Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2743
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ENERGIA ELÉCTRICA
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
POSSE TITULADA
SERVIDÃO ADMINISTRATIVA
CONTRATO DE CONCESSÃO
Nº do Documento: SJ200311200027436
Data do Acordão: 11/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Pretendendo os AA. que seja removido do prédio de que são donos um posto de transformação de energia eléctrica aí implantado desde 1982, não podem prevalecer-se, para tal efeito, do artº. 76º, do DL 43.335, de 19-11-1960, quer porque as concessões a outorgar pelo Estado Português abrangidas pelo regime estabelecido neste diploma são apenas as previstas no seu artº. 5º, quer porque a disciplina jurídica da distribuição de energia eléctrica de baixa tensão está excluída do seu âmbito de aplicação.
II - Na verdade, como resulta da conjugação dos seus artºs. 1º, 2º, 3º, 8º, 9º, 13º, al. c) e 43º a 45º, e também do que se explica no ponto nº. 8 do seu Preâmbulo, todo o referido diploma foi pensado e posto em vigor para regular, entre outros aspectos, a produção, o transporte e a distribuição da energia eléctrica, mas só a de alta tensão.
III - Resultando dos factos apurados que no uso dos poderes que a lei lhe confere a autarquia da Póvoa de Varzim concedeu à Ré (EN - Electricidade do Norte, SA) a distribuição da energia eléctrica em baixa tensão, tal concessão, por si só, constitui título jurídico suficiente para legitimar a utilização do posto de transformação por parte da Ré, bem como, por essa via, a ocupação do espaço em que ele ficou implantado.
N - Isto porque o exercício do direito de propriedade sobre o terreno na parte ocupada pelo posto foi voluntariamente limitado pelo respectivo titular antes de se operar a sua transmissão para a esfera jurídica dos AA, e até antes de ser concessionada à R. a distribuição da energia eléctrica, na justa medida em que constituiu a contrapartida aceite pelo então proprietário para obter da autarquia o licenciamento do loteamento de todo o prédio que lhe pertencia.
V - Como na aquisição derivada translativa o direito adquirido pelo novo titular é exactamente o mesmo que pertencia ao titular precedente, os AA. não dispõem contra a Ré de direito que lhes permita exigir a desocupação; a posse exercida pela Ré é titulada, pelo menos enquanto subsistir o contrato de concessão que celebrou com a Câmara Municipal (artºs. 1257º, nº. 1, 1259º, nº. 1 e 1263º, al. b), do CC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório

"A" e sua mulher B intentaram contra "C, S.A.", uma acção ordinária.
Alegaram que, sendo proprietários do prédio que adiante se identifica, a ré implantou nele, sem autorização nem o correspondente direito, um posto de transformação e de estabelecimento da rede de baixa tensão e de iluminação pública, causando-lhes incómodos, perturbações e desgostos.
Com base nisto, pediram a condenação da ré a reconhecer o seu direito de propriedade e a restituir-lhes a parte do prédio ocupada pelo posto, repondo-o na situação anterior.
Contestando a ré afirmou, em suma, que o posto foi implantado no local pelo loteador do terreno, então seu proprietário.
Na 1ª instância, após o julgamento dos factos, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido.
Os autores apelaram.
Por acórdão de 27.2.03 a Relação do Porto declarou os autores proprietários do referido prédio, mantendo, no mais, a sentença recorrida.
Ainda inconformados, os autores pedem revista, sustentando que o acórdão deve ser anulado, ou então revogado, condenando-se a ré a restituir-lhes, livre de coisas e de quaisquer obras ali efectuadas, a extensão do seu prédio que está a ocupar, mediante o pagamento duma indemnização.
Indicam como disposições legais violadas os artºs. 483º, 1251º, 1256º e 1305º do Código Civil, e o artº. 76º do DL 43.335, de 19.11.60.
A ré apresentou contra alegações, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

Fundamentação
I. A única questão posta nas conclusões da revista (que são dezanove) consiste em saber se a ocupação do lote pertencente aos autores com o posto de transformação de electricidade é ou não titulada.
Na tese dos recorrentes é intitulada porque o artº. 76º do DL 43.335, aplicável à situação em análise, obriga os concessionários à aquisição dos terrenos exigidos para a construção dos postos de transformação, não autorizando a oneração da propriedade privada mediante a constituição de servidões, ou por qualquer outro meio; deste modo, acrescentam, ou a recorrida comprava o terreno necessário, ou a câmara municipal dispunha de terreno próprio para o efeito, sendo que, no caso de não dispor, teria que promover a expropriação, pagando a justa indemnização; no caso vertente, os condicionamentos postos pela CM da Póvoa de Varzim à concessão não constituem qualquer direito real, ou, sequer, servidão administrativa a que os autores devam sujeitar-se; e tais condicionamentos, de qualquer maneira, não podem ter efeitos retroactivos, ofendendo direitos adquiridos.

II. Tendo em atenção o objecto do recurso, assim delimitado, interessa destacar os seguintes factos (reconduzidos ao seu núcleo essencial), de entre os definitivamente fixados pela Relação:
1) Por escritura pública de 26.8.91 os autores compraram a D e mulher E, por 2.000.000$00, o prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Laúndos, concelho da Póvoa de Varzim, sob o nº. 738.
2) O prédio está descrito na CRP da Póvoa de Varzim sob o nº. 00562/940831, tem como titular inscrito o autor, e inclui-se no loteamento que a CM da Póvoa de Varzim concedeu mediante o alvará 25/82, constituindo o lote nº. 25.
3) O loteamento foi feito por F, também ele proprietário do terreno a lotear, a quem a CM da Póvoa de Varzim concedeu alvará em 15.4.82.
4) As infra-estruturas eléctricas do loteamento de que o lote 25 faz parte foram dadas por concluídas em 14.10.82.
5) O posto de transformação e de estabelecimento da rede de baixa tensão e iluminação pública existente no prédio dos autores foi construído em data anterior a 14/10/82 a expensas do loteador e por imposição dos serviços municipalizados, como condição necessária para a aprovação do projecto de loteamento, de cujas infra-estruturas eléctricas faz parte.
6) O encargo imposto pela implantação do posto referido em 4) já havia sido aceite pelos proprietários anteriores aos autores.
7) Quando os autores adquiriram o lote 25 o posto de transformação já lá estava implantado há, pelo menos, nove anos.
8) Os proprietários antecessores dos autores já haviam adquirido o referido lote com o posto de transformação nele implantado.
9) A CM da Póvoa de Varzim celebrou com a EDP um protocolo de concessão de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão.

III. Ficou definitivamente assente no acórdão recorrido que os autores são os donos do prédio onde está implantado o posto de transformação de energia eléctrica. Isso, aliás, não chegou a constituir problema desde o início do processo. Tal como a causa se apresenta, porém, não há dúvida de que o pedido de reconhecimento do domínio sobre a totalidade do prédio é como que um pressuposto necessário da procedência do pedido de desocupação do imóvel - ilicitamente ocupado pela ré, segundo os autores, com o posto de transformação lá implantado.
Os factos postos em relevo, porém, mostram com clareza, em nosso entender, que a revista não tem bom fundamento e que a improcedência da acção foi correctamente decretada.
Desde logo, não colhe o argumento extraído do artº. 76º do DL 43.335, de 19.11.60, pela simples mas decisiva razão de que o diploma em que esta norma se insere não tem aplicação à hipótese dos autos. Não a tem porque, por um lado, as concessões a outorgar pelo Estado Português abrangidas pelo regime que este diploma instituiu são só as previstas no seu artº. 5º, nelas não se incluindo, manifestamente, a concessão que o município da Póvoa de Varzim outorgou à ré no âmbito da distribuição de energia eléctrica na zona considerada. Por outro lado, a disciplina jurídica da distribuição de energia eléctrica de baixa tensão está excluída do âmbito de aplicação do referido decreto-lei e, designadamente, do seu artº. 76º: todo o diploma, segundo se afigura, foi pensado e posto em vigor para regular, entre outros aspectos, a produção, o transporte e a distribuição de energia eléctrica, mas só a de alta tensão. Tal o que resulta com muita nitidez, a nosso ver, da conjugação de várias das suas normas, em especial as dos artigos 1º, 2º, 3º e seu § único, 8º, 9º, 13º, c), e 43º a 45º, e também do que se explica no ponto nº 8 do seu preâmbulo. Aí se descreve por que forma quis o legislador regular os conflitos entre a obrigação dos concessionários construírem e manterem as linhas e os direitos dos proprietários dos terrenos por elas atravessados. Mas, sintomaticamente, começa logo por se afirmar que tais conflitos são originados pela "expansão das redes de alta tensão", omitindo-se qualquer referência às redes de baixa tensão. Estamos em crer que num diploma de tamanha importância, cuja declarada intenção foi a de aprofundar a doutrina que enquadrava a política nacional de electrificação já então em marcha, clarificando ideias e uniformizando linguagem (cfr. os pontos 1, 6 e 13 do respectivo preâmbulo), a "omissão" apontada foi propositada, pensada, e não consequência de lapso, falta de previsão ou inadvertência.
De qualquer modo, mesmo que a aplicação daquele preceito ao caso em análise fosse defensável, a solução final do pleito não sofreria alteração.
Vejamos porquê.
Dos factos apurados resulta que no uso dos poderes que a lei lhe confere a autarquia da Póvoa de Varzim concedeu à ré a distribuição da energia eléctrica em baixa tensão. Ora, tal concessão, por si só, constitui título jurídico suficiente para legitimar a utilização do posto de transformação, bem como, por essa via, a ocupação do espaço em que ele ficou implantado. Isto porque, por outro lado, o exercício do direito de propriedade sobre o terreno na parte ocupada pelo posto foi voluntariamente limitado (restringido) pelo respectivo titular antes de se operar a sua transmissão para a esfera jurídica dos autores, e até antes de ser concessionada à ré a distribuição da energia eléctrica: voluntariamente, dizêmo-lo, na justa medida em que constituiu a contrapartida aceite para obter da autarquia, como de facto obteve, o licenciamento do loteamento de toda a parcela que lhe pertencia.
Sucede que a deliberação camarária que deferiu o pedido de loteamento nas condições apuradas não foi objecto de recurso, nos termos do artº. 8º do DL 289/73. De resto, como se vê do artº. 7º, nº. 1, h), deste diploma, teria sido motivo de indeferimento o facto do loteamento implicar trabalhos de urbanização não previstos pela câmara municipal, designadamente, entre outros, o assentamento de redes de abastecimento domiciliário de água e de electricidade, salvo se o requerente se tivesse comprometido a executá-los por sua conta ou a suportar o seu financiamento. Isto significa que o acordo concluído entre o proprietário (loteador) e a autarquia por via do qual aquele se vinculou a construir o posto de transformação em parte do terreno que ficou a constituir o lote 25 nada teve de anormal: pode mesmo dizer-se que na altura dos factos a lei promovia indirectamente este tipo de convénios como forma de conciliar o desenvolvimento urbanístico (e o papel nele reservado à iniciativa privada) com o interesse público do correcto ordenamento territorial e da qualidade de vida nos núcleos habitacionais urbanos.
Depois, nunca foi questionada a validade e a eficácia, quer da venda feita pelo loteador ao antecessor dos autores, quer da subsequente transmissão feita a estes. Nenhum dos sucessivos adquirentes intentou anular o negócio com base, por exemplo, em erro sobre os motivos ou sobre o objecto (artigos 251º e 252º do CC). E, todavia, o posto de transformação de energia eléctrica, parte integrante das infra-estruturas do loteamento legalmente aprovado, está ali, com essa afectação e com o pleno consentimento do então proprietário, desde 1982. Há que sublinhar este ponto: não se trata de coisa posta no terreno ajuizado em execução do contrato de concessão realizado entre a ré e a câmara municipal e sem o concurso da vontade do proprietário; bem ao contrário, estamos perante um elemento estrutural da rede de abastecimento de energia eléctrica cujo custo o dono do terreno loteado suportou e quis que, destinado a esse fim, ficasse localizado naquele preciso local, ciente de que, se assim não fosse, o alvará de loteamento não seria emitido.
Ora, sabido que na aquisição derivada translativa, como é o caso dos autos, o direito adquirido pelo novo titular é exactamente o mesmo que pertencia ao titular precedente, segue-se que os autores não dispõem contra a ré de direito que lhes permita exigir a desocupação pretendida. E se não cremos, contrariamente ao que se afirma no acórdão recorrido, que os factos coligidos permitam afirmar com a necessária segurança que estamos em presença duma servidão administrativa, estamos certos de que a posse exercida pela ré é titulada: no mínimo, sê-lo-á enquanto subsistir o contrato de concessão que nas circunstâncias relatadas celebrou com a câmara municipal (artºs. 1257º, nº. 1, 1259º, nº. 1 e 1263º, b), do CC).
Tanto basta para que a pretensão dos recorrentes não possa ser atendida.

3. Decisão
Pelo exposto, nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 20 de Novembro de 2003
Nuno Cameira
Afonso de Melo
Sousa Leite