Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3781
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAÚL BORGES
Descritores: INTENÇÃO DE MATAR
MATÉRIA DE FACTO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
CONHECIMENTO OFICIOSO
ERRO DE JULGAMENTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
HOMICÍDIO
DOLO EVENTUAL
LEGÍTIMA DEFESA
ANIMUS DEFENDENDI
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
PROVOCAÇÃO
ATENUANTE
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PROPORCIONALIDADE
ARREPENDIMENTO
FINS DAS PENAS
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200903120037813
Data do Acordão: 03/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - A reapreciação da determinação da intenção do agente, mais concretamente da intenção de matar, ou a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial, não cabe no âmbito do recurso para o STJ, por estar em causa matéria de facto, como a jurisprudência tem entendido.

II - A decisão do Tribunal da Relação que conhece de facto e de direito, nos termos do art. 428.º do CPP, é definitiva quanto a matéria de facto.

III - Com a reponderação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação nos termos consentidos pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, cumprida ficou a garantia de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, certo sendo que o art. 32.º da CRP não garante um duplo grau de recurso em matéria de facto.

IV - Como resulta do art. 434.º do CPP, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

V - A reapreciação da decisão sob recurso há-de, como princípio, confinar-se à matéria de direito, salvo se, a título excepcional, se tornar imperativo para o conhecimento daquela a ampliação da matéria de facto, a correcção de evidentes erros ou a remoção de contradição insanável entre os factos e a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, caso em que este Supremo Tribunal ordena o reenvio – arts. 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), e 426.º do CPP.

VI - Mas, ainda assim, mantendo-se no estrito âmbito da reserva de competência e do indispensável pressuposto de que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.

VII - A única hipótese de o STJ sindicar matéria de facto é através da análise da existência de vícios decisórios, previstos nas als. do n.º 2 do art. 410.º do CPP, sendo esse reexame feito por iniciativa própria, ocorrendo uma tal intervenção apenas para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa própria, se se vier a concluir que por força da existência de qualquer dos vícios referidos não pode chegar a uma correcta solução de direito.

VIII - O erro de julgamento não é sindicável pelo STJ, pela razão de que não se confunde com o vício da decisão.

IX - O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.

X - Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

XI - Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

XII - Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.º do CPP.

XIII - Não incidindo o recurso sobre prova documentada, nem se estando perante prova legal ou tarifada, não se pode sindicar a boa ou má valoração daquela; querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.

XIV - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

XV - Como é jurisprudência assente neste Supremo Tribunal, em recurso interposto de acórdão de Tribunal da Relação não é possível a invocação ou a reedição de arguição dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, ficando vedado pedir depois ao STJ, em revista, a reapreciação da decisão de facto tomada pela Relação.

XVI - Na verdade, mesmo nos recursos interpostos directamente deixou de ser possível recorrer-se com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do n.º 2 do art. 410.º, o mesmo se passando com os recursos interpostos da Relação, sendo jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal que, no recurso para o STJ das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, está vedada a arguição dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, posto que se trata de matéria de facto, ou seja, de questão que se não contém nos poderes de cognição do STJ, o que significa que está fora do âmbito legal dos recursos a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento/decisão pela Relação.

XVII - Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto criminoso. Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de crime, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta. No dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado.

XVIII - Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Coimbra, 1971, pág. 385) apresenta a solução de que se a realização do facto for prevista como mera consequência possível ou eventual da conduta haverá dolo se o agente, actuando, não confiou em que ele se não produziria. Ou, vistas as coisas pela outra face: o dolo só se excluirá, afirmando-se a negligência consciente, quando o agente só actuou porque confiou em que o resultado se não produziria. Sempre pois que ele, representando o resultado, não tomou posição perante este, deverá ser punido a título de dolo eventual.

XIX - Para Maria Fernanda Palma (in Da “Tentativa Possível” em Direito Penal, Almedina, 2006, págs. 79-81) o dolo eventual é ainda uma forma de decisão de realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, especificando que «na situação de dolo eventual o agente, ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele, nos termos do n.º 3 do artigo 14.º do Código Penal), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação nos fundamentos da sua decisão e opta pela lesão do bem jurídico. Na perspectiva do desvalo da acção, do ilícito, não há qualquer razão para diferenciar qualitativamente o dolo eventual».

XX - Tendo em conta que a distância a que foram efectuados os, pelo menos, 6 disparos, tendo na mira, após os 2 ou 3 primeiros, o CS, conduz a que se possa afirmar que o arguido representou a possibilidade de o atingir e de lhe causar a morte, conclui-se que da análise do texto da decisão recorrida não resulta que a matéria provada seja insuficiente para suportar a decisão de direito, que se esteja perante qualquer forma de contradição entre a fundamentação ou entre esta e a decisão, ou que resulte como patente a verificação de erro na apreciação da prova.

XXI - São pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi.

XXII - São requisitos da agressão a ilegalidade, a actualidade e a falta de provocação, e requisitos da defesa a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.

XXIII - A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão, e em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cf. Ac. do STJ de 18-12-1996, Proc. n.º 115/96 - 3.ª.

XXIV - Essencial à legítima defesa é mesmo o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima: o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual.

XXV - A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem: tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira.

XXVI - «O excesso de legítima defesa (que melhor se denominaria «excesso na defesa») só tem lugar quando se verificam os pressupostos da defesa, isto é, quando se verifica uma agressão ilícita e actual» – cf. Cavaleiro de Ferreira; Lições de Direito Penal, vol. I, Verbo, 1985, pág. 99.

XXVII - Não se tendo verificado uma agressão que estivesse em execução ou iminente e que o arguido tivesse de sustar, pondo com a sua conduta em risco a vida alheia, que veio a sucumbir, para salvaguardar a sua, o arguido não actuou em legítima defesa, pelo que não pode considerar-se ter agido com excesso de legítima defesa.

XXVIII - A provocação como circunstância atenuativa da culpa pode ocasionar a compreensível emoção violenta de que fala o art. 133.º do CP; não se completando os requisitos exigidos para o privilegiamento, pode a provocação injusta actuar nos termos do art. 72.º, n.º 2, al. b), do CP e conduzir à atenuação especial da pena; mas se não tiver por efeito diminuir a ilicitude ou a culpa de forma essencial ou acentuada terá o valor de atenuante geral – cf. Ac. do STJ de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª.

XXIX - Sendo de afastar para a configuração de privilegiamento do homicídio, como é hoje consensual, mantém-se a exigência de proporcionalidade para a provocação injusta, enquanto elemento integrante de atenuação especial.

XXX - Na verdade, o que se exige para a atenuação especial é que exista uma certa proporção entre o acto que motiva o crime e o crime praticado.

XXXI - Qualquer provocação para ser relevante nesta sede teria de ser injusta e proporcional à reacção, o que não sucede quando dos factos provados não resulta qualquer acto que possa ser considerado uma actuação censurável da vítima, uma ofensa imerecida, uma violência, um acto provocatório por parte da vítima com intensidade suficiente para despoletar tal reacção e muito menos de carácter injusto, ou que o arguido fosse colocado face a um quadro de condições fortemente limitativas da sua liberdade de agir e de reflectir. Como refere o STJ, no Ac. de 11-10-1988 (BMJ 380.º/557), «Nenhum motivo pode apresentar-se proporcional ao homicídio».

XXXII - O arrependimento não se mostra, tem de ser demonstrado através da prática de actos ou assunção de posturas; sendo uma espécie de contrição pelos factos praticados, suporá necessariamente a confissão destes.

XXXIII - «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena.

XXXIV - As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

XXXV - Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena» – cf. Figueiredo Dias, Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, pág. 279 e ss..

XXXVI - A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.
Decisão Texto Integral:
No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, nº 283/03.4GBOER, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, foi submetido a julgamento o arguido AA, natural de Sintra, nascido em 18-04-1970, preso preventivamente à ordem destes autos desde 11-10-2006 (e anteriormente detido em 05-10-2005, no Brasil, em execução de mandado de captura internacional).
Por acórdão do Colectivo de Oeiras de 15-02-2007 foi deliberado:
I - Condenar o arguido pela prática, em autoria material e em concurso real, de:

- um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, (após ter o Colectivo procedido à convolação do tipo legal na sua forma qualificada por que o arguido fora acusado, p. p. pelos artigos 131º e 132º , n.ºs 1 e 2, alíneas d) e g) do Código Penal na versão de 1995 ) na pena de doze anos de prisão, e de

- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3º, nº 3 e 86º, nº 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de dois anos de prisão,

sendo, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenado na pena única de treze anos de prisão.

II - Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido por BB, em representação do menor CC, seu filho e da vítima DD, e condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de € 65.000.

- Julgar procedente o pedido de reembolso das despesas hospitalares deduzido pelo Centro hospitalar de Lisboa Ocidental, SA e condenar o demandado a pagar a quantia de € 756, 51, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação para contestar até integral pagamento.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, impugnando a matéria de facto e de direito e restringindo o recurso à parte criminal.

Remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa, foi ordenada a baixa do processo a fim de ser efectuada a transcrição integral da prova produzida.

Devolvido o processo à Relação, porque da transcrição constasse a existência de numerosas passagens em que se dizia ser imperceptível a gravação efectuada, foi solicitado o envio de uma cópia das cassetes gravadas.


Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2007, constante de fls. 1136 a 1181, por existir insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, foi determinado o reenvio do processo para um novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto.

Após a realização do novo julgamento, em que se teve em vista “uma melhor compreensão da dinâmica da actuação dos intervenientes”, conforme preconizara a Relação, foi proferido acórdão datado de 31 de Janeiro de 2008, constante de fls. 1450 a 1514, sendo deliberado:

Condenar o arguido pela prática de:

- Um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, (após ter o Colectivo procedido à alteração jurídica do tipo legal na sua forma qualificada por que o arguido fora acusado, p. p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, alíneas d) e g), do Código Penal na versão de 1995, comunicando a convolação, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358º do CPP, conforme a acta de leitura de acórdão de fls. 1515/6) na pena de 9 anos de prisão, e de

- Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3º, nº 3 e 86º, nº 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 10 anos de prisão.

Foram renovadas as condenações nos pedidos cíveis exactamente nos termos do acórdão anulado.


Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a motivação de fls. 1524 a 1642, pretendendo o reexame da matéria de facto e de direito, restringindo-se a discordância à matéria criminal.

Respondeu o Ministério Público, defendendo a integral manutenção do decidido.

Foi ordenada a baixa do processo à 1ª instância para organização de traslado - fls. 1680.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-09-2008, constante de fls. 1692 a 1762, foi deliberado negar provimento ao recurso.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, restrito à parte criminal, apresentando a motivação de fls. 1769 a 1854, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição, embora com redução de tipo de letra):

1. O arguido AA foi condenado pelo tribunal de primeira instância pela prática de um crime de homicídio simples p. e p. no artº. 131º do C.P. e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artºs. 3º nº 3 e 86º nº 1 al. c) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro na pena única de 10 anos de prisão.

2. Para a condenação do arguido pelo crime de homicídio simples p. e p. pelo artº. 131º do C.P., considerou aquele tribunal, no que tange ao elemento subjectivo do tipo, que aquele actuou com dolo eventual.

3. Sindicada, entre outras, tal matéria para o Tribunal da Relação de Lisboa, viu o recorrente ser confirmada tal decisão.

4. Se é verdade que a Jurisprudência tem tratado esta questão como de um facto se tratasse, porém, a verdade é que não é líquido que assim seja, pois a doutrina mais actual tem defendido que “a fixação do dolo em sede de decisão judicial penal tem por base regras de experiência comum, critérios de normalidade social, de verosimilhança, que, operando sobre a factualidade dada como provada, permitem atribuir um sentido ao comportamento, sentido esse em que se afirmará ou negará o dolo (…) (1) .

5. Isto é, “os actos psíquicos não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações, ou seja, os actos psíquicos transcendem a possibilidade de comprovação histórico-empírica, pelo que, do ponto de vista da análise jurídico penal, não são questões de prova, (…) trata-se de significações, apreciações, avaliações, não se trata de factos; por outras palavras, o apuramento do dolo do agente, enquanto acto interior e conceito mentalístico, é uma conclusão, uma ilação e uma atribuição de significado social que o tribunal criminal extrai a partir dos factos esses lidos à luz das regras da experiência da vida, da normalidade social, da experiência comum”. (2)

6. Já o insigne mestre Cavaleiro Ferreira ensinava, “os actos psíquicos são de difícil comprovação por terceiros; não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações (3)

7. Ou seja, é admissível que a questão da existência ou não de dolo em determinada conduta do agente criminoso, não seja uma questão aferida em termos probatórios, mas uma questão para lá da prova, com contornos jurídico-normativos, cuja conclusão a chegar pelo tribunal deriva dos factos dados como provados (entendam-se factos como pedaços históricos de vida).

8. Aliás, repare-se que na decisão de primeira instância, o tribunal deu como provado o facto 13º praticamente “contra a corrente”, isto é, contrariamente ao que se fazia prever perante toda a dinâmica factual dada como provada e não provada pelo tribunal, não fazendo, aliás, qualquer considerando em sede de motivação da decisão de facto, ou mesmo em sede jurídico-penal no que tange ao dolo eventual.

9. O que é claramente demonstrativo não só da dificuldade que o próprio tribunal de primeira instância enfrentou na qualificação do dolo como questão de facto (ainda que tenha dado tal facto como provado), como da inexistência de raciocínio lógico-dedutivo para o seu alcance.

10. O certo é que o tribunal recorrido, confirmou que o arguido actuou dolosamente ainda que na sua modalidade mais periférica, o dolo eventual.

11. E, tal qualificação foi, no entender do arguido, mal realizada, afigurando-se por isso injusta, pois ainda que nesta sede não se possa sindicar matéria de facto, a verdade é que do cotejo e conjugação dos restantes factos provados e não provados, à dinâmica própria que o acórdão de primeira instância fez transparecer (daí se ter referido supra que o facto 13º dado como provado foi “contra a corrente”), bem como da sua fundamentação, salvo o devido respeito, a conclusão a retirar era manifestamente contrária à alcançada, pois como melhor se verá infra o dolo eventual não ficou demonstrado.

12. O Tribunal da Relação de Lisboa, com uma argumentação que não convence, entendeu que o tribunal de primeira instância no que tange ao facto nº 13 não cometeu qualquer erro de julgamento na abrangência do vício previsto no artº. 410º nº 2 do C.P.P. e como tal ajuizou bem.

13. Com todo o respeito pela perspectiva de análise do Tribunal da Relação de Lisboa, não pode o recorrente conformar-se com a mesma na medida em que, quer dos restantes factos assentes, quer da dinâmica de encadeamento dos mesmos onde as regras de experiência comum têm no caso em apreço enorme importância, retira-se entendimento diverso.

14. Se é certo que ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artº. 410º nº2 do C.P.P. no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso por este Alto Tribunal.

15. Ou seja, não existe, pois, qualquer impedimento para que o Supremo Tribunal de Justiça reaprecie a questão do dolo, quer ela seja configurada como questão de direito, quer a mesma seja apreciada ex vi artº. 410º nº 2 do C.P.P..

16. Como V. Exas. certamente concordarão, a existência do elemento volitivo, isto é, o ter previsto ou admitido como possível a morte da vítima (este sim questionado e sindicado pelo arguido), não é uma consequência automática da verificação do elemento intelectual, isto é, este elemento tem de ser demonstrado, o que, no caso em apreço não aconteceu!

17. É que para a análise do caso concreto e boa decisão da causa, é importante perceber-se toda a dinâmica dos factos tal como estes sucederam no tempo e no espaço e que no entender do arguido estão razoavelmente descritos nos factos dados como provados.

18. Da factualidade assente, o Tribunal da Relação de Lisboa numa apreciação claramente in pejus chega mesmo a defender, pasme-se, a existência de dolo necessário por parte do recorrente, em claro prejuízo da decisão de primeira instância.

19. Com o devido respeito, considera o recorrente que nem uma, nem outra se afiguram análises correctas dos factos dados como assentes, na medida em que partem de extrapolações inadmissíveis desses mesmos factos não consentânea à luz de regras de experiência comum aceites pelo homem médio.

20. O próprio Tribunal da Relação de Lisboa aceita que o apuramento da existência do dolo eventual terá de passar por deduções ou induções, ou mesmo com correcção de raciocínio com recurso a regras de experiência comum, cujas conclusões serão extrapoladas a partir dos factos dados como provados e que integram conteúdos normativos, ou melhor, traduzem uma análise livre da realidade (que pode não ser aquela e por isso aqui sindicável) a partir de construções jurídicas definidas na lei.

21. Repare-se que as diversas construções do dolo (directo, necessário e eventual) são definições eminentemente jurídicas, cuja realidade psíquica é induzida ou deduzida pelo julgador, não sendo pois um facto em si mesmo, mas uma conclusão ou corolário extraído de factos concretos.

22. Posto isto: a apreciação que o Tribunal da Relação de Lisboa faz da questão do dolo é também ela artificial, porque deduzida dos factos assentes, mas abusiva e inadmissível na medida em que os factos dados como provados são interpretados de uma forma nada consentânea com as regras de experiência comum.

23. É bom relembrar que a matéria de facto dada como provada procura fazer um encadeamento lógico e dinâmico da realidade tal como esta terá ocorrido não permitindo uma leitura fragmentada ou sectorial, e nesta medida o Tribunal da Relação de Lisboa olvida o facto 7, isto é, o ofendido DD, praticamente sobre o arguido ameaça-o uma vez mais dizendo-lhe directamente que este estava feito… o que para qualquer bom entendedor rapidamente alcança as pretensões do ofendido, ali potencial agressor.

24. Ou seja, os subsequentes factos 8 e 9 dados como provados pretendem demonstrar que o arguido já não dispunha de qualquer elemento intimidatório para repelir o perigo, sendo certo que o meio utilizado – os disparos efectuados para o ar e para o chão – foram manifestamente insuficientes.

25. Porque o arguido não dispunha de mais balas para intimidar e assim travar o ímpeto agressivo do ofendido (concatenação dos factos 7 e 8 dados como provados) o arguido abandonou o local, continuando o ofendido de pé – facto 9.

26. Por outras palavras, nos actos desvelados pelo recorrente nada permite afirmar que este previra a morte do ofendido, quando após efectuados os disparos a plena convicção do recorrente é que não conseguiu travar o ofendido e que este o vai agredir.

27. E é neste segmento que não concordamos com a análise do Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que não encontramos amparo nos factos dados como provados para a ilação ou dedução a que o Tribunal chega para defender, pasme-se, o dolo necessário.

28. E crê o recorrente que a conclusão alcançada pelo tribunal parte de um vício de análise que reside no fraccionamento dos factos provados e por os interpretar abusivamente, isto é, sem suporte na realidade.

29. Repare-se no seguinte: a págs. 57 do acórdão recorrido a nota de rodapé nº 7 o Tribunal da Relação de Lisboa confirma aquilo que temos vindo a demonstrar pois, qualifica os disparos efectuados para o ar e para o chão pela vítima como um “acto de varrer em linha vertical o indivíduo que se lhe dirigia”.

30. Ora, não foi nada disto que se passou, nem é nada disto que os factos dados como provados reproduzem. O recorrente não deu tiros em linha vertical, aliás, os disparos efectuados foram para o ar e para o chão.

31. Questão totalmente diferente é o movimento descendente que o recorrente fez, isto é a passagem dos tiros para o ar, para os tiros para o chão e que obviamente não se compadece com um acto de varrer na linha vertical o ofendido.

32. De todo o modo, e ainda a propósito do movimento descendente, ficou por responder uma questão essencialíssima que já havia sido colocada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em anterior acórdão que anulou o primeiro julgamento – mérito lhe seja dado - e que o recorrente repristinou no recurso para o Tribunal Recorrido e que é a seguinte: “Se o disparo que provocou a morte da vítima não foi o dolosamente efectuado, mas sim um anterior que involuntariamente a veio atingir, o arguido só poderá ser condenado pela prática de um crime de homicídio tentado em concurso (efectivo ou meramente aparente), com um crime de homicídio negligente e não pelo crime doloso consumado.

33. Como se vê também o Tribunal da Relação de Lisboa considerava à data importante discutir-se o homicídio negligente uma vez que não se descortinou qual o tiro que alvejou a vítima, TAL COMO NESTE JULGAMENTO O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA TAMBÉM NÃO CONSEGUIU DESCORTINAR.

34. POR OUTRA PALAVRAS QUAL DOS TIROS ATINGIU A VÍTIMA DD? É QUE A RESPOSTA A TAL QUESTÃO É CRUCIAL PARA RESPONDER SE O HOMICÍDIO FOI DOLOSO OU NEGLIGENTE.

35. Para se assumir a defesa ou do dolo eventual ou de negligência consciente é necessário, primeiro saber qual o disparo em concreto que atingiu o ofendido DD, o que na verdade não se apurou e que desde logo nos poderia remeter para a negligência por não se conseguir demonstrar a vontade na realização da conduta do arguido;

36. E depois aferir a motivação psíquica do arguido a partir dos factos dados como provados pelo tribunal em primeira instância e o seu encadeamento lógico, o que o Tribunal da Relação de Lisboa não faz, ou melhor, faz mas de forma muito superficial e com interpretações abusivas por não serem consentâneas com a realidade.

37. Aliás, o recorrente na motivação de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, na esteira da ilustre Professora Mª. Fernanda Palma, elencou um conjunto de casos diferenciados em que a “consistência racional” do comportamento voluntário assume formas “socialmente resolvidas”, de forma a abarcar uma diversidade de casos possíveis de forma a se compreender e alcançar a motivação do agente e assim se concluir pela existência ou não de dolo na sua conduta (4).

38. A mesma Autora a propósito do 3º grupo de casos diz o seguinte: “No terceiro grupo, integram-se aqueles casos em que a situação não pode desfazer as dúvidas sobre o carácter intencional do comportamento do agente. São, por exemplo, casos em que se podia verificar quer um crime de homicídio tentado, quer um crime de ofensas corporais, não se depreendendo com certeza, das motivações do agente, se existe uma relação de implicação entre o risco do bem jurídico e o resultado pretendido. Se A dispara sobre B numa discussão e o fere, em princípio podem dar-se as duas possibilidades. Na prática a decisão costuma ficar dependente da perigosidade objectiva dos actos (zona atingida, gravidade do ferimento, modo de actuação, etc). O mais consentâneo com um direito penal do facto é a limitação da intenção do resultado mais grave pela condução externo-objectiva da acção”.

39. Esta questão que foi suscitada pelo recorrente, salvo melhor opinião, não foi de todo aprofundada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e devia ter sido na medida em que são os factos dados como provados e não interpretações dos mesmos que fornecerão a final a resposta quanto à motivação do arguido.

40. Ora, dos factos resulta que, quer a vítima DD, quer a testemunha EE se encontravam embriagados e de tal forma imbuídos de um espírito de quezília que começaram a agredir-se mutuamente – facto dado como provado nº 2.

41. Ao ponto de empurrarem e darem encostos ao arguido em claro gesto de provocação, dizendo-lhe: “para onde estás a olhar? Para ti também há” – facto nº 3 dado como provado.

42. Para ti também há o quê, quando os dois intervenientes estavam a lutar entre si de tal forma que tiveram de ser separados? A reposta parece óbvia! Para o arguido também haveria agressões! Aliás o tribunal de primeira instância chegou à mesma conclusão a pág. 37 da decisão recorrida.

43. E perante este cenário turbulento o que é que o arguido faz? Vai-se embora e dirige-se para a sua viatura, sem sequer fazer um qualquer comentário que pudesse ser entendido pela vítima e pelo seu amigo como injurioso ou provocatório. Nada! – facto provado nº 4.

44. Sucede, porém, que a vítima DD foi atrás de si, isto é, foi na direcção do arguido onde estava estacionado o seu automóvel – facto provado nº 6.

45. Questiona-se mais uma vez: Com que intenção terá a vítima tomado tal rumo? A reposta empírica também parece óbvia e é desvelada pelo facto provado nº 7: a vítima procurava o confronto, ao ponto de lhe ter dito “agora estás feito”.

46. E esta conclusão sai ainda reforçada pelos factos nº 2 e 3 dados como provados, não só porque a vítima já se tinha envolvido em confrontos com o seu amigo (confrontos esses presenciados pelo arguido que se afastou), como já tinha provocado e “ameaçado” o arguido dizendo-lhe que para ele também havia “pancada” e dando-lhe encostos.

47. Nesta altura, estando já o arguido munido de uma pistola, qual é a sua conduta penalmente relevante? Dispara 2 a 3 tiros para o ar e num movimento descendente mais 4 disparos para o chão, em direcção aos pés da vítima! – facto dado como provado nº 6.

48. Questiona-se novamente: Pretendia o arguido, com o descrito modo de actuação matar a vítima, isto é, disparando tiros intimidatórios para o ar e para o chão, para refrear o ímpeto agressivo da vítima?

49. Dir-se-á que com tal conduta o arguido potenciou o risco, consciente que poderia acertar na vítima que na sua direcção caminhava (elemento intelectual do dolo), mas o que não se retira é que com a descrita conduta o arguido tenha processado mentalmente a hipótese de morte da vítima.

50. É que não é só o modo de actuação do arguido que nos conduz a tal solução, pois quer a zona atingida, quer a gravidade do ferimento, p. ex., são critérios que, como se referiu supra, devem também ser levados em consideração.

51. E a verdade é que a vítima foi atingida no abdómen (não tendo sido alvejada em qualquer órgão vital), tendo morrido de choque hipovolémico, isto é, de perda de sangue.

52. Repare-se também que os factos ocorrem pelas 02h40 da madrugada de dia 16 e Dezembro de 2003 e a vítima vem a falecer nesse dia às 10h10m da manhã, ou seja, quase nove horas depois – vide relatório da autópsia a fls. 96 e ss. dos autos.

53. Tudo isto e ignorado no acórdão recorrido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que nem sequer uma palavra aduz para infirmar tal objectividade de análise.

54. Mas, dois outros elementos adicionais, também eles objectivos e dados como provados pelo tribunal em primeira instância, podem contribuir para o despiste da questão no que tange à ausência do elemento volitivo do dolo.

55. Por um lado, já depois do último disparo, a vítima ainda de pé proferiu as seguintes expressões “podes vir que é de alarme” (pretendendo que o outro(s) elemento(s) do grupo o acompanhassem na agressão que se adivinhava) e para o arguido “agora estás feito”, o que claramente indicia a agressividade da vítima para com o arguido e das claras intenções daquele em querer agredir fisicamente este.

56. Por outro lado, efectuados os disparos que provavelmente retardaram, mas não pararam o ímpeto agressivo da vítima, (disparos realizados com carácter intimidatório) e do recorrente se ter introduzido dentro do veículo e abandonado o local, a verdade é que DD ainda continuava de pé.

57. Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que o facto da vítima se encontrar de pé após todos os disparos e de ainda se dirigir para o arguido dizendo-lhe: “agora estás feito” não significa que o arguido não se tenha apercebido que atingiu a vítima, pois que se mostra provado que o fez quando ciente de que não dispunha de mais balas.

58. O que não se descortina, nem se alcança da argumentação do Tribunal da Relação de Lisboa, é que o facto objectivo das balas se terem acabado – facto este que o Tribunal repete inúmeras vezes – do mesmo se infira o dolo eventual!!!

59. Ou seja, para o Tribunal da Relação de Lisboa é indiferente para o apuramento da questão do dolo eventual - acto interior psíquico – os factos assentes, designadamente que após os disparos a vítima se tenha dirigido para o recorrente e afirmado “agora estás feito”, nem mesmo que o arguido tenha abandonado o local ainda com a vítima de pé; já não é, no entanto, irrelevante para o tribunal “a quo” que o arguido tenha abandonado o local depois das balas terem acabado.

60. Repare-se que, mesmo a interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa faz deste facto é mais uma vez, claramente, in pejus, pois em parte alguma do aresto recorrido o tribunal refere que, caso o arguido assim quisesse ou nesse sentido estivesse determinado, com todas as balas que dispunha poderia ter disparado contra a vítima e não para o ar e para o chão, sendo evidente que o facto deste já não dispor de mais balas significa não dispor de qualquer meio de intimidação da vítima que naquele momento era um potencial e iminente agressor.

61. Além de que a desvalorização que o Tribunal da Relação de Lisboa tenta fazer do facto 9 – isto é, só após o arguido ter abandonado o local é que a vítima DD caiu ao chão – é também despropositada na medida em que se este tivesse caído ainda com o arguido no local, certamente que, poder-se-ia falar em fuga, pois a única razão aparente para abandonar o local de imediato seria um qualquer receio das consequências do acto; mas com o arguido em pé, aparentemente de boa saúde e a querer agredir o arguido, o abandono do local (e a ausência de meios de defesa) só pode ser perspectivado como protecção da sua integridade física.

62. Conforme tem pugnado o Supremo Tribunal de Justiça nestes casos, a propósito de um homicídio, “uma vez que a intenção de matar, seja na forma de dolo directo, seja na de dolo eventual, importa a prova de um elemento do foro íntimo do agente, essa descoberta só é alcançável através de dados exteriores, designadamente a violência da agressão da arma utilizada, a parte do corpo da vítima atingida, a personalidade do agressor, a motivação, assim se chegando à verdade prático-jurídica que sirva de suporte à decisão (5)

63. “O apuramento da intenção do agente é, normalmente, uma conclusão que o tribunal pode e deve fazer a partir da avaliação da conduta do réu, na medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este imputáveis (6)

64. A propósito de um arguido que desferiu um golpe de catana na vítima, causando-lhe a morte, considerou o tribunal que “afirmou e insistiu o réu em que não tinha intenção de matar. Do apontado complexo de circunstâncias e, bem assim, pela carência de motivação séria, entendemos que a prova não autoriza a decidir com segurança, o contrário. (7)

65. Na doutrina, para além de Fernanda Palma, também Teresa Pizarro Beleza afirma que, “num julgamento de homicídio seja vulgar discutir-se se normalmente uma pessoa que pratica uma agressão de uma certa forma tem ou não intenção de matar, isto é sempre necessário que o tribunal se socorra de indícios objectivos para tentar provar a intenção de quem agiu de uma forma ou de outra (8).

66. Em conclusão, dos elementos objectivos ao dispor do tribunal o que se retira é manifestamente o contrário (daí o recorrente desde inicio ter metaforicamente referido que o dolo eventual dado como provado pelo tribunal em primeira instância foi manifestamente “contra a corrente”).

67. Relembre-se que foi dado como não provado que o arguido tivesse sequer apontado ao abdómen da vítima, tendo sido dado como provado que disparou tiros para o ar e para o chão.

68. Ou seja, o facto de ter acertado no abdómen da vítima também poderá indiciar aquilo em que linguagem profana se reputaria de acidente – claramente negligente.

69. Então e a personalidade do agressor aqui recorrente? Consta do facto provado nº 16 e 18 que “o arguido é considerado por quem com o mesmo priva como sendo pessoa honesta, calma, pacata, e bom pai de família e que mostrou arrependimento.

70. E qual a motivação do arguido para o acto? Não será pois despiciendo relembrar que o tribunal de primeira instância também deu resposta a esta situação a págs. 41 e 42 da sua decisão: “Na verdade, foi a vítima e um amigo que interpelaram o arguido em tom provocatório e com ameaças de o agredirem fisicamente, sem que este tivesse dado causa a tal comportamento, e os disparos iniciais que efectuou com a sua pistola foram direccionados para o ar, em tom intimidatório”.

71. DE TODO O MODO, E AINDA QUE NENHUM DESTES ARGUMENTOS PROCEDA, O TRIBUNAL DA RELAÇÃO OLVIDA O MAIS IMPORTANTE POIS O QUE AQUI SE DISCUTE É QUE O ARGUIDO NEM SEQUER QUIS ATINGIR A VÍTIMA (O QUE NÃO SIGNIFICA QUE NÃO PUDESSE PREVER TAL HIPÓTESE), MUITO MENOS TENDO PREVISTO QUALQUER RESULTADO MORTE.

72. E ESTA DISCUSSÃO É INDISPENSÁVEL PELO SEGUINTE: O ARGUIDO PODE NÃO QUERER ATINGIR A VÍTIMA, MAS FACE Á SUA REACÇÃO E AOS DEMAIS CIRCUNSTACIALISMOS FÁCTICOS, NÃO TER DEIXADO DE ANTEVER A POSSIBILIDADE DE TAL SITUAÇÃO – O QUE NÃO SIGNIFICA, MESMO ANTEVENDO A PROBABILIDADE DE ATINGIR A VÍTIMA, QUE LHE QUISESSE TIRAR A VIDA – DOLO MORTE.

73. DAÍ A DISCUSSÃO EM TORNO DA PALAVRA “MORTALMENTE” NO FACTO 13 DADO COMO PROVADO E É ESTA DISTINÇÃO QUE, SALVO O DEVIDO RESPEITO, O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA NÃO FOI SENSÍVEL, COLOCANDO TUDO NO MESMO “SACO”.

74. Em suma, admitindo-se que o arguido tenha previsto atingir a vítima – sendo certo que todos os factos dados como provados e as ilações que deles tiramos apontam em sentido inverso – não há qualquer facto dado como provado que, mesmo numa interpretação in pejus e claramente desconforme com a realidade, leve a se admitir que o arguido tenha previsto a morte da vítima conformando-se com tal resultado.

75. Sendo grosseira ou grave a culpa (por negligência) do arguido, por acção altamente potenciadora do risco, deve o mesmo ser condenado pela prática de um homicídio negligente p. e p. pelo artº. 137º nº 2 do C.P., numa pena de prisão não superior a 5 anos suspensa na sua execução nos termos do artº. 50º nº 1 do C.P. subordinada ao cumprimento de deveres de conduta, isto por verificada a ausência de antecedentes criminais, bem como a personalidade do agente dada como provada pelo tribunal.

76. Ainda que V. Exas. não concordem com o enquadramento jurídico-penal dos factos operada no ponto anterior, outro possível enquadramento jurídico no caso de confirmação da condenação do arguido por homicídio simples diz respeito à legítima defesa que o Tribunal da Relação, com manifesta simplicidade, considerou que também não se encontram preenchidos os pressupostos para a aplicação da mesma.

77. Afirmou o tribunal de primeira instância, corroborado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que seria necessário que o arguido tivesse efectuado os disparos com animus defendendi em reacção a uma agressão actual iniciada ou em começo de execução.

78. Em primeiro lugar, para que a legítima defesa opere, como bem denota o tribunal, não é necessário que exista uma agressão já iniciada, pois a agressão poderá ser iminente.

79. Neste ponto o Tribunal da Relação de Lisboa socorre-se de uma argumentação que não convence, sobretudo porque desvaloriza a actuação dos indivíduos por se encontrarem visivelmente alcoolizados, quando bem se sabe que o álcool é responsável por potenciar a violência, minimizando qualquer inibição que eventualmente exista por parte dos contendores.

80. Ou seja, é mais preocupante/perigoso um grupo de indivíduos alcoolizados que não refrearão os seus impulsos face a qualquer tipo de diálogo racional, do que um grupo de indivíduos que imbuídos de espírito de quezília não só têm a capacidade de racionalizar os seus actos, como tem capacidade de discernimento e compreensão para os refrear.

81. De todo o modo, há um apontamento interessante na argumentação do Tribunal da Relação de Lisboa e que é o seguinte: concede este Alto tribunal que se trata de UM GRUPO DE INDÍVIDUOS E NÃO DE UM SÓ – “sendo certo tudo ter sido levado a cabo por indivíduos visivelmente alcoolizados (9) . – pág. 66 do aresto recorrido – o que desde logo perspectiva a necessidade de legítima defesa de outra forma face ao maior número de potenciais agressores.

82. Entende o recorrente que este primeiro requisito se encontra preenchido pois, dúvidas não restam que a agressão era iminente, sendo certo que o tribunal de primeira instância admite claramente essa possibilidade quando afirma a fls. 37 daquela decisão que “para ti também há”, querendo com isso dar a entender que também poderiam agredir fisicamente aquele.

83. Pelo que é no mínimo falacioso afirmar-se, como faz o Tribunal da Relação de Lisboa que “nada se dispõe nos factos provado que permita sustentar que (a vítima) esboçou qualquer gesto concreto de agressão” – pág. 66 do aresto recorrido.

84. Ora, tal potencial agressão era ilícita como também reconhece o tribunal de primeira instância, quando afirma (referindo-se ao comportamento da vítima): “sem que este (arguido) tivesse dado causa a tal comportamento” – pág. 42 da decisão.

85. Quanto à necessidade da defesa, entendeu o tribunal de primeira instância e que foi confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que o arguido podia ter abandonado o local na sua viatura, isto é, colocar-se em fuga.

86. Ora, tal hipótese foi precisamente configurada pelo arguido, aliás, a sua intenção como foi dado como provado pelo tribunal era abandonar o local, sucede, porém, que a vítima perseguiu o arguido para o agredir, tendo o recorrente de abandonar a solução inicialmente encontrada (a fuga) e tentar repelir o perigo.

87. Todavia, sempre se dirá que, em consonância com a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores a fuga não é argumento para evitar uma agressão.

88. E, veja-se a impressividade deste facto, já depois dos disparos efectuados (e da vítima ter sido alvejada), esta vira-se para o arguido e diz "agora estás feito".

89. Ou seja, nem a própria defesa encetada pelo arguido (excessiva no nosso entender) parece ter sido suficiente para repelir a ameaça que a vítima DD representava.

90. Assim, no que à legítima defesa diz respeito poderá resultar do enquadramento fáctico delineado que o recorrente procurou defender-se de agressão iminente.

91. A necessidade de defesa tem de se ajuizar objectivamente e segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão – entenda-se factos – com base na sua intensidade, perigosidade do agressor e a sua forma de actuar.

92. Ora, só os disparos efectuados pelo arguido parecem ter retardado, mas não repelido, o ímpeto agressivo da vítima, o que possibilitou ao arguido abandonar o local de imediato na sua viatura.

93. Face ao pânico e aflição sentidas pelo arguido, e os brevíssimos momentos dentro dos quais o arguido teve de decidir, o uso de arma de fogo não se mostra, a priori, desproporcional.

94. Questão diversa é o uso que é feito da arma de fogo e que no caso concreto poderá ser excessivo, pois, embora o recorrente tenha efectuado disparos para o ar e para o chão com vista a repelir o perigo, o certo é que atingiu a vítima e não tendo configurado ou previsto a sua morte (conforme se demonstrou supra) a verdade é que esta veio a morrer, razão pela qual se considera que agiu o arguido com excesso de legítima defesa.

95. A legítima defesa, enquanto reacção humana não se pode medir ao milímetro “a régua e esquadro”, porque aquele que se defende não pode raciocinar friamente e pesar com perfeito e incomensurável critério essa proporcionalidade, pois no estado emocional em que se encontra não dispõe de reflexão precisa para exercer a sua defesa em equivalência completa com a agressão.

96. Não há dúvida de que o recorrente nunca quis matar DD, na medida em que não existem actos concludentes à existência do elemento volitivo do dolo, nomeadamente que o recorrente tivesse apontado a arma, tanto assim é, que não acertou em qualquer órgão vital do agressor podendo-o fazer pois, este encontrava-se praticamente em cima de si.

97. Ou seja, mesmo a existir um excesso de legítima defesa esse excesso, no entender do recorrente, dificilmente poderá considerar-se censurável.

98. Nestes termos, caso V. Exas. perfilhando o entendimento do tribunal recorrido e condenando-o por homicídio simples p. e p. pelo artº. 131º do C.P., devem configurar juridicamente a legítima defesa, com excesso (artº. 33º C.P.), condenando o arguido numa pena (especialmente atenuada, nos termos do artº. 73º n. 1 C.P.), de prisão não superior a 5 anos – passando o crime a ser punível de 1 ano, 7meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão – suspensa na sua execução nos termos do artº. 50º nº 1 do C.P. subordinada ao cumprimento de deveres de conduta.

99. O arguido foi condenado como autor material dos seguintes crimes nas seguintes penas concretas: 9 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples p. e p. pelo artº131º nºs 1 do C. Penal e 1 ano de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artºs. 3º nº 3 e 86º nº1 al. c) da lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena única de 10 anos de prisão, pelo cúmulo jurídico destas infracções.

100. O tribunal não podia ter descurado o facto do arguido ter adoptado tal comportamento numa situação de aflição e de defesa (ainda que em termos jurídicos a legítima defesa não vingue).

101. Acresce que, a conduta do arguido anterior aos disparos foi pautada por elementos dissuasores, designadamente o facto de se vir embora para a sua viatura e só porque foi perseguido efectuou disparos para o ar e para o chão para repelir o perigo,

102. O arguido não tem antecedentes criminais relevantes, muito menos nesta matéria, tem mulher e quatro filhos, trabalha na empresa do seu pai, no ramo da tapeçaria, nunca esteve preso, nem longe da sua família.

103. Está como sempre esteve bem integrado socialmente e quer esquecer este episódio infeliz que em circunstâncias adversas teve lugar.

104. O arguido AA é uma pessoa calma, bem formada, com elevado espírito de coesão e inter-ajuda para com os seus amigos e familiares.

105. Assim, se no que ao crime de homicídio diz respeito o tribunal aplicou um pena de 9 anos próxima do limite mínimo, já pelo crime de detenção de arma proibida o tribunal foi severo na pena aplicada, quando uma pena de multa se afigura adequada e suficiente nas finalidades da punição.

106. Ademais não se compreende o cúmulo jurídico operado pelo tribunal que se resume a uma simples conta aritmética (9+1=10), desvalorizando por completo o artº. 77º nº 1 do C.P.

107. No que diz respeito ao crime de homicídio p. e p. pelo artº. 131º do C.P. tal como o arguido vem condenado, não se compreende como é que o tribunal de primeira instância não atenuou especialmente a pena, menos se compreendendo a razão da confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa, quando a conduta claramente integra o preceito do artº. 72º nº 2 do C.P.

108. Dispõe o artº. 72º nº1 do C. Penal que o tribunal atenua especialmente a pena sempre que se verifiquem circunstâncias anteriores, posteriores ou contemporâneas do crime que diminuam por forma acentuada a culpa do agente ou a necessidade da pena.

109. Dispõe o nº2 deste artigo que entre outras circunstâncias relevantes deve relevar-se (al. b)) o facto de "ter sido a conduta do agente determinada… por provocação injusta ou ofensa imerecida".

110. O tribunal de primeira instância acrescenta ainda na sua decisão a fls. 41 e 42 o seguinte: “Na verdade, foi a vítima e um amigo que interpelaram o arguido em tom provocatório e com ameaças de o agredirem fisicamente, sem que tivesse dado causa a tal comportamento, e os disparos iniciais que efectuou com a sua pistola foram direccionadas para o ar, em tom intimidatório.”

111. Ora, dúvidas não restam quanto ao excepcional relevo das condições atenuantes da culpabilidade do arguido, bem como à sua personalidade e ausência de antecedentes criminais nesta matéria.

112. Como é jurisprudência aceite no STJ, “sendo o dolo eventual, por si menos intenso do que o dolo directo, em casos limite em que, não obstante o agente ter actuado sem confiar em que o resultado se não produzirá, tal só aconteceu por leviandade ou irreflexão, nada impede que a pena aplicar seja especialmente atenuada”. (10)

113. Por outro lado, a confissão dos factos e o sincero arrependimento do arguido, são também elementos que não podiam ter sido desconsiderados pelo tribunal recorrido na aplicação da atenuação especial.

114. O Tribunal da Relação de Lisboa, claramente à mingua de argumentos para não conceder ao recorrente neste ponto que parece evidente, limita-se a tecer considerações entre a “desproporção entre a provocação havida e a gravidade da conduta”, que salvo mais douta opinião não servem para afastar a aplicação do artº. 72º do C.P.

115. Isto porque a provocação é inegável, mais do que a provocação existiram actos consentâneos com o despoletar de uma reacção por parte do arguido, ainda que desproporcional. Recorde-se no entanto que se a reacção foi pensada, a desproporcionalidade já não o foi, tendo resultado inesperadamente numa consequência infeliz daquela.

116. Ademais, a necessidade da atenuação especial não se basta apenas com a diminuição acentuada da ilicitude da conduta, concorrendo outros factores que devem ser valorados ao invés daquele, designadamente a necessidade da pena.

117. O arguido teve sempre uma vida exemplar, sem qualquer antecedente criminal nesta matéria que indicie uma postura marginal face ao sistema,

118. Sem registo histórico de comportamento idêntico neste tipo de crime, a singularidade de tal comportamento merece consideração especial e, por isso, é credor de um juízo de atenuação especial das penas.

119. Com a não aplicação da atenuação especial violou o tribunal “a quo” o disposto no artº. 72º do C. Penal.

120. Termos em que, caso V. Exas. entendam confirmar a condenação do arguido por homicídio simples p. e p. pelo artº. 131º do C.P., não deve ser condenado numa pena de prisão superior a 5 anos por atenuação especial ao abrigo no disposto nos artº. 72º nº 1 e 2 al. b) e 73º nº 1 ambos do C.P. – passando o crime a ser punível de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão – suspensa na sua execução nos termos do artº. 50º nº 1 do C.P. subordinada ao cumprimento de deveres de conduta.

No provimento do recurso pede que:

A) seja condenado pela prática de um homicídio negligente p. p. pelo artº. 137º, n.º 2 do C.P., numa pena de prisão não superior a 5 anos de prisão suspensa na sua execução nos termos do artº. 50º nº 1 e 2 do C.P. subordinada ao cumprimento de deveres de conduta, verificada a ausência de antecedentes criminais do arguido nesta matéria, bem como pela personalidade pacata do agente.

C) (SIC) Caso seja confirmada a condenação por homicídio simples p. p. pelo artº 131 do CP, deverá ser configurada juridicamente a legítima defesa, com excesso (artº. 33º C.P.), condenando o arguido numa pena não superior a 5 anos (especialmente atenuada nos termos do artº. 73º n.º 1 C.P.) de prisão - passando o crime a ser punível de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão - suspensa na sua execução nos termos do artº 50º, n.º 1 do C.P. subordinada ao cumprimento de deveres de conduta.

D) Assim não se entendendo, e no que tange à medida concreta da pena, deve a mesma ser especialmente atenuada ao abrigo do disposto nos artº. 72º, n.º 1 e 2 al. b) e 73º n.º 1 ambos do C.P. - passando o crime a ser punível de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão – não devendo o arguido ser condenado numa pena superior a 5 anos de prisão suspensa na sua execução nos termos do artº. 50º, n.º 1 do C.P. subordinada ao cumprimento de deveres de conduta.

*

O recorrente requereu a realização de audiência, ao abrigo do disposto no artigo 411º, n.º 5, do CPP, embora sem especificar os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos.

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido ofereceu a resposta de fls. 1860 a 1864, pugnando pela improcedência do recurso.

Neste Supremo Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, nos termos do artigo 416º, n.º 2, do CPP.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, requerido pelo arguido.

Cumpre apreciar e decidir.

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no DR, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ 450, 72), que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.


Da extensão e falta de síntese das conclusões

Sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações, as conclusões servem para resumir as razões do pedido.
No caso presente o recorrente estende o resumo ao longo de 120 conclusões, sendo de notar que no presente recurso terá claudicado o espírito de síntese presente no anterior recurso, que abrangendo a impugnação de matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP, se cingiu a 88 conclusões.
As conclusões não se cingem a formulação de proposições sintéticas do que exposto fora no texto da motivação, antes nelas se fazendo citações de doutrina, como acontece nas conclusões 4ª e 5ª (citando Rui Patrício), 6ª (sendo citado Cavaleiro Ferreira), 37ª e 38ª (citando Fernanda Palma), 65ª (citando Teresa Beleza), ou excertos de acórdãos do STJ, como nas conclusões 62ª, 63ª, 64ª e 112ª, ou fazendo referência a excertos ou posições da decisão de primeira instância, que não é a decisão recorrida, como se vê das conclusões 42ª, 70ª, 84ª e 110ª, não faltando notas de rodapé – conclusões 4ª, 5ª, 6ª, 37ª, 62ª a 65ª, 81ª e 112ª.
Prescindiu-se de formular convite a fim de ser presente versão mais reduzida, por apesar da lonjura, serem perceptíveis as pretensões do recorrente.
As pretensões recursivas do arguido sintetizam-se nas questões que constam dos pontos que configuram as questões apreciandas e decidendas que abaixo se enumerarão, devendo ser apreciadas apenas as questões que preenchem o objecto do recurso, o que efectivamente pela sua importância demanda expressa pronúncia e tomada de posição.
Como uniformemente tem sido entendido neste Supremo Tribunal, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença - cfr. neste sentido acórdãos de 25-10-2006, processo n.º 2170/06-3ª; de 08-11-2006, processo n.º 967/06-3ª (com citação de Rodrigues Bastos, Notas …); de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3ª; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07-3ª; de 17-1-2008, processo n.º 607/07-5ª; de 06-03-2008, processo n.º 4634/07-5ª; de 26-03-2008, processo n.º 820/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 1132/08-3ª; de 03-07-2008, processo n.º 1312/08-5ª; de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3ª; de 25-09-2008, processo n.º 1881/08-5ª; de 08-10-2008, processo n.º 3068/08-3ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 23-10-2008, processo n.º 2869/08-5ª; de 19-11-2008, processo n.º 3776/08-3ª; de 08-01-2009, processo n.º 3861/09-5ª; de 21-01-2009, processo n.º 111/09-3ª.


Questões a decidir

As questões a apreciar e decidir, por ordem da sua inserção e apresentação nas conclusões, são as seguintes:

I – A questão da prática do homicídio com dolo eventual - conclusões 1ª a 70ª
II – Homicídio negligente - conclusões 71ª a 75ª
III – Legítima defesa - Excesso de legítima defesa – conclusões 76ª a 98ª
IV – Medida da pena - conclusões 99ª a 105ª
V – Medida da pena única - conclusão 106ª
VI – Atenuação especial da pena (restrita à pena do crime de homicídio) - conclusões 107ª a 119ª
VII – Suspensão da execução da pena – conclusão 120ª.



Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados tal como foram fixados na decisão de primeira instância e que mereceram o inteiro aval da Relação de Lisboa, que a manteve na íntegra, após o reexame da matéria de facto efectuado na sequência da impugnação feita pelo recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP.

1º- No dia 16 de Dezembro de 2003, pelas 02h40m., DD encontrava-se na companhia de EE a consumir bebidas alcoólicas numa roulotte “de comes e bebes” junto do Mercado Municipal de Tercena, na companhia de mais 3 amigos.
2º- Como se encontravam ambos alcoolizados, iniciaram uma discussão entre si, e começaram a lutar um com o outro, agredindo-se mutuamente, vindo a ser separados por FF, um dos elementos que se encontrava na companhia daqueles.
3º- De seguida, e ainda imbuídos de um espírito de quezília, viraram-se para o arguido que se encontrava ao balcão da mencionada roulote, e empurrando-o com toques de mão nos ombros, disseram-lhe “para onde estás a olhar?, para ti também há”.
4º- O arguido dirigiu-se, então, para a sua viatura, um Mercedes E 270 CDI, de cor preta, com a matrícula ...-...-..., estacionada no parque onde também se encontrava a roulote, a cerca de 10 a 15 metros.
5º- Abriu a viatura e de lá saiu empunhando uma pistola de calibre 7,65 mm., que tinha guardada na porta do lado do condutor.
6º- De seguida, e virando-se para DD, o qual caminhava na sua direcção, efectuou 2 a 3 disparos para o ar, e num movimento descendente da mão que empunhava a arma, e tendo na mira desta o ofendido DD, efectuou mais 4 disparos, alguns em direcção aos pés deste, sendo que o DD continuava a dirigir-se para si, encontrando-se a uma distância de cerca de 2 metros, aquando do ultimo disparo.
7º- Após os disparos, e acto contínuo, DD, ainda em pé, mas cambaleante, proferiu as seguintes expressões “podes vir que é de alarme” e para o arguido “agora estás feito”.
8º- O arguido, ciente de que já não dispunha de balas na sua pistola, introduziu-se no veículo de marca Mercedes que conduzia, de matrícula ...-...-..., e abandonou o local.
9º- Só após, DD caiu ao chão.
10º- Um projéctil de um dos disparos efectuados pelo arguido nos moldes descritos em 6º atingiu DD, provocando-lhe feridas perfuro-contundentes orificiais no hipocôndrio esquerdo e região lombar direita a nível da 4ª vértebra lombar.
11º- O projéctil penetrou no abdómen pela região do hipocôndrio esquerdo, seguindo um trajecto orientado da esquerda para a direita, de diante para trás e de cima para baixo e saiu pela região lombar direita.
12º- Estes ferimentos foram causa directa e necessária da morte da vítima.
13º- Ao actuar da forma descrita, o arguido previu como possível que um dos projécteis que disparou pudesse atingir mortalmente DD, e ainda assim prosseguiu na sua actuação, conformando-se com tal resultado.
14º- O arguido não tem licença de uso e porte de arma.
15º- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser proibida por lei a sua conduta.
16º- O arguido é considerado por quem com o mesmo priva como sendo pessoa honesta, calma, pacata, e bom pai de família.
17º- Confessou parcialmente os factos, no tocante ao crime de homicídio que lhe é imputado, e na integralidade quanto ao crime de detenção de arma proibida por que vem acusado.
18º- Mostrou arrependimento.
19º- O arguido foi já condenado, no âmbito do Processo nº 10215/96.9 TDLSB, por sentença de 19 de Dezembro de 2000, transitada, pela prática, em 06/11/95 de um crime de emissão de cheque sem provisão, em pena de multa.
Do Pedido de Indemnização Civil da assistente BB:
20º- CC é filho de DD e nasceu em 15 de Maio de 1997;
21º- Os pais do menor, à data da morte de DD, já não viviam em união de facto;
22º- DD tinha grande afeição pelo filho CC, com quem procurava desfrutar o mais possível da sua companhia e este sentia grande alegria na companhia do pai;
23º- Com a morte do pai, o menor perguntava por ele, tendo sofrido com a sua perda.
24º- DD entregava mensalmente à mãe do menor a quantia de €. 250 (duzentos e cinquenta euros) para o seu sustento.
Do Pedido de Indemnização Civil do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE:
25º- Em virtude dos ferimentos causados pelo disparo que o atingiu, DD foi assistido no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, que lhe prestou serviços da sua especialidade, no valor de € 756,51 (setecentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e um cêntimos).

26º- Das condições pessoais do arguido:
27º- O arguido é o segundo de três filhos de um casal de etnia cigana.
28º- O seu processo de socialização decorreu de acordo com as tradições e normas culturais e a dinâmica familiar caracteriza-se por laços de coesão e de inter-ajuda.
29º- O arguido terminou a escolaridade após ter completado a 4ª classe, passando então a colaborar no negócio de tapeçaria dos progenitores, que possuem uma loja na Amadora e acabando por, nos últimos anos, assegurar a gestão do negócio, conjuntamente com o progenitor, dedicando-se ainda, em paralelo, à venda ambulante em feiras diversas.
30º- O arguido vive em união de facto com companheira há 15 anos, da qual tem quatro filhos, com idades compreendidas entre os 3 e os 13 anos.
31º- No período que precedeu a actual prisão do arguido, este viveu no Brasil, juntamente com a companheira e filhos.
32º- Durante esta permanência o arguido e respectivo agregado familiar terá subsistido essencialmente do apoio material disponibilizado pelos progenitores.
33º- O arguido encontra-se em prisão preventiva à ordem dos presentes autos, detido no E.P. de Caxias desde 11/10/2006, onde tem mantido um comportamento institucional correcto, sendo visitado regularmente pelos familiares mais próximos, que o têm acompanhado de forma consistente.
Factos não Provados
Quanto a matéria de facto não provada ficou consignado na decisão recorrida:

Não se apurou que:

A) Que o falecido DD ou alguém do seu grupo tenham derrubado inadvertidamente um copo de cerveja do arguido;

B) Que o primeiro disparo efectuado pelo arguido tenha sido para o chão, e que depois deste tenha dito “com quem vocês pensam que se estão a meter?”;

C) Que o DD ao ouvir aquele disparo perguntou quem andava ali aos tiros;

D) Que quando o DD estava a uma distância de cerca de 2 metros do arguido, este tentou disparar de novo mas a arma encravou;

E) Que o DD avançou mais um pouco na direcção do arguido, dizendo nesse momento “agora estás feito”;

F) Que o arguido recuou um passo, puxou a culatra da arma atrás, desencravando-a, e apontando a pistola na direcção da zona abdominal do DD efectuou 2 disparos;

G) Que o DD estava a menos de 1 metro do arguido, que caiu ao chão e só após, este último se dirigiu para a viatura, sem pressas;

H) Que DD comparticipava, ainda, com cerca de € 100 em brinquedos e roupa para o seu filho.

*

I – A questão do dolo eventual - conclusões 1ª a 70ª

Ao longo das conclusões 1ª a 70ª, o recorrente centra a sua atenção na questão do dolo eventual, embora suscite questões que terão mais a ver com a legítima defesa ou mesmo com a alegada provocação injusta, tratadas autonomamente a seguir, o que se compreende por haver pontos de contacto entre tais matérias e não se estar face a compartimentos estanques, o que - et pour cause - significa e acarreta que na análise do exame a que se procederá deverá ter-se em atenção a globalidade do texto, pelo menos no que a estes segmentos respeitar.

Neste segmento do recurso o recorrente pretende de certo modo reeditar a expressão da sua discordância em relação ao que ficou provado a propósito da previsão por parte do arguido da possibilidade do resultado morte e sua conformação com tal possibilidade, que esteve na base da qualificação da sua conduta como homicídio imputado a título de dolo eventual, pugnando pela requalificação jurídica e integração da sua conduta como crime de homicídio negligente, tudo girando no fulcro à volta do que foi dado por provado no ponto de facto provado n.º 13, defendendo não existirem actos concludentes à existência do elemento volitivo do dolo - conclusão 96ª.
E tudo se projectando, bem entendido, na aferição do bem fundado da decisão de direito, no acerto ou não do tratamento subsuntivo a que foi sujeito a actuação do arguido, procurando-se suporte para uma diversa qualificação jurídico-criminal da sua conduta.
No anterior recurso para o Tribunal da Relação, a impugnação de matéria de facto que o recorrente pretendeu então realizar prendia-se tão somente com um ponto em concreto, a inserção do advérbio “mortalmente” no ponto de facto provado n.º 13, por em sua opinião não resultar da prova produzida, adiantando o recorrente, no entanto, que toda a restante fixação da matéria de facto pela primeira instância era de louvar, na medida em que todos os factos assentes (com excepção do referido), traduziam no essencial o que se passara em audiência de julgamento – cfr. fls. 1526 da motivação desse recurso.
O recorrente pretendia então alteração desse ponto de facto provado n.º 13, sugerindo a mesmíssima redacção, mas com a exclusão da palavra “mortalmente” – cfr. conclusão 18ª, a fls. 1627.

Pretende agora o recorrente - conclusões 14ª e 15ª - uma reapreciação da questão do dolo, quer ela seja configurada como questão de direito, quer a mesma seja apreciada ex vi do artigo 410º, n.º 2, do CPP.
Estando em causa a determinação da intenção do agente, mais concretamente da intenção de matar, ou a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial, não cabe no âmbito do presente recurso uma tal reapreciação, por estar em causa matéria de facto, como a jurisprudência tem entendido, indicando-se alguns dos acórdãos em que tal posição tem sido assumida:
03-05-1991, BMJ 407, 130 – A indagação da intenção do agente, no que respeita à amplitude das ofensas corporais, é essencialmente matéria de facto, que se impõe ao Supremo Tribunal de Justiça.
05-05-1993, CJSTJ 1993, tomo 2, pág. 220 - A determinação da intenção do agente é matéria de facto, encontrando-se por isso subtraída aos poderes de cognição do STJ.
21-04-1994, processo n.º 46310 – Pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo.
30-05-1996, processo n.º 208/96, BMJ 457, 144 – A questão da intenção de matar é matéria de facto que o Supremo não pode sindicar (artigo 433º do CPP).
04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222 - A intenção criminosa constitui matéria de facto, pelo que não tendo sido invocado nem se vislumbrando qualquer dos vícios enumerados no n.º 2 do artigo 410º do CPP há que respeitar integralmente a decisão do colectivo.
2-10-1996, processo n.º 46679-3ª, in SASTJ, Outubro 1996, n.º 4, pág. 69 - Sendo a intenção criminosa matéria de facto, compete à 1ª instância apurá-la, para que o STJ ao reexaminar a matéria de direito possa decidir se a matéria de facto está ou não bem integrada penalmente.
06-11-1996, processo n.º 724/96 - 3ª – A intenção é um acontecimento do foro interno do agente e não um acontecimento do mundo que lhe é exterior; não deixa, por causa disso, de ser matéria de facto, susceptível de ser apreendida com recurso a factos indiciários a partir dos quais se possam extrair presunções judiciais geradoras de uma suficiente convicção positiva sobre a sua verificação.
13-11-1996, processo n.º 48510-3ª, SASTJ, Novembro 1996, n.º 5, pág. 70 - A intenção criminosa integra matéria de facto, sendo o respectivo apuramento da competência exclusiva dos tribunais de instância.
18-12-1997, processo n.º 930/97-3ª, BMJ 472, 185 – A intenção de matar constitui matéria de facto subtraída aos poderes de cognição do STJ. Como matéria de facto que é pode o veredicto do tribunal recorrido quanto a essa intenção, sofrer de algum dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP e nessa medida ser objecto de recurso.
21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 201 – A intenção de matar constitui matéria de facto da competência das instâncias.
26-06-2002, processo n.º 1868/02-3ª – A intenção de matar constitui indiscutivelmente matéria de facto da exclusiva competência dos Tribunais de instância.
25-05-2006, processo n.º 1183/06-5ª – Pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar.
02-11-2006, processo n.º 3841/06-5ª – A intenção de matar constitui matéria de facto.
10-10-2007, processo 3315/07-3ª - A intenção de matar, enquanto matéria de facto, captada através dos meios de prova que desfilaram perante o tribunal da 1ª instância, com os quais manteve imediação e oralidade, escapa à sindicância deste STJ.
17-10-2007, processo n.º 3395/07-3ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 220 – A intenção da matar, substanciando matéria de facto, fornecida pelo júri, que se impõe acatar, é imodificável, em princípio, nos termos do artigo 434º do CPP.
17-01-2008, processo n.º 607/07-5ª - A intenção de matar é matéria de facto que escapa à censura do STJ enquanto tribunal de revista, pois pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo tribunal face à diversa prova ao seu alcance e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
03-04-2008, processo n.º 132/08-5ª – Invocando o recorrente o erro notório na apreciação da prova, relacionado com a intenção de matar que pretende ver alterada para não provada, é evidente que neste ponto estamos em pleno campo de impugnação e de discussão de matéria de facto, o que fica de fora da competência cognitiva do STJ.
12-06-2008, processo n.º1782/08-3ª - A intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira a sua verificação, o mesmo acontecendo para integração da intenção de defesa.
16-10-2008, processo n.º 2851/08-5ª - O apuramento de existência ou não de intenção de matar é matéria de facto. Não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto.
22-10-2008, processo n.º 3274/08-3ª – Se o recorrente nas conclusões que formula, discorda da factualidade assente, nomeadamente de ter sido considerada provada a intenção de matar, encontramo-nos no domínio da matéria de facto, cujo conhecimento está excluído dos poderes do STJ.
E ainda podendo ver-se os acórdãos do STJ de 16-01-1990, processo n.º 40296; de 30-10-1991, processo n.º 42061; de 11-02-1993, processo n.º 43146; de 06-05-1993, processo n.º 43503; de 13-09-2006, processo n.º 1934/06-3ª; de 21-05-2008, processo n.º 678/08-3ª; de 18-07-2008, processo n.º 102/08-5ª.

Como se viu, o recorrente nas conclusões 14ª e 15ª invoca a possibilidade deste Supremo Tribunal reapreciar a questão do dolo, invocando o artigo 410º, n.º 2, do CPP, embora sem nada concretizar a respeito, sem especificar de que concreto vício decisório padeceria o acórdão recorrido, sendo que para alcançar-se o desiderato pretendido bastaria a eliminação da palavra “mortalmente”.
A decisão do Tribunal da Relação que conhece de facto e direito, nos termos do artigo 428º do CPP, é definitiva quanto a matéria de facto.
O recorrente no anterior recurso lançou mão do mais abrangente meio de impugnação da matéria de facto, com impugnação da apreciação e valoração da prova produzida, que por isso mesmo encerra maiores possibilidades de eficácia e de êxito na almejada modificação da facticidade firmada, já que se não restringe ao que emerge do texto da decisão recorrida, antes abarcando a possibilidade, e induzindo a necessidade, de análise da prova oral produzida em audiência e gravada.
Com a reponderação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação nos termos consentidos pelo artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP, cumprida ficou a garantia de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, certo sendo que o artigo 32º da CRP não garante um duplo grau de recurso em matéria de facto.
Como com clareza se diz no acórdão de 17-01-2008, processo n.º 2696/07 - 5ª, “O STJ não pode exercer crítica sobre o conteúdo da avaliação que a 2ª instância fez da matéria de facto, no uso dos seus poderes legais e de acordo com as regras estabelecidas. O tribunal recorrido respeitou o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto e os seus poderes cognitivos, ao cumprir o disposto nos arts. 428º, n.º 1, 431º, als. a) e b), 410º, n.ºs 2, als. a) e b) , e 412º, nºs 2 e 3, do CPP”.

Como resulta do artigo 434º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
A reapreciação da decisão sob recurso há-de, como princípio, confinar-se à matéria de direito, salvo se, a título excepcional, se tornar imperativo para o conhecimento da matéria de direito a ampliação da matéria de facto, a correcção de evidentes erros ou a remoção de contradição insanável entre os factos e a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, caso em que este Supremo Tribunal ordena o reenvio – artigos 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) e 426.º, do CPP.
Mas, ainda assim, mantendo-se no estrito âmbito da reserva de competência e do indispensável pressuposto de que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.
A única hipótese de o STJ sindicar matéria de facto é através da análise da existência de vícios decisórios, previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, sendo esse reexame feito por iniciativa própria, ocorrendo uma tal intervenção apenas para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa própria, se se vier a concluir que por força da existência de qualquer dos vícios referidos não pode chegar a uma correcta solução de direito.
Visando estabelecer a coerência interna do decidido esse exame terá sempre o limite incontornável de ser restrito à análise do texto da decisão recorrida, por si só considerada ou em conjugação com as regras de experiência comum.

O erro de julgamento não é sindicável pelo STJ como pretende o recorrente e expressa na conclusão 14ª, pela razão de que não se confunde com o vício decisão.
O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então, o inverso e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP.
Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.
Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado artigo 127.º do CPP.
Não incidindo o recurso sobre prova documentada nem se estando perante prova legal ou tarifada, não se pode sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
Só com o âmbito restrito consentido pelo artigo 410º, nº 2, do CPP, com o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, o STJ poderá avaliar, nos casos em que considere imperioso o reexame, da subsistência dos vícios da matéria de facto, o que é aplicável a recurso interposto da Relação.

O Colectivo de Oeiras exprimiu o conjunto de razões pelas quais se convenceu de que o arguido agiu do modo descrito, mostrando-se explicitado o processo lógico -racional que impeliu os julgadores a concluir pela previsão por parte do arguido da morte da vítima e admissão da possibilidade dessa morte.
O Colectivo é soberano na indagação da matéria de facto e, ao descrevê-la, tem que aceitar-se que a descreve porque em sua consciência e convicção a aceita como verdadeira tal como a descreve.

Não se pode perder de vista que as provas são apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do CPP, sendo que aquelas regras correspondem àquilo que normalmente sucede, ao id quod plerumque accidit, autênticos critérios generalizantes e tipificados de inferência factual, embora também índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, oferecendo probabilidades conclusivas (cf. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, págs. 67-68, e Os Princípios Fundamentais do Direito Processual Criminal, pág. 42 e ss.) - cfr. supra referido acórdão de 10-10-2007, processo n.º 3315/07-3ª.

Como é jurisprudência assente neste Supremo Tribunal, em recurso interposto de acórdão de Tribunal da Relação não é possível a invocação ou a reedição de arguição dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do CPP, ficando vedado pedir depois ao STJ, em revista, a reapreciação da decisão de facto tomada pela Relação.
E isso porque a competência das relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no Supremo Tribunal de Justiça pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido.
Na verdade, mesmo nos recursos interpostos directamente deixou de ser possível recorrer-se com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do nº 2 do artigo 410º, o mesmo se passando com os recursos interpostos da Relação, sendo jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal que no recurso para este Tribunal das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, está vedada a arguição dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, posto que se trata de matéria de facto, ou seja, de questão que se não contém nos poderes de cognição do STJ, o que significa que está fora do âmbito legal dos recursos a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento/decisão pela Relação – cfr., quanto a este aspecto particular, os acórdãos de 11-12-2003, processo 3399-3ª; de 22-04-2204 e de 01-07-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, págs. 165 e 239; de 01-06-2006, processo n.º 1427/06-5ª; de 22-06-2006, processo n.º 1923/06-5ª; de 06-09-2006, processo n.º 1392/06-3ª; de 14-12-2006, processo n.º 4356/06-5ª; de 08-02-2007, processo n.º 159/07-5ª; de 21-02-2007, processo n.º 260/07-3ª; de 28-02-2007, processo n.º 4698/06-3ª; de 08-03-2007, processos n.ºs 447/07 e 649/07-5ª; de 15-03-2007, processos n.ºs 663/07 e 800/07-5ª; de 29-03-2007, processos n.ºs 339/07 e 1034/07-5ª; de 19-04-2007, processo n.º 802/07-5ª; de 03-05-2007, processo n.º 1233/07-5ª; de 12-07-2007, processo n.º 1912/07; de 13-02-2008, processo n.º 1016/07-5ª; de 21-02-2008, processo n.º 4805/06; de 06-03-2008, processo n.º 4634/07-5ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07-5ª; de 05-06-2008, processo n.º 1226/08-5ª; de 19-06-2008, processo n.º 122/08-5ª; de 25-06-2008, processo n.º 2046/07-3ª; de 26-11-2008, processo n.º 2849/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 4026/08-3ª.
Dir-se-á que tal posição será de reforçar em caso como o presente em que no anterior recurso se lançou mão do mecanismo de impugnação especificada da matéria de facto de que não resultou qualquer modificação. (Poderá pensar-se na eventualidade de em caso de modificação de factualidade operada em recurso, emergente de renovação da prova ou à luz da verificação de algum vício, o novo texto, a nova decisão em matéria de facto proferida pela Relação, padecer eventualmente de algum dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º, impondo-se então o mesmo nível de controlo por parte do STJ – cfr. neste sentido acórdãos de 18-06-2008, processo n.º 901/08-3ª e de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª).
Nos acórdãos de 08-02-2006, processo n.º 98/06 - 3.ª; de 15-02-2006, processo n.º 4412/05 - 3.ª; de 15-03-2006, processo n.º 2787/05 - 3.ª; de 22-03-2006, processo n.º 475/06 - 3.ª; de 08-02-2007, processo n.º 159/07 - 5.ª; de 21-02-2007, processo n.º 260/07 - 3.ª; de 15-03-2007, processos n.ºs 663/07 e 800/07, ambos da 5.ª secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07 - 3.ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581/07 - 5.ª; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08 - 3ª; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3ª, admite-se o conhecimento oficioso dos vícios por parte do Supremo, mesmo nos casos em que o recurso vem interposto de acórdão da Relação.
Como se consignou nos acórdãos de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 e de 22-10-2008, processo n.º 215/08, relatados pelo presente relator, nestes casos de recurso de acórdão da Relação para o Supremo, em que o recurso é puramente de revista, cingindo-se a matéria de direito, é de admitir, exactamente pelas mesmas razões supra expostas que sustentam a cognição oficiosa – razões de necessidade de certificação de substrato fáctico bastante, escorreito, expurgado de qualquer vício, congruente, compatível, harmonioso e válido para suportar a decisão de direito – o exame oficioso da existência ou não dos vícios decisórios ao nível do assentamento da facticidade relevante.
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No fundo para o recorrente o que está em causa e que questiona é a existência do elemento volitivo do dolo, o ter previsto ou admitido como possível a morte da vítima, que em seu entender não é consequência automática da verificação do elemento intelectual, tendo de ser demonstrado, o que no caso não aconteceu - conclusão 16ª.

Na análise a efectuar é essencial a análise da decisão recorrida para que se possa concluir sobre o processo lógico que foi seguido para considerar a matéria de facto como provada.
Estando em causa a configuração do dolo eventual, vejamos em que consiste, sabendo-se que a definição legal é dada pelo artigo 14º, n.º 3, do Código Penal nestes termos: «Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização».
Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto criminoso.
Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de crime, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta.
No dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado.
Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, 1971, pág. 385, apresenta a solução de que se a realização do facto for prevista como mera consequência possível ou eventual da conduta haverá dolo se o agente, actuando, não confiou em que ele se não produziria. Ou, vistas as coisas pela outra face: o dolo só se excluirá, afirmando-se a negligência consciente, quando o agente só actuou porque confiou em que o resultado se não produziria. Sempre pois que ele, representando o resultado, não tomou posição perante este, deverá ser punido a título de dolo eventual.
Para Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, I, - Editorial Verbo, 1987, págs. 210-212, o dolo eventual é nos termos da lei a fixação do limite inferior do dolo para o demarcar da negligência.
Defende o Autor que há um enfraquecimento ou degradação quer do elemento cognoscitivo, ou representação, e do elemento volitivo no dolo eventual para os efeitos da sua demarcação da negligência, constante do critério oferecido pelo n.º 3 do artigo 14º; quanto ao primeiro, não é necessário que o agente preveja a realização do facto ilícito como consequência necessária, bastando que a preveja como consequência possível do seu comportamento e quanto ao segundo, não será preciso que o crime seja o fim subjectivo do próprio agente ou mesmo que seja com ele conexo de modo que para realizar esse fim seja necessário realizar ou cometer o crime, bastando que se conforme com essa realização
O Autor vinca a necessidade de repetir que o conceito legal de dolo eventual é dolo e na sua estrutura se contém tanto a «representação» ou consciência do facto como a vontade do facto.
Quanto à «representação», o agente no dolo directo e no dolo necessário (n.ºs 1 e 2 do art. 14º do Cód. Penal) faz em princípio uma prognose, uma previsão de certeza, da realização do crime; no dolo eventual faz uma prognose, uma previsão dubitativa dessa realização”.
Para Maria Fernanda Palma, in Da “Tentativa Possível” em Direito Penal, Almedina, 2006, págs. 79 a 81, o dolo eventual é ainda uma forma de decisão de realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, especificando que “na situação de dolo eventual o agente, ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele, nos termos do n.º 3 do artigo 14º do Código Penal), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação nos fundamentos da sua decisão e opta pela lesão do bem jurídico. Na perspectiva do desvalor da acção, do ilícito, não há qualquer razão para diferenciar qualitativamente o dolo eventual”- acrescenta.
Como se extrai do acórdão do STJ de 14-06-95, processo n.º 46599, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 226, o dolo eventual é integrado pela vontade de realização concernente à acção típica (elemento volitivo do injusto da acção), pela consideração de que é sério o risco de produção do resultado (factor intelectual do injusto da acção) e, por último, pela conformação com a produção do resultado típico como factor de culpabilidade. No mesmo sentido o acórdão, do mesmo relator, de 20-11-96, in BMJ 461, 194.
Age com dolo eventual o arguido que previu a morte da vítima, admitindo como possível alcançar esse resultado e com ele se conformando – acórdão de 27-11-1996, processo n.º 48798-3ª, SASTJ, n.º 5, pág. 85.
Existe dolo eventual se o agente no momento da realização do facto e não obstante prever como possível a realização do resultado, não renuncia à conduta – acórdão de 11-12-97, processo n.º 1050/97-3ª.
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O acórdão recorrido debruçou-se sobre a questão específica – e única - da impugnação da matéria de facto, e em consequência, da subsistência ou não do dolo eventual, o que fez de forma minuciosa, exaustiva, após análise dos elementos disponíveis, incluindo a prova gravada, constando a mesma de fls. 52 a 63 do acórdão (fls. 1742 a 1753 do processo), concluindo pela manutenção do advérbio mortalmente no ponto de facto provado n.º 13.
Não tendo vingado o juízo substitutivo pedido à Relação, há que dizer que a conclusão das instâncias é harmónica com o instrumento utilizado, uma arma de fogo, com a curta distância a que o disparo fatal foi efectuado, quando a vítima caminhava em direcção do arguido, com a região corporal atingida, os efeitos do disparo e a gravidade das lesões provocadas.
Na verdade, a causa de morte não se pode cingir a choque hipovolémico, como parece entender o recorrente nas conclusões 51ª e 52ª, e mesmo na conclusão 96ª, quando refere que não acertou em qualquer órgão vital, olvidando o recorrente tudo o mais que consta do relatório de autópsia, junto em original de fls. 320 a 325, (é referida pelo recorrente fls. 96 que é cópia), fazendo-se este reporte a tal documento por o mesmo ter sido mencionado, como não podia deixar de ser, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, havendo que atentar ao que ficou a constar dos pontos de factos provados n.º s 10 a 12 e que não foram postos em crise pelo recorrente.
O disparo provocou feridas perfuro-contundentes no hipocôndrio esquerdo e região lombar direita a nível da 4ª vértebra lombar, mais ficando provado que o projéctil penetrou no abdómen pela região do hipocôndrio esquerdo seguindo um trajecto orientado da esquerda para a direita e de diante para trás e de cima para baixo saindo pela região lombar direita, com destruição da parede posterior da aorta abdominal, sendo atingidos o cólon e duodeno, devendo-se a morte às graves lesões traumáticas abdominais sofridas. (Sublinhado nosso)
DD foi levado para o Hospital São Francisco Xavier, com a actual designação de Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental – facto provado n.º 25 - onde foi assistido e lhe foram prestados serviços da especialidade na unidade de cuidados intensivos cirúrgicos, vindo a falecer às 9, 10 horas, e não 10h, 10 m, como refere o recorrente na conclusão 52ª (o mesmo acontecendo com a motivação da decisão), pois essa foi a hora de verificação do óbito, como resulta claramente do boletim junto a fls. 13/14.
O facto de o projéctil - um dos projécteis dos disparos assumidamente efectuados pelo recorrente – ter penetrado no abdómen de DD, seguindo um trajecto da esquerda para a direita, de diante para trás, e sobretudo, de cima para baixo, não é compaginável com a defesa da posição de que o recorrente apenas deu tiros para o ar e para o chão, como com insistência proclama nas conclusões 24ª , 30ª, 47ª, 48ª, 60ª, 67ª, 94ª e 101ª.
Tendo o projéctil entrado de cima para baixo coaduna-se tal facto com a narrativa de que o disparo fatal terá sido efectuado num movimento descendente da mão, sendo certo que a vítima se encontrava muito perto do arguido, de modo tal que ao último disparo estava a cerca de 2 metros.
A expressão usada no acórdão recorrido “acto de “varrer” em linha vertical o indivíduo que se lhe dirigia” a que alude o recorrente nas conclusões 29ª e 31ª, tem de ser entendida como força de expressão, e sobretudo integrada no seu contexto, sem fraccionamento da linha argumentativa exposta pelo acórdão recorrido, sendo usada quando a decisão recorrida procura demonstrar o bem fundado da ideia de que o arguido previu a possibilidade de atingir mortalmente a vítima e a conformação com essa possibilidade, como se vê do seguinte trecho:
«Ora, no caso, são exactamente os demais factos assentes e amplamente alicerçados em prova directa (cuja adequação e suficiência não é contestada sendo aliás expressa a sua aceitação pelo recorrente), descritivos dos contornos da acção por ele assumida, que, contrariamente ao que pretende, denunciam de forma inequívoca a previsão da possibilidade de atingir mortalmente a vítima e a conformação com essa possibilidade, previsão e conformação ambas 7 deles indissociável seguindo um raciocínio indutivo/dedutivo à luz das regras da experiência comum e tendo em conta os padrões de entendimento e comportamento do homem médio.
Em tal medida a prova que sustenta os factos em questão suporta indirecta mas necessariamente aquele facto, a eles implícito à luz de tais regras, não sendo qualquer segmento da prova directa, e assim aqueles que o recorrente invoca e para tal opõe, susceptível de o infirmar ou deixar a respeito dúvida alguma que impusesse a sua cedência em termos de concluir por erro objectivo do julgamento no que se lhe refere.

7 o acto de “varrer” com disparos em linha vertical o indivíduo que se lhe dirigia, a distância curta distância - a final apenas de dois metros - visando o mesmo (embora tenha procurado “centrar” a sua intencionalidade aos tiros desferidos para o ar e para os pés da vítima e assim reduzi-la a intuitos intimidatórios, o recorrente admite nas suas declarações que estes tiros foram desferidos na direcção desta e que, como se diz na decisão recorrida, a atingiu “no movimento descendente da mão que empunhava a pistola e ao disparar com a mesma”), disparando até que se lhe acabaram as munições (só então lhe dando costas) por forma alguma, tendo em atenção as regras da experiência comum e os padrões de percepção das coisas e de comportamento do homem médio, consente ou se coaduna com qualquer ideia de confiança em que se não viesse a concretizar o resultado, não sendo objectivamente razoável, tendo por referência as ditas regras de experiência comum e os padrões de percepção/consciencialização do homem médio, aceitar que a percepção de um perigo implícito em tão elevado grau à conduta assumida, pudesse ter sido de tal forma leviana que não equacionasse - e com ela se conformasse - a forte probabilidade de algum dos disparos poder atingir alguma das zonas “recheadas” de órgãos vitais - e algum destes órgãos - existentes em tal “percurso”, o que é dizer de atingir tal indivíduo mortalmente (como atingiu), e bem assim a alicerçar uma pretensa postura de confiança em que esse resultado se não produziria».

Numa outra passagem é mais esclarecedora a posição do acórdão recorrido, passando a citar-se: «O acto de, após dois a três disparos para o ar, disparar, num movimento descendente da mão que empunhava a arma e tendo na mira um indivíduo que se dirigia para si, quatro tiros, indo alguns em direcção aos pés (e de tal decorre claramente que ao disparar, tendo na mira a vítima que a si se dirigia, fez com o braço um “trajecto” que “percorreu” o corpo desta de alto a baixo – o que logicamente inclui zonas vitais, contendo órgãos vitais, sendo tal um facto notório – a curta distância (11) não é, em termos ou medida alguma, inconciliável com a previsibilidade de a vir a atingir mortalmente, como atingiu, antes pelo contrário com ela se coadunando perfeitamente, e mesmo necessariamente: uma actuação com tais contornos conscientemente assumida, como foi, não podia deixar de conlevar a previsão - e admissão - pelo recorrente, pessoa de normal entendimento, dessa possibilidade, aliás mais do que provável».


Ainda a propósito do movimento descendente, salvo o devido respeito, não faz sentido repristinar, como se pretende nas conclusões 32ª a 35ª, a formulação de conjectura feita pelo acórdão da Relação de Lisboa, de 11-07-2007 (no sentido de que o arguido só poderia ser condenado pela prática de um crime de homicídio tentado em concurso (efectivo ou meramente aparente) com um crime de homicídio negligente e não pelo crime doloso consumado), o qual formulou juízo tendo por objecto um acórdão do Colectivo que foi anulado na totalidade, pois não se vê como não possa ser considerado doloso o disparo que penetrou o abdómen da vítima, nas condições descritas e que lhe veio a causar a morte, sendo certo que o disparo fatal não terá sido certamente um dos 2 ou 3 iniciais efectuados para o ar e que assim não poderiam entrar no abdómen, de cima para baixo, mas um dos outros quatro, já que alguns foram direccionados para os pés, como provado ficou no ponto 6 dos factos provados, ponto que mereceu o aplauso do recorrente expresso, como vimos, aquando do recurso para a Relação.

Poderá descortinar-se alguma contradição na fundamentação de facto, como pretende o recorrente na conclusão 67ª, já que foi dado como não provado que o arguido tivesse apontado ao abdómen da vítima, tendo sido dado como provado que disparou tiros para o ar e para o chão?
Na alínea F) da matéria de facto não provada consta não se ter apurado “Que o arguido recuou um passo, puxou a culatra da arma atrás, desencravando-a, e apontando a pistola na direcção da zona abdominal do DD efectuou 2 disparos”.
Sendo este um não facto incontornável, certo é que, de todo, da matéria de facto provada, não se pode retirar que todos os disparos, entre um mínimo de 6 e máximo de 7, tenham sido direccionados para o ar e para o chão, como pretende o recorrente numa leitura algo sincopada, sem ter em conta a integralidade da narrativa factual certificada no ponto 6 dos factos provados que – repita-se - não mereceu censura, ou manifestação de discordância, mas antes merecendo o aval, o beneplácito, e mesmo, “a justíssimo título”, o aplauso do recorrente, manifestado aquando da interposição do recurso para o Tribunal da Relação - fls. 1526.
A verdade é que foi dado como provado no citado ponto 6 que o arguido empunhando a pistola, virando-se para DD, que caminhava na sua direcção, efectuou 2 a 3 disparos para o ar.
E num movimento descendente da mão que empunhava a arma, e tendo na mira desta o ofendido DD, efectuou mais 4 disparos, alguns em direcção aos pés deste, sendo que o DD continuava a dirigir-se para o arguido, encontrando-se a uma distância de cerca de 2 metros, aquando do último disparo.
Não se descortina contradição entre uma e outra afirmação, mostrando-se a descrição da factualidade coerente e harmoniosa, pois que os tiros não foram apenas para o ar e para os pés, sendo que para atingir o abdómen não é necessário “apontar” ao mesmo, sendo sem dúvida atingido, de cima para baixo, o que se coaduna com a descrição do percurso do movimento de cima para baixo, não sendo resultado de mero “acidente”, como defende o recorrente na conclusão 68ª.
A vítima já se encontraria muito próximo, de tal forma que aquando do último disparo encontrava-se a uma distância de cerca de dois metros, sendo que foi atingido de cima para baixo.

A matéria de facto provada não consente nem suporta o que é aduzido nas conclusões 54ª a 61ª, repetindo o recorrente ter sido alvo de agressão iminente nas conclusões 78ª, 82ª e 90ª.
O DD e EE encontravam-se a consumir bebidas alcoólicas numa roulotte de comes e bebes, e estando alcoolizados, discutiram entre si, lutaram um contra o outro, agrediram-se mutuamente e foram separados por um terceiro presente.
Ainda imbuídos de espírito de quezília, viraram-se para o arguido, que se encontrava ao balcão da roulotte.
Empurrando-o com toques de mão nos ombros, disseram-lhe “Para onde estás a olhar?, para ti também há”.
Perante este quadro que faz o arguido?
Dirige-se ao carro que se encontrava a cerca de 10 a 15 metros e de lá sai empunhando a pistola.
De seguida, como ficou provado no ponto n.º 6 da matéria de facto provada,virando-se para DD, o qual caminhava na sua direcção, efectuou 2 a 3 disparos para o ar, e num movimento descendente da mão que empunhava a arma, e tendo na mira desta o ofendido DD, efectuou mais 4 disparos, alguns em direcção aos pés deste, sendo que o DD continuava a dirigir-se para si, encontrando-se a uma distância de cerca de 2 metros, aquando do ultimo disparo”.
Desta dinâmica factual assim descrita não se alcança como se podia ver em DD um potencial e iminente agressor, pois até aos disparos efectuados pelo arguido, apenas dera toques de mão nos ombros e proferira as palavras referidas.
O arguido não poderia estar amedrontado por a vítima o ter perseguido, como alega.
A matéria de facto provada não certifica nem suporta a conclusão de que DD tenha encetado qualquer perseguição ao arguido.
A persegui-lo, atenta a distância que ia da roulote até à viatura, não mais de 10-15 metros, não seria necessário propriamente lançar-se em correria para alcançar o arguido em simultâneo na sua chegada ao carro e tentar impedir que o arguido pegasse na arma, ou que tentasse retirá-la desde logo do seu poder.
Há que atentar em que caminhando o DD em direcção ao arguido, este despejou pelo menos seis tiros e quando teve lugar o último disparo, encontrava-se a cerca de dois metros.
A tónica da demonstração da possibilidade de agressão por parte da vítima é colocada pelo arguido já após o último disparo, como consta das conclusões 55ª, no início, 56ª e no final da 60ª.
Como ficou provado no ponto 7º: «Após os disparos, e acto contínuo, DD, ainda em pé, mas cambaleante, proferiu as seguintes expressões “podes vir que é de alarme” e para o arguido “agora estás feito”».
A primeira expressão só faz sentido se dirigida pelo DD ao EE que o acompanhava na noite e que entretanto se escondera.
Na óptica do arguido as palavras “agora estás feito” indiciam claramente a agressividade de DD para consigo e as claras intenções daquele em querer agredi-lo fisicamente, reportando o ímpeto agressivo da vítima a algo que não teria conseguido suster com os disparos.
A mera utilização da expressão “agora estás feito” não tem manifestamente a carga impressiva que o arguido lhe pretende atribuir; por outras palavras, não era com aquela expressão que o arguido iria ficar impressionado ou amedrontado, sendo inteiramente possível e plausível que o arguido se afastasse após os toques e as palavras iniciais dos dois, DD e EE, o que não o fez, indo buscar a arma e depois de acabadas as balas, face a esta expressão, afastou-se do local.
Sendo verdade, como diz o arguido, que o DD quando profere as expressões ainda continuava de pé, não menos verdade é que, como consta do ponto provado n.º 7, ainda em pé, apresentava-se cambaleante.
O DD poderia nem se ter apercebido de que levara um tiro, pois estava alcoolizado, como consta do ponto de facto provado n.º 2. E como resulta do exame de fls. 317 foi verificada a presença de álcool no sangue - 0, 85 g/l.

A distância a que foram efectuados os pelo menos seis disparos e tendo na mira, após os dois ou três primeiros disparos, o DD, conduz a que se possa afirmar que o arguido representou a possibilidade de o atingir e de lhe causar a morte.

Concluindo: da análise do texto da decisão recorrida não resulta que a matéria de facto dada por provada seja insuficiente para suportar a decisão de direito, que se esteja perante qualquer forma de contradição entre a fundamentação ou entre esta e a decisão e que resulte como patente a verificação de erro na apreciação da prova.

Improcedem assim as conclusões 1ª a 70ª.

II Questão – Homicídio negligente

O recorrente nas conclusões 71ª a 75ª defende que a imputação dos factos só pode ter lugar a título de negligência, impondo-se, a seu ver, considerar a negligência consciente, sendo a culpa grosseira ou grave por acção altamente potenciadora do risco.

Face à resposta dada à questão anterior e à manutenção da matéria de facto que suporta o tratamento subsuntivo efectuado, com a imputação do homicídio a título de dolo eventual, é evidente ter ficado prejudicada a pretensão neste segmento, sendo de afastar a pretendida requalificação da conduta do arguido como crime de homicídio negligente, p. p. pelo artigo 137º, n.º 2, do Código Penal (anote-se que nessa hipótese nunca a pena de prisão poderia ser superior a 5 anos, devendo-se a referência na conclusão 75ª a tal medida, “não superior a 5 anos”, certamente a mero lapso de escrita).
Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.

III Questão – Legítima defesa - Excesso de legítima defesa

Prevenindo a hipótese de se manter a qualificação da conduta e a condenação pelo crime de homicídio simples, defende o recorrente outro possível enquadramento jurídico, devendo ser equacionada a situação como legítima defesa ou excesso de legítima defesa – conclusões 76ª a 98ª.
O acórdão recorrido versou esta matéria de fls. 63 a 68 (fls. 1753 a 1759 dos autos), expondo com clareza e acerto os seus pontos de vista, não merecendo censura igualmente neste plano.

A legítima defesa é uma causa de exclusão da ilicitude, resultando da sua integração que o facto típico não é punível porque a sua ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade - artigos 31º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) e 32º do Código Penal.
A consagração legal da legítima defesa no Código Penal mais não é do que a explicitação do princípio constitucional fixado no artigo 21º, da CRP, que estabelece que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.
A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve recuar ou ceder nunca perante a ilicitude.
Constitui legítima defesa, nos termos do artigo 32.º do Código Penal, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores, não pré-ordenada – ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime –, actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação, e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado – menos gravoso, por a todo o direito corresponderem «limites imanentes» – a sustar o resultado iminente – cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Coimbra, 1971, págs. 45 e 59.
São pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi.
São requisitos da agressão: a ilegalidade, a actualidade e a falta de provocação e requisitos da defesa: a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.
A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão, e em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir.
Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cfr. acórdão do STJ de 18-12-96, processo n.º 115/96-3ª , n.º 6, Dezembro 1996, pág. 69.
Um dos elementos constitutivos da legítima defesa é o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo, ou seja, que tenha agido com o intuito de defesa. Não se verifica a figura da legítima defesa quando o tribunal dá como provado que o arguido agiu com o intuito de ofender corporalmente o ofendido – acórdão do STJ de 16-04-1997, processo n.º 1255/96-3ª, SASTJ, n.º 10, Abril de 1997, pág. 97.
Como se pode ler no acórdão do STJ de 13-12-2001, processo n.º 3067/01-5ª, CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 242, “A legítima defesa pressupõe a ilicitude da agressão e que o acto agressivo, tal como o conceito de ilícito jurídico em geral e o conceito jurídico penal de ilícito se defina pelo desvalor da conduta, podendo esta assumir a forma de acção ou omissão.
A legítima defesa pressupõe ainda que o ilícito da agressão seja doloso.
A agressão tem que ser actual.
A agressão inicia-se - já é actual – quando, colocando-nos numa perspectiva jurídico penal, a pudermos considerar como acto de execução de uma determinada tentativa.
Sendo função da legítima defesa apenas o impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão
Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes e eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido. Portanto, a necessidade da acção (eficaz) e que, havendo vários meios adequados à sua disposição, ele utilize o menos gravoso para o agressor.
Para o acórdão de 07-06-2006, processo n.º 1174/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A legítima defesa não abdica, no plano objectivo, de um facto, uma agressão actual, em execução, em desenvolvimento, ilícita, por contrária à lei, portadora de demérito aos olhos do legislador, lesiva de bens ou valores jurídicos (pessoais ou patrimoniais) dignos de protecção à face da ordem jurídica, na titularidade do ofendido ou de terceiro, de o contrafacto, defensivo, ser carregado do intuito de defesa (“animus defendendi) e necessário, por adequado a acautelar os interesses do visado, tendo em conta a valoração das circunstâncias do caso concreto, inclusive a impossibilidade de recurso à força pública, pois a ser de outro modo poder-se-ia cair no recurso à vindicta privada”.
Como se extrai do acórdão de 12-06-2008, processo n.º1782/08-3ª, “Sem previsão na lei, a legítima defesa não dispensa a verificação do pressuposto de impossibilidade de recurso à autoridade pública, atenta a sua natureza subsidiária face à defesa actuada pelos órgãos do Estado, e do animus defendendi, requisitos não enunciados no CP de 82, em contrário da versão de 1886, mas de que a jurisprudência não abdica.
Essencial, pressuposto estrutural, à legítima defesa, é mesmo o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima: o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual.
A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem; tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira”.

Vistos estes ensinamentos, cumpre passar à análise da questão.
A agressão inicial por parte do DD e EE cingiu-se a empurrões com toques de mão nos ombros e às palavras “para onde estás a olhar?” e “para ti também há”.
O arguido refere que se ia afastar, mas que o não fez, porque terá sido perseguido, dizendo ter configurado a hipótese de abandonar o local e de ter sido dado por provado que a sua intenção era abandonar o local - conclusão 86ª.
Não foi isso que ficou provado nem tão pouco que a vítima tivesse ido atrás de si, como afirma na conclusão 44ª, remetendo-se aqui para o que já se expôs a propósito da questão da verificação do dolo eventual.
O juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias do caso concreto.
Na situação em apreço temos: a inserção circunstancial - local da acção: roulotte de comes e bebes; o tempo da acção: noite dentro-2 horas e 40 minutos; protagonistas: para além de outros, DD e EE, comemorando o advento de um filho deste, num ambiente que supostamente seria de celebração, mas com copos a mais que degeneram em luta, agressão mútua, e quezília, e o arguido que ia buscar uns hamburguers.
Há que indagar da intensidade da perigosidade do agressor e sua forma de actuar, assinalando o recorrente ao longo da motivação e repetindo nas conclusões, atributos que na verdade não colhem suporte na matéria de facto provada, como são os seguintes:
ímpeto agressivo da vítima – conclusão 48ª - agressividade da vítima para com o arguido, com claras intenções em querer agredir fisicamente este - conclusão 55ª - ímpeto agressivo da vítima - conclusão 56ª - intimidação da vítima que naquele momento (já após os disparos) era um potencial e iminente agressor - conclusão 60ª – com a vítima (refere-se arguido, o que se deverá a mero lapso de escrita) em pé, aparentemente de boa saúde (igualmente após os disparos) e a querer agredir o arguido - conclusão 61ª – a vítima perseguiu o arguido para o agredir –conclusão 86ª – a ameaça que a vítima DD representava - conclusão 89ª – o ímpeto agressivo da vítima – conclusão 92ª – o pânico e aflição sentidas pelo arguido – conclusão 93ª – situação de aflição – conclusão 100ª.
No que concerne a espécie e intensidade da agressão dirigida ao arguido, temos o que ficou provado no ponto 3 dos factos provados, traduzindo-se em comportamentos consubstanciados no gesto e no verbo (em termos físicos, os empurrões com toques de mão nos ombros, o gesto do toque no chega para lá, e as palavras “para onde estás a olhar?” e “para ti também há”, na tradução de provocação verbal, da embirração, emergente em cenas de copos, ou para usar a expressão da decisão recorrida, de uma “atitude de fanfarronice beligerante e implicativa” emergente do álcool).
A ter em conta o porte e a capacidade física de um e outro.
Do arguido apenas se conhece a idade, contando então 33 anos.
De DD, para além da idade - 29 anos - e como informa o relatório de autópsia, o mesmo tinha 1, 68 metros de altura e pesava 69 KG, encontrando-se na altura alcoolizado, com uma taxa de 0, 85 g/l, como veio a revelar o relatório de toxicologia, a fls. 137, ao passo que o arguido não tomara bebida alcoólica; não ficou provado – alínea A) dos factos não provados - que estivesse a tomar uma cerveja e que a vítima tivesse entornado o copo.
Quanto a utilização de armas de fogo, a resposta sendo afirmativa para o arguido é negativa para a vítima, que caminhou em direcção ao arguido, encontrando-se este armado, embora agindo o DD na suposição errónea de que se tratasse de arma de alarme.
Neste quadro poderá desenhar-se a possibilidade de o DD desencadear uma agressão dirigida ao arguido? Em que consistia a potencial e iminente agressão e como se exprimia o ímpeto agressivo de DD?
Bem vistas as coisas, qual a espécie do bem jurídico agredido ou ameaçado de agressão, e qual o grau e intensidade de agressão ou de ameaça?
Sobre estas questões não se encontra resposta na matéria de facto, não revelando esta que estivesse em desenvolvimento uma agressão ao arguido, não tendo ficado provada a existência de insultos e de agressões físicas na pessoa do arguido, que este terá declarado em audiência, como se vê da exposição da motivação do acórdão da primeira instância.
Os disparos não tiveram por efeito procurar retardar o ímpeto agressivo da vítima, como afirmado na conclusão 56ª, posição retomada na conclusão 92ª, não foram efectuados com animus defendendi, em reacção a uma real iminente agressão.
O recorrente procura sustentar a posição de que procurou ir-se embora e que não conseguiu levar por diante essa sua intenção por ter sido perseguido, a vítima ter ido atrás de si, como expressa nas conclusões 43ª, 44ª, 86ª e 101ª.
Como já se procurou demonstrar supra a propósito da questão do dolo eventual, a descrição factual não permite esta leitura, bastando atentar na dinâmica sequencial traduzida nos pontos de facto provados n.ºs 4, 5 e 6 – o arguido dirige-se à viatura, que está a cerca de 10 a 15 metros, abre-a, sai de lá empunhando a pistola e virando-se para DD que caminhava na sua direcção, começa a disparar.
Acerca deste ponto respiga-se da motivação da decisão de primeira instância a fls. 28/29 (fls.1477/8 dos autos), o seguinte passo: «Do conjunto da prova testemunhal nos moldes descritos, o Tribunal não valorou positivamente as declarações do arguido quando este afirmou ter sido perseguido até ao seu carro pelo grupo do falecido, composto de 4 indivíduos, uma vez que nessa altura já só se encontravam no local o falecido DD que seguiu no encalço daquele, o EE que se escondeu atrás de um veículo, e o FF, que negou ter perseguido o arguido, sendo certo que este referiu haver pouca iluminação no local, e por isso má visibilidade, assim como as suas declarações quando referiu ter sido agredido com murros e pontapés pelo EE e pelo DD …».
O recorrente não foi perseguido e nada impedia que seguisse viagem.
Tendo o arguido configurado a hipótese de colocar-se em fuga, como relata nas conclusões 43ª e 86ª, e assumindo ao que parece tal postura como boa solução, o recorrente na conclusão 87ª avança com a declaração de que em consonância com a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores a fuga não é argumento para evitar uma agressão, dizendo só ter tido possibilidade de abandonar o local de imediato na sua viatura após os disparos - conclusão 92ª.
Ora, no caso impunha-se o afastamento, atento o quadro existente no local e o facto de se mostrar avisado de que o álcool é responsável por potenciar a violência, como realça o recorrente nas conclusões 79ª e 80ª, nem se vê que a opção pelo afastamento impusesse qualquer forma de desonra, que será elemento a ter em conta para efeito de apreciar os limites da necessidade da fuga - cfr. Eduardo Correia, obra citada, II, pág. 46.
Como se refere no acórdão do STJ de 13-12-2001, CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 245, “ (…) o certo é que o recorrente, tendo ali o veículo automóvel mesmo ao lado, com a maior facilidade poderia ter usado dele para se proteger e, mesmo, afastar-se dali”; no mesmo sentido, acórdão de 07-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 209.
Em suma: não se manifestou uma agressão que estivesse em execução ou iminente e que o arguido tivesse de sustar, pondo com a sua conduta em risco a vida alheia, que veio a sucumbir, para salvaguardar a sua.

No tocante ao excesso de legítima defesa (conclusões 89ª, 94ª, 97ª e 98ª) há que notar que tal figura consiste numa acção que, pressuposta uma situação de legítima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão.
Não havendo agressão actual e ilícita, não há excesso de legítima defesa.
Para Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Verbo, 1985, I volume, pág. 99, “O excesso de legítima defesa (que melhor se denominaria «excesso na defesa») só tem lugar quando se verificam os pressupostos da defesa, isto é, quando se verifica uma agressão ilícita e actual”.
A figura do excesso (de legítima defesa) pressupõe a existência de uma real “situação de legítima defesa”, e não uma mera suposição ou representação do agente da existência de uma tal situação - Américo Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, Coimbra Editora, pág. 367.
Sem actuação em legítima defesa, de excluir é actuação com excesso, como, entre outros, se decidiu nos acórdãos deste STJ de 12-06-1997, in CJSTJ1997, tomo 2, pág. 238, de 27-01-1988, BMJ 373/317 (o excesso de legítima defesa pressupõe os requisitos da legítima defesa, excedendo-se o réu nos meios), de 19-04-1989, BMJ 386/222, neste se afirmando que o excesso diz, apenas, respeito aos meios necessários para repelir a agressão, não aos requisitos iniciais de legítima defesa, dos quais se não pode abdicar, de 07-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 209, donde se extrai que a falta de legítima defesa afasta o excesso de meios, o excesso de legítima defesa, por natural inconciliabilidade, nos termos do artigo 33º, n.º 1, do Código Penal.
No caso em apreciação, o arguido não actuou com excesso de legítima defesa por não se verificar um dos pressupostos da legítima defesa: a agressão actual ou iminente.
Improcede, assim, a pretensão do recorrente em ver declarada a verificação de legítima defesa excessiva, como exposta vem nas conclusões 76ª a 98ª.


IV Questão – Atenuação especial da pena


Esta questão deve ser analisada antes da referente à medida da pena por constituir um “prius”, já que, a vingar a sua procedência, estar-se-á perante um regime de punição mais atenuada, uma moldura abstracta mais benévola, dentro da qual sequentemente, a proceder essa pretensão, terá de encontrar-se a medida concreta da pena, fazendo actuar os critérios do artigo 71º do Código Penal já dentro de uma moldura com limites mais baixos
Pretende o recorrente essa atenuação já fora do campo de aplicação do artigo 33º, n.º 1 do Código Penal, fora de um quadro de excesso de legítima defesa, antes apoiada em outros factores expostos nas conclusões 107ª a 119ª.
A decisão recorrida abordou a questão de fls. 69 a 71 (fls. 1759 a 1761 dos autos) nos seguintes termos:

«Aqui chegados, resta decidir se, como pretende o recorrente, a pena a impor pelo crime de homicídio simples fora do âmbito da legítima defesa que, nos termos expostos, se considerou ter efectivamente cometido, deve ser, atentas as circunstâncias, especialmente atenuada, designadamente por, em vista do circunstancialismo de facto disponível, se haver de considerar ter a conduta sido determinada…por provocação injusta ou ofensa imerecida" (relevante para atenuação especial) e (…).

Assim, no que concerne à pretensa atenuação especial da pena imposta pelo crime de homicídio que o recorrente pretende ser devida, considerando a conduta determinada…por provocação injusta ou ofensa imerecida" relevante para o efeito nos termos do disposto no artº 72º nº 2 b) parte final do CP, limitar-nos-emos a dizer, muito singelamente, que, logo perante a enorme desproporção entre a provocação havida e a gravidade da conduta é impossível concluir pela verificação, em razão de tal provocação, de uma diminuição acentuada (como expressamente se exige no citado preceito) da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena.

De considerar será assim a provocação havida como circunstância que limita a culpa em medida que justifica a fixação da pena em quantum próximo do limite mínimo da moldura penal abstracta (como aliás foi feito), mas não como determinante de diminuição acentuada o bastante para relevar para efeitos de atenuação especial da pena nos termos previstos no artº 72º do Código Penal.

Atenuação especial da pena que em nenhuns moldes se justifica pois que, tal como ocorre com a provocação havida, nenhuma das demais circunstâncias apuradas – ou o seu conjunto – é susceptível de determinar diminuição acentuada da ilicitude culpa ou necessidade da pena, requisito essencial daquela atenuação».

Estabelece o nº 1 do artigo 72º do Código Penal, na redacção dada pela terceira alteração – Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março – e mantido inalterado na 23ª alteração ao mesmo Código, operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
O n.º 2 elenca algumas de “entre outras” circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito consignado, a saber:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Em anotação a este artigo Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, I, consideram: “Seguiu-se neste art. 72º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação.

Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Em relação à versão originária de 1982 a expressão do nº 1 do então artigo 73º «O tribunal pode atenuar» foi substituída por «O tribunal atenua», tendo sido aditada a alternativa final «ou a necessidade da pena».
Este aditamento veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.
Esclarece Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 302/307, a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial do artigo 72º e o sistema da determinação normal da pena previsto no artigo 71º, que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos os da culpa e da prevenção, na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do nº 1 do artigo 72º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), concluindo no § 451: princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.
A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
Daí – e continuamos a citar - estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.

Adianta o Mestre de Coimbra, in Direito Penal Português, As Consequências (…), II, § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72º, nº 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73º, nº 1 (actual artigo 72º) que: «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico - ao que sucede com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas do nº 2 do art. 72º podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido». E conclui que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Espelham estes ensinamentos vários arestos deste Supremo Tribunal, de que são exemplos os seguintes:
Como se expressou o acórdão do STJ, de 23-02-2000, processo nº 1200/99-3ª, SASTJ, nº 38, pág. 75, «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 72º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias».
No acórdão de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 220, pode ler-se: a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, considerando-se como antiquada a solução de consagrar legislativamente a cláusula geral de atenuação especial como válvula de segurança, pois que dificilmente se pode ter tal solução por apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, seguindo-se aqui a lição constante do § 465 da referida obra de Figueiredo Dias.
No acórdão de 03-11-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 217 refere-se: “Justifica-se a aplicação do instituto de atenuação especial da pena, que funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo”.
E no acórdão de 25-05-2005, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 207: “A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas”.
Como se extrai do já citado acórdão de 07-06-2006, processo n.º 1174/06 - 3.ª Secção, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A atenuação especial da pena depende do concurso de circunstâncias anteriores, posteriores ou concomitantes ao crime, que façam diminuir de forma acentuada a culpa, a ilicitude e a necessidade de pena, elencando de forma não taxativa o n.º 2 do art. 72.º do CP os seus factos-índices, ligados a uma imagem global do facto favorecente do agente criminoso.
O verdadeiro pressuposto material da atenuação são exigências de prevenção, na forma de reprovação social do crime e restabelecimento da confiança na força da lei e dos órgãos seus aplicadores e não apenas a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
Ao decréscimo ligeiro da pequena e média criminalidade, entre nós, contrapõe-se um aumento da criminalidade violenta, mediante o recurso a armas de fogo, em situações manifestamente ilegais, como o presente caso mais uma vez confirma; impõe-se uma pena, com efeito dissuasor, fora do quadro da atenuação especial, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral, sendo certo que nem a culpa, nem a ilicitude ou as necessidades da pena se mostram esbatidas de forma acentuada.
Nessa esteira, podem ver-se ainda os acórdãos de 05-02-1997, processo n.º 47885-3ª, SASTJ, n.º 8, Fevereiro 1997, pág. 77; de 07-05-1997, BMJ 467, 237; de 29-04-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 191; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247; de 07-10-1999, BMJ 490, 48; de 10-11-1999, processo 823/99, SASTJ, nº 35, 74; de 18-10-2001, processo 2137/01-5ª, SASTJ, nº 54, 122; de 28-02-2002, processo n.º 226/02 - 5ª; de 18-04-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 178; de 22 -01- 2004, CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 183; de 20-10-2004, processo n.º 2824/04 - 3ª; de 06-10-2005, processo n.º 2632/05 - 5ª; de 17-11-2005, processo n.º 1296/05 - 5ª; de 07-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 229; de 15-12-2005, processo n.º 2978/05 - 5ª; de 06-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 204; de 07-12-2006, processo n.º 3053/06 - 5ª; de 21-12-2006, processo n.º 4540/06 - 5ª; de 08-03-2007, processo n.º 626/07 - 3ª; de 06-06-2007, processos n.ºs 1403/07 e 1899/07, ambos da 3ª secção e processo n.º 1603/07-5ª; de 14-06-2007, processos n.ºs 1895/07 e 1908/07, ambos da 5ª secção; de 21-06-2007, processo n.º 1581/07 - 5ª; de 28-06-2007, processo n.º 3104/06 - 5ª; de 12-09-2007, processo n.º 2702/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3265/07 - 3ª; de 07-11-2007, processo n.º 3225/07 - 3ª; de 28-11-2007, processo n.º 3981/07 - 3ª; de 05-12-2007, processo n.º 3266/07 - 3ª; de 16-01-2008, processos n.ºs 4638/07 e 4837/07, ambos da 3ª secção; de 23-01-2008, processo n.º 4560/07 - 3ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5ª; de 26-03-2008, processos n.ºs 105/08 e 306/08-3ª; de 17-04-2008, processo n.º 4732/07 - 5ª; de 30-04-2008, processo n.º 1220/08 - 3ª; de 03-07-2008, processo n.º 1226/08 - 5ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 4029/08-3ª.

Revertendo ao caso concreto.
Na análise a fazer há que ter uma visão integral do facto, atender ao pleno das circunstâncias que enformaram os factos, salientando-se tudo o que o Colectivo deu por provado e considerando-o na sua globalidade e inter relação, o que tudo conduz a que se esteja face a uma actuação em que o arguido, admitindo a possibilidade de provocar a morte de Cândido Silva como consequência da sua conduta, conformou-se com tal resultado.
Não integra o caso presente o facto – índice previsto na última parte da alínea b) do n.º 2 do citado artigo 72º, pois que a conduta do recorrente não foi determinada por provocação injusta, não se estando perante agressão potencial ou iminente ou mesmo ameaça a constituir provocação, que nesta sede tem os contornos da antiga provocação do Código Penal de 1852/1886 – seja como atenuante modificativa do crime de homicídio doloso (artigo 370º), seja como atenuante geral (artigo 39º, n.º 4), seja como causa de justificação, circunstância dirimente (artigo 372º § 1º) - dela se distanciando o juízo de compreensibilidade da emoção violenta, uma das cláusulas de privilegiamento ou de redução de culpa do homicídio privilegiado – Parecer de Figueiredo Dias (Homicídio Qualificado, Premeditação, Imputabilidade, Emoção Violenta), in Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, págs. 49 a 55.
No domínio do Código Penal de 1852/1886, para a verificação da atenuante especial modificativa da provocação prevista no artigo 370º, sempre se considerou na jurisprudência indispensável que houvesse proporcionalidade entre o facto injusto e a reacção do provocado, ou seja, o crime praticado, de que se citarão como exemplos os acórdãos de 28-07-1954, BMJ 44, 145; de 30-04-1969, BMJ 186, 134; de 07-01-1981, BMJ 303, 127; de 07-03-1983, processo n.º 36910, in BMJ 325, 390 (não obstante a data versava-se no caso ainda o artigo 370º, pois os factos haviam ocorrido em 15-04-1981, aí se defendendo que a exigência de proporcionalidade devia entender-se mantida no Código Penal de 1982, no artigo 73º, n.º 2, alínea a)).
Este requisito da exigência de proporcionalidade mantém-se para os casos de atenuação especial e esteve mesmo presente na esmagadora maioria da jurisprudência do STJ na fase inicial que se seguiu à entrada em vigor do Código Penal de 1982, a propósito do crime de homicídio privilegiado, encarando a provocação como forma de integração da emoção violenta.
Esta orientação jurisprudencial, que acolheu o modelo da provocação injusta na linha do antigo artigo 370º, exigindo o requisito da adequada relação de proporcionalidade entre o facto injusto, a acção do provocador que desencadeia a emoção e a reacção do agente provocado, como índice de compreensibilidade da emoção violenta, mereceu críticas de toda a doutrina, começando a conhecer inversão de orientação a partir de 1997, se bem entendemos, com o acórdão de 08-05-1997, BMJ 467, 287.

A provocação como circunstância atenuativa da culpa pode ocasionar a compreensível emoção violenta de que fala o artigo 133º do Código Penal; não se completando os requisitos exigidos para o privilegiamento, pode a provocação injusta actuar nos termos do artigo 72º, n.º 2, alínea b), do Código Penal e conduzir à atenuação especial da pena, mas se não tiver por efeito diminuir a ilicitude ou a culpa de forma essencial ou acentuada, terá o valor de atenuante geral – cfr. acórdão de 11-11-2004, processo n.º 3182/04-5ª.
Como se referia no acórdão de 30-01-1992, processo n.º 42125, in BMJ 413, 283, a noção correcta de provocação a que se refere o artigo 73º, n.º 2, alínea b), do Código Penal (actual artigo 72º), exige que o acto cometido sob sua acção, sob a emoção vivida, seja seguido ao facto provocador e proporcional a este.
Especifica ainda que para a atenuação da pena teriam de concorrer a emoção violenta do agente, injusta provocação da vítima e sucessão imediata entre a provocação e a reacção, que tem de se exercer in continenti e não ex intervalo e tem de ser proporcionada à provocação.
Como se extrai do acórdão de 11-06-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 228 «A provocação supõe um estado emotivo de excitação, cólera ou dor que altere as condições normais de determinação de quem por causa dele, actua criminosamente. Esse estado de excitação tem que ser consequência emocional ininterrupta de um facto injusto praticado por outrem e sua consequência adequada. Tem de existir proporcionalidade entre o facto praticado pelo provocado e a actuação provocadora do ofendido, sendo exigido sempre este requisito» - cfr. neste sentido, acórdãos de 25-11-1987, BMJ 371, 546; e de 17-03-1994, BMJ 435, 518, que a propósito do estado de irritação, refere que o facto injusto da provocação há-de ser proporcional ao facto criminoso por forma a poder ser considerado como reduzindo acentuadamente a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
Sendo de afastar para a configuração de privilegiamento do homicídio, como é hoje consensual, mantém-se a exigência de proporcionalidade para a provocação injusta, enquanto elemento integrante de atenuação especial.
Na verdade, o que se exige para a atenuação especial é que exista uma certa proporção entre o acto que motiva o crime e o crime praticado, o que no caso presente se revela completamente inexistente, não se vislumbrando poder estabelecer qualquer relação de proporcionalidade da conduta do recorrente com a verificação da morte do DD, pois o acto de matar tem na ordem jurídica um valor desproporcionalmente maior em relação à ameaça.
Qualquer provocação para ser relevante nesta sede teria de ser injusta e proporcional à reacção, mas os factos provados não suportam qualquer acto que possa ser considerado uma actuação censurável da vítima, uma ofensa imerecida, uma violência, um acto provocatório por parte da vítima com intensidade suficiente para despoletar tal reacção e muito menos de carácter injusto, que o arguido fosse colocado face a um quadro de condições fortemente limitativas da sua liberdade de agir e de reflectir - como refere o STJ, no acórdão de 11-10-1988, BMJ 380, 557 “ Nenhum motivo pode apresentar-se proporcional ao homicídio”.
De resto há que retornar ao que dito ficou acima a propósito do dolo eventual e da legítima defesa, pois que os argumentos do recorrente repetem-se e cruzam-se nestes três aspectos, como resulta claro do contexto, e como foi afastada a agressão iminente, o ímpeto agressivo, a situação de pânico e de aflição, é de afastar a injusta provocação.
Quanto ao facto-índice da alínea c) do mesmo nº 2 do artigo 72º, no único segmento em que aqui seria possível a concretização, ou seja, ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero, certo que foi dado por provado (ponto n.º 18) que o arguido mostrou arrependimento, mas há que afirmar uma certa dificuldade de concatenação entre o arrependimento, que sempre suporia antes de mais a admissão da prática do crime (a confissão foi parcial - ponto de facto provado n.º 17), e a postura do arguido ao defender a existência de conduta negligente e de legítima defesa, para além do aspecto focado na decisão recorrida e que se prende com o facto de ter abalado para o Brasil.
O arrependimento não se mostra, tendo de ser demonstrado através da prática de actos ou assunção de posturas; sendo uma espécie de contrição pelos factos praticados, suporá necessariamente a confissão destes, o que não é o caso.

O recorrente convoca ainda em suporte da aplicação da medida de atenuação especial jurisprudência que defende a possibilidade de atenuar especialmente a pena em casos de dolo eventual - conclusão 112ª - dando como exemplo o acórdão de 06-03-1985, BMJ 345, 222. (Para além deste, pode citar-se o acórdão de 26-02-1997, processo n.º 889/96-3ª, SASTJ 1996, Fevereiro 1997, n.º 8, pág. 100).
No acórdão mencionado pelo recorrente alude-se a essa possibilidade, citando-se Eduardo Correia na obra supra aludida.
A págs. 385/6 do I volume refere o Autor que «naqueles casos-limite em que, não obstante o agente ter actuado sem confiar em que o resultado se não produziria, o juiz puder comprovar com segurança que tal só sucedeu por leviandade ou irreflexão – isto é, por uma forma de culpa que está na base da negligência -, nada impede que, punindo-o embora a título de dolo, atenue especialmente a pena a aplicar, porventura até ao ponto de a fazer coincidir com aquela que seria aplicável se o facto fosse punível a título de negligência».
A verdade é que o acórdão em causa considerou ser de excluir no caso que versava a atenuação especial da pena, por não se estar face a uma leviandade ou irreflexão, como ocorre no presente caso.
Como referido supra, a medida constitui uma válvula de segurança do sistema que permite responder a casos especiais ou extraordinários, a circunstâncias excepcionais que não possam ser valoradas com justiça no âmbito da moldura penal normal, o que não ocorre aqui.
Pelo exposto, se conclui que o recorrente não pode beneficiar de atenuação especial da pena, assim improcedendo o recurso nesta parte.


V Questão – Medida da pena

Da recorribilidade da decisão no que toca ao crime de detenção de arma proibida.

O recorrente na conclusão 105ª pugna de novo por aplicação de pena de multa quanto ao crime de detenção de arma proibida, defendendo que seria adequada e suficiente a opção por aquela pena.
Na conclusão 99ª refere o recorrente como tendo sido aplicada por este crime a pena de 1 ano de prisão, mas na realidade foi aplicada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão.
A questão da opção por pena de multa foi ponderada no final do acórdão recorrido a fls. 71 e 72 (fls. 1761/2 dos autos), não tendo merecido acolhimento a pretensão do arguido, tendo o acórdão recorrido mantido a pena aplicada.
Face à pena aplicada e aplicável ao crime de detenção de arma proibida há que colocar a questão da recorribilidade do acórdão recorrido no que respeita a esta pena parcelar.
Na primeira instância o arguido foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelos artigos 3º, n.º 3 e 86º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23-02, a que corresponde pena de prisão de 1 mês a 5 anos, considerada concretamente mais favorável do que a vigente à data da prática dos factos, prevista no artigo 275º, n.º 1, do Código Penal, a que cabia a pena de prisão de 2 a 5 anos.

A propósito da questão da aplicação do direito intertemporal, no que respeita à lei processual aplicável no que tange a recorribilidade, as secções criminais deste Supremo Tribunal convergiram para uma solução de compromisso, expressa no acórdão de 29-05-2008, processo n.º 1313/08-5ª, que no fulcro se reconduz à afirmação de que «a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido»; em sentido idêntico, podem ver-se, inter altera, os acórdãos de 05-06-2008, processo n.º 1151/08 - 5ª, com o mesmo relator do precedente, in CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 251; de 10-07-2008, processo n.º 2146/08 - 3ª; de 03-09-2008, processo n.º 2192/08 - 3ª e de 29-10-2008, processo n.º 2827/08-3ª.
De acordo com tal posição é de ter em consideração o regime em vigor à data da prolação de decisão na 1ª instância, ou seja, datando esta de 31-01-2008, estando em vigor o novo regime processual, será de aplicar o regime decorrente da Lei n.º 48/2007.
Ocorrendo que, no caso concreto, a solução será sempre a da irrecorribilidade, face à lei anterior ou à actual, como reforço de argumentação, ter-se-ão em consideração os dois regimes.
Sabendo-se que pelo crime de detenção de arma proibida o arguido foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, haverá que atender à medida abstracta (penalidade, pena aplicável ou moldura penal) prevista para tal crime.
Para o crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo artigo do Código Penal, a pena aplicável é a de prisão de 1 a 5 anos.
E para o crime por que foi condenado, p. p. pelos artigos 3º, n.º 3 e 86º, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23-02, é de prisão de 1 mês a 5 anos de prisão.
Atendendo à moldura legal aplicável ao crime em causa, ter-se-ão em vista as disposições das alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do CPP.
Convocar-se-ão as citadas alíneas, nas versões antiga e actual, apenas para concluir pela irrecorribilidade face a uma e outra.
Estabelecia o artigo 400º, nº 1, alíneas e) e f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto:
Nº 1 - Não é admissível recurso:
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3.
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.

As referidas alíneas, a partir da alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007, passaram a ter a seguinte redacção:
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena privativa de liberdade;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

Como se referiu o crime em questão é punível com pena de prisão de máximo inferior a 5 anos de prisão, estando-se aqui face a criminalidade de pequena gravidade.
Não indo a pena aplicável no caso em análise além, no máximo possível, de 5 anos de prisão, a irrecorribilidade, à luz do regime anterior, era a prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 400º.
Neste caso, como se especificava no acórdão do STJ, de 14-01-2004, processo n.º 3870/03-3ª, o elemento de referência da lei é a natureza e dimensão da pena aplicável a um crime, com a limitação, no caso de recurso para a Relação, apenas a dois graus de jurisdição a possibilidade de apreciação e julgamento dos crimes de pequena e média gravidade para os quais não esteja prevista (seja aplicável) uma pena superior a 5 anos de prisão.
No mesmo sentido de que não indo a pena aplicável além dos 5 anos de prisão, a irrecorribilidade estava prevista na alínea e), e actualmente, face à nova alínea f), fica o crime definitivamente julgado pela Relação, sendo insindicável a decisão pelo Supremo, podem ver-se os acórdãos de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 204; 04-05-2006, processo n.º 1044/06-5ª; de 15-11-2006, processo n.º 3180/06-3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3401/07-3ª; de 27-02-2008, processo n.º 3309/07-3ª; de 28-02-2008, processo n.º 98/08-5ª; de 06-03-2008, processo n.º 4634/07 - 5ª; de 13-03-2008, processos n.ºs 3307/07 e 1016/07, ambos da 5ª secção; de 19-06-2008, processo n.º 438/08-5ª, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 258; de 05-11-2008, processo n.º 3451/08 - 3ª; de 13-11-2008, processo n.º 4455/07 - 5ª; de 26-11-2008, processo n.º 2884/08 - 3ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3ª.

Neste regime, condenado o arguido por vários crimes, uns puníveis com pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos e outros puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, tendo sido interposto recurso para a Relação, o recurso, em 2º grau, da decisão desta para o STJ ficava limitado aos crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos de prisão.
Nestes casos o recurso não podia ser conhecido na parte respeitante aos crimes puníveis mais levemente, tornando-se definitivo o decidido neste segmento.
O Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do 400º, nº 1, alínea e), do CPP, no acórdão nº 49/2003, processo n.º 81/2002 (3ª), in DR, II Série, de 16-04-2003, onde se refere que os crimes em causa têm uma gravidade não acentuada, o que explica a diferença entre as alíneas e) e f) e que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas, no mesmo sentido se pronunciando o acórdão nº 390/2004, de 02-06-2004, processo n.º 651/03 (2ª), in DR, II Série, de 07-07-2004, seguido no acórdão nº 140/2006, processo n.º 601/2005 (2ª), in DR II Série, de 22-05-2006 e ainda nos acórdãos de 20-09-2006, no processo nº 487/06 (2ª) e de 16-11-2006, no processo n.º 626/06 (2ª).
No caso em apreciação há identidade de decisão, pois que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou na íntegra o acórdão do Colectivo de Oeiras, estando-se perante dupla conforme condenatória, mostrando-se cumprido o duplo grau de jurisdição exercido pela Relação em via de recurso.
O princípio da dupla conforme impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.
Este princípio é assegurado através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2ª instância, a precedente decisão.
O acórdão da Relação, proferido em segunda instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição.
As garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o 3º grau de jurisdição, por a Constituição, no seu artigo 32º, se bastar com um 2º grau, já concretizado no caso dos autos, aquando do julgamento pela Relação.
Actualmente não existe norma equivalente à anterior alínea e), restando a alínea f), que veio impor maior restrição ao recurso, referindo a pena aplicada e não já a pena aplicável.
Não há dúvida de que a condenação pelo crime em referência, a ser este julgado isoladamente, não seria recorrível, colocando-se a questão de saber se será cognoscível quando inserta numa decisão em que é uma das componentes da pena conjunta.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de que não é recorrível a pena parcelar aplicada inferior a 5 anos, mesmo que “integrada” em concurso de infracções e em cúmulo jurídico.
Assim neste sentido, podem ver-se, v. g., o acórdão de 13-11-2008, processo n.º 3381/08-5ª, donde se extrai que «No caso de concurso de infracções, tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ, nos termos do art. 400º, n.º 1, alínea f), do CPP, na versão da Lei 48/2007, de 29-08, sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aquele limite.
Segundo o acórdão de 19-11-2008, processo n.º 3776/08-3ª, as penas parcelares englobadas numa pena conjunta só podem ser objecto de recurso para este STJ desde que superiores a 5 anos de prisão. No recurso para o STJ só poderá estar em causa a forma como se produziu a pena conjunta de concurso superior a 5 anos de prisão e não qualquer pena parcelar relativamente à qual tenha sido cominada pena inferior àquele limite - cfr. os acórdãos de 17-01-2007, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 172; de 10-07-2008, processo n.º 2146/08 - 3ª; de 03-09-2008, processo n.º 2380/08 - 3ª; de 16-09-2008, processo n.º 2383/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1016/07 - 5ª.
No acórdão de 15-07-2008, processo n.º 816/08-5ª, defende-se a obrigatoriedade de reponderação da medida da pena do concurso, se a aplicada nesse âmbito for superior a 8 anos de prisão, ainda que os crimes que fazem parte desse concurso, singularmente considerados, tenham sido punidos na 1ª instância com penas inferiores ou iguais a tal limite e confirmadas pela Relação.
Tendo em consideração o exposto, é de concluir que o recurso quanto a reapreciação da medida da pena relativa ao crime de detenção de arma proibida, é inadmissível, nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea f), do CPP, na redacção da Lei nº 48/2007.
Não é, pois, admissível o recurso com o alcance de discutir a possibilidade de opção por aplicação da prevista em alternativa pena de multa, afastada pela primeira instância e confirmada pela Relação
Nestas condições a pretensão do recorrente quanto à reapreciação da medida da pena aplicada apenas poderá ser efectuada no que tange ao crime de homicídio simples.
A pena parcelar aplicada pelo crime de detenção de arma proibida manter-se-á, pois.

Da medida da pena do crime de homicídio.

Face ao decidido supra, resta ponderar a medida da pena apenas relativamente ao homicídio, cuja moldura penal se situa entre os 8 e os 16 anos de prisão - artigo 131º, do Código Penal.

No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência dizendo basear-se em posição do Prof. Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20) segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, de que são exemplos os acórdãos de 13-07-1983, BMJ 329, 396; de 15-02-1984, BMJ 334, 274; de 26-04-1984, BMJ 336, 331; de 11-11-1987, BMJ 371, 226; de 19-12-1994, BMJ 342, 233; de 10-01-1987, processo n.º 38627 - 3ª, Tribuna da Justiça, nº 26; de 11-11-1987, BMJ 371, 226; de 11-05-1988, processo n.º 39401 - 3ª, Tribuna da Justiça, nºs 41/42.
Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211.
Posteriormente e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se incorrecta a utilização, na graduação da medida da pena, do ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, o acórdão de 09-06-1993, BMJ 428, 284. Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g., os acórdãos de 21-06-1989, BMJ 388, 245 e de 17-10-1991, BMJ 410, 360.
A refutação daquele critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, nº 6, Junho 1985, págs. 8/9 e Alfredo Gaspar, em anotação ao acórdão de 02-05-1985, in Tribuna da Justiça, nº 7, págs. 11 e 13, dando-se conta em ambos os casos de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o acórdão da Relação de Coimbra de 09-11-1983, CJ 1983, tomo 5, pág. 73.
E no acórdão de 27-02-1991, A. J., nº 15/16, pág. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar.

H. H. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).

A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.

Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40º do CP, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
Está subjacente ao artigo 40º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.
Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o nº 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375º, nº 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368º, e aquela prevista no artigo 369º, com eventual apelo aos artigos 370º e 371º do CPP).
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.

Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.
Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.

Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, págs. 217/8, defende que a questão da determinação da espécie e da medida da sanção criminal redunda numa verdadeira questão de direito.

Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Ainda de acordo com o mesmo Professor, nas Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena.
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.
Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3ª.

Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita nos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97-3ª e de 20-05-1998, processo n.º 370/98-3ª, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e BMJ 477, 124, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”.
Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”.


Versando o caso concreto.

Vejamos se é de manter ou reduzir a pena aplicada pelo homicídio.
O acórdão recorrido, após discretear sobre a hipótese de atenuação especial nos termos supra transcritos, relativamente a medida da pena, pronunciou-se nestes termos: «O circunstancialismo que rodeou a acção a imposição de pena releva, sim - como efectivamente relevou - a nível da determinação da medida da pena, justificando imposição de pena ainda mais próxima do mínimo legal da moldura abstracta, mas não mais do que isso.

Improcederá assim, também neste ponto, o recurso, sendo de manter, por fixada em conformidade com os critérios legais a atender em moldes que revelam uma correcta valoração de todos os factos e circunstancialismos disponíveis a atender, a pena imposta por tal crime, a qual se mostra adequada para prosseguir os fins respectivos, por forma alguma, fixada que foi em medida que pouco se afasta do mínimo legal, se revelando excessiva».

No caso presente é elevado o grau de ilicitude do facto, atenta a gravidade das consequências da conduta do arguido.
A atender o grau de culpa, com pouca intensidade do dolo, na modalidade de eventual. E o modo de execução com utilização de arma de fogo.
A confissão foi integral e sem reservas, mas com referência apenas ao crime de detenção de arma proibida, sendo parcial no que toca aos factos respeitantes ao homicídio, como decorre da acta de audiência de julgamento, da matéria de facto provada e exposição da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
São intensas as necessidades de prevenção geral.
Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - artigo 24º da Constituição da República – estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.
Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.
A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.
Como expende Figueiredo Dias em O sistema sancionatório do Direito Penal Português inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.
Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.
Versando a forte necessidade de prevenção geral no acórdão do STJ, de 17-03-1994, in BMJ 435, 518, dizia-se: pode afirmar-se sem exagero que o homicídio voluntário se banalizou, constituindo, com o tráfico de droga, o tipo de ilícito que este Supremo Tribunal mais vem julgando ultimamente.
Como referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª, a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.
Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.
Está-se face a caso de criminalidade violenta, mediante o recurso a instrumento perigoso, pelo que se impõe uma pena com efeito dissuasor, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral.
No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, a não assunção por completo da sua conduta, invocando ter agido em legítima defesa, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização.
Como refere Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.
E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
Teremos a considerar, para além do quase nulo relevo que assume a condenação em pena de multa por emissão de cheque sem provisão por factos de Novembro de 1995, conforme facto provado n.º19, as condições pessoais do arguido expressas nos factos provados n.ºs 26 a 30.
Nestas condições cremos que será de manter a pena aplicada pelo homicídio, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrido.
Atenta a moldura penal abstracta a ter em conta, de 8 a 16 anos de prisão, a pena de 9 anos de prisão, situando-se muito próximo do limite mínimo, não merece censura.

VI Questão – Medida da pena única

Na conclusão 106ª o recorrente insurge-se contra a medida da pena única.
Esta matéria é nova relativamente ao recurso anterior, de que em muitos passos o presente é mera reprodução.
Refere o recorrente na motivação agora apresentada, a fls. 1824: «Ademais não se compreende o cúmulo jurídico operado pelo tribunal que se resume a uma simples conta aritmética (9+1=10), desvalorizando por completo o artº. 77º n.º 1 do CP», o que foi levado na íntegra à conclusão 106ª.
É referida a pena de um ano de prisão pelo crime de detenção de arma proibida, mas tal deve-se a manifesto lapso, pois que a pena aplicada pelo crime em causa foi efectivamente de um ano e seis meses de prisão e mantida no acórdão recorrido.
O lapso terá a ver com o que consta, erroneamente, da conclusão 99ª, em que se refere 1 ano de prisão, quando efectivamente a pena aplicada e confirmada foi a de 1 ano e 6 meses de prisão, pena parcelar a ter em conta.
A moldura abstracta da pena do concurso é assim de 9 anos a 10 anos e 6 meses de prisão (artigo 77º, n.º 2, do Código Penal).
Considerando os factos supra descritos, a natureza dos bens jurídicos violados, resultando evidente a conexão entre as duas infracções, já que a arma ilegalmente detida foi utilizada como instrumento do crime de homicídio, a forma mitigada de dolo no homicídio, procedendo a uma avaliação da gravidade do ilícito global e a personalidade do arguido, atendendo a que a prática dos factos revela desconformidade aos valores tutelados pelo direito, embora não sendo de reconduzi-la a uma tendência desvaliosa, procedendo-se a uma ponderação da gravidade do ilícito global, afigura-se-nos de aceitar a compressão efectuada de 1/3, que não se mostra desproporcional nem contrária às regras da experiência.
Não tendo razão de ser a crítica expressa na conclusão 106ª, conclui-se pela manutenção da pena única.


VII – Questão – Suspensão da execução da pena

O recorrente defende esta possibilidade no pressuposto necessário de que a pena aplicada o seria num quadro em que previamente vingaria a atenuação especial da pena.
Não tendo obtido provimento essa pretensão, atenta a pena aplicada e o limite máximo suposto para a concessão da pena de substituição, constante do artigo 50º do Código Penal, prejudicada está esta questão.


Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1, do CPP, e artigos 74º, 87º, n.º1, alínea a) e 89º do CCJ, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94º, n.º 2, do CPP.

Lisboa, 12 de Março de 2009

Raúl Borges (Relator)
Fernando Fróis

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1- Vide Rui Patrício, O Dolo enquanto elemento do tipo penal (no direito português actual) questão de facto ou questão de direito, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, 1998, pág. 223 e 224.
2- Idem, Ibidem.
3- Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, pág. 297.
4- Não se repudiando de todo a fórmula de Frank, na sua vertente positiva ainda que com determinados correctivos.
5- (Bold e sublinhados nossos in AC. do STJ de 12-11-86, in BMJ, 361, 244)
6- (AC. do STJ de 16-01-1990, in CJ, 1990, 1, 6)
7- (Ac. STJ 10-12-69 in BMJ nº 192)
8- TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, Vol II., a págs. 214.
9- Tal afirmação também denota desde logo desconhecimento empírico da realidade que hoje se vive, pois grande maioria dos incidentes de agressão e conflito que se verificam durante a noite, sobretudo em estabelecimentos de diversão, são normalmente ocasionados pela ingestão de álcool, que em nada diminui a violência, muito pelo contrário.
10- (Ac. STJ de 06-03-85, BMJ nº 345, pág. 222) É inúmera a jurisprudência nesta matéria, sobretudo no que à provocação injusta diz respeito – V. Ac. Relação de Évora de 04-11-86 BMJ nº 363 pág. 619; Ac. STJ de 13-01-88 BMJ nº 373 pág. 286.
11- (a vítima estava a dois metros quando do último disparo)