Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B436
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: FALÊNCIA
Nº do Documento: SJ20070315004362
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO
Sumário :
1. No âmbito do processo de falência vigora o princípio de que todos os bens que o falido for adquirindo após a declaração de falência, isto é, os bens futuros, revertem para a massa falida, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do liquidatário judicial, automatismo este que é determinado pelo carácter universal do processo falimentar.
2. Não obstante a universalidade do processo falimentar, existem bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, a que há que acrescentar os bens que, segundo a lei substantiva e várias leis avulsas, são inalienáveis e, portanto, impenhoráveis; bens relativamente e parcialmente impenhoráveis e bens só subsidiariamente penhoráveis.
3. Em princípio, os rendimentos auferidos pelo falido não devem estar sujeitos às regras gerais da penhora, maxime, a penhorabilidade de apenas 1/3 dessa quantia e a livre disponibilidade dos restantes 2/3.
4. Há, porém, que conciliar a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do falido e, assim, a parte dos rendimentos (isto é, a parte do 1/3 dos rendimentos) que se revele indispensável à subsistência do falido permanece intocável; a parte que exceda integrará a massa falida, competindo ao juiz, em cada caso concreto, determinar de acordo com o critério de equidade o quantum que ficará sujeito à penhora.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1.
A requerimento do "Banco AA" e por decisão de 18.2.2004, já transitada em julgada, foi declarada a falência dos requeridos BB e CC.
No decurso do processo, o Sr. Juiz proferiu o seguinte despacho, datado de 3.5.2006:
«A ordem de cessação dos descontos nos vencimentos dos falidos dada pelo tribunal, à qual o Sr. Liquidatário Judicial faz referência, foi dada em processo executivo e teve na sua base, precisamente, o facto de ter sido declarada a falência dos devedores, pois que, em face do disposto no art. 154°, n° 3, do CPEREF, a declaração de falência obsta ao prosseguimento de qualquer execução.
Por outro lado, não se ordenou, de forma expressa, a apreensão da parte do vencimento dos falidos passível de apreensão à ordem destes autos, pelo facto de tal apreensão ser da competência do Sr. Liquidatário Judicial (v. art. 175°, nº 1, do referido código).
Precisamente por isso, e não tendo tal apreensão sido concretizada, impõe-se que o seja agora, até porque o vencimento dos executados, na parte legalmente penhorável, deve integrar a massa falida e constituir meio de pagamento dos credores, tal como resulta expressamente do citado art. 175°, nº 1, do CPEREF, e foi, aliás, decidido em recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22 de Fevereiro de 2006 (no processo deste Juízo com o nº124/04.5TBFAF-E).
Ordena-se, assim, que o Sr. Liquidatário diligencie pela apreensão da parte legalmente penhorável dos vencimentos de ambos os executados à ordem destes autos.
Notifique.»

Deste despacho interpuseram os falidos recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 16 de Novembro de 2006, confirmou o despacho recorrido.

Inconformados, e por entenderem que este acórdão está em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.10.2006, proferido no processo nº 1017/13.9TBGRD-F.C1, agravaram para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a respectiva alegação pela seguinte forma:
O acórdão recorrido violou os arts. 150º, nº1; 147º, nº1; 180º, nº2; 238º e 239º do CPEREF, bem como os princípios legais neles insertos que informam o ordenamento jurídico do processo de falência;
Do citado art. 150º, nº1, colhe-se claramente o princípio de que o produto do trabalho do falido está excluído em absoluto do conjunto de bens ou direitos susceptíveis de apreensão em benefício da massa falida;
Na verdade, o regime da falência e/ou da insolvência distingue o produto do trabalho do falido dos meios de garantia patrimonial geral dos credores, e daí a exclusão referida na conclusão anterior;
Também existe uma manifesta distinção entre a penhora em processo executivo e a apreensão dos bens no processo de falência, já que são manifestamente distintas as situações de executado e de falido após a penhora, num caso, e após a declaração de falência, no outro;
Por isso, é meramente aparente o paralelismo existente entre a penhora e a apreensão referidas, paralelismo que não resiste a uma cuidada análise das duas situações, suas causas e seus efeitos;
Aliás, tal princípio tem mesmo corolário lógico no disposto no art. 180º, nº2, do CPEREF, ao fixar um prazo para encerrar o processo com a liquidação do património e do respectivo passivo, e também nos arts. 238º e 239º do mesmo diploma, ao estabelecer o direito à reabilitação do falido;
Assim, de todas estas disposições legais e do referido princípio legal se colhe que os vencimentos dos recorrentes não são susceptíveis de apreensão para a massa falida;
Pelo que, o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação dos acima aludidos normativos e principio geral referido e inserto no nº 1 do art. 150º;
Devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro em que se reconheça não haver, no caso, lugar a tal apreensão e se ordene a restituição aos recorrentes dos descontos entretanto efectuados;
Assim se pondo termo à contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.10.2006, cuja doutrina nele sustentada, e porque correcta, deve ser sufragada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2.
Com interesse para a decisão, consideram-se assentes os seguintes factos:

Foi declarada a falência dos recorrentes por sentença de 18.2.2004.
Nessa data, o recorrente marido trabalhava na Câmara Municipal de Fafe, onde auferia o vencimento mensal ilíquido de € 2.287,28.
Por sua vez, a recorrente mulher trabalhava na Conservatória do Registo Predial de Fafe, auferindo o vencimento ilíquido de € 2.325,27.
Foi proferido despacho, ordenando que o Sr. Liquidatário diligenciasse pela apreensão da parte legalmente penhorável dos vencimentos de ambos os executados à ordem destes autos.
Dá-se por reproduzido o acórdão da Relação de Coimbra, de 24.10.2006, cuja certidão se acha junta a fls…

3. O Direito.
Nas suas conclusões, os recorrentes colocam à apreciação deste Supremo Tribunal as seguintes questões:

O art. 150º do CPEREF impõe que o rendimento auferido pelos falidos pelo seu trabalho dependente não pode ser apreendido e integrar a massa falida;
Existe uma manifesta distinção entre a penhora em processo executivo e a apreensão dos bens no processo de falência;
Tal princípio tem mesmo corolário lógico no disposto no art. 180º, nº2, do CPEREF, ao fixar um prazo para encerrar o processo com a liquidação do património e do respectivo passivo, e também nos arts. 238º e 239º do mesmo diploma, ao estabelecer o direito à reabilitação do falido.

Vejamos, então, cada uma destas questões, as quais, no fundo, se traduzem em saber se é ou não possível a apreensão do produto do trabalho (vencimento/salário) dos falidos após a declaração da falência respectiva, tendo em conta que esta foi decretada ao abrigo do chamado CPEREF.

Nos termos do art. 147º, nº1, do CPEREF, o falido perde o poder de disposição e administração de todos os seus bens actuais e futuros, os quais, a partir da declaração de falência, formam um património separado, adstrito à satisfação dos interesses dos credores.
Trata-se da consagração do princípio da satisfação dos interesses dos credores (maxime do seu pagamento na medida do possível) através da conservação dos bens actuais e futuros do falido (v. Luís B. Correia, Direito Comercial, pag. 159).
No âmbito do processo falencial vigora o princípio de que todos os bens que o falido for adquirindo após a declaração de falência, isto é, os bens futuros, revertem para a massa falida, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do liquidatário judicial, automatismo este que é determinado pelo carácter universal do processo falimentar (cfr. Pedro de Sousa Macedo, in Manual de Direito das Falências, vol. II, pags. 61 e 62).
A principal limitação recai sobre o campo obrigacional e sobre os direitos reais de que o falido seja titular.
A nível do direito das obrigações, “qualquer acto ou facto jurídico para ser fonte de obrigação, inclusive delitos, enriquecimentos indevidos, gestão de negócios, não pode ser praticado pelo falido com eficácia sobre a massa”.
Este princípio de insensibilidade do património a todas as obrigações, independentemente da sua fonte ou natureza, encontra-se consagrado no art. 155º do CPEREF.
Embora o texto legal se refira apenas à responsabilidade contratual, deve estender a sua aplicação a toda e qualquer actividade susceptível de onerar os bens do falido, uma vez que o património do falido deve encontrar-se adstrito à satisfação dos credores concursais, proibindo-se quaisquer comportamentos do falido que ponham em causa esse finalidade.
Quanto aos direitos reais, o falido não perde a sua titularidade, mas apenas (nomeadamente quanto ao direito de propriedade) o direito de fruição, o direito de transformação, o direito de alienação. O direito de restituição e de indemnização, o direito de exclusão e de defesa não podem vigorar no processo falencial (quanto aos bens que integram a massa falida), perdendo o falido, em consequência, a sua legitimidade processual activa e passiva relativamente a eles (v. Maria Rosário Epifânio, Os Efeitos Substantivos da Falência, pags. 113/114).

Porém, o falido não perde o poder de disposição de todo e qualquer bem, já que conserva essas faculdades relativamente aos bens estranhos à falência, ou seja, os bens que não pertencem à massa falida, trate-se dos seus bens ou de bens de terceiro.
Como não fica impedido de praticar todo e qualquer acto jurídico. É o caso, desde logo, de todos os actos de natureza pessoal (tais como o direito de casar, de requerer o divórcio ou a separação de pessoas e bens, etc.) e por actos exclusivamente pessoais devemos entender todos aqueles actos insusceptíveis de prejudicar os credores e, por isso, desprovidos de qualquer conteúdo patrimonial relevante.
Esta solução decorre do citado art. 147º, nº1, na medida em que priva o falido exclusivamente do seu poder de administração e de disposição dos seus bens presentes e futuros, do art. 147º, nº2, resultando, a contrario, que não tem o poder de representação para efeitos pessoais, e dos arts. 132º e ss. (que conferem ao liquidatário judicial a faculdade de praticar actos de administração e de disposição).

Feito este pequeno intróito, é tempo de nos debruçarmos sobre a questão que se nos coloca e que ficou enunciada.

Prescreve o nº1 do art. 150º do CPEREF que «Se o falido ou, no caso de sociedades ou pessoas colectivas, os seus administradores carecerem absolutamente de meios de subsistência, e os não puderem angariar pelo seu trabalho, pode o liquidatário, com o acordo da comissão de credores, arbitrar-lhes um subsídio a título de alimentos à custa dos rendimentos da massa falida».

Os recorrentes ancoram a sua posição, fundamentalmente, neste normativo legal, partindo do mesmo para sustentar que existe uma manifesta distinção entre a penhora em processo executivo e a apreensão dos bens no processo de falência, impondo o preceito em enfoque que o rendimento auferido pelos falidos pelo seu trabalho dependente não pode ser apreendido e integrar a massa falida.

Não podemos concordar com esta asserção.
Com efeito, do mesmo não decorre que os rendimentos do trabalho não sejam susceptíveis de apreensão.
Nem se diga que a solução encontrada contende com o disposto no art. 180º do CPEREF, como decorre do disposto nos arts. 186, nº2 e 203º, ou com os arts. 238º e 239º do mesmo diploma legal, já que, como refere o aresto impugnado, outras circunstâncias, que não apenas o pagamento integral dos créditos ou o decurso de cinco anos sobre o trânsito da decisão que tiver apreciado as contas finais do liquidatário, concorrem para a reabilitação do falido.

Acresce que a identificação dos bens do falido que não integram a massa falida resulta da aplicação de três preceitos fundamentais: o art. 601º do C.Civil, o art. 175º do CPEREF e o art. 821º do CPC.
O primeiro destes preceitos consagra o princípio de que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora”. O art. 175º do CPEREF preceitua que só os bens susceptíveis de penhora podem ser apreendidos, “ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (…) com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social” (nº1), e que os bens não susceptíveis de penhora só podem ser aprendidos se o falido “voluntariamente os apresentar” (nº2), sendo que a integração voluntária na massa falida dos bens insusceptíveis de penhora é irreversível. Finalmente, nos termos do art. 821º, nº1, do CPC, “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda” e, por força do princípio de que todo o património do devedor responde pelas suas dívidas, são penhoráveis não só os bens imóveis (arts. 838º a 847º do CPC), como também os móveis (arts. 848º a 854º do CPC) a que são subsidiariamente aplicáveis as normas de penhora de imóveis (arts. 855º e 963º) e os direitos (arts. 856º a 860º do CPC) de que se destaca, pela sua frequência e importância prática, a penhora de créditos (arts 856º a 860º), de estabelecimento comercial (art. 862-A) e a penhora de depósitos bancários (art. 861º-A) - v. Maria Rosário Epifânio, ob. cit., pags. 117/120.

Não obstante a universalidade do processo falencial, existem bens absoluta ou totalmente impenhoráveis – arts. 822º do CPC e 601º do C.Civil – a que há que acrescentar os bens que, segundo a lei substantiva e várias leis avulsas, são inalienáveis e, portanto, impenhoráveis; bens relativamente (art. 823º do CPC) e parcialmente impenhoráveis (art. 824º do CPC) e bens só subsidiariamente penhoráveis (arts. 827º e 828º do CPC).
Os bens absolutamente impenhoráveis são aqueles que, de todo em todo, não podem ser penhorados, enquanto os bens relativamente impenhoráveis são susceptíveis de penhora em determinadas circunstâncias ou para certas dívidas (v. Lebre de Freitas, in A Acção Executiva (À Luz do Código Revisto), 2ª ed., 1997, pag.179).
Os bens totalmente penhoráveis correspondem aos bens absolutamente impenhoráveis, enquanto que os bens parcialmente penhoráveis caracterizam-se pelo facto de o legislador só admitir a penhorabilidade de uma parte do bem ou dos bens de determinada natureza (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Civil Executivo – Acção executiva Singular, Comum e Especial, pag. 176). É o caso da penhorabilidade de 1/3 dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado (art. 824º, nº1, al. a), do CPC) ou da penhorabilidade de apenas 1/3 das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante (al.b).

Apesar disso, e de acordo com o revogado art. 1189, nº2, do CPC, do regime falencial anterior, ao falido era «lícito, em qualquer caso, adquirir pelo seu trabalho meios de subsistência»; tratava-se da consagração do direito fundamental do falido ao trabalho (cfr. Pedro Sousa Macedo, ob. e loc. citados).
Não obstante a lei em vigor não consagrar preceito equivalente, entendemos que deve manter a sua vigência plena, em homenagem à ideia presente no CPC (arts. 822º, al. f), 823º, nº2 e 824º, aplicáveis em virtude da remissão implícita contida nos arts. 175º e 148º, nº2, do CPEREF de que, respectivamente, alguns bens não podem ser objecto do processo de falência por motivos de humanidade e algumas actividades não podem ser proibidas ao falido, quando estão em causa razões de humanidade. (v. ob. cit. de Maria do Rosário Epifânio, pag. 116).

Chegados aqui, importa tomar posição sobre a questão nuclear do recurso: saber se a remuneração auferida pelo falido, nos termos dos arts. 134º, nº3, 148º, nº2, ou do princípio geral de que o falido pode adquirir pelo seu trabalho meios de subsistência está sujeita às regras gerais da penhora, maxime a penhorabilidade de apenas 1/3 dessa quantia (art. 824º, nº1, al. a), do CPC) e a livre disponibilidade dos restantes 2/3.
Em princípio, os rendimentos auferidos não devem estar sujeitos a esta regra, porque, por um lado, tal constituiria um desincentivo ao exercício de qualquer actividade profissional pelo falido, que se encontraria sob a ameaça do desconto de um terço do seu valor e, por outro lado, razões de humanidade impedem a aplicação desta solução geral do direito processual civil executivo nos casos em que esses rendimentos sejam necessários para a sua subsistência e do seu agregado.
Há, porém, que conciliar a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do falido e, assim, a parte dos rendimentos (isto é, a parte do 1/3 dos rendimentos) que se revele indispensável à subsistência do falido permanece intocável; a parte que exceda integrará a massa falida, competindo ao juiz, em cada caso concreto, determinar de acordo com o critério de equidade o quantum que ficará sujeito à penhora, questão esta, porém, que está fora do objecto do recurso (v. Pedro Sousa Macedo e Maria do Rosário Epifânio, obs. e locs. cits.).
Veja-se, aliás, que, após a revisão do C.P.Civil, foram atribuídos ao juiz amplos poderes no âmbito do art. 824º, nº4, nomeadamente a faculdade de isentar de penhora os bens parcialmente penhoráveis, atendendo às necessidades do executado e do seu agregado familiar.

4.
Face ao exposto, decide-se negar provimento ao agravo.
Custas pelos agravantes.

Lisboa, 15 Março de 2007

Oliveira Rocha (relator)
Oliveira Vasconcelos
Duarte Soares