Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
56/17.7T8MTR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
REQUISITOS
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
PESSOA COLETIVA DE DIREITO PÚBLICO
RENÚNCIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
EXTINÇÃO DE DIREITOS
QUESTÃO NOVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
A qualificação de um caminho como público pode basear-se em dois fundamentos distintos: (i) No facto de ele ser propriedade de entidade de direito público e estar afecto à utilidade pública; (ii) ou no seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos relevantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO


1.1. Os Autores - AA, residente no ........, nº ….., em ......, freguesia …, Município ......, e a Junta de Freguesia de Vila da Ponte ( por intervenção principal) - instauraram ( 05/06/2017) acção popular civil, de espécie declarativa condenatória, sob forma de  processo comum (artºs 52º, nº 3, da CRP, e Lei nº 83/95, de 31 de Agosto) contra os Réus:

BB

CC e marido DD

EE e marido FF

GG e mulher HH

II e mulher JJ.        


Alegaram, em resumo:

O Autor é proprietário de um prédio urbano, de rés- do-chão e andar (sito em ……) que confronta lados sul e nascente, com o que designa por “Rua ......” ou “Largo de .....”.

O acesso ao mesmo faz-se através do que designa por “largo .......”, com o qual confina pelos ditos lados sul e nascente), conhecido como “Largo de .....” e que constitui um prolongamento lateral da Rua ...... situada a nascente.

Tal largo é confinado a sul por um prédio urbano dos réus; a norte por dois imóveis urbanos, um pertencente a KK e outro aos herdeiros de LL; e, pelo poente, com o referido imóvel do autor.

Ele, há mais de sessenta anos, era também conhecido por “Largo da ........”. Pelo respectivo chão, acede-se (pessoas a pé, com veículos automóveis, máquinas e tractores agrícolas, e com animais) ao referido prédio do autor.

É também utilizado pelos moradores de ...... e pelos cidadãos em geral para estacionamento de veículos automóveis, tractores agrícolas e alfaias. Tal uso é praticado pelos cidadãos que residem e que visitam a povoação de ......, sempre de forma pública - à vista de toda a gente –, ininterrupta – dia após dia, mês após mês, ano após ano –, e pacífica – sem qualquer estorvo, turbação ou oposição de quem quer que fosse –, de boa-fé – convictos de que utilizam bem pertencente a todos os cidadãos, residentes e não moradores em ......, sem lesarem direitos de outrem –, em correspondência com o exercício do direito propriedade pública e, assim, também o autor adquiriu o direito de utilizar o largo ....... para livremente aceder ao seu prédio, nele estacionar veículos automóveis, tal como os demais cidadãos.

Na “extremidade” sul do “Largo da Rua ......” existe um prédio urbano de que os réus são comproprietários (artigo …º, da Matriz). É composto por casa de habitação, de r/c e 1º andar, com um pátio interior, foi adquirido por sucessão mortis causa, há cerca de cinquenta e cinco anos, por partilha da herança de GG, marido da 1ª ré BB e pai dos demandados CC, EE, GG e II.

Tal prédio, desde a sua construção, em data anterior à memória dos vivos, sempre confinou pelos lados norte e poente com a “Rua ...... (Rua ......)”

O autor, por si e antecessores, no domínio do seu prédio, os moradores de ...... e os cidadãos em geral, ao longo de muitas gerações, sempre desde há mais de cem e duzentos anos até à actualidade vêm utilizando aquele “espaço da Rua ...... de ......”, à vista de toda a gente, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem qualquer estorvo, turbação ou oposição de quem quer que fosse, convictos que utilizam bem do domínio público, acessível e ao dispor de todo e qualquer cidadão, sem lesarem direitos de outrem, todos eles tendo o direito de circular e estacionar nele.

O prédio dos réus, fora dos seus muros, não tem qualquer parte descoberta. Aconteceu, porém, que, em 12-01-2015, os réus, ou alguém por eles mandatado, através de um requerimento Modelo 1 do IMI, alteraram, erradamente, na Matriz, as confrontações e a área daquele seu prédio, indicando como confinantes os quatro proprietários dos prédios que ladeiam a Norte e Poente o supra referido “largo .......”, pretendendo, assim, absorvê-lo e usurpar “coisa pública”, e, em 22-06-2016, promoveram o seu registo predial na Conservatória, incluindo – falsamente –, na sua superfície descoberta, área correspondente ao referido “espaço público” – que não é superior a 50m2.

A ré BB, desde o Verão de 2014, vem afirmando que o referido “largo (público)” lhe pertence e interpelou alguns cidadãos que nele estacionaram, nomeadamente, em Julho de 2016, pretendeu que o filho do autor retirasse o seu veículo automóvel do largo, onde o estacionara.

Em finais de Julho de 2016, os réus BB, EE, GG e DD, utilizando um tractor deste último, depositaram na referida “via pública (Largo de ….)” troncos de árvores, materiais que ali mantêm até hoje, ocupando o “espaço público” com carácter permanente, impedindo que os demais cidadãos dele façam uso e dificultando as manobras de entrada e saída, cargas e descargas nos prédios confinantes com o largo, nomeadamente no imóvel do autor.

Os cidadãos da povoação de ......, sentindo-se lesados com a descrita conduta reuniram em assembleia (“couto”) duas vezes - em 19-10-2014 e em 28-07-2016, e declararam que o dito largo é “público” e que não aceitarão a pretensão de apossamento dos réus.

O autor interpelou a Junta de Freguesia, a quem pertence a defesa do “património público do território desta autarquia” para que agisse em defesa do “bem comum”, sendo que a autarquia nada fez de concreto para defender aquele “logradouro público”. Uma vez que “as vias de comunicação integram o domínio público” e o aludido “largo” é “coisa” que se integra nesse domínio, ele é insusceptível de apropriação individual, pelo que devem ser removidos os materiais colocados e reposta a sua livre utilização por qualquer pessoa.

Pediram cumulativamente:

“…deverá a presente acção ser julgada procedente, por provada e declarando-se a natureza pública do espaço conhecido por “Largo de ….” [referido nos itens 5º, 6º, 7º e 8ºda p.i., ou seja, um largo com o qual confina o prédio urbano do autor pelos lados sul e nascente e através do qual lhe acede, que constitui prolongamento lateral da Rua ......],

1. - Devem ser condenados os réus:

a) – A reconhecerem que o referido logradouro é bem do domínio público e, consequentemente, o direito do Autor AA e os cidadãos em geral, de livremente circularem com pessoas a pé e com animais, com veículos de tracção animal ou automóveis, nomeadamente tractores agrícolas, e de estacionarem qualquer espécie de veículos, no largo lateral à Rua ...... da povoação de ......, conhecido por “Largo de .....”;

b) – A retirarem do leito do espaço público referido na alínea anterior todos as materiais nele depositados, nomeadamente troncos de árvores, por forma a permitirem o seu uso livre e universal a qualquer cidadão;

c) – A absterem-se de nele fazerem qualquer uso permanente e exclusivo que impeça ou obstaculize o estacionamento e a normal circulação de pessoas, animais e veículos naquele largo;

d) – Em custas e condigna procuradoria;

2. – Deve ser ordenada a rectificação da inscrição matricial (artigo …12 da matriz urbana da freguesia …) e da descrição do registo predial (nº…54-…) relativos ao prédio dos RR. identificados no artº 13 da p.i., no que concerne á área descoberta e às confrontações, como dito nos artigos 28 a 32º desse articulado”.

1.2. Após audição do Ministério Público (artº 13º) – que não deduziu qualquer articulado –, foram efectuadas as citações (artº 15º, da referida Lei 83/95) dos réus e demais interessados.

1.3. A Junta de Freguesia de Vila da Ponte apresentou requerimento, ao abrigo dos artºs 2º e 15º, nº 1, da citada Lei, manifestando vontade de intervir nos autos a título principal (artsº 311º e sgs, CPC) e para lhe serem aplicáveis as decisões neles proferidas, alegando ter interesse igual ao do autora, presentando-se a defender qu a parcela de terreno conhecida  por “Largo de .....” é publica porque  “vem sendo efectivamente utilizado pelo público em geral, no exercício, ou satisfação do interesse colectivo.,

1.4. Os Réus EE e marido FF, contestaram, defendendo-se, em síntese

Aquilo que o autor chama “Largo .......” é uma “Eira” ( com 196,70 m2)  que integra o imóvel que lhes pertence (artigo … da Matriz), em comum e foi herdado do falecido marido e pai dos demandados, que confronta do norte com a Rua ...... (“Rua .....”) e MM, do sul com outro prédio dos réus (herdeiros de GG), do nascente com a antiga Escola Primária e NN e do poente com KK, AA (autor) e OO, conforme levantamento topográfico junto e para que remetem.

Os Réus utilizam tal “Eira” para colocarem os animais bovinos enquanto as crias se alimentavam com o leite das progenitoras (até há cerca de 30 anos, que tinham animais, por esta ser mais espaçosa que as cortes), para porem lenha a secar (para a lareira), alfaias e objectos agrícolas, materiais de construção (blocos, tijolos, cimento), betoneiras, carretas, etc., quando faziam obras no imóvel, tractores, carros de bois, e tudo o que entendiam.

Tal uso é feito pelos réus, como antes o faziam os seus antecessores no domínio do dito imóvel, entrando e saindo livremente, retirando todas as utilidades pelo mesmo proporcionadas, zelando-o e vigiando-o, acedendo ao mesmo (quer à construção quer à eira), directamente da Rua ...... (Rua ......), com a qual confronta do norte, e desta ao imóvel, pagando a contribuição predial respectiva, agindo os réus, tal como antes deles já faziam os seus antecessores no domínio, em nome próprio e na qualidade, fé e ânimo de verdadeiros e exclusivos proprietários, tudo e sempre de forma pública – à vista e com conhecimento de toda a gente, incluindo o autor –, pacífica – sem estorvo nem oposição de quem quer que fosse -, contínua – dia após dia, ano após ano, e de boa-fé porque na convicção do exercício de um direito próprio (de propriedade) sem lesarem direitos nem interesses alheios, em correspondência com o direito real de propriedade dos réus (em comum e sem determinação de parte ou direito), sobre tal imóvel, pelo que, além de por aquisição derivada (sucessão mortis causa), os réus adquirira o identificado imóvel por via da aquisição originária (usucapião).

Tal Eira integra o dito imóvel dos réus, o qual confina com a Rua ...... pelo respectivo lado norte. Desde toda a vida que a memória alcança, sempre há mais de 20, 30, 50, 60 e 80 anos, os réus e seus antecessores no domínio acederam desde aquela via pública ao seu imóvel (incluindo a eira), e do mesmo para tal via pública.

A referida eira já constava no inventário por óbito da mãe de GG, falecido marido da ré BB, e avó paterna dos demais réus, a quem pertenceu, relacionada na verba 62, integrando o imóvel dos réus. Os pais de GG (a dita inventariada PP e QQ sogros da ré BB, eram conhecidos como “........”, e daí o nome de “Eira .......” por que tal eira era conhecida.

A eira em causa é em terra batida, diferentemente da rua com a qual confronta (Rua ......), cujo piso é em paralelos. Se fosse “um prolongamento lateral da Rua ......”, quando a Junta de Freguesia/Câmara colocou paralelo na dita rua, também o tinha posto em tal área mas não o fez por ser privada.

O imóvel do autor tem apenas servidão de passagem pelo prédio dos réus, para pessoas a pé, tractor, reboque e alfaias agrícolas, situando-se o leito de tal caminho na dita eira, em linha recta desde a Rua ...... até àquele imóvel.

O imóvel do Autor confronta do norte com KK e com os réus (prédio em causa, considerando neste incluída a parte da eira), do sul com OO e os réus (prédio em causa, como referido), do nascente com os réus (prédio em causa, idem) e do poente com a rua/caminho, conforme levantamento topográfico. Era composto, antigamente, por uma velha construção de dimensão exígua (com apenas uma divisão no R/C e outra no 1º andar), e uma horta contígua, delimitada da referida eira dos réus por um velho muro em pedra e que há cerca de 26 anos, o autor demoliu totalmente tal construção e edificou outra de raiz, ocupando com ela, além da anterior área da velha construção (cerca de 20 m2), a dita horta, e também, com a esquina nordeste da mesma, uma pequena área da eira dos réus, e fez uma varanda voltada para a eira, tudo com consentimento dado pelo réu GG ao autor, que lho solicitou, por a parede da horta ser arredondada e torta e ele querer fazer uma parede recta e uma varanda na frente da casa (na altura dava-se muito bem com os réus), e, mais recentemente, há meia dúzia de anos, os réus consentiram também, dado o bom relacionamento pessoal, que o autor fizesse dois degraus no fundo da escada de acesso ao 1º andar do dito imóvel, com os quais ocupou outra pequena área da eira dos mesmos, tendo ainda os réus consentido, até meados de 2014, que o autor pusesse na dita eira, afastado da construção deles (em frente ao imóvel dele), algumas alfaias (arado, charrua) na época dos trabalhos agrícolas, e autorizado o demandante a fruir temporária (durante alguns anos) e gratuitamente, alguns terrenos deles, por o filho e o irmão do autor terem, durante vários anos e até meados de 2014, ajudado os réus em trabalhos agrícolas, nomeadamente no corte, carregamento e transporte de lenha para tal imóvel dos réus, que sempre a depositaram (a que ficava fora das cortes) na parte poente da Eira (“canto da lenha”), onde aqueles (filho e irmão do autor), sempre que ajudavam os réus, a punham por instruções destes e por saberem que a Eira é deles (“retribuindo” os réus tal ajuda, com os ditos consentimento, tolerância e comodato).

Quando o autor fez as ditas obras de alargamento do seu prédio, já há mais de 20, 30 e 50 anos que os réus e seus antecessores no domínio punham todos os anos, troncos de madeira e outra lenha para a lareira (iam queimando e colocando lá outros) naquele local da eira, nunca o autor tendo dito, antes de meados de 2014, que aquele espaço é público, e não dos réus, estando tais troncos e lenha à vista de toda a gente, mormente do demandante, que por ali passa praticamente todos os dias desde há mais de 25 anos.

Só em meados/2014, por a ré BB ter dito ao autor para deixar livres os terrenos que os réus lhe haviam emprestado, aquele, a esposa e o filho desentenderam-se com a mesma, o que originou uma queixa-crime contra eles e a partir daí, o autor e os familiares directos começaram a dizer que a eira é espaço público e a deixar alfaias e o carro ligeiro no meio da Eira dos réus e em frente à porta duma corte, agindo abusivamente porque já sem consentimento dos mesmos.

Após esse conflito, em meados/2016, o autor deixou um arado em frente à porta de uma das cortes dos réus, impossibilitando-os com isso, de acederem com tractor com lenha à dita corte, para a meterem lá, como era costume, tendo-lhe os réus dito para o tirar. Como não o tirou, enviaram-lhe em 21/07/2016, carta registada, por ele recebida para retirar da eira, como já lhe tinham dito verbalmente, tudo o que lhe tinham consentido nela, o que o mesmo também não fez, respondendo-lhes que aquilo era público.

Certo que, embora raras vezes, alguns dos amigo dos réus, nomeadamente quando os visitam, põem o carro na eira deles, mas fazem-no porque são amigos e com consentimento dos mesmos, e se alguém de outra aldeia for a um funeral a ...... e houver muita gente, se puser o carro na Eira dos réus durante meia ou uma  hora que demore, os mesmos nada dizem, tolerando tal acto, que consideram de mera tolerância social, sendo certo que nunca alguém estacionou veículos na eira dos réus sem consentimento ou tolerância destes, sendo do conhecimento de toda a gente da aldeia de ......, que os réus sempre utilizaram diariamente (nos últimos 10 anos com menos frequência, dada a idade de ré, BB, que vive lá) tal imóvel, incluída a respectiva eira, pela qual acedem à Rua ...... e desta ao imóvel, pessoas a pé, animais bovinos e suínos, veículos ligeiros, tractor e reboque com produtos agrícolas e lenha para descarregar nas cortes e palheiros, alfaias agrícolas, etc., pelo que ninguém estaciona carros nem tractores na dita eira, nem os réus o consentiam, pois impossibilitar-lhe-ia a plena fruição do seu imóvel.

Os (poucos) moradores da localidade (......) têm outros espaços próprios e públicos, não precisam daquele (eira) e são cada vez menos as pessoas de fora que lá vão.

Só desde que as relações pessoais entre autor e réus se deterioraram é que aquele começou a dizer que o espaço é público e a ocupá-lo ostensivamente.

Uma vez que era comum as descrições matriciais dos prédios, nomeadamente as confrontações e áreas serem incorrectas, o que os réus fizeram foi actualizar e corrigir as do seu com base num levantamento topográfico que mandaram realizar mas que respeitou a configuração e limites de toda a vida.

Nunca a Junta de Freguesia tratou, convocou qualquer reunião sobre o assunto, nem teve qualquer actuação sobre o largo significativas de que considerava aquele espaço como público.


1.5. Realizada audiência de julgamento, foi proferida (19/2/2020) sentença ( fls. 404 e segs.) que decidiu:

“Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência:

A) Declaro a natureza pública do espaço conhecido por “Largo de .....”, sito em ......, melhor descrito em 4.º, 5.º e 6.º dos factos provados.

B) Condeno os Réus a reconhecer que referido largo é bem do domínio público e, consequentemente, o direito do Autor AA e os cidadãos em geral, de livremente circularem com pessoas a pé e com animais, com veículos de tracção animal ou automóveis, nomeadamente tractores agrícolas, e de estacionarem qualquer espécie de veículos, no largo lateral à Rua ...... da povoação ......, conhecido por “Largo de .....”;

C) Condeno os RR. a retirarem do leito do espaço público referido na alínea anterior todos as materiais nele depositados, nomeadamente troncos de árvores, por forma a permitirem o seu uso livre e universal a qualquer cidadão.

D) Condeno os RR. a absterem-se de nele fazerem qualquer uso permanente e exclusivo que impeça ou obstaculize o estacionamento e a normal circulação de pessoas, animais e veículos naquele largo;

E) Determino a rectificação da inscrição matricial do artigo … da matriz urbana da freguesia de ………) e da descrição do registo predial (nº…54-………) relativos ao prédio dos RR., no que concerne á área descoberta e às confrontações, devendo passar a constar que o prédio dos Réus confronta com o largo ....... e devendo excluir-se do prédio dos Réus a área correspondente à do referido largo.”.


1.6.- Inconformados, os Réus EE e marido FF, recorreram de apelação ( de facto e de direito) ( fls. 427 e ssegs.), argumentando, em síntese:

Pretendem que se altere a matéria de facto e, além do mais, dar-se como provado que “O espaço a que o autor chama “Largo .......” é uma “Eira” dos réus que integra o respectivo imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia da …….. sob o artigo …12, descrito na Conservatória do Reg. Predial de ……. sob o nº …54 e registado a favor dos mesmos pela AP. 478” - artigo 1º da contestação (facto NP da alínea b);

E que o espaço em causa nos autos faz parte do imóvel identificado no artigo 1º da contestação, que foi adquirido pelos réus há mais de 50 anos por sucessão hereditária de GG, marido da ré BB e pai dos réus II, CC, EE e GG ” – artigo 2º da contestação (facto NP al. c), bem como por usucapião.

O autor tem apenas servidão de passagem pela eira dos réus, que o mesmo quer converter em espaço público para pôr lá o tractor, alfaias e o carro do filho, pois nunca ninguém da aldeia estacionou naquela Eira sem consentimento dos RR. ou por mera tolerância dos mesmos

 Ora, por um lado, constando da douta sentença que o espaço em discussão teve inicialmente origem privada, pois chegou a pertencer a RR, por morte do qual ficou para a família “…..”, e não resultando dos factos provados – nem dos factos 2 a 9 referidos pela Sra Juiz, nem de qualquer outro facto provado – qualquer tempo de posse relativamente ao espaço em causa por banda do autor, da comunidade de ...... e dos cidadãos em geral, falece o requisito da posse “desde tempos imemoriais”, exigível pelo citado Assento do STJ de 19/04/1989 para a qualificação de um determinado espaço como do domínio público, assim como falece também prova do tempo mínimo de posse (artigo 1296º do CC) para aquisição de tal espaço para o domínio público por via da usucapião, contrariamente ao decidido, o que acarreta a improcedência da acção.

 O autor não alegou a apropriação do espaço em causa por pessoa colectiva de direito público (v.g. a Junta de Freguesia), nem a sua afectação ao uso público por tal entidade, assim como não foi alegada a prática de qualquer acto de jurisdição administrativa sobre tal espaço, designadamente a realização de alguma obra, ou a sua conservação e/ou limpeza, pelo que, não se tendo provado (nem foram alegados) quaisquer actos de posse sobre o espaço em causa reportados à autarquia ou à Junta de Freguesia, dos quais se pudesse presumir pela sua apropriação por pessoa colectiva de direito público, sempre faltaria tal requisito para o espaço em discussão poder ser considerado bem do domínio público.


1.7.A Interveniente Junta de Freguesia e o autor AA contra-alegaram (fls. 468 a 495 e fls. 497 a 541) no sentido da improcedência do recurso.


1.8. A Relação de Guimarães, por douto acórdão de 4/2/2021 ( fls. 551 e segs.), decidiu julgar procedente a apelação,  revogar a sentença e absolver os Réus dos pedidos.


1.9. O Autor AA e a Junta de Freguesia de Vila da Ponte recorreram de revista ( fls. 618 e segs.), concluindo, em síntese:

1)A primeira questão levantada pelo Tribunal da Relação …… prende-se com o facto de o Autor não ter alegado nem demonstrado que o espaço em discussão nos autos é público desde tempos imemoriais.

2), o Autor alegou nos artigos 34.º e 35.º da sua Petição Inicial todos os factos essenciais para ser reconhecido o Direito invocado ao alegar que o espaço em questão nos autos é utilizado quer pelo Autor, quer pela população  ......, quer pela generalidade das pessoas que se deslocava no local, há mais de cem e duzentos anos, tendo desta forma concretizado os factos essenciais para se verificar a imemoriabilidade do uso do dito espaço, na aceção que lhe é conferido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/02/2012, disponível no site www.dgsi.pt. refere que o critério “tempos imemoriais” deve ser interpretado como “aquele que é tão antigo que o seu início se perdeu na memória dos homens”.

3)  Não existe dúvida nenhuma que um uso feito de um determinado local há mais de cem e duzentos anos é um uso que deve ser considerado como um uso feito desde de tempo imemoriais, isto porque, o uso do local em questão nos autos, pelo período de tempo alegado pelo Autor, é tão antigo que nenhuma pessoa viva consegue ter memória do seu início.

4) Para fundamentar o facto do espaço em discussão nos autos não estar no uso direto e imediato do público desde tempos imemoriais, o Tribunal da Relação  ……. refere que o Autor alega no artigo 7.º da Petição Inicial que o espaço em discussão nos autos “há mais de sessenta anos também era conhecido por “Largo da Eira do RR”.

5) Nunca em momento algum o Autor alegou que a propriedade do espaço em discussão nos autos era do referido RR. O Autor no artigo 7.º da Petição Inicial apenas identificou o espaço em crise nos autos identificando-o pelo nome que a população de ...... atribui ao local para identificar o mesmo, como aliás também fez no artigo 5.º do referido articulado, onde o Autor alegou que o referido espaço também era conhecido por “Largo de .....”.

6) A prova produzida em sede de julgamento foi toda no sentido de que o espaço em discussão nos autos é público porque utilizado pelo público desde de tempo imemoriais, e é o que aliás resulta da matéria de facto dada como provado pelo Tribunal da Relação de …… nos pontos 8, 9 e 29.

7) A ser verdade que alguma vez o espaço em discussão nos autos teve originariamente natureza particular por ter pertencido ao dito RR, que nem por mera hipótese se admite, há muito tempo que o mesmo terá deixado de ter esta natureza por renúncia ao direito de propriedade pelos “alegados herdeiros” do dito RR, que nunca praticaram qualquer tipo de ato de posse sobre o referido espaço.

8) . A renúncia ao direito de propriedade é uma questão que não se encontra totalmente resolvida no direito positivo português, no entanto, a doutrina civilística tem vindo a defender que a renúncia ao Direito de propriedade é uma faculdade que se integra no conteúdo do Direito de propriedade previsto no artigo 1305.º do Código Civil, nomeadamente no direito de dispor do direito como perda absoluta, e doutrina-se que a renúncia ao direito de propriedade decorre do princípio da autonomia privada.

9)Na renúncia ao Direito de propriedade cumpre distinguir o “abandono”, caracterizado como um comportamento negativo do proprietário que se desliga por completo e para sempre da coisa com a intenção de abdicar do Direito que sobre ele detém sem, no entanto, o atribuir a ninguém; e a “renúncia abdicativa”, que se caracteriza como uma declaração de vontade do proprietário que visa a extinção do Direito na sua esfera jurídica.

10)  No que diz respeito ao espaço em discussão nos autos, consta dos pontos 8, 9 e 29 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da Relação ……., que o referido espaço era utilizado pela população ...... e pela generalidade das pessoas que por lá se deslocava, verificando-se, assim, um desinteresse total dos herdeiros quanto ao referido espaço, desinteresse esse que deve ser considerado como renúncia ao direito de propriedade por abandono total do espaço em discussão.

11) E ao contrário do referido no Douto Acórdão do Tribunal da Relação  …… não é pelo facto da Junta de Freguesia não ter alegado qualquer ato praticado sobre o espaço em discussão que o referido espaço deixa de ter natureza pública, até porque tal inércia não corresponde à verdade, tendo sido dado como provados nos pontos 16 e 28 da matéria de facto provada a prática de actos administrativos pela Junta de Freguesia, como sejam a expedição de interpelações e a realização de duas assembleias do “Couto”.

12) . O Acórdão de que se recorre padece da nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea c) do CPC, na medida em que se revela incoerente e incompatível no que à intervenção da Recorrente Junta de Freguesia concerne, pois não se alcança como por um lado dá como provada nos pontos 16 e 28 da matéria de facto a prática de atos de índole manifestamente administrativa, para vir depois concluir que não foi o espaço em discussão objeto de qualquer ato administrativo pela autarquia.

13) O Acórdão do STJ de 19.04.1989, com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, apenas refere que a natureza pública de um bem decorre do uso direto e imediato pelo público desde de tempos imemoriais, não exigindo que o bem tenha sido apropriado ou produzido por uma pessoa coletiva de direito público e que haja praticado atos de administração, jurisdição ou conservação!

14) Analisando os pontos 16 e 28 da matéria de facto dada como provada, verifica-se que a Junta de Freguesia de Vila da Ponte, que é uma pessoa coletiva de direito público, praticou ato de administração sobre o referido espaço, por um lado quando procedeu à interpelação dos Réus no sentido de informar que o espaço em discussão nos autos é, desde tempo imemoriais, um espaço público, por outro lado quando organizou e dirigiu as reuniões nas quais se discutiu a propriedade do espaço em questão nos presentes autos.

15) Por fim, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação  ……. entendeu não existir uma utilização geral e indiscriminada do local em discussão nos autos que confira ao local uma afetação à utilidade pública em geral para satisfazer interesses coletivos com relevo para a comunidade.

16) Não se concorda, pois a jurisprudência tem defendido que a afetação à utilidade pública de um determinado bem está subordinada à satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância. Neste sentido decidiu Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 14/02/2012, disponível no site www.dgsi.pt. EO grau de relevância para determinar se um determinado bem está afeto ou não à utilidade pública deve ser analisado em função do local onde o bem se integra.

17)  O espaço em discussão nos autos, identificado nos pontos 4 e 5 da matéria de facto, dada como provada, está localizado na aldeia ......, situada no concelho  ......, num meio rural, cuja economia local ainda depende muito do sector agrícola e em que grande parte da população ainda tem gado, alfaias agrícolas, etc…

18) O espaço em discussão confina do lado norte com a Rua ......, que é a única Rua da aldeia, é uma rua bastante estreita, servindo utilidades coletivas diversificadas, satisfaz o interesse objetivo do trânsito e deslocação, mas também é utilizado para o desvio de gado, para desvio dos carros, para estacionamento de carro quando as pessoas se deslocam à aldeia para assistir a uma festa ou a um funeral, ou até quando vão visitar algum familiar, conforme se depreende dos pontos 8, 9 e 29 da matéria de facto dada como provada.

19) Por isso, a utilidade do espaço em discussão nos autos não é uma utilidade que satisfaz apenas os interesses do Autor e dos Réus mas é sim uma utilidade que satisfaz de facto os interesses reais dos habitantes da aldeia  ...... e da generalidade das pessoas que lá se desloca.

20) O uso generalizado e comum do espaço em discussão nos autos quer pelos habitantes da aldeia ...... quer pelas pessoas que por lá se deslocam, ficou demonstrado de forma suficiente, para que se tenha por cumprido o ónus que incumbe ao Autor de provar a sua afetação à utilidade pública, já que revela uma utilização associada à satisfação das necessidades sociais e da vida económica dos habitantes da aldeia ..... e da generalidade das pessoas que por lá se desloca.

21)  Encontram-se assim preenchidos todos os requisitos para que seja declarada a natureza pública do espaço em discussão nos autos, isto é, verifica-se que o espaço em discussão nos autos está no uso direto e imediato da população de ......, bem como pela generalidade de pessoas que lá se desloca, para satisfação de interesses coletivos de certo grau de relevância, e isso desde de tempo imemoriais, pelo que se impõe a revogação do Acórdão impugnado e a repristinação do decidido na Douta Sentença da primeira instância.


1.10.- Os Réus EE e FF contra-alegaram ( fls. 632 e segs.), concluindo, em resumo:

1)A matéria de facto fixada no douto Acórdão recorrido não é suficiente para ser declarada a dominialidade pública do espaço de terreno em discussão nos autos (identificado no ponto 4. da matéria de facto provada), contrariamente ao alegado pelos recorrentes.

2) Não resulta provado dos factos fixados pela Relação, nenhum dos requisitos definidos no Assento do STJ de 19/04/1989, hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (e menos ainda na sua interpretação restritiva posteriormente firmada) que permita considerar o espaço em causa como público.

3) . O autor não provou que o espaço de terreno em causa está “no uso directo e imediato do público” e menos ainda “desde tempos imemoriais”.

4) Não se provou o artigo 34º da petição, único onde o autor alegou o tempo de posse, nem também o artigo 15º, nem a 2ª parte do seu artigo 7º. E também não se provou o artigo 35º da petição, onde o autor alegava pertencer o espaço em causa à Rua ......, o que também resulta indemonstrado pela eliminação feita pela Relação no facto provado 5. de que “o referido espaço constitui um prolongamento lateral da Rua ......” além de ter alterado a confrontação nascente, pelo que nada quanto ao uso público do espaço em causa, desde tempos imemoriais, se provou.

5) Contrariamente ao legado pelos recorrentes, não resulta da matéria de facto fixada pela Relação, constante dos factos provados 8., 9. e 29., nem aliás de qualquer outro, que o espaço de terreno em causa esteja no “uso direto e imediato do público”, e menos ainda “desde tempos imemoriais “, nem também a sua afectação à utilidade pública para satisfação de interesses colectivos relevantes.

6) No facto 8. provou-se apenas um uso bastante restrito, e visando a satisfação de interesses individuais, e não um uso público, generalizado nem indiscriminado, nem que vise a satisfação de interesses colectivos relevantes.

7) No facto 9. provou-se unicamente que o uso restrito dito em 8. sempre ocorreu sem objecção de quem quer que fosse, por mera tolerância, sendo um “uso cúmplice”, esporádico e não prejudicial, consensualmente consentido entre vizinhos nos meios rurais.

8) No facto 29º provou-se que o espaço de terreno em causa é utilizado apenas por um número restrito e determinado de pessoas, não resultando provado o seu uso pelo público, nem “desde tempos imemoriais”, nem, dadas as exíguas finalidades neles referidas, que se destine à satisfação de interesses colectivos relevantes (mas tão só de interesses individuais daquelas restritas pessoas), nem que ajam com a convicção de ser espaço público, por nada nesse sentido se ter provado.

9) O alegado abandono pelos herdeiros do dito RR, do espaço de terreno em causa, e a sua pretensa aquisição para o domínio público, por apropriação por entidade pública, constitui questão nova, não suscitada nas instâncias, e por isso extemporânea, que não deverá ser conhecida por este Supremo Tribunal, dado que os recursos se destinam a reapreciar decisões, e não a apreciá-las “ex novo”, excepto as de conhecimento oficioso, não se considerando ser o caso.

10) . Sem prejuízo do referido na conclusão antecedente, não há qualquer facto provado que demonstre o alegado abandono, nem a prática pelo Estado ou por outra pessoa colectiva de direito público, de quaisquer factos ou actos que representem, através da conservação, reparação, regulamentação do trânsito, etc, a intenção de destinar o espaço em causa ao uso público, pelo que deverá improceder questão improceder.

11) No facto provado 28º consta apenas que a Junta de Freguesia enviou uma carta aos réus em 29.3.20217 (depois de o autor lho ter solicitado em 2014 e 2016 e não por iniciativa própria), não constando dele a prática de qualquer acto administrativo praticado pela Junta destinado à afectação do espaço em causa à utilidade pública.

12) O autor não alegou a apropriação do espaço em causa por pessoa colectiva de direito público (v.g. a Junta de Freguesia), nem a sua afectação ao uso público por uma tal entidade, nem resultou provada a prática de qualquer acto de jurisdição administrativa sobre tal espaço, designadamente alguma obra de melhoramento, conservação, ou reparação, como o seu calcetamento (ao invés, foi calcetada pela Junta de Freguesia, a Rua ......, com a qual confronta o espaço em causa, e este espaço não o foi, continuando o seu piso parte em terra, parte com pedras, laje natural e erva), iluminação, colocação de placa de sinalização, infra-estrutura, sequer limpeza ou manutenção.

13)  Não se verifica a nulidade invocada pelos recorrentes, dado não existir qualquer incoerência nem contradição no douto Acórdão entre os factos assentes 28. e 16. e a afirmação de que a Junta de Freguesia não praticou qualquer acto administrativo, pois que o facto 16 não se reporta a qualquer acto da Junta de Freguesia, e o facto 28 não constitui qualquer acto administrativo destinadas à afectação do espaço em questão à utilidade pública, para satisfação de interesses colectivos relevantes.



II – FUNDAMENTAÇÃO



2.1.- Delimitação do objecto do recurso

As questões submetidas a revista, delimitada pelas respectivas conclusões, são, no essencial, as seguintes:

A nulidade do acórdão ( contradição entre fundamentos e decisão );

A natureza pública da parcela do terreno descrita no ponto 4 ( dos factos provados ), conhecido por “largo da ……….” e que há mais de sessenta anos também era conhecido por “Largo da .......................”.


2.2.- Os factos provados ( descritos no acórdão )

“1. O A. é um cidadão natural, residente e eleitor em ......, freguesia  ……., concelho  .......

2. Pela apresentação 1250 de 2018/02/07 encontra-se inscrito a favor do autor, por contrato de compra e venda celebrado 2 de Agosto de 1983, a QQ, o prédio urbano sito em ….., n.º ..1, com a área coberta e área total de 122m2; inscrito na matriz sob o art.º …11, composto por casa de rés-do-chão e primeiro andar e que se encontra descrito na conservatória do registo predial  ...... sob o n.º …….07.

3. No prédio identificado em 2.º, o autor guarda alfaias, tractores agrícolas e no primeiro andar, palha, feno e outros produtos agrícolas.

4. O acesso a este prédio do autor faz-se através de um espaço de terreno – espaço este que é o assinalado nos desenhos de fls. 93 e 124, a triplos traços verdes descontínuos, tem a configuração geométrica aí mostrada e acesso, do lado norte, pela Rua ...... na qual desemboca – com o qual confina, conhecido por “Largo de .....”.

5.O espaço referido em 4 é delimitado, a norte, pela Rua ...... e pelo prédio urbano pertencente a MM; a poente pelos prédios urbanos de KK, do autor AA e de OO; do sul pelo prédio dos herdeiros de GG; e do lado nascente com as casas dos réus.

6. Este espaço, há mais de sessenta anos, também era conhecido por “Largo da .......................”.

7. O mencionado espaço permite aceder ao prédio urbano do autor, com pessoas a pé, veículos automóveis, máquinas e tractores agrícolas e com animais.

8. O espaço descrito em 4 é utilizado pelo autor para estacionar o seu tractor e alfaias agrícolas junta de sua casa e, por ocasião de eventos na aldeia (por exemplo, a festa em Julho ou funeral na Igreja e Cemitério próximos), é também utilizado, por algumas pessoas neles participantes, para estacionarem os seus veículos.

9. Tal prática, independentemente de quem seja a pessoa, sempre ocorreu sem objecção de quem quer que fosse.

10. Pela AP. 478 de 2016/06/22, encontra-se inscrita a favor dos réus, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a aquisição, por sucessão hereditária, em decorrência do óbito de GG, do prédio urbano, sito em ......, inscrito na matriz sob o art.º …, composto por casa de habitação, de r/c e 1º andar, e logradouro, e aí descrito como sendo confrontante de norte com Rua ...... e MM; sul, herdeiros de GG; nascente, escola primária e NN; e poente KK, SS e OO; com a área coberta de 281,7m2; e como tendo de área descoberta 304,2m2; e descrito na conservatória do registo predial de ...... sob o n.º 554/2060622.

11. Os réus, no “Procedimento simplificado de habilitação de herdeiros e registos” junto a fls. 50 e 71 e 72, realizado em 22-06-2016, declararam-se, respectivamente, meeira e herdeiros do falecido marido da ré BB e pai dos demais réus II, CC, EE e GG, declararem como integrando a sua herança o prédio descrito em 10 e foi com base nesse título que o registaram a seu favor na Conservatória.

12. Em 12 de Janeiro de 2015, os RR. ou alguém por eles mandatado, através de um requerimento Modelo 1 do IMI, alteraram as confrontações e a área daquele o seu prédio na respectiva inscrição matricial, indicando as seguintes confrontações: norte com Rua ...... e MM; sul herdeiros de GG; nascente escola primária e NN e poente KK, SS e OO.

13. No dia 22 de Junho de 2016 os réus promoveram o registo predial deste seu prédio na Conservatória do Registo Predial de ......, incluindo na sua superfície descoberta área correspondente ao referido espaço.

14. A ré BB, desde o Verão de 2014, vem afirmando que o espaço referido no ponto 4 lhe pertence.

15. Na sequência do descrito nos pontos 13 e 14, em finais de Julho de 2016, os réus depositam, junto da parede de sua casa e no recanto oposto entre as escadas de acesso à casa do autor e as paredes das outras duas casas vizinhas ali situadas a norte e a poente, troncos de árvores, que lá mantêm.

16. Os cidadãos da referida povoação ...... reuniram em assembleia (“couto”) duas vezes em datas não concretamente apuradas para discutir o comportamento da ré.

17. O autor remeteu à Junta de Freguesia ...... uma carta no dia 20 de Outubro de 2014 e outra, no dia 2 de Novembro de 2016, por intermédio da sua advogada.

18. [Eliminado]

19. O prédio descrito em 10.º vem sendo utilizado pelos réus para habitação (1º andar), aí comendo, dormindo, recebendo familiares, amigos e vizinhos, uma parte para arrumos e palheiro, para porem produtos agrícolas (feno, palha, batatas, milho, centeio, beterrabas, etc), lenha, caixas de madeira, móveis, e o R/C para arrumos e cortes para meterem os animais bovinos e suínos (aqueles até há cerca de 30 anos e estes até há cerca de 18 anos, em que deixaram de ter animais) lenha, alfaias, madeiras e objectos vários

20. Os RR. vêm usando o prédio descrito em 10.º até ao presente, como antes faziam os seus antecessores no domínio, do dito imóvel entrando e saindo livremente, retirando todas as utilidades pelo mesmo proporcionadas, zelando-o e vigiando-o, acedendo ao mesmo directamente da Rua ...... (Rua ......), com a qual confronta do norte, e desta ao imóvel, pagando a contribuição predial respectiva.

21. Agindo os réus, tal como antes deles já faziam os seus antecessores no domínio, na prática dos actos supra ditos, em nome próprio e na qualidade, fé e ânimo de verdadeiros e exclusivos proprietários,

22. Tudo e sempre de forma pública - à vista e com conhecimento de toda a gente, incluindo o autor –, pacífica – sem estorvo nem oposição de quem quer que fosse -, contínua – dia após dia, ano após ano,

23. De boa fé porque na convicção do exercício de um direito próprio (de propriedade) sem lesarem direitos nem interesses alheios,

24. Em correspondência com o direito real de propriedade dos réus (em comum e sem determinação de parte ou direito), sobre tal imóvel.

25. Desde há mais de 20, 40 e 50 anos que tal imóvel pertence aos réus, no qual sempre viveram, a ré BB (de 91 anos de idade), desde que casou há mais de 60 anos e os filhos II, CC, EE e GG nele nasceram, foram criados e viveram permanentemente até casarem, e depois disso a ele regressam várias vezes no ano, sempre tendo continuado até ao presente na sua posse.

26. Os pais de GG, sogros da ré BB, de seus nomes PP e QQ eram conhecidos como “……….”

27. A Mandatária dos Réus remeteu ao autor, em 21/07/2016, carta registada, por ele recebida, na qual o intima a “ (…)até ao final do mês de julho de 2016, retirar da eira todos os veículos e alfaias agrícolas que nela têm colocado – quer os que vêm colocando desde há cerca de dois anos, de forma abusiva, porque não consentida, quer os demais que lá deixavam há vários anos por mera tolerância deles – deixando a eira totalmente devoluta.”

28. A Junta de Freguesia  ...... remeteu aos réus carta datada de 29 de Março de 2017, onde se refere: “ Por força das reclamações apresentadas pelos habitantes desta freguesia, em meados de Novembro de 2016, dando conta da ocupação ilegal do Largo de ....., na povoação de ......, designadamente através da colocação de troncos de árvores neste espaço público, a Junta de Freguesia encetou a diligências no sentido de perceber a conduta de V. Exa. Constatou-se, então, que por consulta À inscrição predial e matricial, que a herança por óbito de GG, de que V. Exa. é interessada, tendo sido apresentada a 12/01/2015 uma rectificação no serviço de finanças competente, mediante a entrega do modelo1 do IMI referente ao artigo matricial … e descrição predial 554, a qual serviu de base à escritura de habilitação de herdeiros e consequente registo. Em tal pedido de rectificação de áreas participado por V. Exa., foram acrescentados 200m2 de superfície descoberta, área essa que abrange o Largo de ....., o qual, desde tempos imemoriais se reveste de natureza pública, sendo utilizado por toda a população  ....... (….)”.

29. O espaço descrito em 4 é também utilizado pelos habitantes da aldeia que têm vacas para, quando se cruzam na Rua ...... a que é adjacente, as desviarem e passarem; pelos vendedores que ali vão fornecer alguns produtos para parar os seus veículos e servirem a ré e pessoas que ali se encontrem; pelo autor e réus, para ali pousarem lenha; e, ainda, pelo dono da casa da esquina – antes MM e actualmente seu filho TT – para, encostadas às suas escadas, depositarem botijas de gás que comercializam”.


2.3. A nulidade do acórdão

Os Autores/revistantes arguiram a nulidade do acórdão, cominada no art.615 nº 1 c) CPC, alegando ser “incoerente e incompatível no que à intervenção da Recorrente Junta de Freguesia concerne, pois não se alcança como por um lado dá como provada nos pontos 16 e 28 da matéria de facto a prática de atos de índole manifestamente administrativa, para vir depois concluir que não foi o espaço em discussão objeto de qualquer ato administrativo pela autarquia”.

As nulidades da sentença ou acórdão, taxativamente previstas no art. 615 nº 1 CPC, reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

A nulidade do art. 615 nº 1 c) CPC (fundamentos em oposição com a decisão) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo.

Verdadeiramente o que os recorrentes questionam é eventual erro de julgamento, pois consideram que os factos provados em 16 e 28 justificam, por si só, a natureza pública do terreno (descrito em 4) com base na apropriação pela Junta de Freguesia.

Contudo, não existe contradição entre os factos provados em 16 e 28 e a decisão absolutória, pois esses factos não consubstanciam qualquer acto administrativo e muito menos de apropriação praticado pela Junta de Freguesia de molde a conferir o carácter público ao terreno.

         Improcede a nulidade do acórdão.


2.4.- A natureza pública da parcela de terreno denominado como “largo da ….” (descrito no ponto 4)

A passagem que uma generalidade de pessoas utilize é susceptível, em abstracto, de três qualificações: caminho público, atravessadouro e servidão (cf., para a sua distinção, Oliveira Ascensão, Revista “O Direito”, ano 123, IV, pág.535 e segs.).

O Assento do STJ de 19/4/1989 (BMJ 386, pág.121) (transformado em acórdão de uniformização) acabou por dirimir o dissídio sobre os critérios de qualificação dos caminhos para serem públicos, fixando a seguinte jurisprudência – “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público”.

Deste modo, pôs-se termo à divergência sobre se para a dominialidade de um caminho bastaria o uso directo e imediato do público (critério do uso) ou se era necessário que o caminho tivesse sido construído, apropriado ou conservado por entidade pública (critério da construção e manutenção ).

A tese do assento adoptou a primeira solução (critério do uso ), pelo que, provado o uso imemorial pelo público, é de presumir que houve apropriação legítima por parte das entidades de direito público, sendo a presunção ilidível por prova em contrário.

Porém, a jurisprudência posterior tem vindo a proceder, por um lado, a uma interpretação restritiva do Assento, e, por outro, a uma interpretação extensiva ( cf., por ex., Ac STJ de 2/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.115, de 10/11/93, BMJ 431, pág.300, de 11/1/96, BMJ 453, pág.211, de 19/5/2011 ( proc. nº 3378/08), de 29/9/2011 ( proc. nº 302/08 ), Ac STJ de 21/1/2014 ( proc. nº 6662/09), Ac STJ de 18/10/2018 ( proc. nº 1334/11, disponíveis em www dgsi j/stj).

A interpretação restritiva do Assento é no sentido da publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, de o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Argumenta-se, nomeadamente, com a circunstância de um dos requisitos essenciais da dominialidade pública ser a afectação à “utilidade pública” que consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas. De resto, seguida à letra a doutrina do assento, sem a restrição interpretativa, implicaria que todos os atravessadouros com posse imemorial teriam de ser qualificados como caminhos públicos, com manifesta violação do art.1383 do Código Civil, que os considera abolidos.

Por outro lado, preconiza-se uma interpretação extensiva do Assento, quando afirma que deixou de subsistir, em alternativa o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afecto à utilidade pública. Entende-se, nesta perspectiva, ainda que se tenha por revogado o art.380 do Código Civil de 1867, o conceito de coisas públicas aí definidas com as “apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos (...) utilizar-se (...)”, deve manter-se relevante, tanto mais que o art.84 da CRP indica certos bens como pertencentes ao domínio público.

Por isso, a qualificação de um caminho como público pode basear-se em dois fundamentos distintos:

(i) No facto de ele ser propriedade de entidade de direito público e estar afecto à utilidade pública;

(ii) ou no seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos relevantes.


A sentença da 1ª instância, partindo da factualidade então apurada, deferiu a pretensão dos Autores, qualificando o espaço ( descrito em 4) como público por força do uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais e a satisfação de interesses colectivos relevantes, justificando factualmente, em síntese, que esse espaço “constitui prolongamento lateral da Rua ......”, que “tal espaço é também utilizado pelos moradores ...... e pelos cidadãos em geral” “convictos que utilizam bem pertencente a todos os cidadãos, residentes e não moradores em ......”, para concluir que “ toda esta matéria de facto evidencia que o espaço e questão é usado pelo público em geral desde tempos imemoriais para os mais diversos usos: trânsito de animais, veículos automóveis, tractores, local de estacionamento de veículos automóveis, local de paragem de veículos automóveis pelos vendedores ambulantes que se deslocam à aldeia , local de depósito de vários objectos (…)”.

Por seu turno, a Relação, após exaustiva e pormenorizada análise crítica da prova, alterou factos relevantes ( por exemplo, factos dos pontos 8, 9, 29 )e revogou a sentença com os seguintes tópicos de argumentação:

a) Não existe prova de que , desde tempos imemoriais, o largo está no uso directo e imediato do público.

A alegação dos Autores do uso “ao longo de muitas gerações”, e mais concretamente, “desde há mais de cem e duzentos anos”, mesmo admitindo-se que tal alegação possa significar “ desde tempos imemoriais”, a verdade é que os Autores  não alegaram directa e objectivamente que a utilização como desde tempos imemoriais, ou seja a afectação pública desde então, porque como pertinentemente se anota “ tal tese desmorona-se quando o autor alega que tal espaço “ há mais de sessenta anos também era conhecido por “Largo da .......................”, o que aponta inequivocamente que esse RR foi realmente o proprietário do mesmo”;

b) Os Autores não alegaram qualquer acto ( jurídico ou facto concreto) seja de que natureza for ( da aquisição, afectação, de apropriação, por um lado ou de intervenção in loco ), ou seja, não há qualquer acto apropriativo pela Junta de Freguesia.


A justificação do acórdão, com proficiente enquadramento jurídico, socorrendo-se de abundante apoio doutrinário e jurisprudencial, com uma correcta metodologia do “círculo hermenêutico” é de acolher.

Na verdade, os Autores/revistantes desconsideram a alteração dos factos pela Relação (art.662 CPC), alteração que põe em causa a comprovação da afectação pública, pois, para além de julgar não provado que esse largo era o prolongamento lateral da Rua ......, deu como não provado ainda  que esse espaço fosse utilizado também pelos moradores  ...... e pelos cidadãos em geral ( cf. resposta ao ponto 8) e que o uso fosse praticado pelos cidadãos que residem e vistam a população   ......, sempre de forma pública, dia a dia, convencidos de que usavam um bem pertencente a todos os cidadãos ( cf resposta ao ponto 9 ), e nem se deu como provado que o espaço fosse também utilizado pela população  ...... em geral ( cf. resposta ao ponto 29).

Ora, tem-se entendido jurisprudencialmente que “a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas é insuficiente para se falar de “utilização pública” (cf, por ex., Ac STJ de 18/10/2018 (proc. nº1334/11), em www dgsi.pt) ou como mais expressivamente se elucida no Ac do STJ de 13/01/2004 ( proc nº 03A3433), disponível em www dgsi,  “o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto do dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”.

Neste contexto, e como diz o acórdão recorrido, não se comprova a satisfação pública desde tempos imemoriais, porque tal parcela de terreno chegou a pertencer a RR, razão porque, há mais de sessenta anos, era também conhecido por “Largo da .......................”, pelo que – “(…) não existe prova de que, desde tempos imemoriais, o largo está no uso directo e imediato do público. Tal só poderia ter sucedido nos últimos sessenta anos. Ainda assim, os factos não evidenciam que ele tenha estado, desde então, afectado à utilidade pública, seja dos cidadãos em geral, seja, ao menos, da população local.”.

Também não se provou qualquer acto de apropriação por parte da Junta de Freguesia, pois – como se argumenta no acórdão - “não alegou qualquer acto (jurídico ou facto concreto), seja de que natureza for (de aquisição, afectação, de apropriação, por um lado, ou de intervenção in loco), por si própria, ou seja, através dos seus órgãos, praticado no ou sobre o espaço em discussão (reparação, iluminação, água, saneamento, outros melhoramentos, limpeza, colocação de placas toponímicas e números de polícia, ou outras indicações relativas ao pretenso uso colectivo), nem a existência de qualquer outra marca, característica ou infra-estrutura de serviço público que aponte para jurisdição pública, a não ser o envio das já aludidas cartas a todos os réus e respectivos cônjuges, a dar-lhes conta de alegadas reclamações da população nas reuniões havidas, a censurar as alterações feitas pelos réus à descrição do seu prédio e a exigir a desobstrução daquele”.

Os Revistantes alegaram que tendo a parcela pertencido ao RR, os herdeiros renunciaram ao direito de propriedade, porque nunca praticaram qualquer tipo de acto de posse, verificando-se, assim, “um desinteresse total dos herdeiros quanto ao referido espaço, desinteresse esse que deve ser considerado como renúncia ao direito de propriedade por abandono total do espaço em discussão”.

É problemática a questão de saber se a renúncia abdicativa e o abandono constituem causas de extinção do direito de propriedade. Enquanto que a renúncia abdicativa implica uma declaração de vontade, validamente formalizada, o abandono traduz-se num comportamento negativo do proprietário que se desinteressa por completo.

Uma orientação rejeita tais causas de extinção do direito de propriedade, desde logo porque não constam expressamente no Código Civil, que apenas contempla o abandono de águas originariamente públicas ( art.1397 CC) e o abandono da posse ( art.1267 b) CC), e o abandono de coisas móveis ( arts.1318 CC  ), inexistindo, por isso, qualquer noma expressa sobre essas formas de extinção do direito de propriedade sobre imóveis, aceitando apenas a renúncia como causa de extinção de certos direitos reais menores (  cf, por ex, o usufruto e a servidão ) , argumentando-se ainda que tanto a renúncia abdicativa como o abandono tornam as coisas nullius, enquanto a coisa não for adquirida pelo Estado ou por terceiro, por usucapião ( cf., por ex., Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 371/378.)

Noutra orientação sustenta-se a livre renunciabilidade do direito de propriedade  com fundamento no  art.1305 CC, por ser ainda uma manifestação do direito de dispor, baseado no princípio da autonomia privada, e que o art.1345 CC ( “as coisas imóveis sem dono conhecido consideram-se do património do Estado” ), significa que a renúncia à propriedade implica a extinção do direito e a aquisição originária do direito de propriedade a favor do Estado, como também parece resultar do art.24 nº nº2 a) e d) da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do território e urbanismo ( Lei nº 31/2014 de 30/5 ) ( cf., por ex.  Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, 5.ª ed., pág.406, e Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil, Studia Iuridica n.º 8, BFDUC, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 17).

A propósito da norma do art.1345 do CC, P.Lima/A. Varela ( Código Civil Anotado vol.III, pág.176) salientam a estrita afinidade com o regime e procedimento das regras do direito sucessório sobre a herança vaga ( arts.2133 f), 2151 e segs. CC ), mas também por isso, e numa interpretação conforme a constituição, não parece que se trate de uma aquisição automática do Estado. É que a prévia determinação ou qualificação de uma coisa imóvel “sem dono conhecido”, enquanto pressuposto da sua reversão para a titularidade do Estado exige um procedimento para que o dono faça a “prova de vida”, tendo em conta o art.18 da CRP (restrição aos direitos fundamentais), pois perante o art.62 da CRP ( direito de propriedade) tem aplicação  o regime dos direitos, liberdades e garantias dada a sua natureza de direito análogo.

Mas não se torna necessário analisar aqui todo o acervo argumentativo e tomar posição, desde logo porque, como objectaram os Réus nas contra-alegações, trata-se de questão nova, não submetida anteriormente à apreciação, logo não pode ser agora conhecida na revista ( arts. 635, 639 CPC).

Em todo o caso, da factualidade provada não resulta qualquer renúncia abdicativa, nem está comprovado o abandono, pois para tal é insuficiente o não uso, e muito menos a comprovação de imóvel sem dono conhecido porque mesmo em estado de abandono tem ou poderá ter um dono.

Em resumo, não se comprovando os dois fundamentos para atribuir a natureza pública à parcela de terreno em questão, improcede o recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido.


2.5. Síntese conclusiva

A qualificação de um caminho como público pode basear-se em dois fundamentos distintos: (i) No facto de ele ser propriedade de entidade de direito público e estar afecto à utilidade pública; (ii) ou no seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos relevantes.



III – DECISÃO



Pelo exposto, decidem:


1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Sem custas, por isenção legal, mas com encargos pelos Autores ( art.4 nº1 b) e g), 5 e 6 RCP).


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Junho de 2021


Os Juízes Conselheiros


Jorge Arcanjo (Relator)

Maria Clara Sottomayor

Alexandre Reis

Atesto o voto de conformidade dos senhores Conselheiros Maria Clara Sottomayor e Alexandre Reis que não assinam em virtude da sessão se realizar através de vídeo conferência.

Jorge Arcanjo