Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
003683
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOUREIRO PIPA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/22/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: AC 16/96 DR IS-A DE 04-12-1996
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário : : Fixa a interpretação do princípio constitucional de «para trabalho igual salário igual», entendendo que o viola quem pratique discriminação salarial fundada em «absentismo justificado» por doença do trabalhador.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social, em Plenário, do Supremo Tribunal de Justiça:

A, S. A., interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 2. do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro, e 437. n.os 2, 3 e 4 do Código de Processo Penal, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 1992, proferido no processo n.º 447/92, alegando que no mesmo se perfilhou, sobre a mesma questão de direito, solução oposta à que fora objecto do Acórdão da mesma Relação, proferido em 19 de Outubro de 1992, nos autos de recurso n.º 413/92 - 2. Secção. A questão em causa consistia em saber se o absentismo justificado era causa legítima da diferenciação salarial no âmbito do princípio constitucional previsto no artigo 59., n.º 1, alínea a), de «para trabalho igual salário igual» - sendo que o Acórdão de 19 de Outubro de 1992 (o acórdão fundamento) se pronunciou no sentido afirmativo, enquanto o acórdão recorrido se pronunciou no sentido negativo.
Tendo-se suscitado a questão prévia de saber qual fora a Secção competente, de entre a Criminal e a Social deste Tribunal, para conhecer do recurso, foi decidido por acórdão de fl. 46 a fl. 48 ser competente para o efeito a Secção Social.
Após o Ministério Público, nos termos do artigo 440., n.º 1, do Código de Processo Penal, se ter pronunciado pela existência da oposição de julgados, foi proferido despacho pelo Ex. Relator, que decidiu que os dois acórdãos em questão nos autos, no domínio da mesma legislação, aplicaram a situações fácticas idênticas soluções opostas com base em contrárias interpretações da alínea a) do n.º 1 do artigo 59. da Constituição da República Portuguesa. Em consequência, foi ordenado o prosseguimento do recurso, nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 441. do Código de Processo Penal.
A recorrente apresentou as suas alegações, nos termos do artigo 442. do Código de Processo Penal, tendo formulado as seguintes conclusões:
A interpretação extensiva do princípio constitucional de «para trabalho igual salário igual», subjacente à decisão recorrida, conduz, na prática, à funcionalização das empresas, potencia e estimula o absentismo e traduz-se numa gritante injustiça para os trabalhadores que, muitas vezes, com grandes sacrifícios, cumprem o dever de assiduidade ao serviço;
O acórdão recorrido confundiu, assim, discriminação com a distinção do que, objectivamente, não é equiparável;
O que o texto constitucional proíbe são as discriminações arbitrárias, no sentido de não equitativas ou iníquas, máxime, a discricionariedade persecutória;
Ainda que se perfilhe o entendimento de que os únicos factores distintivos de possíveis diferenciações salariais são a quantidade de trabalho (duração e intensidade) a natureza do trabalho (dificuldade, penosidade e perigosidade) e a qualidade do trabalho (exigência, conhecimentos, prática e capacidade), jamais se poderá considerar inconstitucional a diferenciação que tem como fundamento o absentismo, ainda que justificado;
E isto, desde logo, porque, no caso concreto, a quantidade (duração) de trabalho efectivo não é idêntica;
Deve, por conseguinte e em face das razões sumariamente expostas, ser lavrado assento com a seguinte formulação: «O absentismo, ainda que justificado, constitui factor de diferenciação lícito face ao disposto no princípio de 'para trabalho igual, salário igual', consagrado no n.º 1, alínea a), do artigo 59. da Constituição da República Portuguesa.»
Contra-alegou o Ex. Procurador-Geral-Adjunto da Secção Social deste Tribunal, que sintetizou as suas doutas alegações nas seguintes conclusões:
1. Concluir-se que é inconstitucional, face ao artigo 59., n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa fazer repercutir na quantidade de trabalho as faltas justificadas;
2. Decidir-se a presente oposição de julgados, lavrando-se assento com a seguinte ou semelhante redacção: «O absentismo justificado não influiu nos factores de diferenciação salarial lícitos, nos termos do artigo 59., n.º 1, alínea a), da Constituição da Republica Portuguesa.»
Foram colhidos os vistos legais, cumprindo decidir.
Como já se referiu, a questão que nestes autos se discute é a de saber se, face ao princípio constitucional de «para trabalho igual salário igual», contido no artigo 59., n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, uma situação de absentismo justificado constitui factor de legítima diferenciação de níveis salariais relativamente a trabalhadores que, em regra, exercem trabalho igual em termos da natureza, qualidade e quantidade.
Com interesse para o problema em análise, deu-se como provada no acórdão a seguinte matéria de facto:
1) B e C são trabalhadoras da arguida, todas com a categoria de detectoras de deficiências de fabrico de 1.;
2) Todas elas desempenham funções iguais (verificação da perfeição de produtos acabados), designadamente deficiências em machos, eventualmente rebarbar os machos com uma lâmina e ainda detectando deficiências nos mesmos a fim de que aquele (sic) providencie no sentido do acerto ou afinação da máquina, etc.;
3) Todas elas tem igual horário de trabalho, trabalhando quarenta e quatro horas semanais em cinco dias na semana;
4) Todas elas prestam trabalho no mesmo local, na secção de macharia, nas instalações industriais da arguida;
5) Todas elas se encontram em igual posição hierárquica dentro da organização de trabalho da arguida, estando subordinadas e em iguais condições ao superior hierárquico, D;
6) A B apresenta igual perfeição e capacidade na execução do serviço e semelhante rendimento (produtividade), durante os períodos efectivos aos das demais trabalhadoras referidas no n.º 1) (crê-se que há lapso material quanto ao nome da trabalhadora referida, que deve ser antes a C, pois esta é que teria sido salarialmente discriminada);
7) Os factos referidos nos n.os 2) a 6) verificam-se desde, pelo menos, Janeiro de 1991 (sic);
8) Até Dezembro de 1989 (e, pelo menos, desde Julho de 1990, a arguida pagou a qualquer das referidas trabalhadoras igual retribuição base), retribuição que em Dezembro de 1989 era de 45150 escudos;
9) Desde Janeiro de 1990, inclusive, a arguida alterou a retribuição das referidas trabalhadoras, fixando-as nos seguintes termos:
E: 51500 escudos (Janeiro a Maio), 55500 escudos (Junho a Dezembro), 63800 escudos (Janeiro a Setembro de 1991);
B: 51000 escudos (Janeiro a Maio), 55000 escudos (Junho a Dezembro), 62100 escudos (Janeiro a Setembro) [crê-se que se mantém o lapso material referido no n.º 6) e que esta segunda trabalhadora será C, pois que é a ela que é imputado o absentismo, como se vê do facto seguinte];
10) Em 1990, a C apresentou o absentismo de 38,84%, enquanto a E, trabalhadora comparada, apresentou de absentismo 4%;
11) Para os referidos valores de absentismo a arguida considerou todas as ausências ao serviço, sejam justificadas ou não;
12) A diferença das retribuições base de 1991 entre a B, a C e a E ficou a dever-se ao absentismo de C referida no n.º 10).
No acórdão fundamento deu-se provado, com interesse para a questão em causa, o seguinte conjunto de factos:
1) F, G e h eram trabalhadoras ao serviço da recorrente, tendo todas a categoria de detectoras de deficiências de fabrico de 1. e todas desempenhando funções iguais - verificação da perfeição de produtos acabados, designadamente de acessórios metálicos de tubagem e outros;
2) Todas tinham igual horário de trabalho, trabalhando quarenta e quatro horas semanais e cinco dias por semana, desempenhando funções na secção de controlo final;
3) Todas se encontravam em igual posição hierárquica e subordinadas ao mesmo superior hierárquico, Norman Luís Ferreira Ramuni;
4) A F apresenta igual perfeição e capacidade na execução do serviço e semelhante rendimento (produtividade) ao das colegas referidas no n.º 1), sendo que os factos referidos nos n.os 2) a 6) se verificaram desde, pelo menos, Janeiro de 1991;
5) Até Dezembro de 1990 (e, pelo menos, desde Julho desse ano) a arguida pagou às referidas trabalhadoras igual retribuição base, que em Dezembro de 1990 era de 53000 escudos;
6) A partir de Janeiro de 1991, a arguida passou a pagar à G e à H 63200 escudos e à F 61000 escudos;
7) Em 1990 a E apresentou um índice de absentismo de 44,78%, essencialmente devido a baixa médica, enquanto no mesmo ano tal índice foi de 6,58% para a G e de 2,21% para a H;
8) Nesses valores foram consideradas todas as ausências ao trabalho, justificadas ou não;
9) A diferença salarial referida no n.º 6) ficou a dever-se ao absentismo apresentado pela E.
Face à identidade praticamente total da base de facto apurada nos dois acórdãos, e realmente manifesta a sua oposição quanto à mesma questão de direito, pois enquanto o acórdão fundamento considerou causa justificativa de diferenciação ou discriminação salarial o absentismo justificado, o acórdão recorrido entendeu que o referido absentismo «de modo algum» podia influenciar o princípio constitucional de «para trabalho igual salário igual».
Vejamos.
Quer a doutrina quer a jurisprudência são unânimes em considerar que o princípio de «para trabalho igual, salário igual», consagrado no n.º 1, alínea a), do artigo 59. da Constituição - que é, aliás, a projecção, quanto a direitos específicos dos trabalhadores, do princípio da igualdade essencial dos cidadãos perante a lei, inscrito no artigo 13. do mesmo diploma -, implica e pressupõe que a retribuição deva ser conforme à quantidade de trabalho (ou seja, à sua intensidade e duração), à qualidade do trabalho (dos conhecimentos, da prática e da capacidade do trabalhador) e à natureza do trabalho (ou seja, à sua dificuldade, penosidade e perigosidade). Assim, se vários trabalhadores produzirem trabalho que possa ter-se por igual segundo os referidos parâmetros, não pode a entidade patronal pagar-lhes salários de diferente valor. A Constituição fixa naquela disposição os critérios objectivos à luz dos quais deve aferir-se a igualdade do trabalho, assim se proibindo o arbítrio e a discriminação salarial face a situações laborais essencialmente idênticas. O que não impede a diferenciação salarial que premeie o mérito e estimule a produtividade, desde que tenha por base a consideração daqueles critérios - o que se impõe é que a diversidade de tratamento seja materialmente fundada do ponto de vista da segurança jurídica, da justiça e da solidariedade. V., por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição Anotada; Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, vol. I, a pp. 384 e segs.; Menezes Cordeiro, in Manual de Direito do Trabalho, a pp. 736 e segs.; Lobo Xavier, in Curso do Direito do Trabalho, a pp. 403-404, e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 1989, de 1 de Março de 1990 e de 14 de Novembro de 1990, in Acórdãos Doutrinais, n.º 328, p. 558, 343, p. 1017, e 350, p. 268, respectivamente.
No caso em análise é indiscutível que o trabalho de todas as trabalhadoras envolvidas, as pretensamente discriminadas e as outras, era igual em termos de natureza e qualidade - a questão está em saber se tal igualdade se deva ter também por existente em termos de quantidade.
No acórdão fundamento entendeu-se que tal facto não se verificava porque a trabalhadora «discriminada» apresentava uma taxa de absentismo - essencialmente devido a baixa médica - muito superior à das suas colegas, desse modo afectando a duração relativa de trabalho por elas prestadas; no acórdão recorrido entendeu-se, porém, que o absentismo não pode ser causa de diferenciação salarial, verificados que sejam os requisitos da igualdade de trabalho previstos na Constituição.
Dado que o recurso tem, essencialmente, por base o absentismo justificado como causa legítima da alegada discriminação salarial em situações de trabalho igual pela sua natureza e qualidade, é sobre os efeitos de tal tipo de absentismo que versarão as nossas considerações.
O absentismo justificado corresponde à noção de faltas justificadas e, por isso, a questão a decidir é a de saber se poderão aquelas ser fundamento de diferenciação salarial legítima no quadro do princípio constitucional de «para trabalho igual salário igual».
Cremos que tal fundamento não pode afectar ou reflectir-se no direito à igualdade de salários se os trabalhadores envolvidos, inclusivamente o eventualmente discriminado pelo referido motivo, desenvolvem trabalho igual em natureza e qualidade nos períodos comuns de serviço efectivo - como sucedeu, aliás, nos casos que foram objecto das decisões opostas em análise.
Entre os deveres a que o trabalhador fica vinculado por efeito do contrato de trabalho conta-se o da assiduidade, ou seja, o de comparecer ao serviço nos termos contratados para aí prestar a actividade a que se obrigou [artigo 20., n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969]. Este dever supõe que o trabalhador possa comparecer ao trabalho, de sorte que só ocorrerá a sua violação se a ausência daquele puder ser-lhe imputada por causa não legalmente prevista como justificada. Com efeito, a lei prevê que as faltas ao trabalho possam ser justificadas ou injustificadas e àquelas não atribuiu outra consequência senão a perda da retribuição - e nem sempre (cf. artigos 22., 23., 24. e 26. do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro). As faltas justificadas não representam, por isso, violação do dever da assiduidade nem assumem, em consequência, a natureza da infracção disciplinar, sendo de acentuar que, nos termos do n.º 1 do artigo 26. do citado diploma legal, as faltas em causa «não determinam a perda ou prejuízo de quaisquer direitos ou regalias do trabalhador» - salvo a perda da retribuição correspondente aos dias das faltas.
Aceitar, por isso, que o absentismo justificado - em regra, se elevado, sempre devido a situações de doença - possa penalizar o salário do trabalhador que nos períodos da efectividade de serviço preste um trabalho igual ao de outros colegas quanto à natureza, qualidade e produtividade do mesmo, aceitar uma diferenciação salarial nessas circunstâncias corresponderia a atribuir às faltas justificadas um efeito que a lei não prevê nem consente. Na prática, iria permitir-se, por tal via, uma efectiva diminuição da retribuição do trabalhador justificadamente ausente, já que em diminuição se traduziria o não aumento ou aumento inferior do seu salário em confronto com a progressão do dos seus colegas. Não pode, a nosso ver, um tal absentismo produzir tais efeitos, desde logo violadores de garantias dos trabalhadores, designadamente a da proibição de baixa de retribuição pela entidade patronal [artigo 21., n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 49408].
É evidente que a orientação que perfilhamos supõe que se trate de justificação autêntica e séria, que não de absentismo justificado aparente, consequente a conduta reprovável ou ilícita do trabalhador.
Por todo o exposto, não havendo lugar a qualquer alteração da decisão proferida no acórdão recorrido, uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos:
«Viola o princípio de 'para trabalho igual salário igual', inscrito no artigo 59., n.º 1, alínea a), da Constituição, a entidade patronal que pratique discriminação salarial fundada em absentismo justificado por doença do trabalhador.»
Custas pela recorrente.
Cumpra o disposto no artigo 444., n.º 1, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 22 de Outubro de 1996.

Fernando José Leal Loureiro Pipa - José Manuel Carvalho Pinheiro - Victor Manuel de Almeida Deveza - Isidro de Matos Canas - António Manuel Pereira.