Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5146/10.4TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: FACTO CONCLUSIVO
QUALIFICAÇÃO
CONTRATO
CONTRATO DE INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE MEDIAÇÃO
CONTRATO ATÍPICO
MANDATO CIVIL
Data do Acordão: 09/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS ESPECIAIS DO COMÉRCIO/ ACTIVIDADE DE MEDIAÇÃO MOBILIÁRIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO DECLARATIVA / RECURSOS.
Doutrina:
- Abel Simões Freire, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», CJ/STJ, Ano XI, Tomo III/2003, pp. 5-7.
- Abrantes Geraldes, Recursos, in Debate, A Reforma do Processo Civil 2012, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, p.122; Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, 1999, p. 147.
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 206-207, 212.
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- Castanheira Neves, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», RLJ, Ano 129, pp.162-167.
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- Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 419, n.º 644.
- Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 433.
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 637-638.
- Manuel Januário Costa Gomes, «Contrato de Mandato», in Direito das Obrigações (sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, Lisboa, 1991, p. 268
- Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 3.ª edição revista, actualizada e aumentada, Almedina, Coimbra, 2012, p. 656; «Do contrato de mediação», O Direito, Ano 139.º, 2007, p. 545; Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 754, 755.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 388.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 442, 446-447.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Contrato Atípicos, colecção teses, Almedina, 1995, pp. 117-160, 164-165; «Mandato Bancário», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume II, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 132-133.
- Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 223, Volume II (Artigos 762.º a 1250º), 4.ª edição revista a actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 785.
- Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 312.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, 219.º, 236.º, 237.º, 405.º, 1156.º, 1158.º, N.º1.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGOS 2.º, 13.º, N.º2, 231.º, 232.º, 463.º, N.º5.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO DO DL N.º 303/2007, DE 31-8: - ARTIGOS 646.º, N.º4, 712.º.
CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS (CVM): - ARTIGOS 4.º, 30.º, 289.º, 290.º, N.º 1, AL. A) E Nº 2, 292.º, B), 293.º, 294.º -A A 294.º-D, 321.º, N.º1.
DECRETO-LEI N.º 211/2004, DE 20-8: - ARTIGOS 2.º, 3.º, 19.º, N.º1 E N.º 8.
DECRETO-LEI N.º 252/2003, DE 17 DE OUTUBRO (AGORA REVOGADO PELO DECRETO-LEI 63-A/2013, DE 10 DE MAIO, DESIGNADO POR NRJOIC): - ARTIGO 29.º.
DECRETO-LEI N.º 298/92, DE 31 DE DEZEMBRO, COM AS ALTERAÇÕES SUBSEQUENTES: - ARTIGO 2.º.
LEI N.º 15/2013, DE 08-02: - ARTIGOS 2.º, 3.º, 16.º, N.º 1, 19.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13/12/1983, BMJ 332, 437.
-DE 23/09/1997, PROCESSO N.º 151/97.
-DE 31/03/1998, BMJ N.º 475, 1998, PP. 680-688; STJ, 12/12/2013, PROCESSO N.º 135/11.4TVPRT.G1.S1; STJ 16/11/2000, PROCESSO 0131229; 28/05/2002, PROCESSO 02B1609.
-DE 25/03/2010, PROCESSO N.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1.
-DE 06/12/2012, PROCESSO N.º 370001/09.6YIPRT.L1.S1 - 7.ª SECÇÃO.
Jurisprudência Internacional:

Sumário :
I - As respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e equiparam-se às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados.

II - O contrato é qualificado através de um juízo de correspondência gradual a este ou àquele tipo contratual, implicando assim um processo de relacionação entre a regulação contratual subjectiva estipulada e o ordenamento legal objectivo onde o catálogo dos tipos contratuais legais se contém.

III - Contratos de intermediação financeira são aqueles negócios jurídicos celebrados entre um intermediário financeiro e um cliente (investidor) relativos à prestação de actividades de intermediação financeira. Representam “contratos de empresa” na medida em que são quase exclusivamente celebrados por empresas constituídas sob a forma de instituições de crédito, de empresas de investimento e de sociedades gestoras de fundos de investimento mobiliário.

IV - Ao abrigo da liberdade contratual (art. 405.º, n.º 1 do Código Civil), pode ser celebrado verbalmente um contrato de mediação atípico, traduzido na obrigação de uma das partes encontrar um interessado para a celebração com o comitente de um contrato definitivo, e puramente civil, por não ser o mediador um comerciante nem agir no exercício de actividade profissional, mas como um mediador esporádico e ocasional.

V - A mediação é, por essência, uma prestação de serviço, sendo regulada, na falta de um modelo regulativo típico, pelo regime do mandato, por via do artigo 1156.º do Código Civil.

VI - Não tendo o autor ilidido a presunção legal de gratuitidade do mandato civil (art. 1158.º, n.º 1 do Código Civil), demonstrando que os actos que integram a matéria de facto foram praticados no exercício da sua profissão, terá de se concluir que este não tem direito a qualquer remuneração.
Decisão Texto Integral:

      I – Relatório

      AA, residente na Avenida ..., …, ..., Lote ..., ..., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra:

      1.º BB, residente na Rua de ..., N.° …, ….° …, ...;

      2.º CC, residente na Avenida ..., N.° …, em ...;

      3.º DD, residente Avenida …, N.° …, ….° …, em ...;

      4.º EE, residente Rua ..., N° …, Bloco …° Dt°, Condomínio FF.

        Nessa acção, o autor pede a condenação dos réus no pagamento da quantia de €1.153,000,00, acrescida de juros de mora ou, subsidiariamente, daquela que for devida segundo as regras previstas no n.º 2 do artigo 1158.º do Código Civil.

      Fundamentou o autor, no essencial, esta sua pretensão da seguinte forma:

      1. No dia 17 de Julho de 2007, o GG, na altura em que o seu conselho de administração era por si presidido, celebrou um contrato com a 2.ª ré, representada pelo 1.º réu, obrigando-se a prestar assessoria a uma operação de alienação da sua participação no capital social do "Grupo HH".

      2. Nesse âmbito, o GG obrigou-se a preparar informação a apresentar aos interessados, à avaliação daquele Grupo, a identificar e seleccionar potenciais interessados, contactos com os mesmos, negociação de propostas e apoio na elaboração do contrato final.

      3. Foram acordados honorários de 30.000,00 euros pela estruturação da operação e 2% do "equity value" subjacente à operação, na proporção do capital adquirido, com um mínimo de 1.000.000,00 de euros.

      4. Em Novembro de 2008, o autor deixou de exercer as referidas funções no GG, e mantinha boas relações com os accionistas do Grupo HH, pelo que, no dia 28 desse mês, celebrou com os réus um acordo verbal, nos termos do qual passou a assumir as obrigações que anteriormente recaíam sobre o GG, bem como os réus aceitaram cumprir para com o autor nos termos que constavam do contrato celebrado com este banco.

      5. O autor realizou diversos contactos de intermediação e negociações, que descreveu, no cumprimento desse acordo verbal, em consequência das quais, no dia 15.02.2009, os sócios do Grupo HH chegaram a um acordo (contrato-promessa) que permitia aos réus venderem as suas participações pelo montante de 56.150.000,00 euros, na condição de os sócios compradores conseguirem obter as condições financeiras necessárias nos 3 meses seguintes.

      6. Não obstante as diligências que o autor continuou a manter, essas condições não foram reunidas dentro daquele prazo, mas, tendo-se mantido o interesse de todos, no dia 07 de Agosto de 2009, acabaram por ser celebrados os contratos de compra e venda, pelo preço acima indicado.

      7. Uma vez que os réus se recusam a pagar a remuneração acordada, o autor, na presente acção, pede a sua condenação no pagamento da mesma, no montante de 1.153.000,00 euros, acrescida de juros de mora ou, subsidiariamente, daquela que for considerada devida segundo as regras previstas no n.º 2 do artigo 1158.º do CC.

      Citados, os réus apresentaram contestação, invocando que:

      1. O acordo celebrado com o GG foi subscrito apenas pela 2.ª ré, que detinha cerca de 30% do capital social daquele Grupo, embora com representação pelo 1.º réu, sendo que os 3.º e 4.º réus até desconheciam a existência desse acordo.

      2. Os réus negam que tenham celebrado qualquer acordo com o autor, até porque um contrato com o conteúdo alegado por este sempre seria reduzido a escrito, para além de que o autor, em nome individual, nunca teria condições para assumir o conjunto de obrigações a que o GG se vinculou, esquecendo-se, também, que a 2.ª ré pagou ao Banco os 30.000,00 euros previstos no contrato.

      3. O 1.º réu manteve contactos frequentes com o autor sobre assuntos do GG, tendo mesmo integrado o conselho de administração da Privado Holding e, numa conversa, comunicou-lhe a situação de litígio existente entre a 2.ª ré e os restantes accionistas da HH, ocasião em que o autor lhe referiu que iria tentar interceder junto destes accionistas, com os quais mantinha boas relações, no sentido de se encontrar uma solução para o diferendo.

      4. O que iria fazer pela amizade que os ligava e como forma de compensar as perdas muito elevadas sofridas pela 2.ª ré em virtude de investimentos feitos no GG.

      5. Embora o autor tenha de facto mantido alguns dos contactos que alega, quer o contrato-promessa de Fevereiro, quer os contratos-promessa de Agosto - que, de resto, são independentes entre si e nem sequer foram subscritos pelas mesmas partes -, resultaram de aturadas negociações mantidas entre as partes e os respectivos advogados.

      Os réus, para além de entenderem que não assiste nenhum direito do autor a receber as quantias peticionadas, pediram a sua condenação como litigante de má-fé, em multa e indemnização.

      Notificado, o autor apresentou articulado de réplica no qual reduziu o pedido para € 1.123.000,00 e juros de mora, redução que foi admitida.

      Foi proferido o despacho saneador e realizada a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória.

      Foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, constando do dispositivo da sentença o seguinte:

       

      "Nestes termos e com os fundamentos mencionados, julga-se a acção parcialmente procedente por provada e condenam-se os réus a pagar ao autor, na proporção do valor das participações vendidas, a remuneração que se vier a apurar em liquidação ulterior, acrescida de juros de mora à taxa legal, a partir dessa fixação até pagamento».

      Inconformados com o assim decidido, os Réus interpuseram recurso de apelação.

      Por acórdão datado de 10 de Outubro de 2013, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida, absolvendo os réus/apelantes do pedido em que foram condenados.

      Inconformado, recorre o Autor para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando, na sua alegação de recurso, as conclusões exaradas a fls. 1110 a 1115 e que aqui se consideram integralmente reproduzidas.

       

      Sabido que, de acordo com o disposto no artigo 635.º, 637.º e 639.º do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a conhecer são as seguintes:

      I) Poderes do Tribunal da Relação para eliminar expressões conclusivas do facto provado n.º 42;

      II) Qualificação jurídica do acordo entre o Recorrente e os Recorridos.

      Os Recorridos apresentaram contra-alegações de revista, em que pugnam pela manutenção do acórdão recorrido e pela absolvição dos réus do pedido.

      Colhidos os vistos, cumpre decidir.

      II – Fundamentação de facto

      Foram dados como provados, pelas instâncias, os seguintes factos:

      1. O A. foi o fundador do Banco GG, S.A., tendo exercido o cargo de Presidente do seu Conselho de Administração até 24 de Novembro de 2008, data em que, na sequência da intervenção do Banco de Portugal no GG, renunciou a esse cargo - alínea A).

      2. Até 7 de Agosto de 2009, a 2.ª R. foi proprietária dos seguintes activos em sociedades do denominado Grupo HH: - 441.252 acções ao portador, no valor nominal de € 5,00 cada, representativas de 30% do capital social da HH, II, S.A.; -15.750 acções nominativas, no valor nominal de € 5,00 cada, representativas de 21% do capital social da HH Gest, S.A.; - 6.000 acções ao portador, no valor nominal de € 5,00 cada, representativas de 3% do capital social da JJ, S.A.; - 31.800 acções ao portador, no valor nominal de € 5,00 cada, representativas de 15,9% do capital social da KK, S.A.; -12.000 acções ao portador, no valor nominal de € 5,0 cada, representativas de 5% do capital social da LL, S.A.; -1 quota, no valor nominal de € 14.963,94, representativa de 10% do capital social da MM, Lda. (em comunhão com os demais Réus); -140.4... unidades de participação, no valor nominal de € 4,988 cada, do Fundo de Investimento Imobiliário HH - alínea B).

      3. Dentro do Grupo HH, os vários accionistas detinham as seguintes posições relativas: a) NN - 40%; b) 2.ª R. - 30%; c) OO e PP -15% cada, perfazendo 30% - alínea E).

      4. Até àquela data, cada um dos demais RR. foi titular de 28.083 unidades de participação, no valor nominal de € 4,988 cada, do Fundo de Investimento Imobiliário HH e eram titulares de uma quota no valor nominal de € 14 963,94, na sociedade MM, Lda, em comunhão, na sequência do óbito de QQ - alínea C).

      5. No ano de 2005 eclodiu um conflito entre a 2.ª R. e os demais accionistas das sociedades do "Grupo HH", do qual resultaram dezenas de processos, pendentes nos Tribunais judiciais e arbitrais - alínea F).

      6. Por força das relações que mantinha com os interessados, o autor tinha conhecimento dessa situação de litígio - resposta ao n.° 44 da BI.

      7. O interesse da família RR em alienar as participações, bem como o acordo com o GG, a seguir mencionado, surgiram em virtude desse litígio - resposta ao n.° 45 da BI.

      8. Nos negócios relacionados com a HH, o 1° réu agia em nome da família, com conhecimento e autorização dos restantes réus, embora quer o autor quer os restantes accionistas soubessem que as decisões finais careciam de ser ratificadas por todos os membros da família - resposta ao n.° 1 da BI.

      9. No dia 17 de Julho de 2007, o GG e a 2.ª ré, que teve aconselhamento jurídico, celebraram o acordo junto aos autos como doc. n.° 2 da PI - resposta aos n°s 2 e 46 da BI.

      10. O Banco obrigou-se, além do mais que consta do contrato, a produzir um "Information Memorandum", com o intuito de permitir ao potencial investidor a tomada de uma decisão acerca do interesse na operação, o que deveria incluir, designadamente, informação relativa a (i) âmbito da transacção, (ii) enquadramento do negócio, (iii) gestão e organização, (iv) análise económico- financeira histórica, (v) principais linhas estratégicas de desenvolvimento do negócio e business plan de suporte às mesmas - resposta aos n°s 3 e 4 da BI.

      11. O Banco vinculou-se também a realizar, entre outras, as seguintes tarefas: identificação e selecção de potenciais entidades a apresentar o "Information Memorandum"; realização de contactos com as entidades seleccionadas no sentido de apresentar a oportunidade de investimento; negociação das condições da operação, que permitissem obter, numa primeira fase, uma proposta não vinculativa e, numa segunda fase, uma proposta vinculativa por parte do potencial investidor; coordenação do processo de due dilligence; apoio na elaboração do contrato e/ou de outro instrumento jurídico que formalizasse a operação - resposta ao n.° 6 da BI.

      12. Os honorários devidos ao GG seriam os seguintes:

      a) 30.000,00 euros pela estruturação da operação, incluindo os trabalhos de avaliação e elaboração de informação para potenciais investidores;

      b) 2% do Equity Value subjacente à operação, na proporção do capital adquirido, com um montante mínimo de € 1.000.000,00 - resposta ao n.° 7 da BI.

      13. Esta última parte dos honorários seria liquidada com a formalização do negócio, entendendo-se para o efeito a celebração de contrato de compra e venda e/ou contrato de opção e/ou qualquer outro instrumento jurídico que as partes viessem a convencionar para a transmissão das acções ou activos da empresa - resposta ao n.° 8 da BI.

      14. O acordo vigoraria até ao dia 30 de Junho de 2008, prorrogável por igual período, salvo denúncia por alguma das partes com 30 dias de antecedência - resposta ao n.° 9 da BI.

      15. Era aceite por todos que a alienação das participações da ré no Grupo HH, a verificar-se, teria lugar em conjunto com as participações, residuais, em nome dos outros réus - resposta ao n.° 5 da BI.

      16. O GG e a 2.ª ré acordaram depois, em 01 de Julho de 2008, que seria oportuno explorar a possibilidade de estruturar uma operação que permitisse a obtenção de uma posição maioritária no Grupo HH, prévia a uma eventual alienação a terceiro, e que essa posição maioritária seria obtida através da aquisição da participação financeira e créditos da 2.ª ré e da participação financeira (total ou parcial) e créditos dos accionistas OO e SS, por parte de um veículo a constituir pelo Grupo Privado Holding, designado "TT" - resposta ao n.° 10 da BI.

      17. Vinculando-se o Banco a iniciar negociações junto dos accionistas UU - resposta ao n.° 11 da BI.

      18. Pelos trabalhos de assessoria na estruturação e montagem da operação, incluindo a análise económico-financeira e condução do processo negocial, a TT obrigou-se a pagar ao GG uma comissão no valor correspondente a 2% sobre o valor de aquisição da participação financeira e créditos accionistas à accionista RR e aos accionistas UU, com o mínimo de dois milhões de euros - resposta ao n.° 12 da BI.

      19. Em cumprimento desse acordo, no dia 7 de Julho de 2008, o GG enviou uma missiva ao Dr. VV, na qualidade de representante dos Accionistas UU, na qual apresentou uma "proposta indicativa de aquisição da totalidade das participações detidas, directa e indirectamente, pelos Accionistas no Grupo HH, incluindo Créditos Accionistas" - resposta ao n.° 13 da BI.

      20. No dia seguinte, o referido Mandatário remeteu uma carta ao GG na qual esclareceu que não representava os interesses do Sr. OO em qualquer assunto, designadamente no Grupo HH, e informou que iria abster-se de dar seguimento à proposta apresentada pelo GG porquanto a mesma visava a participação conjunta da sua Cliente (PP) e do Sr. OO - resposta ao n.° 14 da BI.

      21. O GG não prosseguiu com as diligências antes referidas, tendo entrado na situação de crise que se tornou pública - resposta ao n.° 15 da BI.

      22. O autor tinha boas relações com os accionistas da HH, em especial com NN - resposta ao n.° 16 da BI.

      23. No contexto da relação de amizade existente entre o 1.º R. e o A., estes mantiveram diversos contactos durante o ano de 2008 e até inícios de 2009 - alínea G) e resposta ao n.° 43.

      24. Em data concretamente não apurada, situada entre os finais do mês de Novembro e os inícios de Dezembro de 2008, o autor ofereceu-se ao 1° réu para contactar o sócio da HH, NN, no sentido de apurar da disponibilidade deste para a compra - para si ou com outros sócios - da participação da família RR, oferecimento que aquele aceitou - resposta ao n.° 17 da BI.

      25. A posição do 1° réu que acaba de ser referida, obteve a concordância dos restantes réus - resposta ao n.° 19 da BI.

      26. Na sequência, e por volta daquela data, o autor contactou o referido NN, que se mostrou interessado em estabelecer negociações naquele sentido - resposta ao n.° 20° da BI.

      27. Em virtude da situação de litigiosidade ser crescente e sem fim à vista, com prejuízo para o Grupo e para todos os accionistas, essa solução ou uma semelhante, já era falada entre os interessados como uma das mais plausíveis, embora na altura, devido ao conflito, com escassas condições de desenvolvimento, se não tem havido a intervenção do autor - resposta ao n.° 20 da BI.

      28. De seguida, no mês de Dezembro de 2008 e nos inícios do mês de Janeiro seguinte, o autor, com vista à aproximação de posições, manteve vários contactos com o primeiro réu e com NN, com os quais discutiu, separadamente, aspectos referentes àquela operação - resposta ao n.° 21° da BI.

      29. E recebia as posições de cada uma das partes envolvidas na negociação, que transmitia à outra parte - resposta ao n.° 22 da BI.

      30. NN, por sua vez, transmitia essas posições aos sócios OO e SS, com os quais tinha relações de confiança, ou aos respectivos advogados  - resposta ao n.° 22 da BI.

      31. Depois de as partes interessadas terem chegado à aproximação de posições sobre alguns aspectos essenciais do acordo, como o preço da venda, NN elaborou a minuta de contrato, cuja cópia foi junta com a petição inicial, que remeteu ao autor por e-mail de 02.01.2009, a fim de este a fazer chegar à família RR,

      para apreciação, o que o mesmo fez, minuta que posteriormente foi discutida pelos réus com os seus advogados - resposta ao n.° 23.

      32. No dia 09 de Janeiro de 2009, o autor convocou uma reunião na HH, em que também participou, onde foram discutidos aspectos relacionados com a concretização do negócio, e em que estiveram presentes os interessados e os advogados que lhes prestavam apoio jurídico, tendo sido acordado que estes iriam trabalhar na elaboração final do contrato-promessa - resposta ao n.° 24 da BI.

      33. Na sequência de tudo isso, bem como de outros contactos entretanto mantidos directamente pelos interessados e respectivos advogados, no dia 15 de Fevereiro de 2009, foi celebrado o contrato-promessa cuja cópia consta de fls. 628 e segs. dos autos - alínea D) e resposta ao n.° 25 da BI.

      34. Anteriormente, por carta de 19.01.2009, e depois da troca de e-mails de fls. 59 (entre o 1° réu e o autor), a ré rescindiu o contrato celebrado com o GG - resposta aos n°s 18 e 47° da BI.

      35. Os restantes réus eram mantidos informados pelo 1° réu dos principais desenvolvimentos dos contactos estabelecidos com NN e com os accionistas UU - resposta ao n.° 34 da BI.

      36. Entre os dias 15 de Fevereiro e 15 de Maio de 2009, o autor manteve contactos telefónicos com o 1° réu e com NN, com finalidade não apurada - resposta ao n.° 35 da BI.

      37. Antes do dia 15 de Maio, NN ainda contactou um dos advogados da família RR, no sentido de ser alargado o prazo de 3 meses, fixado no contrato promessa, para que os promitentes-compradores confirmassem o contrato - resposta ao n.° 63 da BI.

      38. Os promitentes-compradores acabaram por não confirmar o negócio dentro do prazo fixado no contrato-promessa, pelo que este ficou sem efeito - resposta ao n.° 68 da BI.

      39. Depois do dia 15 de Maio de 2009, o autor manteve contactos telefónicos com o 1° réu, com finalidade não apurada e, por mais de uma vez, quando contactava ou encontrava NN, referia-lhe as vantagens do negócio - resposta ao n.° 26 da BI.

      40. Entretanto, o clima de litigiosidade agravava-se e, em meados de 2009, por iniciativa dos interessados ou dos seus advogados, as negociações foram retomadas, entre eles, tendo culminado, no dia 07 de Agosto de 2009, com a celebração dos acordos escritos, através dos quais as participações da família RR no Grupo HH foram alienadas nos termos dos três contratos juntos a fls. 682 e segs. - resposta ao n.° 37 da BI.

      41. A celebração desses contratos exigiu diversas reuniões entre os interessados neles mencionados e os respectivos advogados - resposta ao n.° 71 da BI.

      42. A intervenção do autor antes mencionada contribuiu para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação - resposta ao n.ºs 38 e 75 .º da BI (Facto alterado pelo Tribunal da Relação de Lisboa).

      43. Depois da celebração desses contratos, o autor contactou o 1° réu no sentido de lhe ser paga uma quantia, concretamente não apurada, pelos honorários que considerava serem devidos pela sua intervenção, o que aquele recusou - resposta aos n°s 39° e 40° da BI.

      44. A 2.ª ré realizou investimentos no e através do GG, tal como o 1.º réu, que chegou a pertencer ao respectivo Conselho Consultivo até 2007 - resposta aos n°s 41 e 42 da BI.

      45. Os réus jamais aceitariam celebrar um acordo tal como foi alegado pelo autor (sem prejuízo, portanto, do que se provou), sem previamente consultarem os seus advogados, o que não sucedeu - resposta ao n.° 49 da BI.

      46. O autor não dispunha da organização e do apoio técnico inerentes ao contrato celebrado com o GG - resposta ao n.° 52 da BI.

      47. Em relação a contratos celebrados com instituições como o GG da altura, a remuneração acordada no contrato acima referido sob o n.° 9, embora situada num patamar elevado, está dentro dos valores praticados - resposta ao n.° 76 da BI.

      48. O GG emitiu em nome da ré as facturas juntas com a contestação sob os n°s 2 e 3.

       

      III – Fundamentação de direito

      I) Poderes do Tribunal da Relação para eliminar expressões conclusivas do facto provado n.º 42

      1. No facto provado n.º 42 constava, antes da alteração a que procedeu o Tribunal da Relação, o seguinte:

      «42. A intervenção do autor, antes mencionada, contribuiu de forma muito relevante para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação, sem as quais, na altura, dificilmente se teria chegado à celebração dos contratos referidos no número anterior».

      Após a eliminação das expressões de natureza conclusiva, o facto provado n.º 42 passou a ter a seguinte redacção:

      «42 - A intervenção do autor antes mencionada contribuiu para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação».


      Entendeu o acórdão recorrido que «De acordo com o disposto no artigo 646°, n° 4 do Código de Processo Civil, no julgamento da matéria de facto ter-se-ão por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito. E, conforme tem sido entendimento doutrinário e jurisprudencial esta solução aplicar-se-á, por analogia, às respostas que constituam conclusões de facto, designadamente quando as mesmas têm a virtualidade de, por si só, resolverem questões de direito a que se dirigem - v. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2°, 605­».

      a) Poderes da Relação quanto à alteração da matéria de facto

      A reforma do Código de Processo Civil de 1995 alargou os poderes da Relação no que diz respeito à alteração da matéria de facto, evolução que se acentuou com a Reforma de 2013, ficando claro que os Tribunais da Relação têm autonomia decisória e competência para formar e formular a sua convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis[1].

      Contudo, a Reforma de 2013 revogou o art. 646.º, n.º 4 do CPC, invocado pela acórdão recorrido na fundamentação da alteração ao facto n.º 42.

      Ora, referindo-se o acórdão recorrido à forma como foi elaborada e respondida a base instrutória e sendo a sentença de 1.ª instância e a decisão quanto à matéria de facto de data anterior à da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, não se aplica, para determinar a validade ou invalidade do procedimento do tribunal da 1.ª instância, a nova lei processual, mas a lei vigente à data da prática do acto, portanto, a versão do Código de Processo Civil proveniente da redacção do DL n.º 303/2007, de 31 de Agosto.

      Diga-se ainda que, constituindo a possibilidade de eliminação de factos conclusivos equiparados a questões de direito uma prerrogativa dos tribunais superiores de longa tradição doutrinal e jurisprudencial, esta pode ser exercida mesmo que não esteja prevista expressamente na lei processual.

       

      b) Diferença entre matéria de facto e matéria de direito; factos conclusivos e juízos de facto

      Inerente à questão colocada nos autos, está, também, a questão de saber quais são os limites ao poder do juiz de 1.ª instância na fixação da matéria de facto e qual a distinção entre matéria de facto e de direito, uma das mais controversas da doutrina processualista e que mais problemas de fronteira coloca. 

      O problema da distinção entre questões de facto e de direito tem sido tratado principalmente a propósito da linha de demarcação entre a competência dos tribunais de instância e a competência do Supremo Tribunal de Justiça, a qual está restringida a matéria de direito.

      No caso vertente, coloca-se o problema de saber se o Tribunal de 1.ª instância pode introduzir na matéria de facto juízos de valor ou expressões conclusivas e se a Relação tem poder para eliminar estas expressões da matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância. O Supremo Tribunal de Justiça assume aqui um papel de sindicância sobre os poderes da Relação para alterar factos: admite-se que censure quer a forma como usa esses poderes, ao abrigo do art. 712.º do CPC, quer a sua recusa em usar os poderes atribuídos por esse preceito. Tem-se entendido, também, que está dentro dos poderes cognitivos deste Supremo Tribunal considerar como não escritas as respostas que excedam o âmbito das questões de facto formuladas e verificar se as instâncias exorbitaram ou não nas respostas dadas, embora se admita respostas restritivas ou explicativas.

      Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei»[2].

      Segundo Karl Larenz, a “questão de facto” reporta-se ao que efectivamente aconteceu, enquanto a “questão de direito” se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica[3].

      Existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos[4].

      Há que partir, portanto, da unidade do caso jurídico decidendo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito[5]. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objectivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos[6].

      Contudo, a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos[7]. Continua o autor, afirmando que «tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória»[8].

      Se na resposta a determinado quesito houver matéria de facto e matéria de direito, deve aproveitar-se a decisão na parte relativa à primeira e considerar-se não escrita na parte relativa à segunda.

      Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados[9].

      Para Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437)[10].

      Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”[11].

      Em consequência, devem ser eliminadas da matéria de facto, quer a matéria de direito, quer a conclusão de facto ou expressões conclusivas que traduzam juízos de valor e que excedam a resposta de facto.

      Os juízos ou conclusões de facto situam-se numa zona intermédia entre os puros factos e as questões de direito e encontram-se incluídos na legislação como parte integrante da hipótese legal de numerosas normas jurídicas, podendo nuns casos aproximarem-se mais de uma questão de facto e noutros de uma questão de direito.  

      Como se tem defendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal, «A linha divisória entre matéria de facto e matéria de direito não é fixa, dependendo em larga medida dos termos em que a lide se apresenta. A nível do julgamento da matéria de facto só são proibidos os juízos conclusivos que impliquem a apreciação e valorização de determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-09-1997, Processo n.º 151/97, Relator: Conselheiro Sousa Inês). O que num caso pode ser facto ou juízo de facto, noutro pode ser juízo de direito[12].

      A natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso o facto conclusivo deve ser havido como não escrito, nos termos do art. 646.º, n.º 4 do CPC. No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito.

      c) A solução do caso

       No caso sub iudice, tendo sido eliminadas do facto provado n.º 42, pelo Tribunal da Relação, as expressões «de forma muito relevante» e «sem as quais, na altura, dificilmente se teria chegado à celebração dos contratos referidos no número anterior», entendemos que o Tribunal da Relação actuou dentro dos limites dos seus poderes, os quais, alargados nas sucessivas reformas do processo civil, não podem deixar de abranger a possibilidade de eliminar expressões ou conclusões de facto que se situam na fronteira com questões de direito e que, portanto, a estas questões são equiparadas, não podendo integrar matéria de facto.

      Vejamos:

      No caso aqui em apreciação, foram formuladas as seguintes perguntas:

      No artigo 38° da Base Instrutória: «Também no período compreendido entre 15 de Maio e 7 de Agosto de 2009, o A. manteve contactos, quer com o 1o R., quer com o Dr. NN?»

      No artigo 75.° da Base Instrutória: «Os contratos aludidos em E) foram o fruto de tais discussões e contributos?»

      E, o Tribunal a quo respondeu da seguinte forma:

      Artigo 38°:

      «A intervenção do autor, mencionada sob o n.ºs 17 e segts. contribuiu de forma muito relevante para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação, sem os quais, na altura, dificilmente se teria chegado à celebração dos contratos referidos na resposta anterior».

      Artigo 75°:

      «Nada mais se provou além do que consta das respostas aos n°s 37, 38 e 71».

       

       

      Entendeu acórdão recorrido que a resposta ao artigo 38.º é, em grande parte, conclusiva, conforme citação que se segue:

       

      «Admite-se, é certo, alguma objectividade na circunstância de ter ficado demonstrado que a intervenção do autor discriminada nos n.°s 17,          20, 21, 22, 23, 24, 25, 35 e 36 da factualidade apurada contribuiu para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação, tanto mais que, como acima ficou dito, no recurso não foi colocada em causa a livre e prudente apreciação do julgador.

      Sucede, porém, que já se considera manifestamente conclusiva a menção que tal contribuição foi muito relevante e que sem essa contribuição dificilmente se teria chegado à celebração dos contratos referidos na resposta ao artigo 37° da Base Instrutória.

      A maior ou menor relevância ou até a irrelevância dos contributos do autor para a efectivação dos contratos, com vista à alienação das participações da família RR no Grupo HH, terão de resultar da factualidade dada como provada e da ulterior subsunção jurídica que incumbe ao Tribunal efectuar».

      A questão de direito discutida nos autos reside na qualificação do comportamento das partes como um contrato comercial de intermediação bancária ou de mediação remunerado, ou como um contrato de prestação de serviços ou de mediação atípica, cuja gratuitidade se presume por força da aplicação das regras do mandato civil (art. 1158.º, n.º 1 do CC).

      Ora, as expressões utilizadas no facto n.º 42 pelo Tribunal de 1.ª instância e eliminadas pelo Tribunal da Relação constituem na verdade uma resposta antecipada à questão de direito ou um juízo de direito sobre elementos integradores de uma relação jurídica contratual, sendo que esta questão – a de saber perante que tipo de contrato nos encontramos – é uma questão jurídica a ser resolvida pela aplicação aos factos de um determinado regime jurídico.  

      Entendemos que as perguntas aos artigos da Base Instrutória devem remeter para factos concretos, podendo as respostas ser afirmativas (provado), negativas (não provado), ou restritivas, admitindo-se ainda uma resposta de teor exemplificativo, desde que, ao fazê-lo, o julgador não amplie indevidamente o conteúdo do perguntado, nem, de forma indirecta, o tema da prova. Contudo, as respostas à base instrutória, qualificando a actuação do autor como um contributo «muito relevante» e concluindo que «dificilmente se teria chegado à celebração dos contratos», extravasou do que foi perguntado nos artigos 38 e 75.º, acrescentando conclusões e juízos que, além de não estarem incluídos no teor da pergunta, têm uma natureza não só conclusiva como excessiva.

      Sendo assim, decidimos que bem andou o Tribunal da Relação ao eliminar as expressões conclusivas contidas no facto n.º 42, pelo que mantemos o referido facto na formulação que lhe atribuiu o acórdão recorrido: «A intervenção do autor antes mencionada contribuiu para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação».

      II) Qualificação jurídica do acordo de vontades

      1. A posição das instâncias

      Acerca desta questão o Autor alegou, na petição inicial, que foi celebrado entre si e os réus um acordo verbal através do qual assumiu, em nome próprio, as obrigações do GG em anterior contrato celebrado entre o Banco e os Réus, assumindo os Réus, por sua vez, a obrigação de remunerar o autor nos mesmos moldes devidos ao GG. Esta tese foi afastada pelo tribunal de 1.ª instância que entendeu que os factos provados conforme n.ºs 24 e seguintes, em relação à mediação do autor, não são comparáveis às actividades a que se tinha comprometido o Banco.

      O Autor, ora recorrente, invoca agora, em sede de recurso, que entre si e os Réus foi celebrado um contrato de intermediação financeira, sendo-lhes aplicáveis as regras previstas no CVM e as regras da mediação imobiliária.

      Os réus contra-alegaram, defendendo que não foi celebrado qualquer contrato entre os Réus e o Autor, por falta de vontade daqueles em assumir uma vinculação jurídica, consistindo a actividade de mediação do autor apenas num acordo de cortesia decorrente de uma relação de amizade.

      Contudo, acrescentam, por mera cautela de patrocínio, que, ainda que se provasse que o 1.º Réu tinha intenção de se vincular ao aceitar a oferta do autor de contactar o accionista, NN, o acordo deveria ser qualificado como um contrato de prestação de serviço, na modalidade de contrato de mediação atípico, tal como entendeu o acórdão recorrido, sendo-lhe aplicável o disposto no art. 1158.º do CC (aplicável à prestação de serviços e à mediação ex vi o art. 1156.º do CC), segundo o qual o mandato se presume gratuito, pois, de acordo com a factualidade provada, o Autor não tem por profissão praticar os actos compreendidos no acordo original com o GG.

      O Tribunal de 1.ª instância entendeu que entre o autor e os réus foi celebrado um contrato comercial de intermediação financeira, previsto no artigo 290.º, n.º 1, al. a) e nº 2 do CVM, porque dirigido à celebração de um contrato de compra e venda de acções considerado um acto objectivamente comercial. Considerou-se, ainda, na sentença de 1.ª instância, que, não prevendo o CVM uma solução relativamente à remuneração da actividade de intermediação financeira, são aplicáveis as regras legais, doutrinais e jurisprudenciais que têm sido consagradas para o contrato de mediação imobiliária, segundo as quais o contrato de mediação é um contrato oneroso, tendo o mediador direito à remuneração desde que seja concretizado o negócio mediado e desde que a actividade de mediação tenha contribuído para a celebração do negócio pretendido pelo comitente, ainda que não seja a única causa determinante da cadeia de factos que deram lugar ao negócio.

       Já o acórdão recorrido afastou a natureza comercial do contrato e classificou a relação jurídica entre autor e réus como um contrato de mediação atípico, subespécie do contrato de prestação de serviço, ao qual, por via do artigo 1156.º do Código Civil, são aplicáveis as regras do mandato com as necessárias adaptações, concluindo que, segundo o disposto no art. 1158.º, n.º 1 do Código Civil, o mandato se presume gratuito, excepto se tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão, o que não foi o caso.

      2. Acordos sem vinculação jurídica

      O caso dos autos, tendo surgido na vida social em virtude de uma relação de amizade, está na fronteira entre os actos juridicamente vinculativos e os actos realizados por mera obsequiosidade.

      Contudo, por aplicação dos critérios de interpretação das declarações negociais estipulados no art. 236.º, n.º 1 do CC, entendemos, de acordo com a teoria da impressão do destinatário, ser correcta a decisão das instâncias de que não estamos perante um acordo de cortesia sem vinculação jurídica para as partes, mas perante um acordo de vontades que consubstancia um contrato produtor de efeitos jurídicos.

      As concepções que distinguem os acordos de cortesia dos contratos são variáveis em função do círculo social onde se geram, dos usos socias, das circunstâncias específicas do caso, dos interesses dos intervenientes e dos valores em causa.

      Contudo, esta questão está hoje marcada por uma tendência para o progressivo alargamento do domínio jurídico, sendo cada vez mais raras as áreas alheias à cobertura jurídica[13].

      Por outro lado, estando em causa interesses económicos relevantes do declaratário, que o declarante conhecia, verifica-se um indício a favor da existência de uma vinculação jurídica por parte do declarante[14].

       Na situação dos autos, estavam envolvidos valores económicos elevados e interesses essenciais dos vendedores, circunstâncias que indicam que as partes se quiseram vincular juridicamente. 

      O facto de não se ter estipulado remuneração e de o acordo ser eventualmente gratuito não é incompatível com o carácter vinculativo do acordo.

      Na nossa ordem jurídica, o contrato define-se como um negócio jurídico bilateral (ou plurilateral), porque nele intervêm duas ou mais partes que entre si estabelecem um acordo (art. 232.º) formado por duas ou mais declarações de vontade (que podem ser declarações tácitas ou comportamentos concludentes nos termos do art. 217.º), e que produzem efeitos jurídicos conformes à intenção manifestada ou ao significado do acordo obtido.

      Saber que acordo foi concluído entre as partes decorre, portanto, da interpretação do resultado concordante das declarações através das quais o contrato se formou.

      3. Índices de qualificação

       

      A questão a tratar é, portanto, a da qualificação do contrato dos autos.

      Qualificar significa atribuir a uma matéria a regular pelo direito a nominação própria de um conceito, envolvendo com isso a aplicação das regras jurídicas correspondentes.

      O contrato é qualificado através do reconhecimento nele de uma qualidade que é a qualidade de corresponder a este ou àquele tipo, a este ou àquele modelo típico.

      A qualificação legal implica assim um processo de relacionação entre a regulação contratual subjectiva estipulada e o ordenamento legal objectivo onde o catálogo dos tipos contratuais legais se contém[15].

      Uma vez que nos movemos no domínio do princípio da autonomia, recorre-se ao instrumento lógico do tipo e não ao do conceito. Isto significa que, podendo o conteúdo dos contratos variar consoante o exercício da liberdade contratual das partes, a recondução do contrato a um determinado tipo legal não exige uma coincidência total com os elementos essenciais do conceito, como seria exigível no método da subsunção, mas uma correspondência gradual (maior ou menor) do caso com o tipo, sendo possível um juízo de semelhança com dois tipos legais e a aplicabilidade das normas desses dois tipos legais. Esta semelhança é, assim, sempre intermédia entre identidade e diferença, comportando uma zona de igualdade e uma zona de desigualdade.

      A ciência jurídica tem entendido que não existe, portanto, um critério unitário de distinção entre os vários tipos contratuais, mas um conjunto de critérios múltiplos e heterogéneos: a qualidade das partes, a natureza do bem objecto do contrato, o conteúdo e a natureza das prestações, o factor tempo e o modo de perfeição do contrato[16].  

      Para determinar a natureza e o conteúdo das relações estabelecidas entre as partes, é fundamental averiguar qual a vontade revelada pelas partes quando definiram as condições e a estrutura da relação jurídica em causa, e proceder à análise do condicionalismo factual do caso, do comportamento das partes e do conteúdo das declarações trocadas entre ambas, através de um método tipológico, que consiste na procura de indícios aproximativos do modelo típico.  

      A qualificação do contrato supõe três operações:

      1. Uma ideia clara sobre o conteúdo e o sentido do contrato a qualificar como ponto de partida. Esta ideia é fornecida pela interpretação e é ainda uma antecipação ou uma pré-compreensão, que pode vir a ser modificada em virtude da qualificação que vier a ser adoptada como final.

      2. Coloca-se em segundo lugar o problema da escolha do tipo contratual legal candidato à qualificação, escolhendo-se aqueles que mais semelhanças e aspectos comuns têm com o contrato a qualificar.

       

      3. Em terceiro lugar, o conteúdo e o sentido do contrato a qualificar têm de ser comparados e postos de acordo com o modelo regulativo de um determinado tipo contratual e com o sentido que lhe é imanente, fazendo-se uma leitura tipológica das definições legais, através da reconstituição do tipo jurídico estrutural e da sua comparação com o tipo social e com o caso.

      No caso dos contratos típicos, a lei recorre quase sempre a definições legais para a qualificação dos mesmos. Mas as definições têm sido entendidas como não vinculativas para o intérprete, pois não cabe ao legislador fazer teorizações que competem à doutrina. Com efeito, não são as definições dos tipos contratuais legais que atribuem aos contratos certos regimes, mas é a estipulação desses regimes que funda a qualificação. Contudo, as definições legais devem ser pontos de partida para o intérprete, que não se pode comportar como se as definições legais não existissem, podendo a rigidez destas ser ultrapassada pelo uso da analogia, o que é compatível com o método tipológico, cuja utilização se torna pertinente quando o contrato concretamente celebrado contenha desvios em relação à definição da lei. 

      A qualificação faz-se assim, através de determinados índices do tipo: a função do contrato, o fim visado pelas partes, a contrapartida, o objecto, a configuração, o sentido, as qualidades das partes e a forma[17].

      4. Os factos do caso e a interpretação das declarações negociais

      No caso sub iudice, deu-se o seguinte conflito de interesses:

      O autor entende que o facto de se oferecer para colocar os accionistas em contacto para a celebração de um negócio de compra e venda de acções constitui uma proposta vinculativa que foi aceite pelos réus, assim se formando um contrato de intermediação imobiliária remunerado, decalcado do contrato que o Banco celebrou com os réus como invoca no artigo 8.º da petição inicial (afinal, conforme documento junto aos autos, apenas com a 2.ª ré), e que foi resolvido pela 2.ª ré, após a situação de crise do Banco (facto provado n.º 34).

      Já os réus afirmam ter interpretado esta declaração do Autor como a oferta de um serviço gratuito, por força das relações de amizade existentes e da situação de falência do Banco, a qual fez com que sofressem elevadas perdas. Invocam ainda (sem prejuízo do que se provou) que jamais aceitariam celebrar um acordo tal como foi alegado pelo autor, sem previamente consultarem os sues advogados, o que não sucedeu (facto provado n.º 45).

      Temos, então, de qualificar o acordo verbal entre o autor e o 1.º réu para indagarmos se o autor tem ou não direito à retribuição.

      Os contratos que vão ser escolhidos para se proceder à sua comparação com o contrato dos autos são, tal como entenderam as instâncias, o contrato mercantil de intermediação bancária e o contrato de mediação atípico, civil ou comercial.

      O contrato dos autos compõe-se de duas declarações negociais, uma do autor, mediante a qual se oferece para contactar o sócio da HH, NN, no sentido de apurar da disponibilidade deste para a compra da participação da família RR (os réus), oferecimento que o 1.º réu aceitou com a concordância dos restantes réus (factos provados n.º 24 e 25), tendo o Autor contactado o referido NN, que se mostro interessado nas negociações (facto provado n.º 26).

      Na sequência deste acordo, o autor manteve vários contactos com o 1.º réu e com NN, com os quais discutiu, separadamente, aspectos referentes àquela operação. E recebia as posições de cada uma das partes envolvidas na negociação, que transmitia à outra parte (factos provados 28 e 29).

      No decurso de reuniões e de contactos promovidos pelo autor, bem como directamente pelos interessados e respectivos advogados (factos provados n.º 30, 31 e 32), no dia 15 de Fevereiro de 2009, foi celebrado um contrato promessa (facto provado n.º 33), que os promitentes-compradores acabaram por não confirmar dentro do prazo fixado no contrato-promessa (facto provado n.º 38).

      Em meados de 2009, por iniciativa dos interessados ou dos seus advogados, as negociações foram retomadas entre eles, e no dia 7 de Agosto, celebrados os acordos escritos de alienação das participações da família RR (facto provado n.º 40), após diversas reuniões entre os interessados e os respectivos advogados (facto provado n.º 41).

      A intervenção do autor contribuiu para a abertura de diálogo entre os interessados e para a sua aproximação (facto provado n.º 42) e para a pacificação da situação de litigiosidade crescente entre a 2.ª Ré e os restantes sócios (facto provado n.º 27), embora a venda da participação da família RR a NN já fosse falada entre todos os interessados como uma das mais plausíveis (facto provado n.º 27).

      As declarações negociais devem ser interpretadas, respeitando o código de linguagem utilizado pelas partes e fixando o seu sentido mediante o recurso ao critério normativo do declaratário normal, colocado na posição do declaratário real (art. 236.º, n.º 1 do CC).

      Segundo o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 2010, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas (processo n.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1), «A vontade real constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias. Já a vontade hipotética, por resultar do exercício interpretativo, na situação do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, pode ser apurada pelo Supremo Tribunal de Justiça e deve coincidir com o sentido apreensível pelo declaratário normal (…)».   

        

      A regra estabelecida no n.º 1 do art. 236.º é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Consagra-se uma doutrina objectivista – a teoria da impressão do declaratário – com duas excepções de natureza subjectivista: os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (art. 236.º, n.º 1, 2.ª parte), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (art. 236.º, n.º 2).

      Como dizem Pires de Lima/ Antunes Varela, “A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”[18]

      “Além de ser um acto determinante (meio de auto-determinação), a declaração é, também, porém, um acto social de comunicação, que tem de ter relação com aquele a quem se destina ou o conhece”, conforme afirma Mota Pinto[19]. Em consequência, nas palavras de Menezes Cordeiro, “A autonomia privada tem, assim, de ser temperada com o princípio da tutela da confiança: o Direito atribui-lhe determinados efeitos na medida em que ela se combine com esta. Ao contrário, no entanto, das construções conceptuais, entende-se hoje que a confiança não se opõe à autonomia privada, delimitando-a: ambos os princípios se articulam entre si para, mutuamente, se tornarem aplicáveis.”[20] A interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado”[21].

       

      O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. Serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, a doutrina refere os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias,; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou negócio concluído[22].

      A lei deu, assim, prevalência à tutela da confiança sobre o princípio da autonomia privada. Contudo, não tutela o declaratário real, mas um declaratário normal, colocado na situação do declaratário real, e que usa de uma diligência também normal, tendo em conta os usos dos negócios e o contexto em que foram celebrados.

       

      Para definição do contexto do negócio, elemento decisivo para interpretar as declarações negociais, importam os seguintes factos:

      O Autor e o 1.º Ré eram amigos e foi no contexto dessa relação de amizade que mantiveram diversos contactos durante o ano de 2008 e até inícios de 2009 (facto provado n.º 23). O Autor tinha boas relações com os accionistas da HH, em especial com NN (facto provado n.º 22). Havia um conflito entre a 2.ª Ré os sócios da HH, do qual resultaram dezenas de processos, pendentes nos Tribunais judiciais e arbitrais (factos provados n.º 5). Por força das relações que mantinha com os interessados, o autor tinha conhecimento dessa situação de litígio (facto provado n.º 6). O interesse da família RR em alienar as participações surgiu em virtude desse litígio (facto provado n.º 7). O autor não dispunha de organização e de apoio técnico inerentes ao contrato com o GG (facto provado n.º 46). O GG entrou na situação de crise que se tornou pública (facto provado n.º 21). O Autor foi o fundador do Banco GG, SA, tendo exercido o cargo de Presidente da Adminstração até 24 de Novembro de 2008, data em que, na sequência da intervenção do Banco de Portugal no GG, renunciou a esse cargo (facto provado n.º 1).

                 

                  De acordo com a doutrina acima descrita, deve prevalecer o sentido objectivo da declaração, desde que o declarante possa razoavelmente contar com ele.

      Ora, uma vez que não foi estipulada qualquer retribuição, que o autor era uma pessoa experiente em negócios e que havia uma relação de amizade entre as partes, deve prevalecer o sentido objectivo da declaração, tal como deduzido pelo declaratário normal do comportamento do declarante, desde que este sentido possa ser imputado ao declarante e que este deva razoavelmente ter contado com ele (art. 236.º, n.º 1 CC).

      5. A qualificação do contrato

      5.1. Contrato de intermediação financeira

      O Recorrente invoca que foi celebrado entre ele e os recorridos um contrato de intermediação financeira.

      Contratos de intermediação financeira são aqueles negócios jurídicos celebrados entre um intermediário financeiro e um cliente (investidor) relativos à prestação de actividades de intermediação financeira. Representam “contratos de empresa” na medida em que são quase exclusivamente celebrados por empresas constituídas sob a forma de instituições de crédito (art. 2.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, com as alterações subsequentes, designado por RGIC ou regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras), de empresas de investimento (art. 293.º, n.º 2 do CVM) e de sociedades gestoras de fundos de investimento mobiliário (art. 29.º do Decreto-Lei n.º 252/2003, de 17 de Outubro, agora revogado pelo Decreto-lei 63-A/2013, de 10 de Maio, designado por NRJOIC ou regime jurídico dos organismos de investimento colectivo).

      Quanto aos respectivos sujeitos, estes contratos caracterizam-se por ser necessariamente concluídos, em regra, entre intermediários financeiros (art. 289.º, n.º 2 do CVM), sem prejuízo da sua representação por “agentes vinculados” em determinadas actividades (arts. 292.º, b), 294.º -A a 294.º-D do CVM) e da sua conclusão excepcional por outras pessoas singulares ou colectivas (“máxime”, as contempladas no art. 289.º, n.º3 do CVM) – e investidores ou clientes – os quais se podem agrupar grosso modo em duas grandes categorias, os investidores qualificados e não qualificados (art. 30.º do CVM)[23]

      Estes contratos têm por objecto imediato a prestação de serviços de intermediação, sendo por isso reconduzíveis, na sua maioria, ao mesmo “macrotipo negocial” (prestação de serviço) e profundamente tributários da disciplina geral da intermediação financeira (arts. 289.º e ss do CVM). Têm por objecto mediato, não apenas os tradicionais valores mobiliários (acções, obrigações, unidades de participação, direitos destacados, etc.), mas genericamente qualquer tipo de instrumento financeiro, incluindo ainda instrumentos monetários.

       

      Este contrato celebrado com investidores não qualificados exige forma escrita (arts. 4.º e 321, n.º 1 do CVM).

      No caso dos autos o acordo foi verbal, o que afasta a tese da intermediação financeira, pois, dada a experiência das partes em negócios, sobretudo do Autor, ex-administrador de um Banco, não é crível que este quisesse celebrar um contrato que depois ficaria com dificuldade em provar ou cuja validade pudesse ser questionada.

      Um dos critérios ou índices de qualificação usados pela doutrina é o critério da forma: A forma externa dada ao contrato indicia um tipo para o qual essa forma seja adequada, salvo provando-se que a escolha da forma adoptada foi devida a erro de direito ou a desconhecimento da lei[24].

      Ora, tratando-se de sujeitos que são experientes em negócios e informados, podemos deduzir que o facto de o contrato ter sido verbalmente celebrado significa que as partes não quiseram celebrar um contrato para o qual a lei exige a forma escrita, pois não é razoável admitir que as partes tenham dado ao contrato uma forma que sabiam o deixaria sem prova ou sem validade. Isto é verdade, sobretudo, para o autor, ex-administrador bancário e conhecedor das exigências formais deste tipo de negócios e das vantagens da forma escrita para a protecção dos seus interesses.

                  Por outro lado, a intermediação financeira exige como critério ou índice do tipo a qualidade de uma das partes como empresa. Neste contrato, o legislador erigiu expressamente a empresa como elemento constitutivo ou requisito subjectivo da noção legal.

      Sendo assim, por aplicação dos índices de qualificação da forma e da qualidade das partes, não estamos, no contrato dos autos, perante uma intermediação financeira:

      O autor não agiu em representação do Banco, mas em nome próprio e como amigo do 1.º réu (facto provado n.º 23), não dispunha da organização e do apoio técnico inerentes ao contrato celebrado com o GG (facto provado n.º 46), e não passou a desenvolver, com a sua saída da administração do Banco, qualquer actividade profissional, devidamente legalizada em nome próprio (decisão do tribunal de 1.ª instância quanto à fundamentação da matéria de facto).

      Por outro lado, o contrato teve por fim, conforme resulta das declarações das partes interpretadas de acordo com o contexto em que surgem, não o lucro mas a resolução de litígios entre os sócios da HH, referidos nos factos provados 5, 7, 27 e 40, litígios que eram do conhecimento do autor, por força da relação que mantinha com os interessados (factos provados 6 e 22).

      5.2. Contrato de mediação atípico  

      Afastado o contrato de intermediação financeira, resta-nos a classificação do contrato concreto dos autos como um contrato de mediação atípico.

      Ao abrigo da liberdade contratual, pode ser celebrado um contrato de mediação atípico, porque dirigido à celebração de um contrato distinto da compra e venda imobiliária, e puramente civil, por não ser o mediador um comerciante nem agir como profissional, mas como um mediador esporádico e ocasional.

      O contrato de mediação atípico traduz-se na obrigação de uma das partes encontrar um interessado para a celebração com o comitente de um contrato definitivo. A mediação é um contrato aleatório, só dando lugar a retribuição quando tenha êxito. É um contrato inorgânico: não exige uma especial organização, nem pressupõe uma relação duradoura, podendo consistir num negócio pontual. O mediador tem uma posição de independência em relação ao comitente, não estando sujeito a poder de direcção.

      A mediação, em especial quando de natureza comercial, é onerosa, cabendo às partes, no contrato, prever com precisão qual a retribuição devida, em que circunstância deve ser paga e em que momento terá lugar a sua satisfação. Normalmente, a retribuição efectiva-se através de uma comissão sobre o preço do negócio definitivo. Na falta de estipulação das partes, existem critérios jurisprudenciais para a sua fixação[25].

      No caso sub iudice, não tendo sido estipulada qualquer contrapartida ou remuneração, a imposição deste elemento só poderá resultar da aplicação ao contrato concreto de um regime contratual que o imponha.

       Colocam-se então duas questões: a) se o contrato de mediação atípico tem natureza civil ou comercial; b) qual o regime jurídico aplicável ao caso dos autos.

      a) Natureza civil ou comercial do contrato

       

      De acordo com a lei, são comerciais todos aqueles contratos que preencham o critério objectivo da comercialidade previsto no art. 2.º do C.Com, ou seja, “aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código”. Abrangem-se assim os contratos previstos no Livro II do Código Comercial e os que estão regulados em legislação mercantil extravagante.

      São ainda comerciais todos aqueles contratos que satisfaçam o critério subjectivo da comercialidade da segunda parte do citado art. 2.º CCom, ou seja, “todos os contratos e obrigações dos comerciantes”.

      Contudo, os critérios clássicos de comercialidade encontram-se postos em causa, pois assentem em conceitos-chave centenários – actos de comércio e comerciante – forjados para realidades económicas antigas e ultrapassadas, e o elenco legal previsto no Código Comercial de 1888 já não é capaz de reflectir a complexidade da contratação mercantil da actualidade[26]. O critério objectivo de mercantilidade reside na localização sistemática, sendo assim um critério meramente formal e o critério subjectivo já não assenta na figura do comerciante mas na do empresário.

      A ciência jurídica entende que os contratos bancários são hoje um tipo de contratos mercantis exclusivamente celebrados por “empresas” constituídas sob a forma de instituições de crédito ou sociedades financeiras (Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro) e os contratos de bolsa representam contratos mercantis obrigatoriamente celebrados, para além das empresas creditícias, por “empresas de investimento em instrumentos financeiros” (arts 289.º e 293.º do CVM).

       

      A maioria dos contratos mercantis são contratos legalmente atípicos, sedimentados na prática dos negócios, como os contratos de concessão comercial, de franquia, de garantia financeira, de consultoria empresarial, de futuros e opções.

      Os contratos comerciais são hoje, essencialmente, contratos de empresa.

      «Por contratos comerciais entenderemos assim aqui os contratos que são celebrados pelo empresário no âmbito da sua actividade empresarial: a intervenção de um empresário no contrato (designadamente, como uma das partes contratantes) e a pertinência desse contrato à constituição, organização ou exercício da respectiva actividade empresarial, são assim os elementos caracterizadores ou qualificadores da comercialidade de um contrato»[27].

      O contrato de mediação atípico do caso dos autos não consiste, assim, numa mediação comercial, pois o mediador não é comerciante, não é uma empresa, nem está em causa alguma das modalidades de mediação tipificadas em leis comerciais, como a mediação mobiliária, dos seguros, imobiliária, monetária e de câmbios e de jogos sociais.

      A mediação aqui relevante designa-se por mediação simples e não profissional. O acto de mediar foi levado a cabo por uma pessoa que não utiliza a mediação como modo de vida nem dispõe de uma organização lucrativa para o efeito, tendo actuado pontualmente, no âmbito das suas relações de amizade, para conciliar as potenciais partes de um negócio as quais, sendo titulares de acções da mesma empresa, se encontravam em litígio.

       

      Não estando prevista na lei a regulação da mediação civil, estamos perante uma disciplina que é sobretudo de base jurisprudencial, o que desde logo significa a variedade das soluções encontradas e a relevância do contexto e das circunstâncias do caso, numa perspectiva necessariamente casuística.

       

      b) Regime jurídico aplicável à mediação civil atípica

      O contrato dos autos, dirigindo-se, conforme factos  24 a 28, ao estabelecimento de contactos, por parte do autor, AA, com um sócio da HH, NN, no sentido de apurar da disponibilidade deste para a compra da participação da família RR, é um contrato de mediação atípico, que não está regulado na lei nem está sujeito, portanto, a qualquer forma específica.

      Importa, contudo, analisar, na falta de regulação legal deste contrato, qual o regime que lhe é aplicável em relação aos pontos não convencionados entre as partes.

       aa) Coloca-se, em primeiro lugar a questão de saber se, como entendeu a sentença de 1.ª instância, é aplicável, por via da analogia, a legislação que regula a actividade de mediação imobiliária.

       

      O contrato de mediação, na vertente de mediação imobiliária, foi o primeiro a merecer uma regulamentação especializada e o que tem levantado mais questões jurídicas a resolver pelos tribunais.

      O regime do contrato de mediação imobiliária está regulado pela Lei n.º 15/2013, de 08-02-2013[28]. A actividade de mediação imobiliária só pode ser exercida por empresas de mediação imobiliária (arts 2.º e 3.º) e mediante contrato obrigatoriamente reduzido a escrito (art. 16.º, n.º 1). Trata-se de um contrato oneroso, estipulando a lei e a jurisprudência critérios para a fixação da remuneração, a qual só é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação (art. 19.º).

       Aplicando-se a lei vigente à data da celebração do contrato (art. Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto), dos arts 2.º e 3.º resulta também que só empresas podem exercer a actividade de mediação imobiliária, embora possam ser coadjuvadas por angariadores imobiliários inscritos no Instituto dos Mercados de Obras Públicas e Particulares e do Imobiliário. O contrato de mediação imobiliária está sujeito a forma escrita, configurando a sua falta uma nulidade atípica, porque invocável apenas pelo cliente da empresa de mediação (art. 19.º, n.º1 e n.º 8).

      Uma analogia com o contrato de mediação imobiliária para efeitos de definição do regime jurídico do contrato dos autos não é a solução adequada, pois os interesses que motivam o legislador a regular com tanto pormenor a mediação imobiliária obedecem a um princípio de protecção da parte mais fraca – o cidadão-consumidor que vende ou que compra habitação – e às necessidades específicas criadas pelo desenvolvimento que tem conhecido o mercado imobiliário, que exigem uma fiscalização do Estado para promover a qualidade dos serviços prestados e a profissionalização e responsabilização dos intervenientes.

      O contrato dos autos é um contrato verbal celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do CC) e do princípio da liberdade de forma (art. 219.º do CC), e que não carece, por ser celebrado entre sujeitos iguais com idêntica liberdade na auto-regulação dos seus interesses, de qualquer intervenção protectiva do Estado, como o estabelecimento da forma escrita, a definição legal do conteúdo do contrato, a imposição legal de regras relativas à fixação de remuneração, licença para o exercício da actividade, etc.

      No contrato dos autos estamos no domínio puro da autonomia privada, em que a vontade de dois sujeitos se encontra para a produção de um efeito jurídico, à margem de qualquer necessidade de intervenção do Estado.

      Atendendo ao espírito da legislação que regula a actividade de mediação imobiliária, entendemos que não há analogia entre a situação de interesses do contrato dos autos e a do contrato de mediação imobiliária. 

      Afasta-se, assim, o regime da mediação imobiliária, quer a aplicação directa do mesmo, pois no caso sub iudice, a mediação teve por objecto um contrato de compra e venda de acções, quer a aplicação analógica, por falta de identidade de interesses entre as duas situações.

      ab) Menezes Cordeiro tem defendido que a mediação é, por essência, uma prestação de serviço, sendo regulada, na falta de outras regras, pelo regime do mandato, por via do artigo 1156.º do CC[29].

      Com efeito, o Código Civil refere, nos arts 1154.º a 1156.º, os contratos de prestação de serviço como uma classe onde se incluem, entre outros, o mandato, o depósito e a empreitada, e remete a regulação dos contratos de prestação de serviço para as normas do mandato dada a ausência de um modelo regulativo típico.

      Segundo o art. 1156.º do CC:

      «As disposições sobre o mandato são extensivas com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não regule especialmente».

      Entre as modalidades de contratos de prestação de serviço não reguladas na lei, Pires de Lima/Antunes Varela incluem o contrato de mediação civil, a regular, em tudo o que não tiver sido convencionado pelas partes, pelas disposições do mandato[30].

      Neste sentido decidiu já este Supremo Tribunal, no acórdão de 06-12-2012, em cujo sumário se afirma o seguinte:

      «I - O contrato de mediação constitui uma subespécie do contrato de prestação de serviços, traduzindo a situação em que alguém se compromete perante outrem a conseguir-lhe um interessado para certo negócio, aproximando-os, para que o mesmo se concretize.

      II - No nosso ordenamento jurídico o contrato de mediação apenas se encontra regulado, e por isso tipificado enquanto tal, em relação a algumas categorias de actividade, tais como: a mediação de seguros (DL n.º 144/2006, de 31-07), imediação imobiliária (DL n.º 211/2004, de 20-08 alterado pelo DL n.º 69/2011 de 15-06) e mediação financeira (arts. 289º e segs. do CMVM).

      III - As regras a aplicar, em cada caso, são as decorrentes do contrato tipo com o qual apresenta maior analogia, sendo todavia necessário apurar um regime geral para o caso sujeito.

      IV - Mas sendo a mediação, antes de mais, uma prestação de serviços, haverá que fazer apelo às regras do mandato, com as necessárias adaptações, por força do preceituado no art. 1156.º do CC, se as regras daquela não regularem especificamente alguma situação» (acórdão de 06-12-2012, Revista n.º 370001/09.6YIPRT.L1.S1 - 7.ª Secção, relatado pela Conselheira Ana Paula Boularot).

      Mandato é o contrato consensual, pela qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, caracterizando-se por uma especial relação de  cooperação jurídica e de confiança entre sujeitos.

      A sua origem histórica remonta ao ius gentium, tendo sido recebido mais tarde no ius civile, onde passou a ser entendido como a forma jurídica das mútuas prestações de serviços que eram ditadas pela amizade[31].

      O contrato de mandato constituía no Direito Romano, um contrato consensual, baseado na amicitas e essencialmente gratuito, sendo o seu carácter vinculativo imposto pela bona fides[32]. O carácter gratuito do mandato, qualificado como um acto de um amigo, não era incompatível com a promessa de honorários (e não de um preço) como gratidão pelo serviço prestado, tendo este modelo de mandato atravessado todo o direito intermédio, e acentuando-se progressivamente a faculdade de estipulação de uma remuneração para o mandatário[33]. A gratuitidade era, assim, a nota essencial do mandato no Direito Romano. Foi o código civil francês que, pela primeira vez, abandonou o carácter essencialmente gratuito do mandato, limitando-se a estabelecer uma presunção de gratuitidade, que cede perante estipulação contrária (art. 1986.º), tal como no Códigos Civis portugueses de 1867 e de 1966.

      O Código Civil admite casos de mandato sem representação e estabelece que a atribuição de poderes representativos resulta de um negócio autónomo: a procuração (arts 262.º e ss).

      O artigo 1158.º, n.º 1 do CC estabelece que o mandato civil se presume gratuito, salvo se tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão, caso em que se presume oneroso. Daqui decorre que a gratuitidade é uma característica natural do mandato. Contudo, o Código Civil consagrou uma mera presunção iuris tantum de gratuitidade, que o interessado poderá ilidir.

      Outra diferença entre o mandato civil e o comercial é que, enquanto o primeiro constitui um contrato, o segundo constitui-se por negócio jurídico unilateral potestativo: o mandato pode ser recusado, mas não precisa de um consenso prévio do mandatário[34].

      No mandato comercial, o mandatário obriga-se, tal como no civil, a praticar um ou mais actos jurídicos, por conta de outrem. Trata-se de um acto comercial por  conexão, ou seja é comercial quando se destine à prática de actos de comércio objectivos (art. 231.º CCom.). A sua comercialidade vem da qualidade comercial dos actos que constituem o seu objecto. O Código Comercial, ao reger sobre o mandato, não exige que o mandatário tenha a qualidade de comerciante ou que actue no exercício do comércio. Contudo, em regra, o mandato mercantil assume a feição de um instituto profissional, no qual o mandatário constitui usualmente uma pessoa singular ou colectiva que exerce profissional ou empresarialmente o mandato[35].

      O mandato comercial envolve, ao contrário do civil, representação e presume-se oneroso (art. 232.º CCom.) ao contrário do civil (art. 1158.º, n.º 1 do CC). A lei comercial diz que o mandato mercantil “não se presume gratuito, tendo todo o mandatário direito a uma remuneração pelo seu trabalho” (art. 232.º CCom.). O valor da remuneração é fixado por acordo das partes, ou, na falta dele, “pelos usos da praça onde for executado o mandato” (art. 232.º, § 1.º).

       

      Sendo a compra e venda de acções de sociedades comerciais, segundo o art. 463.º, n.º 5 do Código Comercial, um negócio objectivamente comercial, ainda que o objectivo não seja a revenda, poderíamos estar, no caso concreto, perante um mandato mercantil por conexão.

      A natureza comercial de uma compra e venda deriva fundamentalmente do intuito de lucro que presidiu ao negócio, já que as operações de aquisição ou de alienação das coisas são realizadas com vista a um emprego lucrativo ou especulativo (a sua revenda ou aluguer) e já não uma finalidade de uso privado, doméstico ou familiar[36]. Apesar de o intuito da revenda não estar necessariamente presente na compra e venda de participações sociais (art. 463.º, n.º 5 do CCom.), o legislador terá incluído aqui esta modalidade certamente por considerar que sendo as sociedades comerciais entidades tipicamente mercantis (art. 13.º, n.º 2 do CCom.), os negócios sobre o seu capital revestem também natureza comercial[37].

      Contudo, a classificação da compra e venda das acções como um acto objectivamente comercial assenta num critério formal e sistemático consagrado no código comercial. Se considerarmos a sua finalidade somos conduzidos a concluir pela sua natureza civil: a venda teve por finalidade a resolução de litígios entre os accionistas, não sendo o objectivo principal do negócio, no caso concreto, a especulação ou o lucro.

      Do contexto em que o negócio foi celebrado – relações de amizade e pacificação de litígios entre os accionistas – resulta que o objectivo do mandato foi a realização do interesse dos mandantes e não do interesse do mandatário. E, como defende Menezes Cordeiro, a grande clivagem entre o mandato civil e o comercial é, no fundo, a seguinte: o mandato civil surge, no essencial, passado no interesse do mandante; pelo contrário, o mandato comercial opera também no interesse do mandatário e no do comércio em geral[38].

                   

      No caso sub iudice, as declarações negociais das partes e o resultado unitário a que se chegou no acordo indicam que estamos perante uma mediação civil atípica, estabelecida no interesse dos mandantes, os quais, envolvidos em litígios judiciais com os outros accionistas, pretendiam vender as suas acções e assim pôr termo aos litígios.

      Assim, a declaração do autor de se oferecer para contactar o outro accionista – NN – com o objectivo de que este viesse a comprar as acções, interpretada de acordo com a tese da impressão do destinatário, significa, neste contexto, uma vontade de colaboração altruísta e não remunerada, no sentido de auxiliar os accionistas vendedores, clientes do banco em processo de falência de que tinha sido fundador e ex-administrador, a resolver o seu problema.

      A função económica individual-concreta do contrato dos autos tem uma natureza objectiva e reside na facilitação de um negócio de venda de acções. Já o fim do contrato situa-se nos sujeitos e diz respeito à utilidade visada pelas partes com a celebração do contrato e que determinou a sua decisão de contratar. O fim do contrato dos autos ou a sua utilidade económica concreta e individual foi, de acordo com as circunstâncias do caso, a intenção de pôr termo a litígios entre accionistas, com quem o mediador tinha boas relações pessoais, e não a obtenção de lucros.

      Sendo assim, o juízo de semelhança ou de comparação a fazer na operação de qualificação aproxima mais o contrato dos autos de um contrato civil do que de um contrato comercial.

                   

      Em consequência, não tendo as partes estipulado uma remuneração, nem se tendo provado sequer que esta questão tivesse sido abordada ou discutida pelas partes –  o que com toda a probabilidade teria sucedido, dada a experiência do autor como ex-administrador de um Banco – e não se tendo provado que o autor tivesse actuado no domínio da sua actividade profissional, presume-se então a  gratuitidade do mandato. Esta conclusão é reforçada pelas circunstâncias do caso: a situação de crise do banco de que os accionistas eram clientes; a qualidade do mediador como ex-administrador do referido banco; a relação de amizade do administrador com o 1.º Réu e a boa relação pessoal com o terceiro com quem o contrato veio a ser celebrado; o conhecimento dos litígios entre os accionistas da HH.

       

      Estas circunstâncias contribuem, também, para a definição do sentido do contrato enquanto acção humana, tornando a gratuitidade uma característica natural dentro do tipo social de contrato. É a relação de confiança entre o autor e o 1.º réu, que constitui o sentido próprio do contrato e o critério de solução das questões por ele suscitadas, conferindo-lhe unidade.

       

      Logo, não tendo o autor ilidido a presunção legal de gratuitidade, demonstrando que os actos que integram a matéria de facto foram praticados no exercício da sua profissão, terá de se concluir que este não tem direito a qualquer remuneração.

        

      6. Pelo que improcedem todas as conclusões da alegação de recurso do recorrente, decidindo-se que os réus devem ser absolvidos do pedido.

      IV – Decisão

      Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

      Custas pelo recorrente.

      Lisboa, 9 de Setembro de 2014

      Maria Clara Sottomayor (Relatora)

      Sebastião Póvoas

      Moreira Alves

      ___________________
      [1] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos, in Debate, A Reforma do Processo Civil 2012, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, p.122.
      [2] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 206-207.
      [3] Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 433.

      [4] Cf. Castanheira Neves, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», RLJ, Ano 129, pp.162-165.
      [5] Ibidem, p. 166.
      [6] Ibidem, p. 167.
      [7] Cf. Alberto dos Reis, ob. cit., p. 212.
      [8] Ibidem, p. 212.
      [9] Cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 637-638. Para uma resenha doutrina e jurisprudencial sobre o tema, vide Abel Simões Freire, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», CJ/STJ, Ano XI, Tomo III/2003, pp. 5-7.  
      [10] Cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 312.
      [11] Cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, 1999, p. 147.
      [12] Cf. Abel Simões Freire, «Matéria de Facto – Matéria de Direito», 2003, ob. cit., p. 7.
      [13] Cf. Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I. Conceito. Fontes. Formação, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 28-29.
      [14] Cf. Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 419, n.º 644.
      [15] Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Contrato Atípicos, colecção teses, Almedina, 1995, pp. 164-165.
      [16] Cf. Giorgio De Nova, Nuovi Contratti, UTET, Torino, 1999, p. 24.
      [17] Sobre os índices do tipo, vide Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, ob. cit., pp. 117 a 160.
      [18] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 223.
      [19] Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 442.
      [20] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 754.
      [21] Ibidem, p. 755.
      [22] Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pp. 446-447.
      [23] Cf. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 575-576.

      [24] Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, pp. 155-160.
      [25] Vide, entre outros, STJ 31-03-1998, BMJ n.º 475, 1998, pp. 680-688; STJ, 12-12-2013, Processo n.º 135/11.4TVPRT.G1.S1; STJ  16-11-2000, Processo 0131229; 28-05-2002, Processo 02B1609.
      [26] Cf. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 30-31.
      [27] Ibidem, p. 40.
      [28] Que revogou o decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto, com as alterações do Decreto-lei n.º 69/2011, de 15 de Junho
      [29] Cf. Menezes Cordeiro, «Do contrato de mediação», O Direito, Ano 139.º, 2007, p. 545
      [30] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II (Artigos 762.º a 1250º), 4.ª edição revista a actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 785.
      [31] Cf. Manuel Januário Costa Gomes, «Contrato de Mandato», in Direito das Obrigações (sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, Lisboa, 1991, p. 268
      [32] Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 388.
      [33] Ibidem, p. 388.
      [34] Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, «Mandato Bancário», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume II, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 132-133.
      [35] Cf. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, ob. cit., p. 365.
      [36] Cf. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, ob. cit p. 347.
      [37] Cf. Baptista Lopes, Do contrato de compra e venda no direito civil, comercial e fiscal, Almedina, Coimbra, 1971, p. 386.
      [38] Cf. Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 3.ª edição revista, actualizada e aumentada, Almedina, Coimbra, 2012, p. 656.