Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4057
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO MELO
Nº do Documento: SJ200212170040576
Data do Acordão: 12/17/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1612/02
Data: 05/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", intentou em 29/11/1999, na Vara Mista do Funchal, acção em processo comum ordinário contra o médico ortopedista B e a mulher C, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe:
" a) 5 000 000$00 a título de danos morais.
a) 1 336 331$00 a título de ressarcimento de custos de reparação de danos físicos.
b) 3 600 000$00 a título de lucros cessantes.
c) Juros legais desde a citação."
Alegou:
Padecendo de doença designada "Contracção de Depuytren" circunscrita ao dedo mínimo da mão esquerda, consultou o R. que o submeteu a uma intervenção cirúrgica local.
A intervenção, mal executada, não curou a doença e causou-lhe danos corporais que persistem.
Teve danos patrimoniais e não patrimoniais.
Os rendimentos do B são bens comuns.
Contestou o R. por excepção, com o fundamento de que é responsável pela indemnização D, com quem contratou seguro de responsabilidade civil profissional, e por impugnação.
Após tréplica, o R. requereu, aceitando convite do M.mº Juiz, a intervenção principal da D, que foi admitida.
A D contestou aderindo à defesa apresentada pelo R.
Na sentença final a acção foi julgada improcedente, com a absolvição dos R.R. do pedido.

A Relação, julgando procedente a apelação do A., "condenou o apelado (por manifesto lapso escreveu-se apelante) e a chamada a pagarem ao apelante a quantia de 4 836 331$00 (24173.57 euros), acrescida do que se vier a apurar em liquidação por execução de sentença quanto aos lucros cessantes, no âmbito do que ficou provado sob o nº 37 dos factos provados, e juros à taxa legal desde a citação."
Daí esta revista pedida pela D:
Concluiu:
1 - O R. B e o A. deram origem a uma relação contratual.
2 - Trata-se de uma obrigação de meios e não de resultado.
3 - Não existe a presunção consagrada no art.º 799º, nº1, C. Civil.
4 - Não cabia ao B provar que não procedeu com culpa.
5 - Cabia ao A. provar o comportamento ilícito e culposo do B, o que não logrou uma vez que não ficou provado o facto do art.º 38º da base instrutória.
6 - Resulta dos elementos dos autos que o B agiu com a diligência que lhe era exigível no dever de informação ao doente e na intervenção cirúrgica.
7 - Foi incorrectamente aplicado o art.º 799º e erroneamente omitido o art.º 342º, nº1, ambos do C. Civil.
8 - Não cabe à recorrente indemnizar o A.
O recorrido contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.
Factos materiais fixados pela Relação, a que este Supremo aplica o regime jurídico adequado (art.º 729º, nº1, do C.P.C):
"1º Em finais de Novembro de 1996, o A. compareceu na Clínica de ..., no Funchal, para ser consultado pelo R., B - Alínea A):
2º Iniciaram-se, então, os preparativos para a realização da referida operação intervenção cirúrgica, tendo a mesma sido marcada por acordo entre o A. e o R., para o dia 4 de Dezembro de 1996 - Alínea B);
3° No dia 4 de Dezembro de 1996, o A. foi operado na Clínica de ..., no Funchal, pelo R., B - Alínea C);
4° Obedecendo à prescrição médica do B , o A. iniciou a realização de fisioterapia à sua mão esquerda na Clínica de ... , em finais de Dezembro de 1996 - Alínea );
5° Em Janeiro de 1997, o A. voltou a ser observado pelo R., B , que afirmou que "não tinha a certeza daquilo que causava dores e os problemas na mão" - Alínea E);
6° O R. B , pediu ao A. que consultasse o E , passando para entrega ao mesmo o relatório médico junto a fls. 26- Alínea F);
7° Consultado de seguida o E , este submeteu o A. a exames no Centro ... , conforme se observa pelo relatório do electromiograma, datado de 15/2/1997 - doc. a fls. 28 - Alínea G);
8° Nesse relatório, o E , conclui: "EMG de acordo com moderada lesão dos nervos mediano e cubital à esquerda com discreto aumento do tempo de latência distral do nervo e lentificação evidente dos VCS dos nervos mediano e cubital, com diminuição da amplitude sensitiva do nervo mediano para o dedo II e do nervo cubital para o dedo V" - Alínea H);
9° O A. padece(ia) de uma doença designada de "contracção de Dupuytren", circunscrita, apenas e só, ao dedo mínimo da mão esquerda- Alínea I);
10° O A. concordou com a intervenção cirúrgica proposta pelo R., B - Alínea I);
11° A intervenção cirúrgica foi realizada pelo R. a pedido do A., e após aquele ter elucidado o demandante da natureza da doença, técnica cirúrgica adequada ao caso, dos riscos inerentes e da expectativa de cura parcial - Alínea L);
12° O R. B , após confirmar o diagnóstico atrás referido, informou o A. que através de uma simples intervenção cirúrgica repararia o dedo mínimo esquerdo e eliminaria a "contracção de Dupuytrem" - Resposta ao facto 2°;
13° Após a intervenção cirúrgica, o A. desde logo verificou não possuir nenhuma sensibilidade táctil ou à dor no dedo indicador esquerdo - Resposta ao facto 4°;
14° O R. B foi imediatamente colocado ao corrente da situação - Resposta ao facto 5°;
15° Após observação do "novo" problema, o R. B , comunicou o A. que, com o tempo e fisioterapia, o mesmo seria ultrapassado - Resposta ao facto 6°;
16° O A. começou a sentir dores intensas em toda a sua mão esquerda - Resposta ao acto 7°;
17° Na sequência, a mão esquerda, por instrução médica, foi revestida por ligaduras Resposta ao facto 8°;
18° O A. continuou a sentir dores intensas na mão esquerda, fundamentalmente localizadas na palma da mão - Resposta ao facto 9°;
19° Para além das dores, o A. passou a sentir grandes sensações de "choque" ou "dores alfinete e/ou agudas" provenientes da palma da mão - Resposta ao facto 10°;
20° Ao A. foram prescritos analgésicos - Resposta ao facto 11º;
21° Mal passava o efeito dos medicamentos, o A. voltava a sentir dores - Resposta ao facto 12°;
22°O R. B interveio cirurgicamente no dedo mínimo esquerdo, mediante técnica de fasciectomia (extracção do tecido que envolve o nervo), como ficara acordado, e ainda no dedo indicador da mesma mão, mediante técnica de fascioctomia (incisões junto do nervo) - Resposta ao facto 16° ;
23° O F solicitou ao A. que, antes da intervenção cirúrgica, se submetesse a um mês de intensa fisioterapia - Resposta ao facto 22°;
24° O A.; desde a data da operação realizada pelo B, estava incapacitado para trabalhar, alimentar-se, vestir-se, tomar banho e jogar golfe - Resposta ao facto 25°;
25° O A. consultou o G , o qual, após ter obtido a opinião do H no sentido da necessidade de uma nova intervenção cirúrgica, e perante a vontade do demandante em realizar esta intervenção em Londres, contactou o I - Resposta ao facto 26°;
26° Em Maio de 1997, o A. deslocou-se ao Instituto de Neurologia da Universidade de Londres, onde foi observado pelo médico especialista, I - Resposta ao facto 27°;
27° O I opinou que a operação fosse adiada - Resposta ao facto 28°;
28° Retornado à Madeira, o A. sentia a situação a agravar- -se de dia para dia, as dores tinham-se tomado continuamente intensas - Resposta ao facto 29°;
29° Perante isto, voltou à Inglaterra e compareceu à consulta com o J , no Chaucer Hospital, Canteberry, Kent, tendo este médico recomendado cirurgia imediata - Resposta ao facto 30°;
30° A intervenção cirúrgica reconstitutiva realizou-se em Julho de 1997, no Chaucer Hospital, e foi da responsabilidade do J - Resposta ao facto 31°;
31 ° Após a operação médica, o A. recomeçou a recuperar parte da mobilidade e exibilidade da sua mão esquerda, todavia nunca conseguiu recuperar a totalidade da mobilidade e flexibilidade, sendo de 75% o grau recuperado de flexibilidade e mobilidade da sua mão esquerda - Resposta ao facto 32°;
32° As dores deixaram de ser intensas - Resposta ao facto 33°;
33° Regressado à Madeira, o A. iniciou fisioterapia para ajudar a recuperar a sua mão esquerda- Resposta ao facto 34°;
34° Em 22 de Outubro de 1999, o A. voltou à consulta com o F que, após observação redigiu o seguinte relatório médico:
"Submetido a intervenção cirúrgica em 4 de Dezembro de 1996 por doença de Dupuytren do 5° dedo da mão esquerda, de que resultou lesão do nervo digital radial do 2° dedo e digital cubital do 5° dedo.
Posteriormente foi operado em Kent (Julho de 1997) para reconstrução do nervo digital o 2° dedo, ao nível do qual refere melhoria.
Actualmente apresenta anestesia do bordo cubital do 5.º dedo e hipertesia do bordo adial do 2° dedo a que corresponde pela T.N.I. a I.P.P. de 0.10 (10%)" - Resposta ao facto 35°;
35° A partir de finais de Agosto de 1997, o A. começou lentamente a poder desenvolver as tarefas normais da sua vida diária como, comer, tomar banho, lavar os dentes, escrever, segurar em objectos, etc. - Resposta ao facto 36°;
36° O A. é um apaixonado pelo golf- Resposta ao facto 37°;
37° O A. perdeu rendimentos do seu trabalho, por conta própria em prestação de serviços, na actividade de vendas de time sharing, durante pelo menos 9 (nove) meses seguidos, ou seja, até ter recuperado após a intervenção médica do J - Resposta ao facto 39°;
38° Em consequência do acto do R., o A. gastou:
- 208,00 Libras (=Esc: 65.807$00), de anestesia,
- 80,00 Libras (=Esc: 25.310$00), de honorários com Chauce Hospital;
- 120.000$00, de passagens áreas;
- 729,00 Libras (=Esc: 230.641$00), com o J ;
- 218,676.00 Libras (=Esc: 69.184$00) com despesas várias com o Dr. R.C. Wetherell, por causa da intervenção cirúrgica;
- 326,00 Libras (=Esc: 103.139$00), de aluguer de automóveis para a deslocação de automóvel em Inglaterra para as consultas e exames com vários médicos e hospitais;
- 180.000$00, de passagens áreas;
- 178,00 Libras (=Esc: 56.315$00), na "Fly The Worl Travel", despesas de alojamento em Inglaterra;
-20,00 Libras (=Esc: 6.327$00), em medicamentos na Boots, The Chemist, Ltd;
- 840,00 Libras (=Esc: 265.759$00), na conta do Chucer Hospital;
- 3.000$00, honorários do G ;
- 326,00 Libras (=Esc: 103.139$00), de transportes;
- 7,91 Libras (=Esc: 2.502$00, de medicamentos;
- 114,90 Libras (=Esc: 36.352$00), de despesas de alimentação no Hield Court Hotel;
- 16.000$00, exames do ...;
- 1.015$00, medicamentos na Farmácia ...;
- 5.000$00, honorários/consulta do B ;
- 3.000$00 honorários/consulta do G;
- 3.000$00, honorários/consulta do G;
- 245$00, Farmácia ...;
- 1.352$00, Farmácia do ...;
- 6.000$00, ... -fisioterapia e reabilitação;
- 5.000$00, honorários/consulta do B ;
- 6.000$00, honorários/consulta do F ;
- 3.000$00, honorários/consulta do G ;
- 77,70 Libras (= Esc: 24,582$00), Hotel/alojamento em Inglaterra;
- 3, 50 Libras (=Esc: 1.107$00), Táxi;
- 14,40 Libras (=Esc: 4,555$00, transportes públicos (3 x) - Resposta ao facto 41°;
39° O A. viu afectado a sua capacidade produtiva como trabalhador, viveu às expensas da sua esposa, que o ajudou em todas as tarefas, mesmo as mais comuns ou íntimas de higiene diária - Resposta ao facto 42°;
40° O A. já tinha sido anteriormente submetido a intervenção cirúrgica ao 5° dedo da mão esquerda - Resposta ao facto 44°;
41º Na primeira consulta, o A. referiu padecer da doença de "Dupuytren", bilateral, pretendendo ser operado das duas mãos em simultâneo - Resposta ao facto 46°;
42° Foi então que o R. o aconselhou a fazer uma intervenção de cada vez - Resposta o facto 47°;
43° O R; aconselhou a realização da cirurgia tendo em vista diminuir a lesão do A. - Resposta ao facto 48°."

1 - Está em causa uma relação contratual de prestação de serviços entre o A., paciente, e o R, médico ( art.º 1154º do C. Civil).
A intervenção cirúrgica foi mal sucedida: não curou a doença e provocou lesões físicas no A.
Este teve danos patrimoniais e não patrimoniais.
Até aqui há consenso.
O dissenso está, devido à culpa, na responsabilidade do R. e, com ela, na obrigação da recorrente de indemnizar o A.
A razão de ser da revista.
Com o objecto delimitado pelas conclusões da recorrente-art.ºs 684º, nº3, e 690º, nº1 e 2, do C.P.C.
2 - A Relação decidiu que, sendo contratual a responsabilidade do B, a sua obrigação foi de resultado, incumbindo-lhe provar que a falta de cumprimento não procedeu de culpa sua - art.º 799º, nº1, do C. Civil.
Sustenta a D que a obrigação do B foi de meios: prometeu apenas ao A. um comportamento diligente segundo as regras da arte médica destinado à cura da doença, sem garantir o resultado.
Sendo assim, está excluída a presunção de culpa que aquele art.º 799º, nº1, estabelece quanto à responsabilidade contratual.
Fora das chamadas prestações rotineiras, o médico obriga-se apenas a tratar o paciente e não a curá-lo (considerando a cura que é possível).
Pode porém garantir a cura, assumindo uma obrigação de resultado. (1)
Normalmente isto acontece quando cumpre o dever de informar o cliente do risco relativo ao tratamento médico que lhe propõe fazer, obtendo dele o seu consentimento.
Foi o que aconteceu "in casu".
O A. concordou com a intervenção cirúrgica depois de esclarecido pelo B da Natureza da doença, da técnica cirúrgica adequada e dos riscos inerentes, sendo informado de que se tratava de uma simples intervenção cirúrgica que repararia o dedo mínimo esquerdo e eliminaria a "contracção de Depuytren".
3 - Não aproveita de resto à recorrente a insistência de que houve apenas uma obrigação de meios.
A solução é a mesma.
O médico, e é esta a actividade profissional que importa considerar aqui, põe à disposição do cliente a sua técnica e experiência destinadas a obter um resultado que se afigura provável.
Para isso compromete-se a proceder com a devida diligência.
Esta conduta diligente é assim objecto da obrigação de meios que assume. (2)
Quando o cliente se queixa que o médico procedeu sem a devida diligência, isto é, com culpa, (3) está a imputar-lhe um cumprimento defeituoso.
Não se vê assim qualquer razão para não fazer incidir sobre o médico a presunção de culpa estabelecida no art.º 799º, nº1, do C. Civil. (4)
O que é equitativo, pois a facilidade da prova neste domínio está do lado do médico.
4 - Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia inadequada ou negligente execução profissional.
Não se questiona no processo a adequação da terapia.
Foram desastrosas para o A. as consequências da operação a que o B o submeteu.
Devia este provar, ou a seguradora, que a execução operatória foi diligente.
Também não aproveita à recorrente não se ter provado que a técnica operatória utilizada pelo B não foi uma clara violação às técnicas e artes médicas e operatórias (facto do art.º 38º da base instrutória, alegado pelo A).
É que o ónus da prova cabia ao R.

Nem o art.º 799º do C. Civil foi incorrectamente aplicado, nem o art.º 342º, nº1, do mesmo Código foi erroneamente omitido (havendo presunção legal de culpa do R, as regras dos artigos anteriores invertem-se - art.º 344, nº1, também do C. Civil).
Nestes termos negam a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2002
Afonso de Melo
Fernandes Magalhães
Silva Paixão
___________
(1) - J. C. Moitinho de Almeida, A Responsabilidade Civil do Médico, Scientia Ivridica, 1972, tomo XXI, p. 338; Figueiredo Dias - Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, B.M.J. nº 332, p.46.
(2) - V. Adolfo di Majo, Obbligazioni in generale, p. 449 e 453-454, pronunciando-se sobre as obrigações de meios e obrigações de resultado.
(3) - Apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias - art.ºs 487º, nº2, e 799º, nº2, do C. Civil. Como observa Álvaro Dias, o médico deve actuar com o cuidado, perícia e conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo - Dano Corporal, p. 444.
(4) - Defendendo que a presunção desta norma tem pleno cabimento no domínio das obrigações de meios, Sinde Monteiro, R.L.J. 132.p.93, nota 156, e autores aí referidos; Gomes Rodrigues, Responsabilidade civil dos médicos, Direito e Justiça, 2000, XIV, 3, p. 183.