Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4174/16.0T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DE DANOS
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
VALOR DESCONHECIDO
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / LIMITES DA CONDENAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 609.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 03-12-1998, IN BMJ 482, P.180;
- DE 30-03-2003.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 01-07-1980, IN BMJ 301, P. 469.
Sumário :
I - O tribunal deve condenar no que se liquidar em execução de sentença sempre que se encontrem reunidas duas condições: (i) que o réu tenha efectivamente causado danos ao autor; e (ii) que o montante desses danos não esteja determinado na acção declarativa por não terem sido concretamente apurados (art. 609.º do CPC).

II - O requisito essencial para que o tribunal possa remeter para liquidação em execução de sentença é que se prove a existência de danos, ainda que se desconheça o seu valor, i.e., ainda que não seja possível quantificar o seu montante.

III - Não tendo a autora logrado provar os danos que alegou, não é possível relegar para execução o apuramento, a determinação e a prova dos próprios danos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO

  

l. AA, S.A., intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB - Sociedade Unipessoal, Lda., alegando:

Celebrou com a Ré dois contratos para a prestação de serviços de transporte internacional de mercadorias, um com a finalidade de abastecimento de uma loja de roupa na Bélgica e outro para uma exposição dos seus produtos numa feira no Reino Unido, tendo ficado convencionadas as datas finais de entrega ali mencionadas.

O primeiro contrato gorou-se, pelo que contratou outra transportadora que, dentro do tempo convencionado, finalizou a entrega.

O segundo destino, embora tratando-se de uma feira internacional, a Ré tinha conhecimento do prazo certo em que deveria ter entregue a mercadoria, tanto só ocorreu depois do seu término, quando já havia sido informada que a encomenda enviada já não tinha qualquer utilidade. Suportou os custos do reenvio da primeira encomenda e ficou com a sua reputação afectada junto da primeira destinatária; suportou os custos do aluguer do stand de demonstração e venda de roupa no Reino Unido, os custos da deslocação e os encargos com os funcionários que para ali se deslocaram, ao que acresceu um prejuízo de quebra de facturação/ perda de lucro nas percentagens ali descritas, assim como uma perda de reputação da sua marca naquele mercado.

Concluiu pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 37.753,03, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo incumprimento das suas obrigações contratuais.


2. A Ré citada contestou, defendendo que, quanto ao destino sito na Bélgica, a designação da loja que correspondia à morada fornecida pela Autora era divergente, tendo sido esta a razão pela qual não procedeu à entrega da mercadoria, impugnando todo o demais alegado; e que, quanto à entrega que haveria de ser realizada em Londres, não foi possível passar os bens devido a condições meteorológicas, tendo acabado por não o fazer nos dias posteriores porque a própria demandante acabou por solicitar a devolução.


3. A Autora foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial.

Teve lugar a audiência prévia. Foram elaborados o despacho saneador, de fixação do objecto do litígio e temas de prova.

Procedeu-se a julgamento e após a fixação da matéria de facto a acção foi julgada parcialmente procedente, condenando a ré em € 670,66, acrescidos de juros de mora vencidos, à taxa legal supletiva aplicável, desde a data da citação, e vincendos, à mesma taxa, até efectivo pagamento.  


4. Inconformada a Autora AA, S.A., interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação do …, que, por Acórdão, decidiu julgar «procedente a apelação, remetendo o apuramento do montante os danos para liquidar em execução de sentença, até ao limite do pedido, deduzido o montante fixado na decisão impugnada pelo transporte».

 

5. A ré BB - Sociedade Unipessoal, Lda interpôs Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1. Os presentes autos tiveram origem na acção declarativa de condenação, com processo comum, instaurada pela Autora (ora Recorrida) contra a Ré (ora Recorrente), solicitando a sua condenação no pagamento da quantia de € 27.753,03 (vinte e sete mil setecentos e cinquenta e três euros e três cêntimos) – a título de danos patrimoniais – e de € 10.000,00 (dez mil euros) – a título de danos não patrimoniais, alegadamente causados pelo incumprimento das suas obrigações contratuais, invocando, para tal efeito, o regime da responsabilidade contratual consignado no Código Civil (cf. inter alia artigos 798.º e 566.º).

2. Em concreto, a Autora (ora Recorrida) invocou ter celebrado «[…] com a Ré dois contratos para prestação de serviços de transporte internacional de mercadorias, sendo que o objecto do contrato o transporte e entrega de mercadorias, uma com o objectivo de abastecimento de uma loja de roupa e outra para servir de exposição num «Showroom», ambas em destinos determinados e pré-definidos pela Autora.» (cf. Artigo 3.º da petição inicial aperfeiçoada – Ref. 24887713).

3. O primeiro contrato, celebrado em 12.03.2015, tinha como destinatário a CC, com morada na Av. Charles Woeste, n.º …, 1090 Jette Belgique, Bélgica. A mercadoria deveria ter sido entregue em 16.03.2015, mas tal nunca veio a suceder (cf. artigos 4.º, 4.º B e 8.º da petição inicial aperfeiçoada – Ref. 24887713). A Autora (ora Recorrida) veio alegar que «O atraso da encomenda na Bélgica fez com que o cliente da A. não conseguisse cumprir com as suas encomendas tempestivamente, afectando assim a reputação da Autora.» (cf. artigo 34.º, alínea a) da petição inicial aperfeiçoada – Ref. 24887713). E que foi necessário proceder ao reenvio da encomenda através da FEDEX EXPRESS, outro empresa de transportes, o que fez a Autora desembolsar a quantia de € 670,66, valor pelo qual pretende ser ressarcida (cf. artigo 34.º, alínea b) da petição inicial aperfeiçoada – Ref. 24887713).

4. O segundo contrato, celebrado em 03.07.2015, tinha como ponto de entrega «The Business Design Centre Dr. Kid – stand A45 52 Upper street Is Lington n10QH, Reino Unido.» A mercadoria transportada deveria ser apresentada na Feira Internacional de Roupa Infantil, denominada «BUBBLE – THE KIDS TRADE SHOW», prevista para os dias 12 e 13 de Julho de 2015, devendo chegar ao destino antes do início da feira (cf. artigos 5.º C, 20.º, 21.º e 22.º da petição inicial aperfeiçoada – Ref. 24887713). A mercadoria não chegou antes do início da feira, pelo que a Autora (ora Recorrida) pretende ser ressarcida pela Ré (ora Recorrente) dos custos incorridos no aluguer do stand (i.e. € 9.019,95), das despesas feitas com funcionários afectos à realização da feira (i.e. € 1.632,08) e dos lucros cessantes (contabilizados em € 16.429,43) – cf. artigo 34.º - alíneas c), d) e e) da petição inicial aperfeiçoada – Ref. 24887713.

5. Finalmente, a Autora (ora Recorrida) considera que a sua reputação foi afectada e vem reclamar da Ré (ora Recorrente) uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 10.000,00 (dez mil euros).

6. A Ré (ora Recorrente), na sua contestação, além de pôr em causa a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais invocados pela Autora (ora Recorrida), veio defender:

6.1    No tocante ao primeiro contrato (tendo a Bélgica como país de destino), que a Autora não tinha indicado correctamente o nome do destinatário na carta de porte, não podendo pretender ser ressarcida do valor do frete que alegadamente pagou à FEDEX pelo transporte da mesma mercadoria (cf. artigo 17.º, n.º 2 da Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR).

6.2    No tocante ao segundo contrato (tendo a Inglaterra como país de destino), que o atraso na entrega tinha sido determinado por condições meteorológicas adversas que excluiriam a responsabilidade do transportador (cf. artigo 17.º, n.º 2 da CMR), mais alegando, à cautela, na hipótese de assim não se entender, que sempre seriam aplicáveis in casu as cláusulas limitativas da responsabilidade contratual do transportador previstas na CMR (porquanto a Autora não declarou qualquer valor para efeitos de transporte nem qualquer facto de que resulte um incumprimento doloso por parte da Ré).

7. Tendo a acção corrido os seus trâmites normais - e realizada a audiência de discussão e julgamento - o tribunal veio proferir a douta sentença de fls…., com data de 14.07.2017, na qual considerou a acção parcialmente procedente, por provada, e veio condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 670,66 (seiscentos e setenta euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva aplicável, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento (quantia essa correspondente ao frete pago à outra empresa transportadora para que fosse entregue a mercadoria destinada à Bélgica, tudo no âmbito do primeiro contrato).

8. No que toca aos danos alegados pela Ré (ora Recorrida), pode ler-se na sentença da primeira instância: «[…] apenas provado pagamento do montante de € 670,66 (seiscentos e setenta euros e sessenta e seis cêntimos) a uma empresa concorrente da Ré, para entrega, na Bélgica, dos mesmos artigos que haviam tentado ser expedidos através dos meios desta; posto que, quanto aos gastos mantidos com o stand e com os funcionários no Reino Unido, apurando-se que a presença da Autora na feira se concretizou e não se provando uma diminuição concreta de lucros provenientes da não entrega de encomendas ou a ocorrência de outro dano, nada mais pode ser considerado.»

9. Inconformada com tal decisão, a Autora veio interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de …, no qual impugnou o julgamento da matéria de facto no tocante a dois pontos (i.e. E) e F) considerados não provados pelo tribunal a quo) e veio defender a alteração da decisão, no sentido de provados, nos seguintes termos:

E) «A A. viu o seu stand completamente vazio numa das maiores feiras internacionais para comercialização mundial de vestuário infantil.» ou, assim não se entendendo, «A A. viu o seu stand completamente vazio numa das maiores feiras internacionais para comercialização mundial de vestuário infantil, no primeiro dia de feira, tendo sido expostas, no segundo dia, apenas 30 a 40 peças.»

F) «O atraso da encomenda na Bélgica fez com que a cliente da A. não conseguisse cumprir as suas encomendas tempestivamente, afectando assim a reputação da Autora.»

10.    A Autora, no seu recurso de apelação para o Tribunal da Relação de …, veio ainda suscitar a questão da alegada ressarcibilidade, como danos patrimoniais, dos gastos constantes nos Factos Provados KK), LL) e MM).

11. A Ré (ora Recorrente) apresentou contra-alegações, na qual defendeu a manutenção da decisão da primeira instância. Infelizmente, os seus argumentos não foram acolhidos pelo Tribunal da Relação de …, o qual veio julgar a apelação procedente e remeter o cálculo da indemnização «[…] para liquidação, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do C.P.C., assente que está o dano/prejuízo.», tudo «[…] até ao limite do pedido, deduzido o montante fixado na decisão impugnada pelo transporte.» (c. p. 23 do aresto)

12. Sucede que a Ré não pode conformar-se com tal decisão. Não se afigura sindicável, em sede de revista, a alteração do julgamento da matéria de facto que foi formulada pelo Tribunal da Relação de …. No entanto, mesmo à luz das alterações realizadas pelos Venerandos Desembargadores, o veredicto a que chegaram não faz uma adequada aplicação do direito e viola de modo flagrante o dispositivo que permite a liquidação, em execução de sentença, dos danos (cf. artigo artigo 609.º, n.º 2 do C.P.C.). Isto pela razão prosaica de: (i) terem sido dados como NÃO PROVADOS factos alegados pela Autora relativos aos danos; e (ii) terem sido dados como PROVADOS FACTOS que afastam a imputação à Ré dos alegados danos.

13. Impõe-se assim ponderar toda a matéria de facto, com relevância para a decisão de mérito, que foi considerada PROVADA e NÃO PROVADA pelas instâncias.

14. Neste capítulo, veja-se a matéria de facto provada em primeira instância e que não foi objecto de qualquer impugnação em sede recursiva, tendo-se assim convolado em caso julgado material (cf. Factos – alíneas a) a ggg) – pp. 7 a 14 do aresto recorrido, referidos supra nas pp. 9 a 18 da presente alegação e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

15. Veja-se também a matéria de facto que, na sequência da apelação interposta pela Autora, ora Recorrida, foi alterada pelo Tribunal da Relação de …, passando a dar-se como provado o seguinte:

Al. E: «A A. viu o seu stand completamente vazio numa das maiores feiras internacionais para comercialização mundial de vestuário infantil, no primeiro dia de feira, tendo sido expostas, no segundo dia, apenas 30 a 40 peças.»

Al. F: «O atraso da encomenda na Bélgica fez com que a autora não cumprisse atempadamente a entrega da mercadoria como acordado.»

No que concerne a esta alínea F), cumpre sublinhar que o Tribunal da Relação de … não alterou o julgamento de facto no sentido pretendido pela Autora (aí Recorrente): não deu como provado que o atraso da encomenda na Bélgica tenha afectado a reputação da Autora.

16. Finalmente, importa trazer à colação os factos (com pertinência para a decisão de mérito) que foram considerados não provados pelo tribunal de primeira instância e não foram objecto de impugnação em sede de recurso de apelação – cf. factos não provados referidos na sentença e citados supra nas pp. 19 e 20, que aqui se dão também por reproduzidos para todos os efeitos legais.

17. No que respeita ao Direito é inequívoco que as partes celebraram contratos de transporte internacional de mercadorias, tendo como ponto de recolha/carga as instalações da Autora, sitas em Portugal e como ponto de destino/entrega a morada dos destinatários na Bélgica e em Inglaterra. Sendo o serviço contratado terrestre, a responsabilidade contratual das partes terá de ser aferida à luz da Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (adiante designada «CMR»), assinada em Genebra, em 19 de Maio de 1956 e introduzida no direito português pelo Decreto-Lei n.º 46.235, de 18 de Março de 1965 (modificado pelo Protocolo de Genebra, de 5 de Julho de 1978, aprovado para adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro) e que é aplicável a todos os países da União Europeia (incluindo a Bélgica e a Inglaterra) – aliás, o acórdão recorrido faz referência a esta convenção internacional (cf. p. 18).

18. Sem prejuízo da aplicação das regras especiais que se encontram consagradas nessa fonte de direito convencional/internacional, há que ter presente o ordenamento jurídico português: recai sobre o autor que invoca a titularidade de um direito o ónus de alegação, ainda que sucinta, dos factos cuja prova seja necessária para confirmar a existência desse direito (cf. artigos 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), todos do C.P.C.).

19. Tratando-se de um contrato de transporte, ao lesado que queira demandar o transportador incumbe o ónus de alegar e provar: (i) a celebração do contrato; (ii) a entrega da mercadoria ao transportador; (iii) o dano; e (iv) o facto ilícito causador do dano (nexo de imputabilidade) – cf. artigos 798.º, 799.º, 562.º e 563.º do Código Civil.

20. Recorde-se que, no tocante ao petitório, a Autora não formulou qualquer pedido genérico, tendo deduzido os seguintes pedidos específicos: A) A quantia de € 27.753,03 (vinte e sete mil setecentos e cinquenta e três euros e três cêntimos), a título de danos patrimoniais, assim repartidos: A1) € 670,66 (seiscentos e setenta euros e sessenta e seis cêntimos) correspondente ao frete pago à «Fedex Express» para realizar o transporte para a Bélgica (primeiro contrato); A2) € 9.019,95 (nove mil e dezanove euros e noventa e cinco cêntimos) correspondente ao aluguer do stand de demonstração e venda da roupa na feira internacional em Londres (segundo contrato); A3) € 1.632,08 (mil seiscentos e trinta e dois euros e oito cêntimos), enquanto custos incorridos na contratação de funcionários para a feira internacional de Londres (segundo contrato); e A4) € 16.429,43 (dezasseis  mil  quatrocentos  e  vinte  e  nove  euros  e  quarenta  e  três cêntimos), a título de lucros cessantes (segundo contrato); B) A quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, por ter ficado com a sua reputação afectada (primeiro e segundo contratos).

21. No domínio do primeiro contrato (Portugal – Bélgica), a Autora pretendia ser ressarcida pelo frete pago à «Fedex Express», no valor de € 670,66 (dano patrimonial), tendo o tribunal de primeira instância dado provimento ao pedido, acrescido de juros de mora vencidos, à taxa legal supletiva aplicável, desde a data da citação, e vincendos, à mesma taxa, até efectivo e integral pagamento. Esta decisão nunca foi posta em causa em sede recursiva e já transitou em julgado.

22. Não invoca a Autora qualquer outro dano patrimonial sofrido na sequência do primeiro contrato, razão pela qual não terá qualquer cabimento a sua liquidação em execução de sentença (tal consubstanciaria uma violação grosseira do princípio fixado no artigo 609.º, n.º 1 do C.P.C.: «A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.»)

23. No que toca aos danos não patrimoniais, recorda-se que o Tribunal da Relação de … veio alterar o julgamento da matéria de facto, fixando a seguinte redacção à Al.F: «O atraso da encomenda na Bélgica fez com que a autora não cumprisse atempadamente a entrega da mercadoria como acordado.» Ora, a Autora tinha alegado expressamente que tal atraso tinha afectado a sua reputação e essa pretensão não foi acolhida pelo tribunal de recurso.

24. Neste segmento, pode ler-se no acórdão recorrido: «Relativamente à entrega na Bélgica primeiro contrato temos seguramente danos, uma vez que uma encomenda entregue por outra empresa, no dia seguinte ao da entrega, não pode desobrigar a ré de pagar os danos, uma vez que, a mercadoria que devia estar no mercado em meados de Março, só chegou em Maio. A imagem da Autora ficou seguramente em causa. Não se pode resumir ao pagamento do frete que fez à segunda empresa.»

25. Como pode o tribunal de recurso proclamar que «A imagem da Autora ficou seguramente em causa» quando a Autora alegou expressamente que tinha ficado afectada na sua reputação e tal facto não ficou provado? Tal afirmação é manifestamente abusiva e não tem qualquer aderência à matéria de facto dada como provada, extravasando a norma consignada no artigo 607.º, n.º 1 do C.P.C.

26. Regista-se ainda que a testemunha DD, arrolada pela Autora, acabou por referir no seu depoimento que a Autora continuou a ter a CC como cliente e até retomou a sua relação comercial nos termos normais, não se vendo como saiu beliscada a sua reputação (cf. depoimento prestado na primeira sessão da audiência de julgamento, realizada em 04.04.2017, gravado em 00:23:55 a 00:24:39).

27. A livre apreciação da prova pelo tribunal e a decisão segundo a prudente convicção do julgador acerca de cada facto não pode confundir-se com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

28. De acordo com a jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça, provada a existência de dano, mas não os elementos que permitam a fixação do seu valor exacto, relega-se a fixação do montante indemnizatório para liquidação em execução de sentença, concedendo uma nova oportunidade ao autor para provar o quantitativo dos danos. II – Esta hipótese de prova do quantum da indemnização em processo de liquidação posterior, em execução de sentença, está restringida aos casos em que a existência de danos já está provada e apenas não está determinado o seu exacto valor. Não estando provada a existência de danos, forma-se caso julgado material sobre tal objecto, impedindo nova prova do facto em posterior incidente de liquidação.» (cf. Ac. STJ, de 22.04.2015, Proc. 666/04, disponível em www.dgsi.pt).

29. Neste contexto, não tendo ficado provado que a reputação da Autora tivesse ficado afectada no âmbito do primeiro contrato, não tem qualquer cobertura legal a remissão para liquidação de sentença dos danos não patrimoniais. Com tal decisão, o acórdão recorrido violou o preceituado no artigo 609.º, n.º 2 do C.P.C.

30. No que respeita ao segundo contrato (Portugal – Inglaterra), no seguimento da apelação interposta pela Autora, ora Recorrida, o Tribunal da Relação de … entendeu por bem alterar o julgamento da matéria de facto no tocante à Al. E, fixando a seguinte redacção: «A A. viu o seu stand completamente vazio numa das maiores feiras internacionais para comercialização mundial de vestuário infantil, no primeiro dia de feira, tendo sido expostas, no segundo dia, apenas 30 a 40 peças.»

31. Recorde-se ainda que ficou provado na primeira instância – não tendo sido impugnada em sede recursiva e convolando-se, por isso, em caso julgado material – a seguinte matéria:

Facto Provado kk): No Reino Unido, a A. alugou um stand de demonstração e venda de roupa na Feira internacional, supra referenciada, despendendo um total de € 9.019,95 (Nove mil e dezanove euros e noventa e cinco cêntimos). [artigo 34.º - alínea c) da petição inicial aperfeiçoada - Ref.ª 24887713]

Facto Provado ll): No âmbito da organização da feira, a A. contratou vários funcionários que foram instruídos tanto para a demonstração como para a venda dos produtos durante a vigência da feira, somando-se por isso a quantia de € 1.632,08 (Mil seiscentos e trinta e dois euros e oito cêntimos). [artigo 34.º - alínea d) da petição inicial aperfeiçoada – Ref.ª 24887713]

32. Tais quantias, pagas pelas Autora, encontram-se provadas e liquidadas (afigurando-se, por conseguinte, abstruso qualquer remissão para liquidação de sentença de verbas gastas pela Autora quanto ao aluguer do stand e contratação de pessoal). Em qualquer caso, tais quantias nunca seriam juridicamente configuráveis como danos imputáveis à Ré.

33. Em primeiro lugar, porque a Autora não logrou fazer prova de que a Ré sabia que a mercadoria expedida para o Reino Unido tinha por fim ser exposta numa feira

internacional, nos dias 12 e 13 de Julho de 2015. Veja-se o Facto Não Provado d):

«A R. tinha conhecimento de que que a encomenda destinada a Londres tinha um prazo certo para a sua entrega, determinado pelo início da feira.» [artigo 23.º da petição inicial aperfeiçoada - Ref.ª 24887713]

Assim, a Autora não fez prova de ter comunicado previamente à Ré que o prazo de entrega – antes de 12 de Julho – era essencial e improrrogável (sendo determinante na sua vontade de contratar) e que o seu incumprimento pela Ré implicaria não uma simples mora mas o incumprimento definitivo da sua obrigação contratual de entrega da mercadoria ao destinatário.

34. Acresce que ficou também provado que, por instruções da Autora, as quatro embalagens que constituíam a encomenda não foram entregues no dia 13 de Julho de 2015 (o segundo dia da feira):

Facto Provado bbb): O destinatário da mercadoria, contactado em 13.07.2015, pela congénere da BB em Inglaterra, para receber a mercadoria, transmitiu-lhe que a carga deveria ser devolvida ao expedidor (ou seja, à Autora).» [artigo 31.º da contestação da Ré – Ref.ª 22727823]

Facto Provado ccc): A Autora solicitou telefonicamente à Ré, no dia 13.07.2015, o retomo da carga, tendo a Ré reencaminhado esse pedido para a sua congénere no Reino Unido.» [artigo 32.º da contestação da Ré – Ref.ª 22727823]

35. No que respeita aos lucros cessantes, a Autora claudicou rotundamente na correspondente prova. Veja-se a seguinte matéria:

Facto Não Provado g): No primeiro semestre de 2015, as vendas no Reino Unido facturaram um total de € 39.031,33. [artigo 34.º, alínea e), parte final, da petição inicial aperfeiçoada - Ref.ª 24887713]

Facto Não Provado h): Tendo em conta que se facturou apenas 15.736,45 no 2.º semestre para o Reino Unido, houve uma quebra de facturação nas vendas para o Reino Unido de cerca de € 35.000,00. [artigo 34.º, alínea e.a) da petição inicial aperfeiçoada -Ref.ª 24887713]

36. Apenas se pode relegar para momento ulterior a liquidação dos danos e não a prova da ocorrência dos mesmos – cf. artigo 609.º, n.º 2 do C.P.C. A indicação concreta de eventuais danos sofridos tem necessariamente que ser feita pelo A. em obediência ao princípio do dispositivo e a quantificação em incidente de liquidação só será viável se tiverem sido alegados e provados danos, cujo concreto montante não foi possível apurar (cf. Ac. Relação de Lisboa, de 16.02.2012, Proc. 2584/10.6TVLSB.L1-6, disponível www.dgsi.pt).

37.    Se do que se trata não é da eventual quantificação de algo que se tivesse provado, mas antes da ausência de prova na acção de qualquer prejuízo cuja quantificação se tivesse revelado impossível fixar, não fica aberto o caminho do artigo 661.º, n.º 2 do Código de Processo Civil para a liquidação em execução de sentença (cf. Ac. STJ, de 30.10.2003: Proc. 03P1959/itij, disponível em www.dgsi.pt).

38. No tocante aos danos não patrimoniais, afigura-se ainda manifesto que não foi feita prova dos mesmos no âmbito do segundo contrato:

Facto Não Provado i): Esta situação criou péssima reputação à marca detida pela A. “DR.KID», pois deveria ter apresentada a sua colecção naquela feira, colocando em crise a reputação na comercialização de têxteis, bem como a má imagem junto da entidade organizadora do evento BUBBLE, que pretendia ter todos os espaços abertos aos seus visitantes durante a feira estes erros da ré criaram assim um clima de desconfiança entre as partes envolvidas e difundindo a ideia de que A. é uma empresa desorganizada, irresponsável e com má gestão. [artigo 34.º, alínea g) da petição inicial aperfeiçoada - Ref.ª 24887713]

39. A Autora, ora Recorrida, não impugnou o julgamento de facto neste ponto, pelo que também aqui se formou um caso julgado material. Ora, a matéria aí alegada afigura-se determinante para a eventual procedência de uma indemnização por danos não patrimoniais. Não tendo ficado provado qualquer dano na imagem/reputação da Autora, o petitório relativo à indemnização por danos não patrimoniais tem necessariamente de decair, sem necessidade de ulteriores considerações, não fazendo qualquer sentido uma ulterior liquidação em execução de sentença.

40. De qualquer forma, neste capítulo, importa trazer à colação alguma jurisprudência restritiva quanto à dos danos não patrimoniais por parte de sociedades comerciais. Segundo estatui o artigo 484.º do Código Civil, a ofensa do crédito do bom nome de qualquer pessoa singular ou colectiva obriga o autor da ofensa a responder pelos danos causados. Mas isso não dispensa o intérprete e o julgador de distinguir entre o bem jurídico atingido e o dano que resulta da lesão e, estando em causa sociedades comerciais, como sucede com a Autora, tal lesão deve sempre traduzir-se num dano patrimonial indirecto (nesse sentido. Ac. do STJ de 27.11.2003, proferido no Proc. n.º 03B3692 e relatado pelo Conselheiro QUIRINO SOARES e o Ac. do STJ, de 09.06.2005, proferido no Proc. n.º 05B1616 e relatado pelo Conselheiro ARAÚJO DE BARROS, a cujo texto integral se pode aceder, via Internet, no sítio www.dgsi.pt).

41. No caso sub judice, nada ficou provado sobre a alegada lesão na imagem e reputação da Autora e, bem assim, quanto à sua perda de negócio/lucros cessantes, pelo que sempre se imporia, sem necessidade de ulteriores considerações, o decaimento do correspondente pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

42. Em qualquer caso, a Autora não alegou nem fez prova de qualquer facto que revele por parte da Ré uma conduta dolosa, pelo que a medida da indemnização devida por incumprimento contratual sempre teria de ser balizada pelas cláusulas limitativas da responsabilidade contratual do transportador estabelecidas na CMR.

43. A culpa do devedor presume-se (cf. artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil); mas não se presume o dolo. Conforme está já sancionado pela nossa jurisprudência, «A culpa do devedor, mas não o dolo, presume-se, recaindo sobre credor da indemnização pela perda da mercadoria o ónus de alegar e provar os factos necessários à demonstração do dolo do transportador.» (cf. Acórdão do STJ, de 06.07.1998, disponível em www.dgsi.pt)

44. Concomitantemente, a Ré, ora Recorrente, logrou fazer prova da seguinte factualidade:

Facto Provado fff): Na «Carta de Porte» consta expressamente, no quadro acima da assinatura do remetente, o seguinte: «O expedidor concorda com os Termos e Condições da BB, expressos no verso da Cópia da Carta de Porte destinada ao Expedidor. A não ser que seja declarada na Carta de Porte um valor de transporte superior, aplicar-se-ão os limites de responsabilidade especificados nas Convenções de Varsóvia, Montreal ou CMR (se aplicável) ou descritos na Cláusula 9 dos Termos Condições.» [artigo 49.º da contestação da Ré – Ref.ª 22727823]

Facto Provado ggg): No caso em apreço, a sociedade expedidora, ora Autora, não declarou qualquer valor para efeitos de transporte, quando o poderia ter feito, não tendo assim acautelado um seguro com cobertura superior aos limites da responsabilidade do transportador estabelecidos na CMR. [artigo 51.º da contestação da Ré – Ref.ª 22727823]

45. Tratando-se de um transporte internacional – ou seja, aquele em que o lugar de carregamento e o lugar da entrega da mercadoria estão situados em países diferentes – e sendo o transporte terrestre, são aplicáveis as cláusulas limitativas de responsabilidade previstas na CMR, as quais afastam, enquanto normas especiais (consignadas numa fonte hierarquicamente superior) o regime da responsabilidade previsto nos artigos 381.° e 383.° do Código Comercial (e também nos artigos 483.°, 798.° e 564.° do Código Civil).

46. À luz da norma consignada no artigo 23.º, n.º 3 da CMR, aplicável ao contrato sub judice, quando for debitada ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria «A indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.» (cf redacção do Protocolo de Genebra).

47. Ainda de acordo com o n.º 7 do artigo 23.º da CMR (aditado pelo Protocolo de Genebra), «A unidade de conta referida na presente Convenção é o direito de saque especial, tal como definido pelo Fundo Monetário Internacional. O montante a que se refere o n.º 3 do presente artigo é convertido na moeda nacional do Estado onde se situe o tribunal encarregado da resolução do litígio com base no valor dessa moeda à data do julgamento ou numa data adoptada de comum acordo pelas partes. O valor, em direito de saque especial, da moeda nacional de um Estado que seja membro do Fundo Monetário Internacional é calculado segundo o método de avaliação que o Fundo Monetário Internacional esteja à data a aplicar nas suas próprias operações e transacções. [---]» - (negrito nosso).

48. No caso sub judice, o peso total dos pacotes transportados era de 30 kg (cf. Facto Provado I), peso esse relevante para efeitos do cálculo de uma eventual indemnização, devida nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 3 da CMR.

49. Pelas razões acima enunciadas, o acórdão recorrido extravasou a norma consignada no artigo 607.º, n.º 1 do C.P.C. (princípio da livre apreciação da prova) e violou a norma consignada no artigo 609.º, n.º 2 do C.P.C., relegando para momento ulterior, em incidente de liquidação de sentença, a quantificação de danos que não foram de todo provados nas instâncias.

 Conclui pedindo que seja concedida a presente revista e, em consequência, revogado o acórdão recorrido e confirmada a sentença da primeira instância.

 

4. A Recorrida apresentou contra-alegações tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto pela Ré/Recorrente por discordar da subsunção Jurídica efectuada pelo Tribunal da Relação de … aos factos definitivamente assentes.

B) Não lhe assiste razão, pois o douto acórdão recorrido não merece reparo, quer na alteração dos factos, quer na aplicação do direito aos mesmos.

C) Resulta da matéria de facto que entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de transporte internacional de mercadorias.

D) Trata-se de um contrato oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, ou seja, como contrapartida do pagamento do preço de transporte existe, por parte da Ré, a obrigação de efectuar o transporte, entregando a mercadoria no lugar estipulado.

E) Nas prestações de resultado, como acontece no contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil contratualmente previsto, basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para se estabelecer o incumprimento do devedor.

F) Justamente por relevar o resultado final, cabe ao transportador o encargo de organizar os meios humanos e materiais necessários para o efeito.

G) Relativamente ao primeiro contrato ficou provado que foi celebrado acordo entre Autora e Ré, no dia 12 de Março de 2015, para o envio de quatro embalagens para um cliente na Bélgica. A Ré obrigou-se a proceder à entrega da referida encomenda, no locai indicado pela Autora, no dia 16-03-2015.

Mais ficou assente que a mercadoria deveria estar nas lojas no início da primavera e só foi entregue em maio.

H) No que concerne à entrega no Reino Unido, ficou provado que a Autora contratou a Ré no dia 3 de Julho de 2015, para fazer o transporte de quatro embalagens de 7,5 Kg cada uma, no total de 30 Kg. A Ré obrigou-se a proceder à entrega da referida encomenda, no local indicado pela Autora, no dia 8-07-2015. Tendo em conta que a mercadoria se destinava a ser exposta numa feira internacional, a encomenda deveria ser entregue antes da feira se realizar, ou seja, antes do dia 12 de Julho de 2015. A entrega só é efectuada no dia 14 de Julho de 2015, um dia depois de já ter terminado a Feira e a Autora ficou com o seu stand vazio.

I) Face ao exposto, a pretensão da Autora tem necessariamente que proceder, conforme entendeu o Tribunal recorrido, pois o prejuízo sofrido não se esgotou no pagamento que efectuou a outra transportadora.

J) O contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada é disciplinado pela Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada - CMR - e de acordo com o disposto nos n°s 1 e 2 do artigo 17, da CMR, o transportador é responsável pela perda total ou parcial ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega, independentemente dos actos ou omissões serem cometidos por ele ou pelos seus empregados, agentes, representantes ou outras pessoas a quem tenha recorrido para executar o contrato de transporte.

K) Estabelece-se, deste modo, uma presunção de culpa do transportador, que só fica desobrigado dessa responsabilidade, nos termos do n.° 2 do mesmo artigo, se a perda, avaria ou demora tiver por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstância que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar-artigo 344°, n.° 1, do CC.

L) De acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 18° da CMR, compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no n.° 2 do artigo 17°.

M) Como referiu o Douto Tribunal, esta presunção não foi afastada pelo transportador.

N) Defende a Recorrente que não houve dolo por parte da Ré. Contudo também não colhe este argumento. O STJ já por algumas vezes elucidou o que deve entender-se por falta equivalente ao dolo, para os efeitos daquela norma, concluindo, nos mais recentes arestos, que essa falta não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu.

O) A execução material da prestação de facto a que a transportadora se obrigou perante o expedidor inclui três operações: a recepção da mercadoria, a sua deslocação e a sua entrega ao destinatário no local de destino.

P) Todos estes deveres decorrem do princípio da boa-fé, que deve estar presente em todas as fases contratuais, na fase pré-contratual, nos termos do art. 227° do Código Civil e na fase contratual e pós-contratual, nos termos do art. 762°, n.° 2 do Código Civil.

Q) O conteúdo destes deveres varia consoante o conteúdo da relação obrigacional, pelo que só perante o caso concreto é possível observar quais as condutas que o transportador deveria ter adoptado para que se verificasse o integral cumprimento do contrato.

R) Pelos factos provados facilmente se conclui que a Ré não adoptou as medidas necessárias ao cumprimento do contrato.

S) Como sublinhou o Acórdão recorrido, a Ré não cumpriu durante meses, pois no contrato, cuja entrega se destinava á Bélgica a entrega deveria ocorrer em março e só ocorreu em maio, sendo certo que, não provou que houvesse erro da autora ou que tivesse contactado a empresa que devia receber a mercadoria e se recusassem a receber a mercadoria.

T) No Segundo contrato, a Ré obrigou-se a proceder à entrega da referida encomenda, no local indicado, no dia 8-07-2015, que se destinava a ser exposta numa feira internacional e só é efectuada no dia 14 de Julho de 2015, um dia depois de já ter terminado a Feira.

U) De tudo se conclui que, tendo os danos verificados decorrido de uma falha da transportadora equivalente ao dolo não lhe aproveitam as disposições que poderiam, eventualmente, excluir ou limitar a sua responsabilidade, nomeadamente a do n.° 3 do artigo 23°.

V) Face ao exposto, o douto acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal.

Conclui pedindo que seja negado provimento ao recurso.


5. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu despacho a ordenar a subida dos autos ao STJ.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.



II – FUNDAMENTAÇÃO


A factualidade com relevo a ponderar é a seguinte:

a) A Autora dedica-se à actividade de industrial têxtil e é detentora de uma marca de roupa infantil e adolescente, devidamente patenteada, denominada "Dr.Kid".

b) A Autora celebrou com a Ré dois contratos para a prestação de serviços de transporte internacional de mercadorias, sendo o objecto do contrato o transporte e entrega de mercadorias, uma com objectivo de abastecimento de uma loja de roupa e outra para servir de exposição num "Showroom", ambas em destinos determinados e pré-definidos pela Autora.

c) O primeiro contrato realizado entre Autora e Ré, foi no dia 12 de Março de 2015, mediante o acesso à página oficial da Ré, na qual a Autora possui conta e como habitualmente preencheu a carta de porte, disponível no site e posteriormente foi emitido um recibo de envio.

d) Esta entrega consistia no envio de quatro embalagens de 15,5 Kg cada uma, no total de 62,00 Kg, através do BB standard, que, de acordo com o site da Ré, consiste em: "um serviço rápido e fiável para envios menos urgentes para destinos dentro da Europa; Compromisso de Entrega Exportação e Importação: Entrega programada em dia definido dentro de cinco dias em toda a Europa dependendo da origem e do destino; Área de Serviço Destinos de Exportação: Mais de 30 países e territórios na Europa; Origens de Importação: Mais de 30 países e territórios na Europa; Vantagens: A opção ideal quando a rapidez tem de ser combinada com a economia; As estimativas de entrega em dia específico permitem-lhe planear as datas de entrega Serviço de entrega porta-a-porta".

e) A A. viu o seu stand completamente vazio numa das maiores feiras internacionais para comercialização mundial de vestuário infantil, no primeiro dia de feira, tendo tido expostas, no segundo dia, apenas 30 a 40 peças- alterada pela Relação.

f) O atraso da encomenda na Bélgica fez com que a autora não cumprisse atempadamente a entrega da mercadoria como acordado – alterada pela Relação.

g) No segundo contrato, a entrega da encomenda serviria para a realização de uma exposição e potencialização de encomendas, numa Feira Internacional de Roupa para Crianças denominada de "BUBBLE" e realizada no Business Design Centre de Londres, onde a Autora pretendia expor a nova colecção, da marca "DR. KID", com o objectivo de angariar novos clientes e trazer novas oportunidades de negócio a nível internacional.

h) Este segundo contrato foi efectuado no dia 03 de Julho de 2015, também mediante o acesso à página oficial da Ré, na qual a Autora possui conta e como habitualmente preencheu a carta de porte, disponível no site e posteriormente foi emitido o respectivo recibo de envio.

i) Esta entrega consistia na entrega de quatro embalagens de 7,5 Kg cada uma, no total de 30 Kg.

j) O destino da entrega era para a seguinte morada: The Business Design Centre Dr. Kid — stand A45 52 Upper street Is Lington n 10QH, Reino Unido.

k) A Ré obrigou-se a proceder à entrega da referida encomenda, no local indicado, no dia 8-07-2015.

 l) Assim, no dia 12 de Março de 2015, a Autora entregou à Ré a primeira encomenda com o seguinte destino, "SHOP NIGHT AND DAY, 74, Avenue Charles Woeste, Jette, 1090, Belgique".

m) Nesse contrato, como em todos outros celebrados com a Ré, existe um formulário de preenchimento obrigatório, onde se inclui o remetente, o destinatário, e os contactos de ambas as partes — esse formulário, preenchido aqui pela A., tem o nome de CARTA DE PORTE.

n) Acontece que, no dia 16 de Março de 2015, a R. acabou por não entregar tempestivamente a encomenda que lhe foi confiada no local acima referido, conforme se tinha comprometido.

o) Justificando que o não fez atendendo ao facto de o nome da empresa ou do destinatário estar incorrecto.

p) A A. tentou por três vezes, enviar esta encomenda através da R., mas sem sucesso, utilizando a R. sempre com a mesma justificação.

q) A R. alegou ter contactado sem sucesso o destinatário em questão.

r) O destinatário, cliente da A., afirma nunca ter recebido qualquer contacto por parte da R. nem dos representantes desta na Bélgica, para confirmação dos dados.

s) A Carta de Porte possuía os dados do destinatário incluindo o número de telefone deste, e do remetente, incluindo os contactos da remetente, aqui Autora.

t) Conforme recibo de envio, a destinatária da encomenda CC para a seguinte morada: Avenue Charles Woeste, n.° …. 1090 JETTE BELGIQUE, BÉLGICA.

u) Constava ainda os dados do remetente: AA, SA (EE) Rua da …, …. V…. 4635- Marco de canaveses Portugal telefone 2…..

v) Continha ainda o peso do envio: 62 Kg e quantidade de embalagens: 4.

w) No quadro destinado ao serviço da Ré, constava o seguinte: serviço: BB standard; Fim de expediente: segunda-feira 16 de Março de 2015.

x) A Autora, com o objectivo de finalizar o contrato que tinha sido acordado com a sua cliente, contratou uma nova empresa de transporte internacional de mercadorias designada "FEDEX, Express", utilizando exactamente os mesmos dados, do remetente, e do destinatário aqui já referido "SHOP NIGHT AND DAY", 74 Avenue Charles Woeste, Jette, 1090, Belgique.

y) Esta encomenda foi enviada no dia 12 de Maio de 2015, às 19 horas e 27 minutos, pelo remetente/Autora, e recebida pelo destinatário/cliente a 13 de Maio de 2015, pelas 11 horas e 4 minutos, ou seja, em menos de 24 horas foi possível entregar a encomenda, que a R. não conseguiu concluir em mais de 30 dias.

z) A mercadoria deveria estar nas lojas em Março, início da Primavera, e só esteve disponível em Maio.

aa) No segundo contrato, a A. pretendia estar presente na Feira Internacional de Roupa Infantil, que se denomina como, "BUBBLE — THE KIDS TRADE SHOW", que se realizou nos passados dias 12 e 13 de Julho de 2015, no Business Design Centre de Londres, localizado em 52, Upper Street, Islinghton, London.

bb) A Autora enviou a 3 de Julho de 2015, através da Ré, 4 pacotes, que continham as peças da nova colecção infantil da marca "DR. KID" com o objectivo, de serem apresentados e conseguir encomendas das empresas do sector grossista e de retalho a nível mundial.

cc) Tendo em conta que se trata de uma feira internacional, a encomenda deveria ser entregue antes da feira se realizar, ou seja, antes do dia 12 de Julho de 2015.

dd) A encomenda foi do remetente aqui Autora, para a Maia, seguindo para Benavente em Espanha, passando por Savingy Le Temple e Chilly Mazarin em França, pousando no Reino Unido, a 8 de Julho de 2015, em Tamworth, chegando a Londres apenas no dia 9 de Julho de 2015, onde foi feita aí a leitura de armazém.

ee) A entrega só é efectuada no dia 14 de Julho de 2015, um dia depois de já ter terminado a Feira.

ff) Para além disso, a A. já tinha, no dia 13 de Julho de 2015, pedido a devolução da encomenda e a assunção de responsabilidades pelos prejuízos causados.

gg) Ainda assim, a R., no Reino Unido, tentou, nos dias seguintes, 14 e 15 de Julho de 2015, que fosse entregue a mercadoria, mesmo após o término da feira.

hh)A R. propôs a A. um crédito comercial no valor de € 200,00 para minimizar os prejuízos causados.

ii) A A. recusou a proposta.

jj) Foi necessário realizar ainda o envio da encomenda para a Bélgica através de outra empresa de transportes acima já referida, "Fedex Express", que teve um custo de € 670,66 (seiscentos e setenta euros e sessenta e seis cêntimos).

kk) No Reino Unido, a A. alugou um stand de demonstração e venda de roupa na Feira internacional, supra referenciada, despendendo um total de € 9.019,95 (Nove mil e dezanove euros e noventa e cinco cêntimos).

11) No âmbito da organização da feira a A. contratou vários funcionários que foram instruídos tanto para a demonstração como para venda dos produtos durante a vigência da feira, somando-se por isso a quantia de € 1.632,08 (Mil seiscentos e trinta e dois euros e oito cêntimos).

mm) Foram criadas peças originais e exclusivas servindo como demonstração do produto da "DR. KID", pensadas para um mercado muito amplo, tendo-se projectado por isso um grande volume de encomendas, tanto para o Reino Unido, como para o resto do mundo, estimando-se para o 2' semestre de 2015 um aumento 30% no valor das vendas em comparação ao 1° semestre de 2015.

nn) Foram também enviadas peças de vestuário infantil, para ser vendidas de imediato a todo o género de cliente (particular e/ou profissional).


Da contestação

oo) A ora Ré é uma sociedade comercial que tem por objecto o «o exercício, por sua conta ou por conta de outrem, das actividades de transportes rápidos, nacionais e internacionais, de mercadorias, documentos e encomendas, porta a porta ou complementares a esta, conhecidos como actividades de "courier", bem como qualquer forma de prestação de serviços de logística, incluindo as actividades acessórias de declarar por conta de outrem perante alfândegas e de prestação de serviços de "handling" a terceiros e à própria. A sociedade poderá, por sua conta ou por conta de outrem, actuar como agente transitário, agente e intermediário de transportes em todos os actos de transportes terrestre, marítimo e aéreo. A sociedade poderá, por sua conta ou por conta de outrem, efectuar todos os actos relativos ao manuseamento, guarda, expedição, transporte, armazenamento, seguro e desalfandegamento de encomendas e bens seja de que espécie for. A sociedade pode, por sua conta ou por conta de outrem, executar todos as transacções ou prestar todos os serviços de qualquer espécie, directa ou indirectamente relacionados com o seu objecto social.»

pp) A Ré emitiu as seguintes informações: (i) 1Z7X57206892259177: informação em 18.03.2015: «Nome da empresa ou do destinatário incorrecto, o que atrasará a entrega. Estamos a tentar actualizar esta informação.»; (ii) 1Z7X57206890979358: informação em 08.04.2015 (10.58): «Nome da empresa ou do destinatário incorrecto, o que atrasará a entrega. Estamos a tentar actualizar esta informação.»; (16:46) «Nome da empresa ou do destinatário incorrecto, o que atrasará a entrega. Contactámos o destinatário para pedir informação adicional.»; (iii) 1Z7X57206895893164: informação em 29.04.2015 (12:18): «Nome da empresa ou do destinatário incorrecto, o que atrasará a entrega. Estamos a tentar actualizar esta informação.» (17:35) «Nome da empresa ou do destinatário incorrecto, o que atrasará a entrega. Estamos a tentar actualizar esta informação. / O endereço foi corrigido.»; informação em 30-04-2015: «O destinatário não quer o produto e recusou a mercadoria. / O pacote será devolvido ao remetente.

qq) A opção contratada foi o serviço Standard, que corresponde ao serviço terrestre da Ré, com compromisso de entrega em dia definido, dentro de cinco dias em toda a Europa, dependendo da origem e do destino (www.ups.com).

rr) No caso em apreço, o tempo estimado de entrega seriam de dois dias úteis após a recolha da mercadoria.

ss) A Ré recebeu uma reclamação da Autora, no dia 29.05.2015, recusando o pagamento dos custos dos envios originais e dos correspondentes retornos, porquanto, segundo o destinatário lhe teria transmitido, a BB nunca fez qualquer contacto e/ou tentativa de entrega.

tt) Em 26.06.2015, perante a alegação da Autora de que teria enviado a mercadoria pela FedEx e que a carga tinha sido entregue à primeira tentativa, o departamento comercial da Ré transferiu a reclamação para o supervisor da área de apoio ao cliente.

uu) Em resposta ao novo pedido de esclarecimento, a congénere da BB na Bélgica confirmou que, na morada em apreço, não há qualquer referência ao nome da empresa (destinatário) indicado na carta de porte.

vv) Mais informou a Ré que tinha sido enviado um telegrama ao destinatário para confirmar a morada, mas que este nunca tinha contactado o Call Center para remarcar a entrega.

ww) Neste caso, de acordo com os procedimentos internacionais da BB, não lendo sidu possível efectuar a cntrcga, a carga fica a aguardar, durante cinco dias, informação adicional do expedidor/destinatário; esgotado esse prazo, o envio é devolvido ao expedidor.

xx) No caso em apreço, a carta foi devolvida à Autora, a saber: (i) 1Z7X57206892259177, devolvida com a carta de porte 1Z7X57206882852204; (ii) 1Z7X57206890979358, devolvida com a carta de porte 1Z7X57206889847234; (iii) 1Z7X57206895893164, devolvida com a carta de porte 1Z7X57206880945573.

yy) O número de telefone (02 420 50 27) indicado na montra não corresponde ao número de telefone disponibilizado à BB.

zz) No tocante à carga do segundo contrato, apurou a Ré que foi indicado pela Autora o seguinte destinatário: «DR KID - UPPER ST 52 - LONDON - UK».

aaa) O serviço escolhido foi o Standard (serviço terrestre), sendo o tempo de trânsito estimado 5 (cinco) dias - entrega prevista para 08.07.2015.

 bbb) O destinatário da mercadoria, contactado em 13.07.2015, pela congénere da UPS em Inglaterra, para receber a mercadoria, transmitiu-lhe que a carga deveria ser devolvida ao expedidor (ou seja, à Autora).

ccc) A Autora solicitou telefonicamente à Ré, no dia 13.07.2015, o retomo da carga, tendo a Ré reencaminhado esse pedido para a sua congénere no Reino Unido.

ddd) No dia 15.07.2015, a Autora contactou de novo a Ré dando-lhe nota de que: (i) ainda não lhe tinha sido devolvida a carga; (ii) segundo informação do destinatário, a BB no Reino Unido teria tentado efectuar a entrega nos dias 14 e 15.

eee) No dia 15.07.2015, a Ré reforçou o pedido junto da sua congénere no Reino Unido para ser devolvida a mercadoria ao expedidor (aqui Autora), tendo sido confirmado que a carga seria devolvida no dia 16.07.2015, com as seguintes cartas de porte: (i) 1Z7X57206883486420: entregue em Portugal, em 21.07.2015, a FF; (ii) 1Z7X57206882923379: entregue em Portugal, em 21.07.2015, a FF; (iii) 1Z7X57206882548892: entregue em Portugal, em 22.07.2015, a GG; (iv) 1Z7X57206887070755: entregue em Portugal, em 21/7/2015, a FF.

fff) Na «Carta de Porte» consta expressamente, no quadro acima da assinatura do remetente, o seguinte: «O expedidor concorda com os Termos e Condições da BB, expressos no verso da Cópia da Carta de Porte destinada ao Expedidor. A não ser que seja declarada na Carta de Porte um valor de transporte superior, aplicar-se-ão os limites de responsabilidade especificados nas Convenções de Varsóvia, Montreal ou CMR (se aplicável) ou descritos na Cláusula 9 dos Termos Condições.»

ggg) No caso em apreço, a sociedade expedidora, ora Autora, não declarou qualquer valor para efeitos de transporte, quando o poderia ter feito, não tendo assim acautelado um seguro com cobertura superior aos limites da responsabilidade do transportador estabelecidos na CMR.



III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação da Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pela Recorrente a questão concreta de que cumpre conhecer é apenas a seguinte:


1ª- Atenta a factualidade provada o Acórdão não podia ter remetido o apuramento dos danos para liquidar em execução de sentença, tendo, por isso, violado o disposto no artigo 609 do CPC?


B) Vejamos

Como se deixou dito a única questão que importa decidir é a de se saber se o Acórdão podia ter julgado a apelação procedente e remeter o «apuramento do montante dos danos para liquidar em execução de sentença, até ao limite do pedido, deduzido o montante fixado na decisão impugnada pelo transporte».

Nos termos do artigo 609 n.º 1 do Código de Processo Civil «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir».

E, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito «se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja liquida».

Este preceito corresponde ao anterior artigo 661 do CPC.

Da redacção do anterior artigo 661 resultava, e continua a dever entender-se face ao actual 609 do CPC, que o tribunal deve (e estamos aqui perante um poder dever do Juiz e não perante um poder discricionário) condenar no que se liquidar em execução de sentença sempre que se encontrem reunidas duas condições:

A primeira que o réu tenha efectivamente causado danos ao autor e a segunda que o montante desses danos não esteja determinado na acção declarativa por não terem sido concretamente apurados.

Esta sempre foi a jurisprudência uniforme, podendo ler-se, por exemplo, no Ac. RC de 1.7.1980, BMJ 301, 469 «Para que alguém possa ser condenado a pagar a outrem o que se liquidar em execução de sentença, necessário é que o julgador tenha perante si duas certezas) que a primeira pessoa tenha causado danos à segunda; b) que o montante desses danos não esteja averiguado na acção declarativa, desde logo, por não haver “elementos para fixar o objecto ou a quantidade».

Ora, é manifesto que apenas é possível remeter para liquidação em execução de sentença o montante de danos que tenham sido efectivamente provados mas cujo valor concreto não foi possível determinar.

Como expressivamente se afirmava no Acórdão do STJ de 03.12.1998, BMJ 482-180, proferido ao abrigo da anterior legislação processual, mas que se mantém plenamente válido, “Do cotejo destes normativos resulta que só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove a sua existência, não existam os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade.

O que é essencial é que esteja provada a existência dos danos, ficando dispensada apenas a prova do respectivo valor”.

Fundamental, requisito essencial para que o Tribunal possa remeter para liquidação em execução de sentença é, pois, que se prove a existência de danos (ainda que se desconheça o seu valor).

Ora, da factualidade provada não resultam danos cujo montante seja necessário apurar ou liquidar em execução de sentença.

Desde logo relativamente aos peticionados danos não patrimoniais nenhum dano vem provado, pelo que nenhum valor se pode determinar em execução de sentença.

Quanto aos danos patrimoniais alegados apenas se provam aqueles que já haviam sido objecto da condenação em primeira instância. Nenhuns outros danos se provaram pelo que não é possível relegar para liquidação em execução de sentença a determinação do montante de danos que não estão provados.

Deste modo iria relegar-se para liquidação em execução de sentença, não o apuramento do valor dos danos mas sim o apuramento dos próprios danos.

Como bem se salienta no Ac. do STJ de 30.03.2003, invocado pela recorrida (cl. 29) «Do que se trata aqui não é da eventual quantificação (em execução de sentença) de algo que se tivesse provado, mas antes da ausência de prova de qualquer prejuízo cuja quantificação se tivesse revelado, por falta de elementos, impossível fixar. O que quer dizer que não estava aberto o caminho do nº. 2 do artº. 661º do CPCivil».

Ponderando a matéria de facto provada afigura-se-nos ser inequívoco que a Autora não provou os danos que alegou.

Deste modo o Acórdão recorrido apenas poderia ter remetido para liquidação em execução de sentença a indemnização por danos provados, mas relativamente aos quais não seja ainda possível quantificar o seu montante, não sendo possível relegar para liquidação em execução de sentença o apuramento, a determinação e prova dos próprios danos.

Esta se nos afigura a solução, não só mais conforme e adequada ao espírito e à razão da norma, como também a mais justa.

Por tudo o que se deixou afirmado entende-se que o Acórdão recorrido não se pode manter, impondo-se a procedência desta questão.

Em suma, impõe-se a procedência das alegações da recorrente, pelo que se concede a procedência da presente Revista.


III – DECISÃO

Pelo exposto, e pelos fundamentos enunciados, decide-se conceder a revista e, em consequência revoga-se o Acórdão recorrido e, em consequência, repristinando a decisão da 1.ª instância.

Custas pela Recorrida.  


Lisboa, 18 de Setembro de 2018


José Sousa Lameira (Relator)

Hélder Almeida

Oliveira Abreu