da aquisição das viagens para o CC forneceu um número de telefone de contacto e uma morada "inventados", com manifesta semelhança com o seu número de telefone e a sua antiga morada (fls. 124, 655, 796, 824 e 1589).

De acrescentar, ainda, que:

-     o próprio arguido admitiu ter pago e providenciado junto da, então, sua secretária EE pela compra da viagem de CC à Madeira e pelo transporte do mesmo;

-     o próprio arguido referiu ter percebido (pouco tempo depois de ter sido apresentada a denúncia) que teria sido o CC a efectuar o depósito e nada ter feito para, então, esclarecer a situação junto das autoridades;

-     está plenamente provado que o CC foi estabelecendo contacto telefónico com o arguido a dar-lhe conta da execução das várias fases do plano (facturação de fls. 513 e 515);

 -    o registo de entradas no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI de fls. 2009 confirma a credibilidade do depoimento do CC relativamente à entrega do talão de depósito a EE e o recebimento (desta) do envelope para entrega a AA;

-     a localização celular de fls. 233 prova que, logo de seguida, o CC se deslocou a casa do arguido, tal como ele afirmou, para entrega do envelope;

-     a versão do arguido AA de que o envelope (contendo o talão de depósito e a denúncia) teria sido deixado na segurança do edifício Multidesportivo e entregue a ele não tem qualquer cabimento, dado que no dia em causa o primeiro registo de entrada do mesmo no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI é pelas 10H15 (fls. 2008) o que é igualmente corroborado pela localização, celular do seu telemóvel (fls. 516) e que cerca das 09H07 o arguido já se encontrava na zona das Portagens da Ponte Vasco da Gama, no sentido Lisboa -Alcochete (fls. 515 e 1796)

No que respeita à dinâmica factual (tempos e sequências) atinentes à entrega do envelope por parte de. AA à testemunha DD e à denúncia da situação às autoridades verificou-se uma clara discrepância entre as declarações do arguido AA, os depoimentos das testemunhas DD, FF e GG e a prova objectiva existente - localização celular de AA de fls. 515 a 518, localização celular da testemunha DD de fls. 2031 a 2033 (Vodafone) e 1522 (TMN), os respectivos registos de Via ... das viaturas conduzidas por cada um (fls. 1796 e 1799) bem como os registos de entrada e saída no parque de estacionamento do Complexo Alvalade XXI de AA (fls. 2008) - pelo que, naturalmente, deu-se por assente os tempos e sequências que objectivamente resultam destes elementos.

(…).»

9. A revisão de sentença condenatória tem consagração, como direito fundamental, no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, que dispõe: “[o]s cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.” Norma de idêntico alcance se encontra no artigo 4.º, n.º. 2, do Protocolo n.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Os artigos 449.º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP) estabelecem as “condições” da revisão, por via de recurso extraordinário que a autorize, com realização de novo julgamento, possibilitando a quebra do caso julgado de sentença condenatória que deva considerar-se injusta, por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos. A linha de fronteira da segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, por esgotamento ou não utilização das vias processuais de recurso ordinário como componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), define-se, assim, enquanto garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações que se revelem «injustas».

O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação, revelado por demonstração de fundamento, que justifica a realização de novo julgamento, contido no numerus clausus das alíneas do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, que densifica o n.º 6 do artigo 29.º da Constituição, sobrepõe-se, como se tem afirmado, à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

a) Questão prévia da extemporaneidade do recurso (suscitada pelo assistente)

10. Sustenta o assistente que o recurso é extemporâneo, por aplicação do disposto no artigo 697.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 4.º do CPP, que fixa o prazo de 60 dias a contar da data em que o requerente teve conhecimento do facto que constitui de fundamento ao recurso de revisão, prazo que já teria decorrido.

A observância das normas do CPC pressupõe que se identifique uma lacuna legal e que aquelas normas se harmonizem com o processo penal. Dispõe o artigo 4.º (“Integração de lacunas”) do CPP que “[n]os casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.”

Não é o caso, como defende o Senhor Procurador-Geral Adjunto.

O CPP dispõe de regime de revisão próprio e completo, estabelecido em função da proteção de um direito constitucionalmente garantido (artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, infra), não fazendo depender o pedido de revisão da observância de qualquer prazo, o que não se harmonizaria com o processo penal, que visa a realização daquele direito. Tanto assim é que admite a revisão mesmo nos casos em que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida (n.º 4 do artigo 449.º) (cfr. Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4.ª ed. Revista, 2022, anotação ao artigo 449.º).

Pelo que improcede a questão prévia.

b) Do fundamento do recurso – al. f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP

11. Estabelece a alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, em que o recorrente fundamenta o pedido:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: (…)

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

(…)».

Esclareceu-se na Proposta de Lei n.º 109/X, que esteve na origem desta alteração legislativa, aditando ao n.º 1 do artigo 449.º do CPP as alíneas e), f) e g), que: “[a]crescentam-se novos fundamentos ao recurso extraordinário de revisão: a descoberta de que serviram de fundamento à condenação provas proibidas; a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha constituído ratio decidendi; a existência de sentença vinculativa do Estado português, proferida por instância internacional, que se afigura inconciliável com a condenação ou suscita graves dúvidas sobre a sua justiça (artigo 449.º)”.

Com a introdução do fundamento de revisão constante da al. f), veio o legislador suprir a inexistência, no ordenamento infraconstitucional, de um meio processual especificamente ordenado à regulação dos efeitos de repercussão das decisões do Tribunal Constitucional (TC) nas sentenças penais transitadas, nos termos do artigo 282.º da Constituição, que declarem, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma, de conteúdo menos favorável ao arguido, que tenha integrado a ratio decidendi da condenação. É em conformidade com esta teleologia que deve ser determinado o sentido e o alcance da norma desta alínea f), o que impõe que se deva precisar o efeito das declarações de inconstitucionalidade normativa com força obrigatória geral pelo TC, com a vinculatividade que é estabelecida pela Constituição [assim, o recente acórdão de 09.03.2023, Proc. 476/18.0PIPRT-AR.S1 (Leonor Furtado)].

De notar que a possibilidade de requerer a revisão pressupõe formalmente, por um lado, o trânsito em julgado da sentença condenatória e, por outro, a publicação, posterior ao trânsito, de acórdão do TC, o qual só ganha eficácia jurídica com a publicação na 1.ª série do Diário da República, nos termos dos artigos 1, n.º 1, e 3, nº 2, al. h), da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro, e 3.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.

12. Nesta matéria, consagrando uma regra de retroatividade ex tunc, dispõe o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição que “a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral” – equivalente à “declaração de nulidade” das normas declaradas inconstitucionais (Gomes Canotilho / Vital Moreira, infra) – “produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.

A esta regra constitucional é, porém, também constitucionalmente, oposta a restrição da intangibilidade do caso julgado, nos termos estabelecidos no n.º 3 do mesmo preceito, segundo o qual “[f]icam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”

Ou seja, para que uma decisão judicial penal transitada em julgado, aplicando uma norma posteriormente declarada inconstitucional com força obrigatória geral, possa ser afetada – o que, como se viu, só pode ocorrer através de procedimento de revisão autorizado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em diferimento de pedido com o citado fundamento da al. f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP em recurso extraordinário de revisão (artigos 449ss do CPP) –, é necessário que o TC o declare expressamente mediante decisão que afaste a regra da preservação do caso julgado, na verificação do pressuposto de que tal norma tem natureza penal de conteúdo menos favorável ao arguido.

O que significa que, carecendo a alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP de interpretação conforme à Constituição, o seu conteúdo se limita restritivamente, em conjugação com o n.º 3 do artigo 282.º da lei fundamental: só poderá ocorrer revisão com este fundamento quando o TC proferir decisão em contrário à ressalva do caso julgado constitucionalmente imposta. Não havendo decisão de exceção (identificação de casos julgados abrangidos) à regra de exceção (que ressalva todos os casos julgado), nos termos do artigo 282.º, n.º 3, da Constituição, ficam intocados todos os casos julgados que tenham aplicado a norma declarada inconstitucional.

É este o entendimento que, em jurisprudência uniforme, tem vindo a ser reiterado por este Supremo Tribunal de Justiça, em mais de dezena e meia de acórdãos proferidos em recursos extraordinários de revisão com fundamento na invocação do acórdão do Tribunal Constitucional 268/2022, de 19 de abril de 2022, já publicados (em www.dgsi.pt). Citando Gomes Canotilho / Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, Pág. 1041, nota V, convocada em vários acórdãos): “O sentido da norma do 282, nº 3, da CRP só pode ser este: (1) em princípio, a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica «revisão» dos casos julgados em que se tenha aplicado a norma declarada inconstitucional (ou ilegal); (2) todavia, os casos julgados que incidam sobre matéria penal, disciplinar ou de mera ordenação social poderão ser revistos, se da revisão resultar (por efeito da desaplicação da norma considerada inconstitucional ou ilegal) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. art. 29.º-4); (3) a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma.” [cfr. os primeiros acórdãos, de 06-09-2022, proferidos no proc. 618/16.0SMPRT-B.S1 (Ernesto Vaz Pereira) e no proc. 4243/17.0T9PRT-K.S1 (Teresa de Almeida), em www.dgsi.pt].

c) As normas declaradas inconstitucionais

13. As normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, com força obrigatória geral, no acórdão n.º 268/2022 (publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 03.06.2022), relacionam-se com o armazenamento (conservação) de dados em arquivos, durante o período de 1 ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações.

Relembrando a decisão, disse o Tribunal Constitucional:

“[…] Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros. […]”.

14. A Lei n.º 32/2008 regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas.

A Diretiva n.º 2006/24/CE, adotada com base no artigo 95.º  do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (que dizia respeito ao funcionamento do mercado interno – antigo 1.º pilar da União), teve como principal objetivo harmonizar as disposições dos Estados-Membros relativas às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações assegurarem a conservação de dados de tráfego e de localização, mas não de conteúdo, bem como de dados conexos, necessários para identificar o assinante ou o utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas, para determinar a data, a hora, a duração e o tipo de uma comunicação e o equipamento de comunicação dos utilizadores, bem como para localizar o equipamento de comunicação móvel durante um determinado período, de 6 meses a dois anos (artigo 6.º), tendo em vista garantir a disponibilidade desses dados – que são os dados indicados no artigo 5.º, a que corresponde o artigo 4.º da Lei n.º 32/2008 – para efeitos de investigação, de deteção e de repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro, em derrogação aos artigos 5.º (sobre “confidencialidade das comunicações”), 6.º (sobre “dados de tráfego”) e 9.º (sobre “dados de localização para além dos dados de trafego”) da Diretiva 2002/58/CE, que transpôs os princípios estabelecidos na Diretiva 95/46/CE relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados [transposta pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, atualmente substituída pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados - Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril (RGPD] para regras específicas do sector das comunicações eletrónicas.

15. O n.º 1 do artigo 15.º º da Diretiva 2002/58/CE, transposta para o direito interno pela Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, previa que, com essa finalidade, os Estados-membros pudessem adotar medidas legislativas e enumerava as condições em que podiam restringir a confidencialidade e a proibição do armazenamento de dados de tráfego e de localização, mas não era aplicável às atividades do Estado em matéria de direito penal (como expressamente declara o artigo 1.º, n.º 3), que constituía domínio de cooperação intergovernamental (anterior 3.º pilar da União, instituído pelo Tratado de Maastricht). Havendo sempre que distinguir, no regime anterior ao Tratado de Lisboa (em vigor desde 01.12.2009 e que, apesar da eliminação dos pilares, continua a prever bases jurídicas distintas), entre atividades de conservação de dados – regulada por normas de “direito comunitário” (anterior 1.º pilar) – e atividades de acesso aos dados, - regulada por normas processuais penais nacionais e do anterior 3.º pilar da União – que constituem ingerências distintas em direito fundamentais, cabe ao direito nacional determinar as condições em que os prestadores de serviços devem conceder às autoridades nacionais competentes o acesso aos dados de que dispõem (ingerência no direito à privacidade), para investigação da criminalidade grave, com respeito pelos princípios e regras do processo penal, nomeadamente pelo princípio da proporcionalidade, do controlo prévio de um órgão jurisdicional, do contraditório e do processo equitativo (cfr. acórdãos TJUE de 21.12.2016, Tele2 Sverige AB, proc. C‑203/15; de 6.10.2020, La Quadrature du Net e o., proc. C-511/18, C-512/18 e C-520/18;  de 2.3.2021, H. K. e Prokuratuur, proc. C-746/18; e de 5.4.2022, G. D. e Commissioner of An Garda Síochána e o., proc. C-140/20).

O acesso a dados pessoais, pelas autoridades competentes, para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, que respeita estas regras e princípios, encontra-se atualmente regulamentado pela Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para estes efeitos, no âmbito das investigações e dos processos penais, transposta para o direito interno pela Lei n.º 59/2019, de 08 de agosto.

Sendo a conservação dos dados para efeitos de investigação criminal, relativamente a crimes graves, tal como definidos pela lei nacional, admitida pelo artigo 15.º,  n.º 1, da Diretiva 2002/58/CE, nas condições que o TJUE explicita nos acórdãos acima citados, a Diretiva 2006/24/CE, visou (face às grandes divergências de leis nacionais que criavam sérias dificuldades práticas e de funcionamento do mercado interno) estabelecer normas de harmonização, no espaço da União Europeia, de conservação de dados de tráfego e dados de localização, bem como dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, que são normas de tratamento dos dados pelos fornecedores de comunicações para determinada finalidade, mas não regulou, nem podia regular, a atividade das autoridades públicas (órgãos de polícia criminal, Ministério Público, juízes e tribunais) com competência para assegurar a realização daquela finalidade.

16. Situando-se, pois, numa dimensão diversa, a Lei n.º 32/2008 não revogou nem estabeleceu normas de natureza penal ou processual penal, de que as autoridades judiciárias se devam socorrer para acesso e aquisição da prova ou para assegurar a sua validade no processo; tais atividades dispõem de regime próprio definido pelas leis penais e processuais penais nacionais e, no que se refere aos domínios de competência da União Europeia (UE) no espaço de liberdade, segurança e justiça – que constitui competência repartida entre a UE e os Estados-Membros (artigo 5.º, n.º 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE) –, pelo artigo 82.º do TFUE e pela citada Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, transposta pela Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto.

A obtenção, no processo penal, de dados em posse de fornecedores de serviços de comunicações é regulada por outras disposições legais: pelos artigos 187.º a 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal e pela Lei n° 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), que transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa (Budapeste, 2001; RAR n.º 88/2009 e DPR n.º 91/2009, de 15 de setembro) [cfr., por todos, com referências a acórdãos anteriores, o acórdão de 08.11.2022, Proc. 107/13.4P6PRT-D.S1 (Conceição Gomes)], tendo em conta a Diretiva (UE) 2016/680.

d) Apreciação

17. O recorrente fundamenta a sua pretensão, como se viu, na alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, ou seja, na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

Da motivação do recurso e da fundamentação da sentença, resulta que a decisão condenatória se fundamenta em “localizações celulares”, “faturação detalhada”, “obtenções de identificações de IMEI´s” e “identificação de titularidade de números de telemóvel”, vindo a legalidade (validade) da obtenção da prova questionada unicamente em função da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, pelo acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional. Pelo que a questão colocada em recurso se delimita e analisa unicamente em função do objeto deste acórdão do Tribunal Constitucional.

18. Como se viu, a Lei n.º 32/2008, na transposição da Diretiva n.º 2006/24/CE, limita-se a regular, com a extensão acima mencionada (supra, 14-16), a conservação de dados de tráfego e de dados de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como de dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para garantir a disponibilidade desses dados para efeitos de investigação, de deteção e de repressão de crimes graves.

Como também se viu (supra, 13), o Tribunal Constitucional não declarou expressamente que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se estendem ao caso julgado, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º da Constituição. Sendo que, em função do âmbito e objeto das normas em questão e da base jurídica dos Tratados em que se fundamenta a diretiva 2006/24/CE, não tendo as normas declaradas inconstitucionais natureza penal (supra, 14-16), o que constituiria pressuposto da declaração de extensão da inconstitucionalidade aos casos julgados, da competência do Tribunal Constitucional, não se tornaria possível proceder a tal extensão [neste sentido, negando a natureza penal das normas, os acórdãos de 06-09-2022 (Teresa de Almeida), Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1, e de 10-11-2022, Proc. n.º 35/15.9PESTB-Z.S2 (Carmo Silva Dias), em www.dgsi.pt].

19. Assim sendo, não existindo declaração do Tribunal Constitucional neste sentido, ficam constitucionalmente ressalvados os casos julgados que tenham aplicado normas declaradas inconstitucionais por aquele acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional.

O que impõe a conclusão de que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral nos termos do acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional não constitui fundamento de revisão de sentença constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, em interpretação restritiva, conforme à Constituição (supra, 11).

20. Invoca ainda o recorrente, de forma adjuvante, a declaração, por violação dos artigos 7.º, 8.º e 52.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de invalidade da Diretiva n.º 2006/24/CE pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), por acórdão de 8 de abril de 2014, em pedidos de decisão prejudicial apresentados nos termos do artigo 267.º do TFUE  – nos processos apensos Digital Rights Ireland Ltd (C‑293/12) e Kärntner Landesregierung (C‑594/12) –, anterior ao acórdão de 27 de maio de 2016, em que foi condenado.

O que, como em alguns casos tem sido alegado, poderia remeter para o fundamento de revisão previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, segundo o qual a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando “uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça”.

21. Porém, também não se verifica este fundamento. Para além de a lei exigir que a sentença proferida por uma instância internacional seja posterior à condenação, que, como resulta da letra do artigo 449.º, deve estar transitada em julgado – o que não sucede –, a mencionada sentença do TJUE – não do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, para que a norma foi particularmente pensada, tendo presente o n.º 1 do artigo 46.º (sob a epígrafe “Força vinculativa e execução das sentenças”) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, segundo o qual as “Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes” – não constitui, como se tem afirmado, “uma sentença vinculativa” do Estado Português, na aceção deste preceito.

Neste sentido, consignou-se no citado acórdão de 06.09.2022 (Ernesto Vaz Pereira), Proc. n.º 618/16.0SMPRT-B.S1 (sumário, em www.dgsi.pt): “VII - O primado do direito da União e o princípio da aplicação conforme obrigam os tribunais portugueses a não aplicar lei da União declarada inválida pelo TJUE, por violação do direito da UE, neste caso a CDFUE, que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados (art. 6.º, n.º 1, TFUE.). Desaplicação que cabe aos tribunais ordinários, estabelecendo-se uma relação direta entre eles e o TJ em sede de reenvio prejudicial. VIII - Em consequência, como se sublinhou no acórdão do TC, “a eventual contrariedade das normas ora em crise com regras de direito da União Europeia que possam ser invocáveis no plano interno terá como resposta do sistema judicial nacional a desaplicação das normas internas.” IX - Na decorrência, depois de determinados o conteúdo e relevância do direito da União Europeia, e depois daquela declaração de invalidade, o TC apreciou a conformidade constitucional das normas fiscalizadas, com os fundamentos e o resultado que se conhecem pelo seu acórdão n.º 268/2022. X - No caso, como se trata de uma diretiva, que carece de transposição (art. 288.º TFUE) por lei que é também, ela mesma, um ato de aplicação do direito da UE, o respeito pela declaração de inconstitucionalidade e a aplicação do juízo de inconstitucionalidade acabam por ter a mesma dimensão e abrangência que a não aplicação do direito da UE. Pelo que tudo se resume à declaração de inconstitucionalidade, nos termos em que foi declarada pelo TC, ressalvando os casos julgados” [no mesmo sentido, os acórdãos de 10-11-2022, no Proc. n.º 3624/15.8JAPRT-G.S1 (Orlando Gonçalves) e no Proc. 35/15.9PESTB-Z.S2 (Carmo Silva Dias, de 10-11-2022].

Com efeito, uma sentença do TJUE que, em recurso prejudicial, declara, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, uma diretiva inválida apenas se dirige diretamente ao órgão jurisdicional que colocou a questão ao TJUE. O facto de qualquer outro órgão jurisdicional dever considerar tal ato inválido, em resultado da obrigação geral de garantir o primado do direito da União, abstendo-se de praticar atos contrários que prejudiquem a sua efetividade (neste sentido se podendo falar de uma eficácia erga omnes – cfr. o acórdão TJUE C-66/80, de 13.5.1981), não lhe atribui o estatuto de sujeito processual destinatário daquela decisão, de modo a que se deva considerar como uma sentença vinculativa fundamento da revisão.

22. Assim sendo, em conformidade com o que vem de se expor, não havendo fundamento, deve ser negada a revisão.


III. Decisão

23. Pelo exposto, nos termos do que dispõe o artigo 455.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça (3.ª Secção) em denegar a revisão da sentença condenatória requerida pelo condenado AA.

Vai o recorrente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (artigos 456.º, 1.ª parte, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, em anexo).


Supremo Tribunal de Justiça, 13 de abril de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Paulo Ferreira da Cunha

Maria Teresa Féria de Almeida

Nuno António Gonçalves