Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
681/12.2TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
LOCUPLETAMENTO À CUSTA ALHEIA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
OBRAS
BOA FÉ
MÁ FÉ
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DE PROPRIEDADE / ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, RLJ 132-255.
- Júlio Gomes, O Conceito de Enriquecimento, 107, 115, 222 e ss., 311, 321, 332, 333
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo III, 207 e ss..
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11.ª ed., 369, 396 e ss.; O Enriquecimento sem causa, 827 e ss., 841, 844.
- Vaz Serra, RLJ 108-266.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 216.º, N.º1, 473.º, N.º1, 479.º, 1273.º, 1340.º, 1341.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 607.º, N.º4, 609.º, N.º 3, 615.º, N.º1, ALS. B), C) E D), 682.º, N.º 3.
LEI N.º 41/2013, DE 26/6: - ARTIGO 5.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17.03.1998, CJ STJ VI, 1, 134, DE12.02.2004, CJ STJ XII, 1, 55 E DE 14.10.2010, CJ STJ XVIII, 3, 138.
-DE 27.09.2011, DE 06.06.2013, DE 20.06.2013, DE 26.03.2014 E DE 29.04.2014, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Tendo os autores procedido, contra vontade dos réus, a obras no rés-do-chão da moradia que estes tinham acabado de construir, alterando profundamente a sua estrutura e utilização, transformando-o (de garagem e arrumos acessórios da habitação do 1.º andar) numa habitação totalmente independente, essas obras não integravam os projectos patrimoniais dos réus e não representam uma qualquer vantagem patrimonial para estes ou uma poupança de despesas.

II - Em sede de enriquecimento sem causa, o enriquecido de boa fé não pode ser prejudicado com a restituição; esta não deve ter lugar se acarretar um prejuízo superior ao enriquecimento patrimonial daquele.

III - Assim, as referidas obras, impostas unilateralmente e de má fé, apesar de poderem representar um enriquecimento real e objectivo, não se reflectiram num concreto locupletamento dos réus e daí que estes não devam ser condenados na obrigação de restituir que foi peticionada.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA e mulher BB propuseram a presente acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra CC e mulher DD.

Pediram que:

- seja declarado que as obras que realizaram no prédio identificado na petição inicial correspondem a um enriquecimento injusto e sem causa dos RR. à custa do empobrecimento dos AA., ou seja, que foram estes quem pagaram as aludidas obras, materiais e mão-de-obra;

- os Réus sejam condenados a reconhecer tal enriquecimento e a restituir aos AA. o valor por eles pago, no montante de € 74.168,99, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde as datas de vencimento das facturas, vendas a dinheiro e notas de encomenda até efectivo e integral pagamento e que por ora perfazem o montante € 27.109,01.

Como fundamento, alegaram ter efectuado obras com dinheiro seu numa casa de habitação que veio a ser declarada propriedade dos Réus, mediante aquisição por acessão industrial imobiliária, cujos materiais e móveis foram integrados na referida casa e não podem da mesma ser retirados sem a deteriorarem, defendendo por isso que o património dos Réus enriqueceu injustificadamente à sua custa. Além disso, invocaram ter pago a quantia de € 3.149,70 a título de imposto de selo.

Os RR. contestaram, excepcionando o caso julgado e a prescrição do direito invocado pelos Autores.

Impugnaram ainda as obras alegadamente efectuadas pelos Autores e respectivos valores, a natureza das mesmas como benfeitorias e, para a eventualidade das mesmas virem a ser qualificadas como benfeitorias voluptuárias, a posse de má fé sobre o imóvel após Março de 2005. Defenderam, também, que o recurso ao instituto subsidiário do enriquecimento sem causa não é o meio processual próprio para a reparação do direito a que se arrogam.

Concluíram pela improcedência da acção.

Os Autores apresentaram réplica, onde defenderam a improcedência das excepções de caso julgado e prescrição deduzidas pelos Réus, impugnaram a nova factualidade alegada pelos Réus na sua contestação e reiteraram o já alegado na petição inicial.

No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções de prescrição e de caso julgado que haviam sido invocadas pelos Réus.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, tendo absolvido os réus do pedido.

Discordando desta decisão, os autores interpuseram recurso de apelação, que a Relação, alterando embora a decisão de facto, julgou improcedente quanto ao mérito.

Ainda inconformados, os autores pedem agora revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

3. Com o douto Acórdão recorrido, os Recorrentes foram pela primeira vez confrontados com uma decisão que, apesar de reconhecer que no prédio em questão, designadamente no seu rés-do-chão, os AA efectuaram e pagaram obras e integraram materiais e mão-de-obra no valor de € 37.752,00, que aumentaram o seu valor comercial em € 26.047,75, mesmo assim lhes nega a reparação do empobrecimento, por julgarem verificada uma causa justificativa para o enriquecimento dos RR.

4. O douto acórdão revidendo dá razão aos Apelantes quanto ao ponto 5 da fundamentação de facto, ao mesmo tempo que se serve da matéria expurgada para fundamentar a matéria de direito, pelo que enferma da nulidade prevista no art. 615º nº 1 c), aplicável por força do art. 685º, ambos do CPC;

5. Não se mostrou quesitado e, nessa medida, também não se provou a desconformidade das obras realizadas pelos AA. com o licenciamento e respectivo alvará de da construção dos RR;

6. O Venerando Tribunal da Relação Guimarães, no fundamentar a sua decisão de direito na "alteração da substância" do prédio e na "presumível vontade dos recorridos" conheceu de questões que não se encontram na fundamentação de facto e de que também não podia tornar conhecimento oficioso, razão pela qual o douto acórdão revidendo enferma da nulidade do art. 615º, nº 1, alínea d), aplicável por força do art. 685º, ambos do CPC;

7. Sem qualquer explicação, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, em dois breves parágrafos, avocou e fez sua a decisão singular e escusou-se a apreciar a exposição de motivos "por estar fora de questão que, desse modo, se possa, de alguma forma, alterar a configuração do recurso", não sendo possível extrair o seu raciocínio, restando ao leitor efectuar um exercício de "adivinhação" quanto ao mesmo, razão pela qual o douto acórdão enferma da nulidade prevista n art. 615º, nº 1, alínea b), aplicável por força do art. 685º, ambos do CPC.

8. O enriquecimento sem causa, na concepção da doutrina, da jurisprudência e art. 473º e 474º do Código Civil, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) a ausência de causa para o enriquecimento; c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a reparação/restituição; d) que não haja um outro acto jurídico entre o acto gerador do prejuízo deste e a vantagem obtida pelo enriquecido.

9. Face aos pontos 2, 11 e 12 dos factos provados, não há dúvida que ocorreu uma deslocação patrimonial da esfera jurídica dos AA. para o RR., tendo estes visto o seu património enriquecido em € 26.037,75, à custa do empobrecimento daqueles correspondente às obras realizadas;

10. A "presumível vontade" dos RR não se extrai da fundamentação de facto;

11. Não se mostra provado o alegado pelos RR., designadamente que o imóvel não ficou valorizado, que as obras foram realizadas de má fé e contra a sua vontade, que não pretendem manter as alterações introduzidas na construção, mas antes destruí-las, e que as obras realizadas pelos AA. desvalorizaram a construção,

12.    As referências no douto acórdão recorrido, ora implícitas, ora explicitas, ao destino presumivelmente pretendido pelos RR, para o rés-do-chão, mais não revelam que a contaminação da decisão revidenda com o facto expurgado do ponto 5 da fundamentação de facto;

13. A pretensa "intromissão" tem ressonância apenas e só na mente e raciocínio dos Venerandos Juízes Desembargadores, porquanto compulsados os 12 pontos que constituem a fundamentação de tacto, ela não se encontra, implícita ou explicitamente;

14. Os RR. receberam uma moradia cujo valor comercial aumentou em € 26.037,75, com o esforço único e exclusivo dos AA.

15. Não há qualquer justificação para este enriquecimento dos RR.;

16. O enriquecimento dos RR. foi obtido à custa do empobrecimento dos AA.

17. Não há um outro acto jurídico entre o acto gerador do prejuízo deste e a vantagem obtida pelo enriquecido;

18. Não existe qualquer outro instituto jurídico ao qual os AA. possam recorrer para serem ressarcidos e verem o seu o seu empobrecimento reparado;

19. Destarte, mal andou o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães ao não ter revogado a douta sentença e proferido douto acórdão que julgando a acção procedente, condenasse os RR, a pagar aos AA., pelo menos, a quantia de € 26.037,75, acrescida de juros de mora juros de mora.

20. Assim não decidindo, violou o douto acórdão revidendo os art. 473º e 474º do CC.

21.    Para o caso de assim não se entender, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães afirmou cabalmente que as obras, designadamente os materiais, realizadas e introduzidas pelos AA. na construção dos RR. podem ser retiradas sem detrimento desta;

22. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou;

23. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição não for possível valor, o correspondente;

24. Não é pelo facto de os AA., convencidos que as obras não eram removíveis sem detrimento da coisa, peticionarem o valor correspondente às mesmas que o Tribunal, tendo apurado ser possível a restituição, está impedido de condenar os RR. na sua restituição;

25. Da conjugação dos pedidos a) e b), formulados pelos AA. na petição inicial, resulta evidente que apenas se pretende a reparação do empobrecimento, ou seja, a transferência do que foi apropriado pelos RR., à luz das regras enriquecimento sem causa;

26. Mal andou o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães ao não ter revogado a douta sentença e preferido douto acórdão que julgando a acção procedente, condenasse os RR. a restituir aos AA. as obras, bens, objectos e materiais que estes introduziram no rés-do-chão da construção descrita no ponto 2 dos factos provados, no valor de € 37.752,00, uma vez que a sua remoção é possível sem detrimento daquela,

27. Porquanto a restituição daquilo que os RR. injustificadamente se locupletaram está compreendida nos pedidos formulados pelos AA., quese fundam no enriquecimento sem causa, respeitando os limites do art. 609º nº 1 do CPC;

28. Assim não decidindo, violou o douto acórdão revidendo os art. 473º, 474º e 479º nº 1 do Código Civil.

Termos em que deve ser concedida a revista e, em consequência, proferido douto acórdão que:

a) Julgue verificadas as nulidades arguidas em A) e, em consequência, anule o douto acórdão revidendo;

c) Declare e reconheça que as obras (materiais e mão-de-obra) no valor de €37.752,00 que os AA, realizaram na construção dos RR., melhor descrita no ponto 2 dos factos provados, correspondem a um enriquecimento injusto c sem causa dos RR. no montante de € 26.037,65, à custa do empobrecimento dos AA.;

f) Condene os RR. a reconhecer tal enriquecimento e a restituir aos AA, o montante de € 26.037,75, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;

g) Ou para o caso de assim não se entender, condene os RR. a restituir aos AA. as obras, bens, objectos e materiais que estes introduziram no rés-do-chão da construção descrita no ponto 2 dos factos provados, no valor de € 37.752,00.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Nulidade do acórdão recorrido, por:

- Oposição entre os fundamentos e a decisão;

- Excesso de pronúncia;

- Falta de fundamentação;

- Se se mostram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa;

- Subsidiariamente, se devem ser restituídas as obras, bens e materiais que os autores introduziram no rés-do-chão da moradia.

III.

Vêm provados estes factos:

1. Os AA. são pais o sogros dos RR.;

2. Por decisão transitada em julgado em 09-06-2011, proferida no âmbito do Proc. nº 5724/06.6TBBRG, desta Vara de Competência Mista, os aqui Autores foram condenados a:

- reconhecer que os aqui Réus são donos e legítimos possuidores da construção destinada a habitação, composta de casa de rés-do-chão e andar, com logradouro, com a área coberta de 160,00m2 e descoberta de 938,00m2, implantada numa parcela de terreno com a área de 1098,00m2, sita no lugar ... ou Rua ..., da freguesia de ..., ..., a destacar do prédio rústico sito na mesma localidade e inscrito na matriz rústica sob o artigo 1451°;

- a reconhecer aos aqui Réus o direito de acessão industrial imobiliária relativamente à referida parcela de terreno com a área de 1098,00m2 sita no lugar ... ou Rua ..., da freguesia de ..., ..., a destacar do prédio rústico sito na mesma localidade e inscrito na matriz rústica sob o artigo 1451° mediante o pagamento aos Réus da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) valor esse actualizado a partir da data da sentença e até ao dia do efectivo pagamento da mesma, em função dos índices de variação de preço do consumidor publicados pelo INE; e

- a pagar aos aqui Réus as despesas que tiveram de suportar em face da impossibilidade de uso da moradia pelo período da ocupação pelos aqui Autores e impedimento de uso pelos aqui Réus da mesma cujo montante se relegou para posterior liquidação;

3. Nesse processo ficou provado, nomeadamente, que:

- os autores contrataram o empreiteiro de estruturas - pedreiro - dando-lhe instruções relativamente à execução da obra e procederam ao pagamento do preço;

- contrataram os demais empreiteiros de acabamentos, a quem efectuaram o pagamento dos serviços prestados;

- os autores escolheram todos os materiais a aplicar na obra e custearam todas as despesas com a construção da moradia;

- a moradia ficou concluída em finais de 2004/princípios de 2005;

- no mês de Março de 2005 os autores solicitaram aos réus a entrega da moradia;

4. Os Réus, no período compreendido entre o início do ano de 2005 e 20 de Julho de 2012, não entraram no interior do prédio em causa, nem se deslocaram perto do mesmo;

5. Antes de 13 de Julho de 2012, os autores adaptaram o rés-do-chão da vivenda (destinado inicialmente a garagem e arrumos), alterando os vãos da fachada, inutilizando as escadas interiores de ligação ao andar, e efectuando divisórias interiores, para criação de compartimentos destinados a cozinha, quarto de banho, sala comum, arrumos e quarto;

6. Eliminaram o espaço e a escada de ligação do rés-do-chão ao andar, autonomizaram aquele piso do rés-do-chão e "segunda habitação" em relação ao primeiro andar e habitação;

7. Os Autores ainda alteraram a varanda do alçado lateral voltada a nascente, construindo um terraço, enxertando ao anteriormente executado uma nova construção e um telheiro;

8. Todas as paredes divisórias executadas pelos Autores são em tijolo ou blocos e argamassa de cimento, com revestimento à superfície, inamovíveis;

9. Antes da entrega do imóvel, os Autores removeram: todo o mobiliário e equipamentos que aplicaram nas paredes da cozinha existente no rés-do-chão; a sanita, o bidé e o resguardo do poliban que haviam aplicado na casa de banho do rés-do-chão; os radiadores do aquecimento a água quente; o comando do alarme no 1º andar; o sistema de video-porteiro; o intercomunicador e campainha e o kit do automatismo de movimentação do portão principal;

10. A anteceder a entrega do imóvel e após a remoção daqueles equipamentos e materiais nos aposentos e espaços onde se encontravam aplicados, os Autores deixaram buracos em pavimentos, paredes e tectos por si executados;

11. No prédio em questão, designadamente no seu rés-do-chão, depois da passagem do alvará de utilização do prédio, os autores efectuaram e pagaram obras (materiais e mão-de-obra) no valor de 37.752,00 €.

12. As obras referidas no ponto anterior aumentaram o valor comercial do prédio em 26.037,75 €.

IV.

Por se nos afigurar com interesse, desde logo perante as duas primeiras nulidades invocadas no recurso, importa começar por reproduzir a fundamentação jurídica do acórdão recorrido, que é a seguinte:

"Enquanto que, na petição inicial, se fala apenas em enriquecimento sem causa, no recurso já se invoca o regime do artº1273.º do CC, o que terá que admitir-se, sabido que, em matéria de direito, o tribunal não está sujeito às alegações das partes (artº5.º, nº3, do actual CPC), de onde decorre que, pese o teor da petição inicial, o tribunal da 1ª instância não estava impedido de aplicar o direito como se advoga no recurso.

Ocorre que aquele regime se refere a situações de posse, seja de boa ou de má- fé, não se tendo demonstrado, aqui, que tal se tenha verificado. Aquilo que poderá concluir-se, da factualidade assente, aponta para um mera detenção, do prédio, por parte dos recorrentes, a quem a entrega deste foi pedida em Março de 2005, pelos recorridos (parte final do ponto 3 do probatório), sabendo-se também ter sido declarado, em acção que precedeu esta, que, por acessão industrial imobiliária, os recorridos se tornaram proprietários do prédio, mediante o pagamento, aos recorrentes, da quantia de 40 000,00 €, do valor daquele, antes da construção nele implantada pelos primeiros. Não pode, pois, aqui falar-se, relativamente aos recorrentes, de actuação correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, como se prevê no artº1251.º do CC.

De onde resulta a inaplicabilidade, ao caso em apreço, do dito regime, restando, assim, a hipótese do enriquecimento sem causa, aliás aquela que foi invocada na abertura do processo.

Diz o artº473.º, nº1, do CC, que «aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com injustamente se locupletou».

A propósito do conceito de causa justificativa, pondera-se, no Código Civil anotado, de Pires de Lima e Antunes Varela, que «com vista a abranger todas as situações de enriquecimento injusto, poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento (…).».

É facto (ponto 12 do probatório) que as obras levadas a cabo, pelos recorrentes, no prédio, aumentaram o valor comercial deste em 26 037,75 €, mas isto, presumivelmente, contra a vontade dos recorridos, que haviam destinado o rés-do-chão do prédio (adaptado a habitação, pelos recorrentes) a garagem e arrumos (ponto 5 do probatório).

Não cremos que, na análise do que seja este enriquecimento, possa adoptar-se um critério meramente objectivo, que equipare aquele ao aumento do valor comercial do prédio. Os recorridos, emigrantes no estrangeiro, construíram a sua moradia, naturalmente de acordo com o seu gosto e a estruturação que melhor se adaptaria ao seu modo de vida, mas, por intromissão, inexplicada, dos recorrentes, ver-se-iam constrangidos a ter que aceitar uma habitação substancialmente diferente da por eles projectada e aprovada, e ainda a restituir, aos intrusos, a quantia em que, comercialmente, estes, contra a sua vontade, aumentaram o valor do prédio. Não é justo, sendo, ao invés, curial, que os intrusos sofram o prejuízo advindo da sua intromissão.

Revertendo à dita ponderação, dir-se-á que o, ainda assim discutível, enriquecimento dos recorridos está justificado pelo facto de provir de uma intrusão que teve como efeito a alteração substancial da moradia que haviam projectado e visto aprovar pela entidade competente.

Não cremos que a existência do enriquecimento sem causa dependa da implantação, no património enriquecido, de benfeitorias, mas, ex abundanti, dir-se-á, com Vaz Serra, citado na sentença recorrida, a fls.662, que, in casu, não se estaria face a benfeitorias úteis (artº216.º, nºs 1 e 3, do CC), visto que as obras feitas pelos recorrentes não se integraram, no prédio, de acordo com a projectada e aprovada configuração deste, e, por isso, não o melhoraram, tendo-lhe, isso sim, alterado a substância.

Por aqui, improcede o recurso".

1. Defendem os Recorrentes que o acórdão recorrido é nulo, por os respectivos fundamentos estarem em oposição com a decisão – art. 615º, nº 1, al. c) do CPC.

Segundo os Recorrentes, o Tribunal deu-lhes razão ao eliminar a parte final do facto nº 5, mas, ao mesmo tempo, serviu-se da matéria expurgada para fundamentar a matéria de direito.

Esse facto, tal como resultava da decisão da 1ª instância, era deste teor:

"Antes de 13 de Julho de 2012, os autores adaptaram o rés-do-chão da vivenda (destinado inicialmente a garagem e arrumos), alterando os vãos da fachada, inutilizando as escadas interiores de ligação ao andar, e efectuando divisórias interiores, para criação de compartimentos destinados a cozinha, quarto de banho, sala comum, arrumos e quarto, tudo em desconformidade com o licenciamento e respectivo alvará de autorização de utilização".

Foi este segmento final do facto (em itálico) que a Relação eliminou, por considerar a resposta excessiva, isto é, por extravasar o âmbito do respectivo quesito.

Na fundamentação de direito do acórdão recorrido, o que vemos afirmado é que o Recorridos "haviam destinado o rés-do-chão do prédio a garagem e arrumos"; que eles se veriam "constrangidos a aceitar uma habitação substancialmente diferente da por eles projectada e aprovada"; que a "intrusão" dos Recorrentes "teve como efeito a alteração substancial da moradia que (os Recorridos) haviam projectado e visto aprovar pela entidade competente".

Ora, que o rés-do-chão se destinava a garagem e arrumos é elemento que consta do próprio facto; que foi levada a efeito uma "alteração substancial da moradia" é conclusão perfeitamente legítima tendo em conta a dimensão das obras efectuadas e o destino a dar ao rés-do-chão, visado com as mesmas; que esta afectação é diferente da que havia sido projectada e aprovada pela entidade competente é conclusão que se retira daquele primeiro facto (destino) e da extensão das referidas obras, corroborada pela documentação junta aos autos, quer pelos Recorridos, quer na perícia, confirmando-se, assim, o que havia sido alegado na contestação (nomeadamente nos arts. 36º, 41º e 42º).

Saliente-se, por outro lado, que os Recorrentes não põem verdadeiramente em causa que haja desconformidade das obras em relação ao que foi projectado e aprovado, nem razoavelmente o poderiam fazer perante a dimensão das mesmas; do que eles discordam é que o Tribunal se possa valer desse facto, depois de o ter eliminado dos factos considerados provados.

Esta eliminação ficou, porém, a dever-se apenas a razões formais: a resposta era excessiva, extravasando o âmbito do facto quesitado; não resultou, portanto, de um julgamento diferente quanto à prova do facto em questão.

Daí que o Tribunal não estivesse impedido depois de considerar o facto provado, pois não estaria, assim, a julgar contra a prova produzida.

Pode acrescentar-se ainda o seguinte:

A sentença da 1ª instância foi proferida em 15.07.2014, obedecendo já às regras do NCPC (cfr. art. 5º nº 1 da Lei 41/2013, de 26/6), designadamente, no que respeita à decisão sobre a matéria de facto, ao que dispõe o art. 607º nº 4, sem uma vinculação estrita à base instrutória anteriormente formulada; enunciaram-se os factos julgados provados e não provados; não se "respondeu a quesitos". Daí que, neste enquadramento, tenha havido, a nosso ver, excessivo rigor formal da Relação ao truncar o facto nº 5, eliminando a sua parte final.

Por outro lado, como decorre do que adiante se dirá, o facto em questão – desconformidade das aludidas obras com o licenciamento e respectivo alvará de autorização de utilização – não nos parece essencial para a decisão de mérito; a esta interessa sobretudo a extensão e amplitude dessas obras e o incremento de valor que tenham implicado, para além da vertente subjectiva (boa ou má fé das partes). A consideração desse facto, mesmo a ter-se por irregular, não seria, assim, susceptível de produzir a nulidade do acórdão.

Improcede, pois, esta primeira questão.

2. Invocam também os Recorrentes a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia – art. 615º nº 1 d) do CPC.

 Afirmam que não foi quesitado, não se tendo provado, a desconformidade das obras realizadas pelos AA. com o licenciamento e alvará da construção dos RR; por outro lado, ao fundamentar a sua decisão de direito na "alteração da substância" do prédio e na "presumível vontade dos recorridos", conheceu de questões que não se encontram na fundamentação de facto e de que também não podia tornar conhecimento oficioso.

Naquele primeiro aspecto, os recorrentes reiteram, noutra perspectiva, a questão acabada de analisar (ponto 1). Para aí se remete.

Ao afirmar que as obras tiveram como efeito a "alteração substancial da moradia" e que, ao efectuá-las, os Recorrentes actuaram "presumivelmente contra vontade dos Recorridos" (uma vez "que haviam destinado o rés-do-chão do prédio a garagem e arrumos"), a Relação limitou-se a formular juízos de valor, conclusivos, permitidos, em seu entender, pela factualidade provada.

Se esta comporta esses juízos ou se estes se podem considerar, assim, adequadamente fundamentados constitui questão que não tem a ver com vícios formais da decisão, contendendo antes com o julgamento, ou seja, com o mérito dessa decisão.

Não ocorre, pois, também esta nulidade.

3. Ainda neste âmbito, os Recorrentes alegam que o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, nos termos do art. 615º, nº 1, b), do CPC, por ter avocado a decisão singular, escusando-se a apreciar a "exposição de motivos", apresentada pelos Recorrentes.

Mais uma vez sem razão, como parece manifesto.

No caso, o recurso foi inicialmente julgado pelo Exmo Relator em decisão singular. Os Recorrentes vieram então, nos termos do art. 652º, nº 3, do CPC, requerer que sobre essa decisão recaísse acórdão, acrescentando também as razões da sua discordância com tal decisão.

No acórdão recorrido essas razões não foram apreciadas com o argumento de "estar fora de questão que, desse modo, se possa, de alguma forma, alterar a configuração do recurso".

Note-se que não estamos perante uma vulgar reclamação para a conferência pela parte que se sente prejudicada com o despacho do relator. Aqui o que estava em causa e ia ser submetido à conferência era o recurso em si, com o objecto anteriormente definido e não com outras questões adicionais, motivadas pela decisão singular proferida; esta, na prática, deixa de existir, sendo substituída pelo acórdão da conferência.

Daí que não tenham cabimento quaisquer considerações sobre o mérito dessa decisão singular e, menos ainda, a necessidade ou utilidade na sua apreciação.

Não ocorre, por conseguinte, a referida nulidade com base na razão invocada pelos Recorrentes, sendo certo que, mesmo que assim se não entendesse, nunca estaríamos perante uma falta absoluta de fundamentação, como seria exigível para a existência de tal vício, como tem sido reiteradamente entendido.

4. Os Recorrentes sustentam que ficaram demonstrados os requisitos do enriquecimento sem causa, pelo que os Recorridos deveriam ter sido condenados a pagar-lhes a quantia de € 26.037,75, que traduz a medida do enriquecimento daqueles.

Vejamos.

Dispõe o art. 473º, nº 1, do CC que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

Por sua vez, o art. 479º do mesmo diploma preceitua:

1. A obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

2. A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte.

Podemos assim enunciar como requisitos gerais, cumulativos, do enriquecimento sem causa:

- existência de um enriquecimento;

- obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;

- ausência de causa justificativa para esse enriquecimento[2].

A ideia fundamental do enriquecimento sem causa consiste "na necessidade de restituir o que se obteve à custa de outrem, quando falta uma causa justificativa para reter o obtido", ou seja, "nos casos em que o ordenamento jurídico não vê razão para reter o obtido ou o seu valor"[3].

Na fundamentação do acórdão recorrido, como se viu, afastou-se, sem impugnação das partes, a aplicação do regime das benfeitorias, previsto no art. 1273º do CC, por se ter considerado que os Recorrentes não eram possuidores, tendo-se acrescentado que as obras por eles realizadas não constituíam benfeitorias úteis, por não terem melhorado o prédio, antes tendo alterado a sua substância.

Decorre ainda da aludida fundamentação que não se ponderou – sendo certo também que não havia sido invocada – a aplicação do regime da acessão industrial imobiliária – cfr. arts. 1340º e 1341º do CC – certamente face ao teor literal destas normas, ao aludirem a obras em "terreno" alheio.

Mas pode entender-se – já se entendeu assim, aliás[4] – que as obras em prédio alheio, susceptíveis de conduzir à acessão, podem ser efectuadas tanto no solo, como em construções nele existentes, repondo-se, deste modo, por interpretação extensiva, "o exacto alcance do dispositivo legal", "integrando-se nele, por identidade de razão, também as hipóteses de as obras terem sido construídas em prédio urbano".

As benfeitorias são, por definição (art. 216º nº 1 do CC), as despesas feitas para conservar e melhorar a coisa. Assim, "não se altera a identidade da coisa benfeitorizada", nem esta é "alterada na sua substância", ao contrário do que acontece na acessão[5].

Ora, no caso, é indiscutível que as obras realizadas pelos Recorrentes não visaram conservar e melhorar o prédio, mas antes transformar o rés-do-chão do mesmo numa unidade independente e com uma estrutura inteiramente diferente da que tinha: de garagem e arrumos, acessórios da habitação do 1º andar, passou a integrar, com carácter de permanência, todas as divisões próprias de uma habitação autónoma (tendo sido suprimidas as escadas interiores de ligação ao 1º andar).

Todavia, os Recorrentes sabiam que o edifício que havia sido construído não lhes pertencia: a construção foi totalmente custeada pelos Recorridos e, apesar de o terreno pertencer, até aí, aos Recorrentes, estes autorizaram essa construção, prometendo doar à Recorrida o terreno que para tal fosse necessário.

Considerando a noção que nos é dada pelo art. 1340º nº 4, parece-nos clara a conclusão de que os Recorrentes, ao efectuarem as referidas obras, actuaram com má fé: não desconheciam que o edifício pertencia aos Recorridos, nem demonstraram qualquer autorização para a incorporação que realizaram. Pelo contrário, provou-se que lhes foi pedida a entrega do edifício e que as despesas que invocaram foram todas efectuadas em data posterior a tal pedido (Março/2005 – facto 3).

Na interpretação dos normativos referidos, acima indicada, o caso seria, pois, subsumível na previsão do art. 1341º.

E o certo é que, na contestação que apresentaram, os Recorridos, embora sem referirem uma tal qualificação jurídica, alegaram, de forma exuberante, toda a factualidade necessária, designadamente sobre a sua boa fé; a alteração profunda do prédio levada a efeito com as obras realizadas pelos Recorrentes; a intenção de não ficarem com a moradia no estado em que a mesma foi deixada com as obras, pretendendo a remoção destas, manifestando o propósito de procederem à sua demolição, com o custo a dever ser suportado pelos Recorrentes.

Pediram até, em reconvenção, que os AA (Recorrentes) fossem condenados nos "custos decorrentes da reparação dos danos causados e da restituição do prédio urbano dos RR (Recorridos) à sua composição primitiva, liquidados na quantia de € 17.835,00.

A reconvenção não foi, porém, admitida (não se decidiu bem, parece-nos).

A questão que agora se coloca é a de saber se, mesmo assim, o processo fornece elementos de facto suficientes para apreciação e decisão do pedido formulado pelos autores, sem necessidade de ampliação e de anulação da decisão que tal implicaria (cfr. art. 682º nº 3 do CPC).

Crê-se que sim.

Saliente-se que, segundo o regime do art. 1341º, o dono do prédio tem direito de exigir que o mesmo seja restituído ao seu primitivo estado à custa do autor da obra ou, se preferir, o direito de ficar com a obra pelo valor fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Face à limitação acima referida da decisão de facto, por não ter sido considerada grande parte da factualidade alegada pelos Recorridos na sua contestação, temos de nos cingir à situação objectiva existente, de os Recorridos ficarem com a obra efectuada pelos Recorrentes. Nos termos da aludida norma põe-se então o problema do pagamento da obra segundo as regras do enriquecimento sem causa.

A questão não difere, assim, substancialmente, da que foi posta na acção, sem intermediação dessa norma: a restituição do enriquecimento (por equivalente) obtido pelos Recorridos, derivado do aumento do valor comercial da moradia, em consequência das obras realizadas à custa dos Recorrentes.

Concebendo-se ou não este incremento de valor em coisa alheia como uma das categorias do enriquecimento sem causa[6], a doutrina tem enfatizado as especificidades desta situação quando a intervenção que origina esse incremento é realizada sem a anuência ou colaboração do enriquecido ou até com a oposição deste, dando lugar a um enriquecimento forçado ou imposto.

Está em causa "o princípio básico da liberdade contratual, sob a forma da liberdade de contratar ou de não contratar e com o princípio de que cada qual dispõe, segundo a sua vontade, da afectação dos seus recursos"[7].

Com efeito, "sujeitar o enriquecido a uma obrigação de restituição contra a sua vontade, em virtude de um comportamento do empobrecido, implica reconhecer a possibilidade de alguém constituir obrigações noutra esfera jurídica contra vontade do seu titular, o que se apresenta contraditório com a autonomia privada, princípio fundamental do direito das obrigações"[8].

Tem sido reconhecido, porém, que o legislador não foi sensível à preocupação de proteger o enriquecido nestas situações de enriquecimento forçado; daí o regime previsto, designadamente, no art. 1273º nº 2 do CC, obrigando o titular do direito a pagar o valor, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, das benfeitorias necessárias ou úteis que não possam ser levantadas sem detrimento, mesmo ao possuidor de má fé[9].

O enriquecimento forçado, no caso de boa fé do enriquecido e como o sugere o art. 479º nº 2 ao aludir a "locupletamento", terá, porém, como limite o enriquecimento patrimonial, não podendo, como sublinha Júlio Gomes, "deixar de ter em conta factores subjectivos e a inserção e impacto do objecto a restituir no património de quem o recebeu". O valor obtido pode ser para o enriquecido, e por razões que a ele respeitam, inferior ao valor objectivo e de mercado, sendo até de admitir que, "em caso algum, estaria disposto a pagar pelo que obteve"[10].

Haverá, pois, que aferir, objectivamente, se, perante as condições específicas do enriquecido e o modo como planificou a afectação dos seus recursos, o valor por este obtido representa uma vantagem que deva restituir. Sob pena de a restituição poder conduzir, muitas das vezes, a um prejuízo para o enriquecido.

Aceita-se, por isso, que, em caso de boa fé do enriquecido, como conclui Menezes Leitão, se deva "estabelecer uma protecção contra a imposição do enriquecimento, uma vez que se o enriquecido tem conhecimento da ausência de causa jurídica daquela aquisição deverá proceder à sua restituição em espécie ou em valor objectivo, conforme determina o art. 479º, nº 1, e não à restituição da poupança de despesas ou do valor subjectivo da aquisição.

Já havendo boa fé do enriquecido, a aplicação do limite do enriquecimento, para efeitos do art. 479º, nº 2, deverá tomar em conta a planificação subjectiva do enriquecido, não se considerando haver um enriquecimento efectivo se o incremento de valor não tem para ele qualquer utilidade. Na determinação desta planificação subjectiva é especialmente relevante a poupança de despesas, uma vez que o enriquecimento subsiste se o enriquecido planeava efectuar despesas que desse modo poupou"[11].

Voltando ao caso dos autos.

Concluiu-se acima que os Recorrentes actuaram com má fé quando realizaram as obras no edifício construído pelos Recorridos.

Por outro lado, ficou provado que os Recorridos concluíram a moradia em finais de 2004/princípios de 2005; sendo emigrantes, deixaram as chaves da casa aos Recorrentes (pais da Recorrida), tendo-se estes comprometido a zelar pela habitação.

Inexplicavelmente, porém, estes foram além disso e passaram a ocupar e a habitar a casa, contra vontade dos Recorridos, impedindo-os de a ela aceder.

Os Recorridos, logo em Março de 2005, solicitaram a entrega da moradia.

No período que se seguiu (antes de 13.07.2012), os Recorrentes procederam a obras no rés-do-chão da moradia, destinado a garagem e arrumos, adaptando-o a habitação – suprimindo as escadas de ligação interior ao 1º andar e construindo divisões interiores para cozinha, quarto de banho, sala comum, arrumos e quarto.

Criaram assim uma segunda habitação, autónoma da existente no 1º andar; construíram ainda um terraço, acrescentando uma nova construção e um telheiro.

Os Recorridos haviam acabado de construir uma moradia nova, de raiz, de acordo naturalmente com o seu gosto e com a estrutura que convinha às suas condições pessoais e familiares.

Não deram consentimento às obras realizadas pelos recorrentes, estando de boa fé; tanto que, ao verem a moradia ocupada, logo solicitaram a sua entrega, o que foi recusado, tendo sido impedidos de a ela aceder durante sete anos.

As referidas obras, feitas por iniciativa dos Recorrentes e sem a colaboração e consentimento dos Recorridos, alteraram substancial e profundamente a estrutura do rés-do-chão da moradia e o destino a que o mesmo estava afectado.

Tal alteração da estrutura e destino do rés-do-chão de uma moradia nova, acabada de construir, não integrava evidentemente os projectos patrimoniais imediatos ou a prazo dos Recorridos. O que estes haviam construído era uma moradia unifamiliar, com garagem no rés-do-chão; não um prédio com duas habitações perfeitamente independentes.

Assim, as obras realizadas pelos Recorrentes não representam qualquer vantagem patrimonial para os Recorridos. Para que lhes serve uma nova habitação, totalmente autónoma e independente, no rés-do-chão da moradia que eles tinham acabado de construir?

Segunda habitação que descaracteriza na sua estrutura e em termos funcionais a moradia unifamiliar nova que existia[12].

Está assim também fora de questão que as obras realizadas pelos Recorrentes tenham trazido aos Recorridos uma qualquer poupança de despesas. Pode até afirmar-se, como acima se aventou, que os Recorridos em caso algum estariam dispostos a pagar pelo que obtiveram, sendo certo que a situação criada não se pode converter numa fonte de prejuízos para eles, como ocorreria se fossem obrigados a efectuar qualquer restituição.

Como observa, a propósito, Júlio Gomes, trata-se mesmo de um princípio fundamental em sede de enriquecimento sem causa: o enriquecido de boa fé não pode ser prejudicado com a restituição, pelo que "se a restituição acarretar um prejuízo superior ao enriquecimento patrimonial não deverá ter lugar".

É esta, pensamos, a situação com que se depara nestes autos: o valor objectivo obtido com as obras realizadas pelos Recorrentes ou o incremento de valor que essas obras trouxeram ao prédio dos Recorridos não representa para estes uma qualquer vantagem patrimonial e um verdadeiro enriquecimento.

Mesmo abstraindo da manifestada intenção de remoção dessas obras, os Recorridos não devem ser obrigados a pagar uma obra que lhes foi imposta unilateralmente e de má fé, e que descaracterizou o prédio que tinham acabado de construir, alterando substancialmente a sua estrutura e a sua utilização.

Aquele enriquecimento real e objectivo não se reflectiu num concreto locupletamento dos Recorridos (cfr. art. 479º, nº 2) e daí que estes não devam ser condenados na obrigação de restituição que foi peticionada nesta acção.

5. Subsidiariamente, os Recorrentes pretendem que os Recorridos sejam condenados a restituir-lhes "as obras, bens, objectos e materiais" que aqueles introduziram no rés-do-chão da moradia.

Os autores pediram nesta acção que os réus fossem condenados a reconhecer o enriquecimento provocado pelas obras por eles realizadas e a restituir-lhes o valor por eles pago, no montante de € 74.168,99, alegando que os materiais aplicados nas obras foram integrados na referida casa e não podem da mesma ser retirados sem a deteriorarem.

Assim, pressuposto do pedido formulado pelos autores era que as obras não podiam ser levantadas sem detrimento do prédio.

Ora, analisado o acórdão recorrido, verifica-se que nele nada se disse ou concluiu a infirmar esse pressuposto. Apenas se referiu, ao apreciar a impugnação da decisão de facto, que esse facto – a possibilidade de a obra ser levantada sem detrimento – não foi quesitado, recordando-se o que, a propósito, se mencionou na perícia, onde se admitiu essa possibilidade "desde que se proceda às necessárias rectificações".

Mas, como é evidente, o que se afirma no relatório pericial não pode, nem tem de ser necessariamente transposto para a factualidade provada; esse facto não integrava os factos controvertidos, não tendo sido objecto de discussão e de outra prova.

Para além de que, e apesar da ambiguidade do termo "rectificações", este tem implícita a existência de detrimento.

Portanto, não houve qualquer alteração do pressuposto em que se baseou o pedido dos autores – pedido por equivalente, já que a restituição in natura não seria possível sem detrimento.

E tanto basta para concluir pela improcedência desta questão.

Aliás, parece-nos que não seria possível proceder agora à convolação pretendida do pedido, para a restituição natural, por tal implicar que este Tribunal conhecesse, de novo, dessa questão, não apreciada no acórdão recorrido, quando é certo que o objecto do recurso é, fundamentalmente, a decisão impugnada ou recorrida, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo desta decisão.

Isto para além das implicações e limitações que derivariam dos princípios do dispositivo (não foi formulado esse pedido) e do contraditório (os réus não foram ouvidos sobre tal pedido) – arts. 3º e 609º do CPC.

De todo o modo, importa referir que os bens e objectos "separáveis" já foram removidos pelos autores antes da entrega do imóvel (facto 9); com os resultados que se provaram (facto 10) e que estão à vista (cfr. fotografias de fls. 608 a 647).

O que sobrará, pode dizer-se, integra a estrutura da obra levada a efeito pelos autores – paredes (feitas de tijolo e argamassa de cimento, inamovíveis – facto 8), revestimento de pavimentos, canalizações, etc. Como é evidente, tudo pode ser removido, mas com um custo, aliás já quantificado pelos réus (não só a remoção em si, mas também as necessárias reparações das partes da casa afectadas). Mas o que for retirado, como parece notório, não passará de entulho; e se este, pelos vistos, pode ter préstimo para os autores, não seria razoável onerar os réus – que não obtiveram com a obra um enriquecimento patrimonial – com o custo da remoção.

Nem é isso, aliás, o que resulta do regime legal aplicável, como acima se referiu.

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

                                                 Lisboa, 9 de Julho de 2015

Pinto de Almeida (Relator)

Júlio Gomes

Nuno Cameira

_______________
[1] Proc. nº 681/12.2TBBRG.G1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 82)
Cons. Júlio Gomes; Cons. Nuno Cameira
[2] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª ed., 369; sobre estes requisitos, cfr. os Acórdãos deste Tribunal de 27.09.2011, de 06.06.2013, de 20.06.2013, de 26.03.2014 e de 29.04.2014, em www.dgsi.pt.
[3] Júlio Gomes, O Conceito de Enriquecimento, 222 e 224.
[4] Antunes Varela, RLJ 132-255 e os Acórdãos do STJ de 17.03.1998, CJ STJ VI, 1, 134, de12.02.2004, CJ STJ XII, 1, 55 e de 14.10.2010, CJ STJ XVIII, 3, 138.
[5] Júlio Gomes, Ob. Cit., 332 e 333; Vaz Serra, RLJ 108-266.
[6] Cfr., por um lado, a posição de Menezes Leitão, O Enriquecimento sem Causa, 827 e segs e Direito das Obrigações cit., 396 e segs. e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo III, 207 e segs.; por outro, Júlio Gomes, Ob. Cit., 222 e segs.
[7] Júlio Gomes, Ob. Cit., 311.
[8] Menezes Leitão, O Enriquecimento (…), 841.
[9] Outro exemplo é-nos dado pelo regime previsto no art. 468º nº 2 do CC, em relação à gestão de negócios exercida em desconformidade com o interesse e a vontade, real ou presumível, do dono do negócio, caso em que este responde segundo as regras do enriquecimento sem causa.
[10] Ob. Cit., 107 e 115.
[11] Ob. Cit., 844.
[12] Como refere Júlio Gomes, Ob. Cit., 321, "compreende-se melhor que o agente tenha que indemnizar despesas necessárias para a conservação ou que em todo o caso são úteis, do que aquelas que implicam uma alteração do destino económico do bem". Cfr. também a afirmação aí citada de Von Rittberg (Ibidem, nota 542): "quando se trata de despesas que alteram a identidade da coisa e a transformam, elas contrariam o escopo que o seu proprietário lhes atribuiu e não representam um enriquecimento em concreto".