Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1074/18.3T8VFX-A.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RENDA
PRESSUPOSTOS
ARRENDATÁRIO
PATRIMÓNIO
VALOR DO PRÉDIO ARRENDADO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
MATÉRIA DE DIREITO
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
Data do Acordão: 11/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O processo para atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CCivil, é de natureza voluntária e as decisões nele proferidas, com base em critérios de conveniência e oportunidade não são passíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça por força do disposto no nº 2 do art. 998º do CPC;

II- Todavia, se no recurso se questionar a aplicação de pressupostos normativos, como os atinentes aos critérios de fixação da renda, o recurso de revista é admissível;

III – No arrendamento previsto no art. 1793º do CCivil, ao fixar o valor da renda o tribunal deve atender sobretudo à situação patrimonial do arrendatário e não ao valor locativo do imóvel.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA, intentou o presente incidente de atribuição da casa de morada de família, contra BB, por apenso à ação de divórcio que correu termos, pedindo que lhe seja atribuído definitivamente o uso da casa de morada de família.

Alega, em síntese, que casou com o R. em … de outubro de 1987 e, que até à saída voluntária do mesmo de casa em … de novembro de 2017, viviam juntos na casa morada de família sita no imóvel que identifica. Desde então a Requerente permanece e habita sozinha na mesma, não dispondo de outra habitação. O R. foi viver para outra habitação alternativa de que dispõe, onde ainda hoje se encontra, tendo ainda recebido uma herança, pelo que é proprietário de um bem imóvel onde reside sem custos. A Requerente não tem outro sítio para viver, nem tão pouco dispõe de meios económicos para comprar ou tomar de arrendamento outra casa, pois não exerce qualquer profissão, pelo que não tem meios próprios de sustento, tem a 4ª classe, não tem qualquer experiência profissional e está fora do mercado de trabalho há mais de 30 anos. A situação económica do Requerido permite-lhe comprar ou arrendar casa, mas nem necessita de o fazer, pois já dispõe de outra habitação.

O Requerido contestou.

Foi proferida sentença que atribuiu o direito ao arrendamento do imóvel à Requerente, mediante o pagamento ao Requerido da quantia mensal de €375,87 a título de renda.

Da sentença apelou a Requerente, centrando o recurso no valor da renda, e com sucesso pois que o Tribunal da Relação ….., mantendo a decisão que atribuiu o direito ao arrendamento à Requerente, alterou o valor da renda para a quantia mensal de €100,00.

É a vez do Requerido interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, visando a revogação do acórdão recorrido para ficar a subsistir a decisão da 1ª instância.

Por se tratar de uma decisão proferida no âmbito de um processo de jurisdição voluntária (cf. art. 988º/2 do CPC), o relator suscitou a questão da admissibilidade da revista, tendo determinado a audição das partes para, querendo, se pronunciarem.


Apenas o fez o Recorrente, no sentido da admissibilidade da revista dizendo no, essencial, que embora o processo tenha a natureza de jurisdição voluntária, o tribunal a quo desrespeitou os critérios normativos plasmados no art. 1105º, nº 2 do CCivil, o que torna a decisão sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.


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O Recorrente apresentou as alegações de recurso, iniciando no nº 73 o que designou por conclusões, sendo que até ao 79º faz o historial dos autos:

(…)

80. A Relação ….. veio julgar parcialmente procedente o recurso interposto, revogando a sentença proferida na parte que fixou o valor da renda a prestar pela recorrida em € 375,87

81. Para tanto, argumentou em suma que “… tendo em conta o valor do imóvel, o facto de se tratar de um bem comum e a situação pessoal e financeira de cada uma das partes (…), afigura-se adequado estabelecer o montante de € 100,00 (cem euros) mensais, como contrapartida da utilização exclusiva do bem comum”.

82. Face aos fundamentos expostos no ponto anterior e invocados, no douto acórdão a quo, para a alteração da decisão recorrida no que se refere ao valor da renda estabelecido, entende o requente que estes são salvo melhor entendimento e com o devido respeito, no mínimo inconsistentes e feridos de erro de interpretação, de determinação ou aplicação do direito, dentro do espirito do legislador.

83. Com efeito, na apreciação da necessidade de cada um dos cônjuges, baseou-se a Relação na diferença pessoal e financeira entre os litigantes, como argumento invocado para fixação do valor de renda aludido supra, pelo usufruto da casa de morada de família pela recorrida.

84. Neste âmbito, importa referir que o art.º 1793.º do CC, elenca a título exemplificativo e não taxativo, os critérios a ter em conta na atribuição, a favor de um dos cônjuges, do direito a arrendamento da casa de morada de família.

85. O preceito fixo, pois, sublinhe-se, os índices de referência quanto à atribuição da casa morada de família, designadamente a necessidade de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos.

86. Note-se, que nesta sede releva a inexistência de interesse que se deva acautelar, por parte do filho do ex-casal, que é maior há 18 anos a esta parte, autónomo e economicamente independente.

87. Neste âmbito importa uma vez mais referir que, salvo melhor opinião, a Recorrida não se esforça mais em para alcançar um emprego com os devidos descontos, ou emissão de recibos, para fazer face aos seus gastos pessoais, preferindo assim e não obstante, continuar a depender de terceiros.

88. Com efeito, apesar de ter esforçado em demonstrar junto do tribunal de primeira instância, estar ausente, “formalmente”, do mercado de trabalho com contrato de trabalho, o certo é que a Recorrida não conseguiu provar que se encontra incapacitada/limitada para trabalhar.

89. Pese embora seja do conhecimento geral a falta/dificuldade de obtenção de emprego que actualmente se vive em Portugal, o certo é que a recorrida tem alcançado desenvolver actividades profissionais sem contrato de trabalho, no âmbito das limpezas, desde de 2007 (data em que o único filho do casal completou 18 anos de idade) pelo menos à uns anos a  esta parte, em várias casas e deste facto, o tribunal de primeira instância deu conta  convenceu-se que assim sucedesse para o futuro, tendo em conta os esforços que, certamente a recorrida iria continuar a realizar para angariar rendimentos próprios para fazer face aos seus gastos e, assim teria sido mais persistente se não tivesse sido casada com o recorrido.

90. Pelo que, entende o ora, Recorrente que a Recorrida, querendo, reúne todas as condições necessárias para alcançar, meios económicos próprios, mediante o trabalho de limpezas que vem realizando em casas desde de 2007 e não através do dito conforto a que está habituada à custa do primeiro (e do seu único filho) e do quais insiste em não abdicar, antes sim protelar os esforços de terceiros para com ela e sublinhe-se foi assim “IN LOCO” que o tribunal de primeira instância aferiu e seguiu o espirito do legislador, nos termos dos artºs. artºs. 1413º, CPC, 1105º. e 1793º. do C.C., por conjugação do artº. 987º do Cód. Proc. Civil.

91. A decisão do tribunal de 2ª instância, está ferida de erro de interpretação e aplicação do direito, permitindo à recorrida continuar a viver, confortavelmente, às expensas do seu ex-marido, obrigando o recorrente, por um valor irrisório, a ver-se privado de usufruir de um bem que também lhe pertence (negrito nosso), do qual nem sequer pôde nem pode retirar os seus pertences pessoais por lhe ter sido vedado o acesso ao mesmo.

92. Acresce que o Recorrente, não tem conhecimento se a Recorrente permanece sozinha na casa morada de família, se partilha este espaço em troca de valores monetários - bem comum dos ex-cônjuges com outra(s) pessoa(s), - podendo até estar a obter benefícios económicos.

93. Este facto assim praticado, refira-se, é abusivo, é injusto e nada equitativo!

94. Gera um consentimento e permissão à ora recorrida manter a conduta que vem tendo sobre o aqui recorrente que deve “sustentá-la”, privando-se de retomar a sua vida e salvo melhores e doutas considerações, de forma idêntica para a recorrida que teima em não querer mudar e nos dias de hoje só tal seria aceitável se existissem menores de idade; violando assim, o espírito do legislador, nos termos dos artºs. 1413º, CPC, 1105º. e 1793º. do C.C., por conjugação do artº. 987º do Cód. Proc. Civil.

95. Contrariamente à posição defendida pelo acórdão a quo, e segundo o acórdão do STJ de 17/12/2019 proferido no processo n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1 a diferença da premência da necessidade da casa de morada de família não se afere, somente, pela diferença, qualquer que seja o valor, dos rendimentos das partes, relevando antes a verificação de que a satisfação da necessidade de habitação poderá ser mais facilmente conseguida por uma das partes.

96. Aqui importa referir que a mãe do Recorrente, proprietária da casa na qual este procurou refúgio, supostamente temporário, há cerca de quatro anos (vide ponto 15 dos factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância), não é obrigada a mantê-lo na sua propriedade, sendo que, o recorrente tem beneficiado e dependido da sua tolerância até aos dias de hoje, que sem dúvida não será eterna.

97. Certamente que a Recorrida, à semelhança do Recorrente, tem igualmente familiares e vivos que, estão e estiveram durante todo este tempo, predispostos a serem úteis e prestáveis, para a auxiliar neste ponto, designadamente o próprio filho do casal que, amavelmente, vem apoiando a sua mãe.

98. Contudo é também é evidente que a Recorrida, mantém esta postura de acentuar economicamente o recorrente há pelo menos quatro anos a esta parte, por forma a penalizá-lo de algo que ambos tiveram “a sua parcela de culpa, por terem deixado esfriar a relação – do Casal.

99. Em suma, no que respeita ao recorrente, não dispõe este de qualquer outra residência alternativa, situação análoga alegada pela recorrida, sendo que a hipótese de arrendamento implicará sempre um encargo adicional economicamente insuportável, face aos encargos já supra elencados e provados.

100. Encargos estes que não poderão ser suportados através do pagamento de uns meros 100,00 € (cem euros) mensais, ao contrário da Recorrida que claramente foi beneficiada pela decisão da Relação com grande prejuízo para o ora recorrente, violando assim, o espírito do legislador, face aos dos artºs. 1413º, CPC, 1105º. e 1793º. do C.C., por conjugação do artº. 987º do Cód. Proc. Civil.

101. Atendendo aos rendimentos e despesas do recorrente e os preços do mercado de arrendamento atualmente a serem praticados, conclui-se que muito dificilmente conseguirá, pelos seus próprios meios (tendo em conta a sua carga de despesas já provadas nos autos) satisfazer a sua necessidade de habitação própria e ainda fazer face aos custos mensais fixos associados à mensalidade de aquisição do bem imóvel do ex-casal, seguros associados e respetivo pagamento de IMI, que, sublinhando-se uma vez mais, têm estado a ser suportados exclusivamente pelo Recorrente.

102. Aos encargos acima referidos, soma-se a pensão de alimentos, a pagar pelo Recorrente à Recorrida, no mesmo valor (375,87€) da renda fixada, pela decisão da 1.ª instância, como contrapartida da atribuição da casa morada de família à Recorrente, não seguindo este espírito do legislador é beneficiada a ora recorrida e verifica-se a violação por erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito, nos termos dos artºs. 1413º, CPC, 1105º. e 1793º. do C.C., por conjugação do artº. 987º do Cód. Proc. Civil.

103. Face às dificuldades alegadas pela Recorrida, e a ausência de habitação alternativa, não alcança o ora recorrente o motivo pelo qual, a recorrida sendo coproprietária do imóvel em questão e sabendo que é sua pretensão a divisão do bem comum de modo igualitário, fazendo o necessário encontro de contas junto da entidade bancária e entre as partes, ou seja, tendo a possibilidade de usufruir dos eventuais frutos da venda do mesmo, escolhe/pretende não  fazer (cfr. Doc. nº 1, Doc. n.º 2, Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4) e que aqui se deixa reproduzido para todos os efeitos e termos legais.

104. Parece óbvio, salvo melhor opinião e com o devido respeito, que ao recusar a partilha do bem comum de forma extrajudicial, que lhe permitiria viver de acordo com as suas possibilidades económicas e mais “um pézinho de meia”, pretende a recorrida continuar a viver “ad eterno” nesta situação de indivisão com o recorrente, tolhendo o direito de propriedade do ora recorrente, nas suas dimensões de uso e fruição.

105. Posição que veio a ser reforçada pela decisão da relação ….., que salvo melhores e doutas considerações, é totalmente descabida de fundamento legal por erro de interpretação e aplicação do direito, como aliás melhor ficou supra aduzido.

106. Com efeito o acórdão do tribunal de 2.ª instância, beneficia, inapropriadamente, a Recorrida que fica com o direito de usufruir da casa que é de ambos, sem compensar, devidamente, o seu ex-marido e coproprietário do bem e/ou incentivar a recorrida a “fazer-se à vida”.

107. O recorrente, vê-se privado do uso e fruição de um bem que também é seu pela quantia irrisória de uns míseros €100,00 (cem euros) mensais, sendo que, além das suas despesas pessoais e da pensão de alimentos a pagar à recorrida, por falta de esforço e vontade desta última, permanece obrigado a liquidar sozinho o empréstimo bancário, contraído por ambos os litigantes, respetivos seguros e IMI e seguros inerentes do imóvel hipotecado, não obstante as suas próprias despesas.

108. Salienta-se que a decisão ora recorrida e proferida pela Relação é contrária à posição assumida no acórdão do TRG de 19/01/2012, ou seja, não segue o espírito do nosso legislador, e no qual se estabeleceu que o montante da renda a pagar por um dos ex-cônjuges ao outro deve ser fixado na ponderação da situação económica de ambos os cônjuges e não apenas daquele a quem foi atribuído o direito ao arrendamento.

109. A este entendimento acresce outros entendimentos da jurisprudência “o tribunal não tem de ter em conta a situação patrimonial do interessado, podendo dar de arrendamento nas condições mais vantajosas de renda, pois que “só toma de arrendamento quem quer” - cfr. Os Acórdãos da Relação de Lisboa de 26/02/1982 in “Colectânea de Jurisprudência”, Tomo 2, p. 151, e de 09/11/1993, in “Colectânea de Jurisprudência”, Tomo 5, p. 120.”, este entendimento, serve de facto para contextos similares aos da aqui recorrida para evitar condutas repreensíveis.

110. Importa ainda referir que o Tribunal de 2.ª instância “[…] entende que na determinação das condições do arrendamento pelo tribunal ao abrigo do disposto no art.º 1793.º , n.º 2 do CC, e em particular na fixação da renda, o juiz (…) não pode deixar de ter em conta as circunstâncias do caso concreto e a situação das partes.”

111. No que toca a esta posição, entendemos igualmente existir um erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito, pois ao ser fixado à ex-cônjuge mulher pensão de alimentos no mesmo valor (375,87€) da renda estabelecido como contrapartida pela utilização exclusiva do bem comum, esta reúne agora, volvidos quase 4 anos, condições de assumir os custos associados ao bem imóvel que usa, que até à presente e data vêm sendo liquidado pelo seu ex-marido, ou seja, a recorrida tem usufruído do bem comum mas de forma “PRO BONO”.

112.    A este propósito, transcrevermos parte da douta decisão do tribunal de 1ª instância que refere que no caso em apreço “importa, pois, encontrar aqui, em equidade, uma justiça de reparação familiar, sem sacrificar os interesses de nenhuma das partes.”

113.    Baseou-se a Relação na diferença pessoal e financeira entre os litigantes, como argumento invocado para fixação do valor de renda aludido supra, pelo usufruto da casa de morada de família pela recorrida.

114.    Salienta-se que o art.º 1793.º do CC, elenca a título exemplificativo e não taxativo, os critérios a ter em conta na atribuição, a favor de um dos cônjuges, do direito ao arrendamento da casa de morada de família, designadamente a necessidade de cada um dos destes e o interesse dos filhos existentes. d) Neste âmbito, importa referir que não é verdade que a Recorrida tenha dificuldades, presentemente, para encontrar trabalho, resultantes da circunstância de ter estado fora do mercado de trabalho.

115.    O que ficou provado em 1.ª instância é que a Recorrida, ainda que por opção do casal, não esteve inserida no mercado de trabalho.

116.    Esta tem capacidades físicas e psicológicas que lhe permitem trabalhar, uma vez que não é menor de idade, não é incapaz e/ou não é inimputável, simplesmente não procura trabalho pois dele não necessita para sobreviver, optando por depender de terceiros.

117.    Acresce que segundo o acórdão do STJ de 17/12/2019 proferido no processo n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1 a diferença da premência da necessidade da casa de morada de família não se afere, somente, pela diferença, qualquer que seja o valor, dos rendimentos das partes.

118.    Pelo que não poderá valer o argumento de que a “… situação do Requerido não pode deixar de reconhecer-se como mais folgada, pois o que aqui releva, salvo melhor entendimento e com o devido respeito, não é a possibilidade das partes”.

119.    De acordo com a decisão do STJ referida na al. g) do presente recurso, releva antes a verificação de que a satisfação da necessidade de habitação poderá ser mais facilmente conseguida por uma das partes.

120.    No que respeita ao recorrente, não dispõe este de qualquer outra residência alternativa, situação análoga alegada pela recorrida.

121.    A hipótese de arrendamento implicará sempre um encargo adicional economicamente insuportável, que o recorrente não poderá fazer face através do pagamento de uns meros 100,00 € (cem euros) mensais, ao contrário da Recorrida que claramente foi beneficiada pela decisão da Relação.

122.     Como é consabido, o recorrente pretende a venda e partilha do bem comum, visando liquidar os empréstimos bancários cujas hipotecas oneram aquele imóvel.

123.    Salvo melhor e douto entendimento, a Relação pareceu olvidar o princípio da equidade, sacrificando o interesse do recorrente em prole da Recorrida, mas certamente por erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito.

 Face a todo o exposto, resulta inegável, salvo melhores e doutas considerações, que o tribunal “ad quo”, não respeitou, por erro de interpretação ou aplicação do direito, os critérios normativos plasmados nos artºs. 1413º, CPC, 1105º. e 1793º. do C.C., por conjugação do artº. 987º do Cód. Proc. Civil, violando inclusive os artº. 12º., 13º., 18º., 20º., 36º., 47º., 58º., 63º. Nº. 3, 65º., e 71º., do CRP, existindo assim nulidades no Acórdão proferido pelo douto Tribunal da Relação ….., pelo que, esta questão deve ser conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, visto que este não está impedido de sindicar a decisão adotada no acórdão do Tribunal da Relação ….. que não seguiu o espírito do legislador.

Nestes termos, deve ser julgado procedente o presente recurso interposto pelo ora recorrente e nesta medida, revogada a decisão recorrida, mantendo na integra a sentença proferida pelo douto tribunal de primeira instância por razões de equidade, justiça de reparação familiar, sem sacrificar os interesses de nenhuma das partes.

O Recorrido respondeu pugnando pela improcedência do recurso.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. AA nasceu no dia ... de Janeiro de 1966.

2. BB nasceu no dia ... de Fevereiro de 1965.

3. AA e BB contraíram casamento católico, um com o outro, com convenção antenupcial, no dia … de Outubro de 1987, sob o regime de comunhão geral de bens.

4. O casamento aludido em 3. foi dissolvido por decisão proferida e transitada em julgado em 22 de Janeiro de 2019 no âmbito dos autos principais.

5. Desde a constância do matrimónio até à data de Novembro de 2017, em que o Requerido saiu de casa, ambos viviam na casa de morada de família, sita na Rua ................., …........., cuja aquisição teve por base um empréstimo bancário, contraído por ambos.

6. Até à saída da casa morada de família, em … de Novembro de 2017, foi o marido que sustentou a requerente.

7. Actualmente é o filho de ambos, CC, que sustenta a mãe.

8. A requerente desde os dois anos de idade do filho, CC (cf. nascido no dia ...11.1989), que não exerce qualquer profissão, tendo pontualmente prestado alguns serviços de limpeza em condomínios.

9. Por opção do casal, e desde os dois anos de idade do filho CC, a requerente dedicou-se às lides domésticas e à maternidade.

10. A requerente actualmente está desempregada, fazendo limpezas nas partes comuns do condomínio onde vive, servindo tal actividade para pagar o valor mensal do condomínio.

11. A Requerente apenas tem a 4ª classe de escolaridade, não tem qualquer experiência profissional, e está fora do mercado de trabalho há 28 anos.

12. A Requerente não tem carta de condução.

13. A requerente não tem quaisquer conhecimentos informáticos, nem qualquer experiência profissional em outra área, a não ser limpezas.

14. A Requerente tem procurado trabalho na área das limpezas, mas a resposta tem sido sempre negativa.

15. O requerido foi viver para a casa da mãe em Novembro de 2017.

16. O requerido aufere um rendimento mensal líquido no valor aproximado de € 1.800,00.

17. O requerido tem as seguintes despesas mensais fixas: SMAS - 16,81€; EDP - 34,33€ Gás - 25.00€; Despesa com PPR da Requerente - 50,00€; Seguro de Vida do Crédito de habitação da casa de morada de família - 76,84€; Despesa com o Credito Automóvel - 189,40€; Despesa com passe para transportar-se até ao seu local de trabalho - 59,95€; Seguro do Imóvel do Credito de habitação - 11,81€; Prestação mensal do Credito para Habitação da Casa de Morada de família -265,77€; Despesa/pagamento mensal de parte do valor do lar onde a mãe reside -250,00€; Despesa com o Imposto de Circulação - € 134,98; Despesa com o IMI da casa de Morada de Família, onde a Requerente mantem a residência - € 233,40; seguro do veículo - valor anual € 279,12.

18. O requerido teve despesas no dia 28.09.2018 (alimentação, produtos de higiene e domésticos) no montante de 93,12€; no dia 30.09.2018 (combustível) no montante de 40,00€; no dia 28.09.2018 (Despesas com o seu almoço no trabalho) no montante de 9.00€.

19. A requerente no ano de 2018 no Condomínio da Rua ........., .......... auferiu a quantia de € 925,00.

20. A requerente já não trabalha no Condomínio da Rua ........., ...........

21. A requerente quando ia prestar serviços de limpeza à D. DD auferia € 20,00 dia (€ 5,00 por hora x 4 horas). (cf. fls. 123).

22. O requerido vive maritalmente com uma companheira, que está integrada no mercado de trabalho.

23. A fração autónoma a que alude o ponto 5 dos factos provados foi adquirido pela Requerente e pelo Requerido em 15/02/2002 pelo valor de € 88.675,00.

24. O valor patrimonial tributário de tal fração autónoma é o de € 77.800,00.

O direito.

A constituição do direito ao arrendamento previsto no art. 1793º é regulado como processo de jurisdição voluntária no art. 990º do CPC.

Neste tipo de processos, o tribunal, nas providências a tomar, “não está sujeito a critérios de legalidade, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987º do CPC).

O recurso de revista nos processos de jurisdição voluntária sofre a limitação do nº 2 do art. 988º, nos termos do qual “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”

Posto isto, na sequência da notificação prevista no art. 655º do CPC, veio o Recorrente pugnar pela não rejeição do recurso alegando que embora o processo seja de jurisdição voluntária, o tribunal a quo desrespeitou os critérios normativos plasmados no art. 1105º, nº 2 do CCivil, o que torna a decisão sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.

É correcto que a irrecorribilidade para o STJ nos processos de jurisdição voluntária se cinge às resoluções proferidas segundo critérios de oportunidade e oportunidade, mas não quando estão em causa questões de legalidade estrita.

Trata-se de entendimento que vem sendo pacificamente seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. Acórdãos de 25.05.2017, P. 945/13, e de 07.07.2021, P. 51/14.8T8VPA-G.G1. S1, entre outros.)

 

Sobre esta específica questão, o STJ, no seu acórdão de 17.12.2019, P. 4630/17, decidiu que “nos processos de jurisdição voluntária, como é o caso da atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada de família, cabe no   âmbito dos poderes do STJ a apreciação da aplicação e interpretação dos critérios pertinentes para a decisão.”


Estando em causa a alegada “violação dos critérios normativos que resultam “dos arts. 1413º do CPCivil, (trata-se de um manifesto lapso, por o art. 1413º pertencer ao anterior CPC, a que corresponde o actual art. 990º), 1105º e 1793º do CCivil, por conjugação com o art. 987º do CPCivil”, e não uma decisão tomada   com base em critérios de conveniência e oportunidade, é a mesma passível de revista.


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A possibilidade de o tribunal dar de arrendamento a casa de morada de família a um dos cônjuges como um efeito do divórcio está prevista no art. 1793º do Cód. Civil que dispõe o seguinte:

1. Pode o tribunal dar de arrendamento, a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa casa seja comum quer própria do outro, considerando nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.


No caso vertente, em que a casa de morada de família é um bem comum, a Recorrida veio exercer este direito, requerendo que lhe seja atribuído o direito ao arrendamento, o que foi deferido pelas instâncias por decisão que o Recorrente não contesta. Apenas se insurge contra o valor da renda, que o acórdão fixou em €100,00/mês, pugnando para que seja repristinada a decisão da 1ª instância que fixou a renda em €375,87.

No essencial, diz o Recorrente:

- O valor fixado é insuficiente para cobrir os custos com o imóvel, que o Recorrente suporta sozinho (IMI, prestações do empréstimo bancário);

- Não foi ponderado a possibilidade de a Recorrida ter condições para trabalhar e encontrar um emprego estável;

- A decisão é injusta, não equitativa, que não ponderou o facto de o Recorrente estar a pagar à Recorrida, a título de alimentos, uma prestação mensal de €375,87.

Vejamos.


Nos termos do nº 2 do art. 1793º ao tribunal cabe definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges.

“Condições” que são sobretudo as relativas à duração do contrato e valor da renda.


No que tange à fixação da renda prevalece o entendimento de que o valor de mercado apenas deve ser considerado como limite máximo, devendo o montante ser compatível com a situação patrimonial do arrendatário (Nuno Salter Cid, anotação ao art. 1793º do Código Civil, anotado, Livro IV, Coordenação de Clara Sottomayor, e Acórdão do STJ de 18.12.2003, P. 031945).


Como refere aquele Autor, “a não ser assim, comprometer-se-ia, na prática, a salvaguarda das necessidades e interesses que justificam a constituição do arrendamento. Em todo o caso, cumprirá atender a todas as circunstâncias do caso, designadamente ao que for ou tiver sido acordado quanto a alimentos e quanto a estes, sendo devidos, ao que for ou tiver sido fixado quanto à renda. Na verdade, sendo esta de valor inferior ao de mercado, a diferença para menos equivale a uma prestação de alimentos em espécie; e quem assim se vê compelido a prestá-los pode ficar com “meios” a menos face à necessidade de dispor de outra casa para morar.”

Por outro lado,

 E se a casa for bem comum “dos interessados”, ou se estes forem comproprietários dela com quotas iguais, a importância a pagar pelo arrendatário corresponderá a metade do valor que seria fixado se a casa fosse unicamente do outro (cf. Salter Cid, obra citada, pag. 579).

Igualmente, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 3ª edição, pag. 721, referem “não cremos que o tribunal deva fixar a renda, sempre, de acordo com os valores de mercado, desconsiderando a situação profissional dos cônjuges, o que poderia inviabilizar na prática os objectivos da lei.”

No caso dos autos, a matéria de facto nada esclarece quanto ao valor locativo do imóvel, a sua tipologia e estado de conservação, o que impossibilita um juízo sobre se um valor de renda de €200,00 é ou não inferior ao valor de mercado.

O que se sabe é que as condições pessoais da Recorrida revelam uma situação de grande fragilidade: tem 55 anos, há 28 anos que está fora de mercado de trabalho (por opção do casal, a partir dos 2 anos do filho dedicou-se à vida doméstica e à maternidade), são muito limitadas as suas competências profissionais, faz trabalhos de limpeza no condomínio onde reside, e com o que aufere paga a quota do condomínio. Também se provou que tem procurado trabalho nas áreas da limpeza, mas sem resultado.

Respondendo à objecção do Recorrente quando invoca as despesas que está a suportar com o imóvel, disse pertinentemente a Relação:

Estas despesas não são as que resultam da utilização do mesmo pela Requerida, mas antes as que decorrem da aquisição do imóvel por ambas as partes, referindo-se ao pagamento do crédito bancário, dos seguros a ele associados e do IMI, que só na proporção de metade constituem responsabilidade da Requerente, já que se reportam ao direito de propriedade do imóvel que é de ambas as partes.

Estas são por isso despesas próprias também do Requerido, a que o mesmo faz face por ser igualmente proprietário do prédio e como contrapartida do seu direito de propriedade, despesas que, além do mais, não estão a salvo de um encontro futuro de contas entre as partes, designadamente quando da venda ou da partilha deste bem que é um bem comum.

Também é preciso ter em conta um fator objetivo, que a decisão recorrida parece ter esquecido. É que a casa de morada de família é um bem comum do casal e não um bem próprio do Requerido, já que os então cônjuges não só eram casados sob o regime da comunhão geral de bens, como a adquiriram o imóvel em conjunto, como resulta da escritura de compra e venda junta aos autos, pelo que numa parte a Requerente está a usufruir de um bem que também é seu.”

Subscrevemos inteiramente estas considerações, nada havendo de útil a acrescentar.

Não se mostra que a decisão recorrida tenha desrespeitado “os critérios normativos dos arts. 990º do CPC e 1105º e 1793º do CCivil”, motivo por que se confirma.

Sumário:

I - O processo para atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CCivil, é de natureza voluntária e as decisões nele proferidas, com base em critérios de conveniência e oportunidade não são passíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça por força do disposto no nº 2 do art. 998º do CPC;

II- Todavia, se no recurso se questionar a aplicação de pressupostos normativos, como os atinentes aos critérios de fixação da renda, o recurso de revista é admissível;

III – No arrendamento previsto no art. 1793º do CCivil, ao fixar o valor da renda o tribunal deve atender sobretudo à situação patrimonial do arrendatário e não ao valor locativo do imóvel.


Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 17.11.2021


Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva