Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
137/11.0TBALD.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TAVARES DE PAIVA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE GRUPO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
DEVER DE INFORMAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
CAÇA
Data do Acordão: 03/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATO DE SEGURO.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO DE GRUPO / RAMO VIDA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 2013, p. 731.
- Antunes Varela, in R.L.J., Ano 123, p.58, nota 2.
- Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudo de Direito Civil, 2010, pp. 861/862.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição.
- Vaz Serra, in R.L.J., Ano 108, p.352.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.ºS1 E 2, 238.º, N.º1, 280.º, 349.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 426.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NCPC (2013): - ARTIGOS 5.º, N.º1, 572.º, 607.º, N.º4, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, AL. D), 639.º, 662.º, N.º2, 663.º, N.º 2, 666.º, N.º 1, 684.º, N.º1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 127.º, N.º1.
D.L. N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO, NA REDACÇÃO DADA PELO D.L. N.º 249/99, DE 07 DE JULHO.
D.L. N.º 446/85, DE 25-10, ALTERADO PELOS D.L. N.º 220/95, DE 31-08, D.L. N.º 249/99, DE 07-07 E D.L. N.º 323/91, DE 17-12: - ARTIGOS 5.º E 6.º, 11.º, N.º2, 14.º, N.º1, AL. A), E N.º3.
D.L. N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO: - ARTIGO 19.º, AL. C).
D.L. N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL (REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO): - ARTIGOS 2.º, N.º1 E 3.º, N.ºS 1 E 5, 6.º, N.º 1, AL. E), 7.º, 78.º.
LEI N.º 173/99, DE 21 DE SETEMBRO (LEI DA CAÇA): - ARTIGO 29.º.
LEI N.º 5/2006, DE 23.02, NA REDACÇÃO DADA PELA LEI N.º17/2009, DE 06 DE MAIO (REGIME DAS ARMAS E MUNIÇÕES): - ARTIGO 88.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

-DE 27 DE MAIO DE 2015, PROCESSO N.º 36/2.9.TBALD.C1, IN WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11 DE NOVEMBRO DE 1992, PROCESSO N.º 003424, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 2 DE DEZEMBRO DE 2003, REVISTA N.º 34/11.0TBPNI.L1.S1.
-DE 22 DE JANEIRO DE 2009 (PROC. Nº 08B40491), DE 20 DE JANEIRO DE 2010 (PROC. Nº 294/06.8TBOAZ.P1), DE 11 DE MARÇO DE 2010 (PROC. Nº 806/05.4TBBJA.E1.S1), DE 17 DE JUNHO DE 2010 (PROC. 651/04.4TBETR.P1.S1), DE 12 DE OUTUBRO DE 2010 (PROC. Nº 646/05.0TBAMR.G1.S1), DE 11 DE NOVEMBRO DE 2010 (PROC. Nº 2284/08.7TVLSB.L1), DE 13 DE JANEIRO DE 2011 (PROC. Nº 1443/04.6TBGDM.P1.S1), DE 29 DE MARÇO DE 2011 (PROC. Nº 1295/04.6TBMFR), DE 28 DE FEVEREIRO DE 2012 (PROC. Nº 175/10.0TBCHV.P1.S1), DE 29 DE MAIO DE 2012 (PROC. Nº 7615/06.1TBVNG.P1.S1), DE 21 DE FEVEREIRO DE 2013 (PROC. Nº 267710.6TBBCL.G1.S1), DE 25 DE JUNHO DE 2013 (PROC. Nº 24/10.0TBVNG.P1.S1), DE 27 DE MARÇO DE 2014 (PROC. Nº 2971/12.5TBBRG.G1.S1), DE 9 DE JULHO DE 2014 (PROC. Nº 841/10.0TVPRT.L1.S1), DE 18 DE SETEMBRO DE 2014 (PROC. Nº 2334/10.7TBCDM.P1.S1), DE 11 DE FEVEREIRO DE 2015 (PROC. Nº 2045/08.3TBFAF.G2.S1), DE 15 DE ABRIL DE 2015 (PROC. Nº 385/12.6TBBRG.G1.S1), CONSULTÁVEIS IN WWW.DGSI.PT .
-DE 2 DE SETEMBRO DE 2010, PROC. Nº 1017/07.0TVLSB.L1.S1.
Sumário :
I - Incorre em excesso de pronúncia, previsto no art. 615.º, n.º 1, al. d), parte final, do NCPC (2013), o acórdão da Relação que rejeita liminarmente reapreciar a matéria de facto e, após, oficiosamente, decide desconsiderar um facto provado, enunciado, por presunção judicial, na sentença de 1.ª instância.

II - Num seguro de grupo, não está vedado à seguradora opor ao segurado e aos beneficiários uma cláusula de exclusão do risco, no caso de a omissão do dever de informação e esclarecimento junto dos segurados ser exclusivamente imputável ao tomador de seguro.

III - A cláusula de exclusão da cobertura do seguro com a redacção “acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas litro” deve ser interpretada como definindo o seu âmbito de exclusão não por referência a um qualquer nexo de causalidade, mas sim por referência ao volume de alcoolemia detectado à pessoa segura aquando do sinistro.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




 I - Relatório


AA e BB intentaram a presente acção contra a Companhia de Seguros CC, S.A. pedindo que:

A Ré seja condenada a pagar aos autores o montante de € 100.670,02, correspondente à garantia principal e complementar do seguro, acrescida dos juros vencidos no montante de € 3.300,00 e juros vincendos até integral pagamento;

Seja a Ré condenada a restituir aos autores o valor dos prémios seguros pagos após a morte de DD e respectivos juros à taxa legal em vigor.


Alegam, para tanto, que a autora e o seu falecido marido, funcionário da Caixa Geral de Depósitos, aderiram aos seguros do ramo vida grupo, subscrevendo para tanto a respectiva apólice, tendo a seguradora aqui ré garantido o pagamento do capital seguro em caso de morte ou invalidez permanente de qualquer dos segurados e figurando como tomador do seguro os Serviços Sociais da CGD.

Mais alegam que tal seguro é de adesão facultativa e que sempre procederam ao pagamento do respectivo prémio.

Acrescentam que o DD faleceu num acidente de caça, ocorrido dia 17 de Outubro de 2010, sendo o montante seguro, em tal data, de € 50 335,01, existindo, ainda, a garantia complementar de morte por acidente de igual montante e sendo válido o contrato de seguro em causa.

Todavia, tendo sido solicitado pela autora o resgate da quantia segurada, a ré informou que não iria proceder ao respectivo pagamento, não tendo, no entanto, qualquer fundamento legal para tal recusa, não existindo qualquer cláusula de exclusão.

Alegam, ainda, que nunca lhes foi comunicada qualquer alteração às condições da apólice e, por outro lado, que a morte do falecido não ocorreu por alcoolismo.

Concluem pela procedência da acção e requerem a intervenção provocada dos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, como associada dos autores, dado que no contrato de seguro corresponde à apólice 5.000.449, figura como tomador do seguro.


A Ré veio contestar a presente acção, por excepção, sustentando, desde logo, que tendo em conta a análise toxicológica feita ao sangue do sinistrado, que revelou uma TAS de 1,48 g/l, encontra-se a cobertura por morte excluída do âmbito do contrato de seguro em causa, não sendo, por esse motivo, a ré responsável pelo pagamento das quantias peticionadas.

Isto porque, contrariamente ao alegado pelos autores, nas condições particulares da apólice se refere, para além do mais, que o contrato se regula pelas “Condições Gerais do Seguro de Vida Grupo” e pelas condições particulares da apólice, e que as Condições Gerais excluem a garantia pretendida.

Acrescentam que por força da entrada em vigor do novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovada pelo DL 72/2008 de 16 de Abril, a ré informou, nos termos e para os efeitos do respectivo artigo 3º nº 2 2ª parte e artigo 186º, a tomadora do seguro da actualização das condições contratuais aplicáveis à apólice a partir da renovação subsequente, sendo do tomador do seguro a obrigação de informar os segurados sobre as coberturas contratadas e suas exclusões, nos termos do artigo 78º do citado diploma.

Nenhuma falta pode ser imputada à ré, que cumpriu todos os deveres de informação e todas as suas obrigações.

Mais alega que o falecido, ao caçar com a taxa de álcool apresentada, tal determinava que não estivesse no gozo das suas capacidades, nem em condições de o fazer com destreza e segurança, pelo que foi a taxa de álcool que pôs em perigo, no caso, a sua vida e provocou a sua morte.

Por outro lado, alega, ainda, que mesmo que se entendesse não ter sido feita a comunicação da alteração, como pretendem os autores, a mesma não era, sequer, necessária, na medida em que sempre estaria excluída a responsabilidade, sob pena de nulidade da cláusula que previsse a mesma por nulidades, por força do artigo 280 do CC, na medida em que seria proibido segurar um acto criminoso, uma vez que o falecido, tendo uma TAS de mais de 1,2 g/l, procedia ao exercício da caça, transportando consigo uma arma.

Impugna o demais alegado pelos autores e conclui pela improcedência da acção.

 

A autora veio apresentar réplica, alegando que nem a ré, nem a tomadora do seguro informaram os autores ou o falecido de qualquer alteração contratual do contrato de seguro em causa.

No que respeita às circunstâncias da morte, referem que não é verdade que tenha sido vitima de tiro da sua própria arma e que não tenha existido intervenção de terceiro, ou seja, que a morte ocorreu por acção ou omissão do próprio e, muito menos, que tenha sido provocada por alcoolismo.

Conclui pela improcedência das excepções invocadas pela ré e, quanto ao mais, como na petição inicial.

 

Foi admitida a intervenção principal provocada dos “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, S.A” como associada dos autores.


Com dispensa de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, bem como despacho a identificar o objecto do litígio e os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, após o que foi proferida a sentença de fls. 664 a 748, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final se julgou a presente acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da ré do pedido, ficando as custas a cargo dos autores, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhes foi concedido.


Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores para o Tribunal da Relação de Coimbra que, pelo Acórdão de fls.866 a 881 revogou a sentença recorrida e condenou a Ré no pedido.


        Inconformada a Ré interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal.


       Nas suas alegações de recurso formula as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que, revogando a decisão do Tribunal de 1 a Instância, condenou a R./ora recorrida no pedido;

B) Em concreto, não se conforma a recorrente com a decisão do Venerando Tribunal da Relação relativa à impossibilidade de "extrair da matéria de facto provada que o sinistro ocorrido esteja excluído do âmbito das coberturas do seguro accionado pelos Autores";

C) Também não concorda a recorrente com o entendimento, plasmado no (aliás douto) acórdão recorrido, segundo o qual" não é pelo facto de a vítima ser portadora da referida taxa de alcoolemia que o seguro fica excluído, com fundamento no disposto no artigo 14. o, n. o 1, aI. a), da Lei do Contrato de Seguro";

D) Por razões de simplificação e economia processuais, dão-se por integralmente reproduzidos os factos provados enumerados, em 4. supra; do mesmo modo e pela mesma razão,

E) Dá-se por integralmente reproduzido o entendimento do Tribunal de 1ª Instância exposto em 5. a 7. supra;

F) Com o devido respeito, o Tribunal ad quem conheceu de questões que não foram colocadas pelas partes e que também não são de conhecimento oficioso; na verdade,

G) Depois de responder às questões colocadas pelos apelantes, a Relação foi mais longe, pronunciando-se, sem que tal tivesse sido alegado nem sequer posto em crise, pelos AA, no recurso, sobre se houve ou não uma acção ou omissão por parte do falecido; por isso e salvo melhor opinião,

H) Considerando que os ora recorridos nunca defenderam, na respectiva apelação, não ter sido a vítima dar causa (por acção ou omissão) à sua própria morte, mas que, apesar disso, o Tribunal da Relação se pronunciou sobre tal facto não controvertido, padece o acórdão recorrido da nulidade prevista no artigo 615°, nº 1, alínea d) - parte final, do Código de Processo Civil, uma vez que - repetindo - os Venerandos Juízes Desembargadores se pronunciaram sobre questões de que não podiam tomar conhecimento; sem prescindir,

I) Se é certo que não foram (como não podiam ser, dado que ninguém assistiu ao sinistro) apuradas todas as circunstâncias da morte, nada impede que o julgador, apreciando criticamente os factos relevantes (provados e não provados), os relacione e confronte e, levando em conta a forma como o evento (nesta caso, a morte) ocorreu e face à inexistência de outra explicação razoável, conclua, como fez nos presentes autos, que a mesma foi causada (por acção ou omissão) pela vítima; trata-se de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º Código Civil); ora,

J) Dos factos provados e não provados resulta, sem dúvida razoável, que foi a vítima quem deu causa à sua própria morte; com efeito,

K) Ninguém mais teve intervenção na morte descrita, encontrando-se a vítima sozinha no momento do disparo, disparo esse efectuado, a curta distância ou mesmo encostado à pele, pela caçadeira que o falecido trazia consigo;

L) Obviamente, tendo sido a arma que o único interveniente no sinistro transportava consigo a disparar o tiro mortal (de resto e repetindo, a escassos centímetros ou mesmo encostado à respectiva pele e sem a intervenção de terceiros) e inexistindo qualquer outro facto indicativo de uma causa explicativa e alternativa para a morte, tal só pode traduzir-se numa acção ou omissão sua, ao disparar ou permitir que a arma que transportava disparasse sobre a sua cabeça, assim lhe provocando a morte;

M) Os factos efectivamente provados - designadamente no que concerne ao modo como a vítima faleceu - analisados global e criticamente e conjugados entre si e com os factos não provados, só permitem concluir (salvo melhor opinião) que a morte resultou de acção ou omissão do sinistrado; de resto,

N) Num caso concreto em que uma pessoa morre, encontrando-se nesse momento sozinha, não tendo havido intervenção de terceiros e em que os factos alegados e provados demonstram que foi a arma que trazia que - disparada a curta distância ou mesmo junto à pele lhe provocou a morte, exigir um conhecimento tão pormenorizado do modo como o disparo foi realizado - como parece fazer o Tribunal da Relação - sempre configuraria uma situação em que estaria a impor-se a chamada "prova diabólica", nunca sendo possível, nesse caso, comprovar quem deu causa ao sinistro; acresce que, de qualquer modo e ainda que assim se não entendesse (o que não se admite),

O) Caçar e transportar uma arma com a taxa de alcoolemia apresentada pela vítima (1,48 gll), em face do disposto no artigo 88° da lei das Armas e do artigo 29° da Lei da Caça, consubstancia, em Portugal, acto criminoso, sendo certo que é crime (nos termos dos citados preceitos legais) caçar e deter armas com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l; de facto e como bem focou a Meritíssima Juiz do (então) Tribunal Judicial de Almeida,

P) Sendo o contrato de seguro aquele pelo qual a seguradora, mediante retribuição, se obriga, a favor do segurado ou de um terceiro beneficiário, a determinada indemnização ou pagamento de um valor pré-definido, em função da realização de um determinado evento futuro e incerto cujo risco assume, é evidente que apenas se pode atender aos riscos legalmente seguráveis, não se podendo assumir riscos contrários à ordem pública;

Q) Deverá, pois, concluir-se que as pretendidas coberturas estão excluídas do âmbito dos contratos de seguro em discussão nos autos, não sendo a R./ora recorrente responsável pelo pagamento das quantias peticionadas pelos AA./ora recorridos.


Termos em que deve ser concedida a peticionada revista, revogando-se o douto Acórdão recorrido e absolvendo-se, como na sentença da 1ª instância, a R. (ora recorrente) do pedido, assim se fazendo.


 Não foram apresentadas contra- alegações.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


 II- Fundamentação:


Factos provados:

1.A autora AA casou catolicamente com DD em 11 de Agosto de 1979, sem convenção antenupcial.

2. Do casamento da Autora atrás referido, nasceram os filhos BB, maior de idade e EE, menor de idade.

3. O casamento entre a Autora e DD foi dissolvido por morte deste, ocorrida em 17/10/2010.

4. DD faleceu em 17 de Outubro de 2010, com 53 anos de idade.

5. O falecido DD foi funcionário da Caixa Geral de Depósitos desde data não concretamente apurada, mas, pelo menos desde 1991, até à data do seu óbito.

6. Entre os “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos”, como segurado e a aqui ré, na qualidade de seguradora, foi celebrado o denominado de “Ramo de Vida-Seguros de Grupo”, em 3 de Maio de 1990, constando do mesmo que as pessoas seguras são os empregados da segurada e respectivos cônjuges, que satisfaçam as condições definidas no artigo 2º das Condições Especiais da Cobertura Principal.

7. Nos termos de tal contrato, o mesmo tem início às zero horas do dia 1 de Janeiro de 1990, sendo o dia 1 de Janeiro de cada ano a data aniversário para a sua renovação.

8. Na qualidade de funcionário da Caixa Geral de Depósitos, o falecido DD subscreveu a apólice nº ...49, da ré Companhia de Seguros CC, de seguro denominado de “Ramo Vida-Seguros de Grupo”, juntamente com a sua esposa, aqui autora AA.

9. No contrato de seguro atrás referido, figura como seguradora a ré Companhia de Seguros CC, S.A., como tomador do seguro, os “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos” e como pessoas seguras a autora AA e o seu falecido marido DD.

10. Tal seguro cobre o risco de morte e de invalidez, garantindo o pagamento do capital seguro em caso de morte ou invalidez.

11. O capital seguro para as garantias de morte ou de invalidez incluídas neste contrato corresponde a 100% do valor do capital seguro.

12. Tal seguro, correspondente à apólice nº …49, tinha um capital seguro no valor de € 33 556,64, figurando como beneficiária a aqui autora AA, em caso de vida, e em caso de morte o seu falecido marido, DD e o filho de ambos, também aqui autor, BB; e ainda o capital seguro de € 50 333,01, do qual era beneficiário o falecido DD, em caso de vida deste e, em caso de morte, os aqui autores AA e BB.

13. A ré obrigou-se perante tal contrato a pagar aos beneficiários o capital seguro, o qual poderia ser correspondente a um, dois ou três capitais consoante o tipo de risco que se viesse a verificar, sendo que a garantia de morte por acidente corresponde, nos termos de tal contrato, a dois capitais.

14. O falecido DD e a autora procederam à adesão ao referido seguro, tendo a sua adesão sido aceite pela ré Companhia de Seguros CC, respectivamente em 01/07/1991 e 01/10/1991.

15. No termos do mesmo acordo, em caso de morte ou invalidez total e permanente de cada pessoa segura, são beneficiários as pessoas designadas no respectivo Boletim de Participante, ou na falta destas, os herdeiros legais da pessoa segura em caso de morte, e a pessoa segura em caso de Invalidez.

16. A constituição da apólice …49 é de adesão facultativa, podendo aderir à mesma os funcionários da CGD, e data de 01/01/1990, vigorando pelo período de um ano e seguintes, renovável anualmente em 1 de Janeiro.

17. Com a subscrição ou adesão ao contrato de seguro em questão, a autora e o DD ficaram obrigados a pagar o prémio relativo a esse seguro, o que sempre foi feito pontualmente.

18. Nas Condições Gerais do Contrato, na apólice primitiva, no que respeita à cobertura principal, no capítulo de Exclusões, do artigo 4º, nº 1, constava que:

1 – Os riscos de morte ou de invalidez não se consideram cobertos quando devidos a:

a) Acto intencional do Segurado, das pessoas seguras ou dos beneficiários.

b) Suicídio de qualquer das pessoas seguras ou sua tentativa, desde que verificado até dois anos após a inclusão no contrato. Sendo ampliadas as garantias, o prazo de dois anos será, no que se refere à ampliação, contado a partir da alteração introduzida. Se houver interrupção da cobertura este prazo é contado a partir da última integração.

c) Operações de campanha quando a pessoa segura, fazendo parte das forças armadas ou militarizadas, nelas entrar.

d) Desastre de aviação, salvo sendo a pessoa segura passageiro de avião de carreira comercial ou em avião militar de transporte de passageiros, desde que munidos de certificado de navegabilidade válido.

19. Nas condições especiais da cobertura principal do contrato, na apólice primitiva, não constavam quaisquer cláusulas de exclusão de responsabilidade.

20. Nas condições especiais da cobertura complementar de morte por acidente constava inicialmente, no seu artigo 3º o seguinte: “Exclusões – Além das exclusões referidas no artigo 4º da Condições Gerais, fica ainda excluído o risco de morte resultante de: (...) 2. Acções da pessoa segura originadas por alcoolismo ou uso de estupefacientes, salvo neste último caso quando prescritos por médico (…).

21. A Seguros CC comunicou, por escrito, à Caixa Geral de Depósitos, S.A., em 30.10.2009, a actualização das condições contratuais supra referidas, fazendo constar em tal carta: “Assunto: Apólice …49-Ramo Vida Grupo-Actualização das Condições Contratuais aplicáveis nos termos e para os efeitos previstos no artigo 3º nº 2 do DL 72/2008 de 16 de Abril. Exmos. Srs. No passado dia 1 de Janeiro do corrente ano entrou em vigor o novo regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto Lei 72/2008 de 16 de Abril. Com vista à aplicação plena das disposições do mencionado regime ao contrato de seguro titulado pela apólice em epígrafe, remetemos a V. Exa nos termos e para os efeitos previstos no artigo 3º nº 2 do diploma em causa, as condições contratuais que serão aplicáveis a partir da próxima renovação à apólice supra-identificada (…)”.

22. A ré “Seguros CC”, enquanto seguradora e os “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, enquanto tomador do seguro, subscreveram, em 30.10.2009, a denominada de “Acta Adicional nº 1/2009”, referente á apólice …49, da qual consta o seguinte: “Com vista á aplicação plena das disposições do novo regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo DL 72/2008 de 16 de Abril procedemos à actualização das condições contratuais.

Pela presente acta adicional passam a vigorar as Condições Gerias e Particulares em anexo que anulam ou substituem as anteriores com efeito a partir das datas a seguir mencionadas:

01/01/2009 para adesões com data de início a partir de 01/01/2009

01/01/2010 para adesões com data de início anterior a 01/01/2009.

Anexa-se igualmente um espécime da Nota Informativa em vigor por forma a permitir o cumprimento por parte do tomador de Seguro do dever de informação aos aderentes que lhe cabe por força do artigo 78º do Decreto Lei supra referido.

Esta acta é redigida, assinada e trocada entre as partes.

Lisboa 30 de Outubro de 2009

O Tomador do Seguro O Segurador

(assinado) (assinado)

23. Foram subscritas pela interveniente “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos”, na qualidade de tomador do seguro e pela ré na qualidade de seguradora, em 30 de Outubro de 2009, as denominadas “Condições Particulares do Seguro de Vida Grupo- apólice …49” (“novas” condições contratuais), do qual constam as seguintes cláusulas:

É celebrado o presente contrato de Seguro Vida Grupo, 100% contributivo, que se regula pelas Condições Gerais do Seguro de Vida Grupo-Temporário Renovável e por estas Condições Particulares da apólice de harmonia com as declarações constantes da proposta que lhe serviu de base e que dela faz parte integrante.

1º- O presente contrato de seguro cobre os riscos de morte e invalidez garantindo o pagamento ao beneficiário designado do capital seguro em caso de morte ou invalidez.

2º São pessoas seguras os colaboradores e respectivos cônjuges desde que satisfaçam as seguintes condições: (…)

3º Em caso de morte ou invalidez total e permanente de cada pessoa segura são beneficiárias as pessoas designadas no respectivo Boletim de Participante, ou na falta destas, os herdeiros legais da pessoas segura em caso de morte, e a pessoa segura, em caso de invalidez.

4º O que está coberto: 1. O contrato de seguro abrange as seguintes garantias:

a) Garantia principal – morte por doença ou acidente

b) Garanta Complementar- morte por acidente.

A garantia corresponde a um capital adicional de 100% do capital seguro(…)

Capital seguro:

O capital seguro para as garantias de morte ou invalidez incluídas neste contrato corresponde a 100% do valor do capital seguro informado ao Segurador no início do contrato. O prémio será calculado sobre o capital seguro de cada cobertura (…).

24. Para os “Seguros de Vida Grupo-Temporário Anual Renovável (Apólice …49)”, a ré “CC - Companhia de Seguros” e os “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos” acordaram em proceder à alteração das condições contratuais, passando a constar, para além do mais, nas Condições Gerais, as exclusões aplicáveis a todas as coberturas, nos seguintes termos:

“(…) 5.1 Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações:

a) Acções ou omissões dolosas ou grosseiramente negligentes praticadas pela pessoa segura, tomador do seguro ou beneficiários, bem como por aqueles pelos quais sejam civilmente responsáveis;

b) Acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse consume de produtos tóxicos, estupefacientes e outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas litro.

(…)

5.3 Estão igualmente excluídos, de todas as coberturas complementares, salvo convenção em contrário, constante das condições particulares ou do certificado de adesão, os sinistros devidos a:

a (…)

b. Suicídio ou tentativa de suicídio.(…)

25. A ré informou o tomador do seguro, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, da actualização das condições contratuais aplicáveis à apólice nº …49 por força da entrada em vigor do DL 78/2008 de 16 de Abril, a partir da renovação subsequente.

26. A ré informou o tomador do seguro de alterações relativamente a informações prestadas aquando da celebração do contrato, que possam ter influenciado na sua execução.

27. A seguradora aqui ré não informou DD (nem a sua mulher) de qualquer alteração contratual no contrato de seguro.

28. No dia 17 de Outubro de 2010, cerca das 10 horas e 50 minutos, no …, Almeida, o DD foi encontrado já cadáver por FF.

29. DD foi vítima de um acidente quando caçava.

30. Do relatório da autópsia, que foi efectuado no dia 1 de Março de 2011 no Gabinete Médico Legal da Guarda, consta o seguinte: “No dia 17/10/2010, cerca das 10 horas e 50 minutos foi comunicado a esta polícia que apareceu morto numa zona rural de caça – Quinta do … no Concelho de Almeida. Caçava com um amigo de longa data, o qual ia uns metros à frente e sentiu um disparo, tendo entre voltado para trás encontrado o seu amigo já sem vida, com a caçadeira junto ao corpo e com ferimento na cabeça resultante do disparo antes ouvido. Na sala de autópsia foi feita pela Polícia Judiciária, recolha de pólvora e metais nas mãos (…).

(…) O presente caso de autópsia revelou lesões traumáticas craneo-meningo-encefálicas, produzidas por arma de fogo (tiro de caçadeira) com um orifício de entrada na transição da região occipito-temporo-parietal direita. Face às características das lesões traumáticas a morte terá ocorrido de forma imediata. A direcção seguida pelo tiro foi de baixo para cima e da direita para a esquerda. As lesões cutâneas observadas (queimaduras da pele e de negro de fumo) denotam que os canos da caçadeira estiveram em contacto com a zona atingida pelo disparo.

No caso em apreço é de salientar que foi atingida região que aloja órgãos essenciais à vida, por projéctil de arma de fogo plenamente adequado a produzir as lesões mortais (…)

31. As conclusões do mesmo relatório da autópsia são as seguintes:

1ª - A morte de DD foi devida às lesões traumáticas crâniomeningo- encefálicas.

2ª - Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte.

3ª - Estas lesões traumáticas são compatíveis com as produzidas por tiro de arma de fogo de cano longo.

4ª - O trajecto seguido pelo projéctil foi de baixo para cima e da direita para a esquerda e de trás para a frente.

5ª - Médico-legalmente nada se opõe à etiologia de acidente referida na informação.

6ª Foram encontrados sinais de disparo a curta distância.

7ª A análise toxicológica feita ao sangue revelou uma taxa de alcoolemia que era de 1,48 gramas por litro no momento da morte.

8ª - As restantes análises toxicológicas não revelaram a presença das restantes substancias pesquisadas.”

32. A Polícia Judiciária participou esta ocorrência ao Ministério Público da Comarca de Almeida, tendo sido aberto inquérito que ali correu termos sob o nº 213/10.7JAGRD, no qual foi proferida decisão de arquivamento dos autos nos termos do nº 2 do artigo 277 do Código de Processo Penal, com o fundamento no facto de a factualidade apurada ser insusceptível de consubstanciar a prática de qualquer ilícito criminal.

33. No despacho de arquivamento atrás referido consta: “(…) Ora, tendo em conta os factos apurados, designadamente através do relatório fotográfico, os documentos juntos, as declarações das testemunhas e a autópsia médico-legal, não havendo nos Autos outros dados que o infirmem, tudo aponta no sentido de que o falecido DD tenha sofrido um acidente com a sua própria caçadeira, sem intervenção de terceiros, tendo sido esta a causa da sua morte …Nestes termos, observa-se que não existe qualquer ilícito que leve à suspeita de que a morte de DD se tenha ficado a dever a qualquer intervenção de terceiros, à prática de qualquer crime, concluindo-se, isso sim, que a mesma se terá devido a acidente”.

34. DD faleceu na sequência de um tiro de arma de fogo de cano longo tipo caçadeira.

35. O trajecto seguido pelo projéctil que provocou a morte de DD, foi de baixo para cima, da direita para a esquerda e de trás para a frente, tendo sido disparado a curta distância.

36. Os canos da caçadeira estiveram em contacto com a zona atingida pelo disparo.

37. O tiro que provocou a morte de DD foi disparado pela caçadeira que DD trazia consigo, sem qualquer intervenção de terceiro.

38. No momento da sua morte o DD tinha uma taxa de alcoolémia no sangue de 1,48 g/l.

39. A taxa de álcool de 1,48 g/l, de que o falecido era portador, reduz a capacidade de vigilância, diminui a acuidade visual, estreita o campo visual e diminui os reflexos, aumentando o risco de sinistro na actividade da caça, com a utilização de armas.

40. Tal taxa afecta, no cérebro e no cerebelo, as capacidades cognitivas de antecipação, previsão e decisão e as capacidades perceptivas, nomeadamente visuais e de equilíbrio, assim como as capacidades de resposta motora.

41. DD, em face da taxa de alcoolemia que apresentava, tinha a capacidade de vigilância, a acuidade visual e as capacidades perceptivas e reflexos diminuídos.

42. A morte do DD não foi provocada por estupefacientes ou por acção sua originada por uso de estupefacientes.

43. O falecido DD nunca sofreu de qualquer patologia ou doença que fosse causada por, e/ou estivesse relacionada com consumo de bebidas alcoólicas ou estupefacientes.

44. O falecido era uma pessoa saudável, alegre e bem-disposta, gostava da vida e adorava viver, não lhe sendo conhecidas doenças.

45. O falecido DD, à data do seu falecimento não sofria, nem nunca sofreu anteriormente, de dependência de consumo de álcool / bebidas alcoólicas ou de estupefacientes.

46. À data do falecimento do DD, ou seja, em 27 de Outubro de 2010, o montante seguro era no valor de 50.335,01€ (cinquenta mil, trezentos e trinta e cinco euros e um cêntimo), renovando-se em 1 de Janeiro de 2011.

47. Por carta de 12 de Julho a seguradora aqui ré comunicou à autora o seguinte: “ Em resposta à documentação enviada por Vªs Exªs, na qual nos é solicitado o processamento de uma indemnização relativa aos empréstimos em epígrafe, lamentamos informar que não iremos procede ao pagamento de qualquer verba…..”

Factos Não Provados

1. DD foi funcionário da CGD desde 1984.

2. A morte do DD não foi provocada por acção sua originada por uso de álcool.

3. Uma taxa de alcoolemia como a apresentada pelo falecido, para uma pessoa com as características físicas do falecido não é susceptível de por si só, retirar a consciência ao seu portador ou qualquer capacidade cognitiva, perceptiva, visual ou de equilíbrio ou de retirar a capacidade de entendimento.

4. DD não colocou, nem podia ter colocado, os canos da sua caçadeira em contacto com a sua cabeça.

5. O acidente não foi provocado pelo falecido DD.

6. Voluntária ou involuntariamente o falecido DD não poderia disparar um tiro, com uma arma caçadeira de canos longos por trás da sua cabeça, nem na parte lateral direita da sua cabeça, de baixo para cima e de trás para a frente.

7. O falecido, pela orientação do tiro, não poderia disparar sobre si próprio, nem poderia ter deixado cair a arma para trás de si, pelo que o acidente foi provocado por uma terceira pessoa, tendo o tiro fatal vindo de outra arma.

8. O acidente de caça não foi causado por acção ou omissão do falecido DD.

9. Ainda que o falecido DD não fosse portador de qualquer taxa de alcoolémia, o acidente ter-se-ia verificado.

10. Se não fosse a taxa de alcoolemia que lhe foi detectada, o sinistrado não teria colocado os canos da caçadeira “em contacto com a zona atingida pelo disparo” – zona da cabeça, antes teria tomado as precauções especialmente impostas a quem utiliza armas de fogo,

11. O tomador do seguro, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, não informou DD (nem a sua mulher) de qualquer alteração contratual no contrato de seguro.

12. O tomador do seguro, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, informou DD (ou a sua mulher) da alteração contratual no contrato de seguro.


Apreciando:


Nos termos do disposto nos arts. 608.º, nº 2, 635.º, nº 3 e 690.º, nº 1, do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, doravante CPC), e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal.

Nesta conformidade, são a seguintes as questões de direito a decidir suscitadas no recurso de revista (ordenadas logicamente):

1. Nulidade do acórdão;

2. Exclusão do acidente do contrato de seguro.


Tratemos cada uma das questões separadamente.


1. Nulidade do acórdão.


  A recorrente entende que o acórdão da Relação, ao ter dado como não provado o facto de a morte de DD ter tido origem em comportamento (acção ou omissão) do próprio, padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), parte final, do CPC (2013), ou seja, conheceu de “questões de que não podia tomar conhecimento”: primeiro, porque a questão não foi suscitada no recurso de apelação; segundo, porque não era de conhecimento oficioso.


 A compreensão da nulidade assacada passa por apreender as posições que, a despeito de tal facto, foram tomadas na sentença, no recurso de apelação e no acórdão da Relação.

Assim.


Na sentença de 1.ª instância (fls. 664 a 748), o facto de a morte de DD ter sido causada por comportamento acidental (acção ou omissão) do próprio não foi enunciada nos “factos provados” mas apenas na “motivação de facto” e no “Direito”.


Na motivação de facto (fls. 696) afirmou-se:

 “assim, em face de toda a prova produzida, não subsistem quaisquer dúvidas de que a morte do falecido foi provocada por um disparo acidental seu, em virtude de alguma conduta sua (acção ou omissão), que, em concreto, não foi possível apurar”.

No Direito (fls. 741 a 742), reproduzirem-se alguns factos provados, que correspondem aos pontos 34 a 41 (fls. 676), após o que concluiu-se:

 “Da factualidade que acabámos de enunciar, resulta, sem qualquer dúvida, que a morte do falecido DD foi provocada por acção ou omissão sua e que se encontrava com uma TAS de 1,48 g/l (…) pese embora, é certo, não se tenham apurado as circunstâncias concretas em que ocorreu este acidente de caça, e o motivo pelo qual houve o disparo, não poderemos deixar de concluir que, tendo sido o tiro que provocou a morte disparado pela arma do próprio falecido, sem qualquer intervenção de terceiro, ter-se-á de concluir que a morte foi, indubitavelmente, provocada por acção ou omissão do falecido (…) Se tal aconteceu porque não transportava a arma na posição e com o cuidado que o deveria fazer, se foi porque não a travou e tocando no gatilho ela disparou, se foi porque permitiu que ela se prendesse a qualquer ramo da árvore, se foi por qualquer outra razão que não conseguiu apurar-se, tal acaba por ser irrelevante”. 


No recurso de apelação (fls. 759 a 825), os recorrentes concluíram pela impugnação da decisão da matéria de facto, pedindo que fossem dados como não provados os factos 21, 22, 24, 25, 26, 39, 40, 41 e 42 e como provados os factos 2, 3, 8, 9 e 10; e, pela questão da inoponibilidade da exclusão do contrato de seguro, por não ter sido comunicada e informada pela seguradora aos segurados e aos beneficiários.


No acórdão da Relação (fls. 866 a 881), foi decidido, primeiro, como questão prévia, rejeitar-se o recurso interposto no que se refere à matéria de facto, em função do que se mantém a factualidade dada como provada e não provada em 1.ª instância, e, segundo, enunciaram-se como questões a decidir saber (A) se a sentença recorrida padecia de contradição ao dar como provados os factos constantes dos pontos 21, 24, 25 e 26, que foi julgada improcedente, e, (B) se se mantém a obrigação da ré assumir o pagamento do capital segurado ou se tal obrigação é afastada pela verificação da cláusula de exclusão, prevista no item 5.1. das Condições Gerais.

Foi relativamente a esta última questão, que se afirmou, a propósito daquele facto presumido pela sentença da 1.ª instância, o seguinte:

“Da leitura deste excerto resulta que a sentença recorrida ao efectuar o enquadramento jurídico da factualidade apurada presumiu a existência de factos que não havia apurado ao fixar a matéria de facto.

Assim, a sentença recorrida, tendo em consideração que o DD se encontrava sozinho no momento em que ocorreu o disparo que o vitimou e a zona de entrada do disparo que o matou e a sua trajectória, retirou a conclusão que a só disparou devido a uma acção ou omissão da vítima (…)

Com o devido respeito, não se pode dar este “salto”.

Efectivamente, não se pode presumir qual o motivo do disparo ter ocorrido e muito menos que este (disparo) implicou uma acção de DD nesse sentido ou, pelo menos, uma omissão do mesmo, que permitiu que a arma chegasse a essa posição (…).

Havendo, ainda a considerar que, independentemente da correcção deste duplo juízo presuntivo, com resultado alternativo, e não relevando a circunstância do mesmo ter sido efectuado indevidamente aquando da fundamentação jurídica da sentença e não no momento da fixação da matéria de facto provada, o mesmo não é admissível porque conclui pela prova de factos que, na lógica da sentença, são essenciais à procedência da defesa por excepção invocada pela ré mas que não foram alegados por esta”.


Como se pode depreender, na sentença extraiu-se, por via de presunção judicial, no sentido legal de juízo dedutivo de um facto desconhecido (facto presumido) a partir de um facto conhecido (facto-base) – art. 349.º do Código Civil, o facto, de a morte do falecido DD ter sido provocada por comportamento (acção ou omissão) do próprio.

Ainda que as presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência, não sejam, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência” – Vaz Serra, in RLJ, Ano 108, pág.352 – ou, no entendimento de Antunes Varela, RLJ, Ano 123, pág.58 nota 2, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “ prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade, não nos suscita dúvida que a problematização das ilações de facto que por via dela são extraídas constituem, na dicotomia questão de facto/questão de direito, uma questão de facto.

Já no acórdão da Relação desconsiderou-se o facto presumido na sentença da 1.ª instância, com os seguintes dois fundamentos, argumentos ou razões:

 (1) dos factos base tomados em conta na sentença não se pode chegar ao facto presumido;

 (2) a presunção judicial não é permitida porque o facto presumido não foi articulado pela ré e era constitutivo da excepção, violando-se o disposto nos arts. 5.º, n.º 1 e 572.º do CPC. 


Ao afastar ou desconsiderar o facto presumido pela 1.ª instância, os recorrentes consideram que o acórdão da Relação é nulo, por excesso de pronúncia, porque resolveu uma questão que não fora suscitada no recurso e não era de conhecimento oficioso.


Vejamos:


A nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, ou, no rigor da lei, por ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento – arts. 615.º, n.º 1, al. d) e 666.º, n.º 1, ambos do CPC, decorre da violação normativa, pelo tribunal de recurso, do conhecimento de apenas as questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC.

No recurso de apelação, a regra é, pois, a do conhecimento pelo tribunal de recurso apenas das questões suscitadas pelas partes; a excepção é a do conhecimento também de outras questões, cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe.

Delimitadas pelas conclusões – art. 639.º do CPC, os recorrentes suscitaram, como se viu, duas questões, a saber, a primeira, de facto, da reapreciação da matéria de facto, especificamente dos factos provados n.ºs. 21, 22, 24, 25, 26, 39, 40, 41 e 42 e dos factos não provados n.ºs. 2, 3, 8, 9 e 10, e, a segunda, de direito, da inoponibilidade da exclusão do contrato de seguro, por não comunicada.

Nem a primeira nem a segunda das mencionadas questões abrangeram, dentro da liberdade de conformação do objecto do recurso pelos recorrentes, a apreciação da presunção judicial, e com ela do facto presumido, extraída pela 1.ª instância.


 Com efeito:

No âmbito da questão de facto, os recorrentes não pediram um juízo revogatório expresso do facto presumido, mormente por os factos base não o suportarem ou por reconduzir um facto constitutivo da excepção de exclusão contratual não alegado pela ré, argumentos com que a Relação ex officio operou.

Os recorrentes pediram, sim, a apreciação de alguns factos provados, nos quais se contavam os factos base da presunção, o que legitimaria à Relação, caso os apreciasse e os desse como não provados, a conclusão, por arrastamento, da não prova necessária do facto presumido: não provados os factos base, não provado o facto presumido.

Porém, tal ficou-lhe vedado a partir do momento em que decidiu a questão e rejeitou o seu conhecimento, mantendo a factualidade dada como provada e não provada em 1.ª instância.

Por coerência, não podia, no tratamento já da segunda questão (de direito) do recurso, subtrair o facto presumido à factualidade dada por assente.


A melhor técnica jurídica, é certo, aconselhava que o facto presumido e a sua fundamentação constassem, respectivamente, nos factos provados e na motivação de facto, e não na parte do direito, da sentença, porque, primeiro, tratava-se de um facto e das razões lógicas a ele conducentes, e, segundo, conferia-lhes maior visibilidade para efeitos de sindicância recursiva.

Mas, menos certo é que a lei processual não impunha (não impõe) tal técnica, mas apenas que “na fundamentação da sentença (…) o juiz toma ainda em consideração os factos (…), extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência” – artigo 607.º, n.º4 do CPC – segmento que comportava (comporta) o sentido impositivo mínimo de o juiz revelar na fundamentação – fosse nos factos provados, na motivação ou no direito aplicável – a presunção, desfibrando o (s) facto (s) base, o facto presumido e o nexo lógico inferencial entre ambos.


Tendo sido satisfeita essa exigência legal, não foi a deslocalização formal, na sentença de 1.ª instância, do tratamento da presunção e do facto presumido dos factos provados para o direito aplicável, que convolou a questão de facto em questão de direito, estando vedado, por consequência, ao tribunal da Relação, após decidir não conhecer da impugnação da matéria de facto, subtrair o facto presumido com as perspectivas argumentativas de não resultar necessariamente dos factos base ou de traduzir um facto constitutivo não oportunamente alegado.



No âmbito da questão de direito, a inoponibilidade da exclusão contratual, por falta de comunicação, esgrimido pelos recorrentes, não coenvolvia, necessariamente, nem nela se podia dizer implícita, a sindicância da presunção judicial e do facto presumido a que chegou a 1.ª instância.  


 Deste modo, pela regra do conhecimento do tribunal de recurso ater-se às questões suscitadas pelas partes, evidenciadas nas conclusões, conclui-se que estava o tribunal da Relação impedido de conhecer e sindicar o juízo fáctico presuntivo, operado pela 1.ª instância, porque, repete-se, primeiro, nunca fora suscitada directamente a questão no recurso, segundo, na questão de facto, a reapreciação de tal matéria foi liminarmente rejeitada, impedindo o seu conhecimento indirecto, isto é, por via, dos factos base subjacentes ao facto presumido e, terceiro, na questão de direito, ela não estava sequer implicitamente suscitada.

Resta perguntar se pela excepção do alargamento do objecto do recurso a questões permitidas ou impostas por lei, o conhecimento oficioso era permitido.


Os argumentos considerados pela Relação para modificar a matéria de facto, especificamente ao afastar ou desconsiderar o facto presumido a que a 1.ª instância chegou, não correspondem a alguma das previsões de modificabilidade oficiosa da decisão de facto enunciadas no n.º 2 do art. 662.º do CPC.

E, a modificabilidade da decisão de facto com base nas hipóteses previstas no n.º 1 do mesmo preceito legal, está dependente, como se infere do não emprego da expressão “mesmo oficiosamente” constante do n.º 2, da impugnação, formalmente adequada, da decisão de facto no recurso, que a Relação rejeitou liminarmente conhecer, estando, também por aqui, impedido o seu conhecimento oficioso posterior (ver Acórdão do STJ de 02.12.2003, revista n.º 34/11.0TBPNI.L1.S1).


Conclusão do quanto fica dito é, necessariamente e sem necessidade de outros considerandos, a afirmação do excesso de pronúncia pela Relação e da nulidade parcial do acórdão, que agora se supre, declarando-se fazer parte da factualidade provada o seguinte facto: a morte de DD foi causada por comportamento do próprio – art. 684.º, n.º1 do CPC.


Passemos à segunda questão.


2. Exclusão do sinistro do contrato de seguro.


Na resolução desta questão, releva a seguinte factualidade, sumariada:

 - Em 1990, os “Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos”, na qualidade de tomador, e a ré, na qualidade de seguradora, celebraram um contrato, denominado “Ramo de Vida-Seguros de Grupo”, tendo como pessoas seguras os funcionários da primeira e cônjuges (factos 6. e 9.), com início no dia 01 de Janeiro e renovável nesse dia dos anos seguintes (facto 16.), a que aderiram DD, funcionário, e a sua cônjuge, autora (factos 8. e 14.), os quais daí em diante sempre pagaram o respectivo prémio (facto 17.);

 - O contrato garantia, entre outros, o risco de morte, ficando a seguradora obrigada nesse caso ao pagamento de dois capitais, cada um correspondente a 100% do capital seguro (facto 10., 11. e 13.);

 - Em 30 de Outubro de 2009, os serviços sociais da CGD e a ré acordaram alterar as condições do contrato, a produzir efeitos a partir de 01 de Janeiro de 2010 segundo acta adicional por elas subscrita (facto 22.), passando a constar, nas Condições Gerais, as exclusões aplicáveis a todas as coberturas, designadamente que (…) Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações: (…) b) Acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes e outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas litro. (facto 24.);

 - Essas alterações foram comunicadas pela seguradora ré à tomadora serviços sociais da CGD e não foram comunicadas por esta à autora ou a DD (factos 25. a 27.);

 - No dia 27 de Outubro de 2010, DD faleceu, quando caçava, em consequência de um tiro disparado pela arma que transportava, sem intervenção de terceiro (factos 29., 34., 37.);

 - A morte de DD foi provocada por comportamento seu (acção ou omissão) (facto presumido pela 1.ª instância e que supra se considerou não poder ser afastado pela Relação);

 - No momento da sua morte o DD tinha uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,48 g/l. (facto 34.).


Neste quadro, mostra-se incontroverso e não justifica considerações teóricas acrescidas, como já se mostrou para as partes (v. arts. 1.º a 9.º da petição inicial e 1.º da contestação) e para as instâncias, que, em 1991, foi celebrado um contrato de seguro de grupo, ramo vida, entre a ré, seguradora e, os serviços sociais da CGD, tomadora do seguro, a que veio a aderir DD e a sua cônjuge, segurados – regulado, sucessivamente, pelos arts. 455.º e sgs. do Código Comercial, pelo D.L. n.º 176/95, de 26 de Julho e, por fim, pelo D.L. n.º 72/2008, de 16 de Abril.

Por via desse contrato, a ré garantiu a cobertura, entre outros, do risco morte de algum dos segurados, DD e a autora, materializado na obrigação de pagar aos respectivos beneficiários (autores), o valor dobrado do capital seguro caso o evento infortunístico se verificasse.

Neste contexto, tendo DD falecido em acidente de caça ocorrido a 27 de Outubro de 2010, em plena vigência do contrato de seguro, verificou-se o risco garantido e incorreu, a princípio, a ré seguradora na obrigação de pagar aos autores, cônjuge e filho do segurado, duas vezes o capital seguro.

Daí a presente acção.


Acontece que, a seguradora ré defendeu a exclusão do acidente do âmbito do contrato de seguro, por verificação da seguinte cláusula de exclusão:

 “Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações: (…) b) Acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes e outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas litro”.


Esta cláusula foi introduzida no contrato, por acordo entre a seguradora e a tomadora de 30 de Novembro de 2009 e para passar a vigorar a partir do dia 01 de Janeiro de 2010, e foi comunicada à tomadora serviços sociais da CGD e não comunicada por esta aos segurados.

O acidente ocorreu em 27 de Outubro de 2010.


A aplicação dessa exclusão ao caso concreto suscita as seguintes interrogações:

 - tendo a seguradora comunicado à tomadora e não tendo a tomadora comunicado aos segurados a cláusula de exclusão, a mesma vigora e é oponível a estes últimos?

 - a melhor interpretação da cláusula exige a verificação objectiva de taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l ou exige, suplementarmente, a demonstração do nexo de causalidade entre os efeitos associados a essa taxa e o acidente?

Tratemos cada uma delas separadamente.


  A alteração ao contrato de seguro por via da qual foi introduzida a cláusula de exclusão em debate, teve lugar no dia 30 de Outubro de 2009, portanto na vigência do D.L. n.º 72/2008, de 16 de Abril (cf. art. 7.º), que criou o regime jurídico do contrato de seguro.

O art. 78.º desse regime jurídico, inserido no capítulo VII dedicado ao seguro de grupo e aplicável ao contrato de seguro com vigência pretérita, como o dos autos, por força do disposto nos arts. 2.º, n.º1 e 3.º, n.º1, estabelece, no n.º1, que “(…) o tomador de seguro deve informar os segurados sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões , as obrigações e os direitos em caso de sinistro, bem como sobre as alterações ao contrato, em conformidade com o espécimen elaborado pelo segurador” e, no n.º 5, que “o contrato de seguro pode prever que o dever de informar referido nos n.ºs. 1 e 2 seja assumido pelo segurador”.

Este normativo enuncia uma regra e uma excepção.

A regra é a de que compete ao tomador informar o segurado das alterações ao contrato de seguro;

A excepção, a constar do próprio contrato, é de que esse dever compete ao segurador.

Idêntica redacção constava já do art. 4.º, n.º1, do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, que aquele diploma revogou (art. 6.º, n.º 1, al. e)), aí nos seguintes termos: “Nos seguros de grupo, o tomador do seguro deve obrigatoriamente informar os segurados sobre as coberturas e exclusões contratadas, as obrigações e direitos em caso de sinistro e as alterações posteriores que ocorram neste âmbito, em conformidade com um espécimen elaborado pela seguradora”.


Não vem colocado em crise que aquele espécimen tenha sido entregue pela ré (seguradora) aos serviços sociais da CGD (tomadora), tanto que na acta adicional n.º1/2009, por ambas subscrita, consta referido o mesmo anexo por forma a permitir o cumprimento por parte do tomador de Seguro do dever de informação aos aderentes (facto 22.).


Do contrato de seguro também não consta ser obrigação da ré seguradora informar os segurados das alterações ao contrato, vigorando, deste modo, a regra legal de que tal constituía incumbência do tomador.


Assim, do confronto da factualidade provada com aquele art. 78.º do regime jurídico do contrato de seguro, resulta que a seguradora ré cumpriu o seu dever de informar o tomador Serviços Sociais da CGD, e que o tomador não cumpriu o seu dever de informar os segurados da introdução da referida cláusula de exclusão. 

Neste âmbito, de cumprimento pela seguradora e de incumprimento pela tomadora do dever de informar, entende-se que o incumprimento desta não se estende àquela, que, das alterações introduzidas, comunicadas e informadas à tomadora, se pode prevalecer e as opor aos segurados (e os beneficiários).


Acresce que, estando totalmente regulado no regime jurídico especial do contrato de seguro o dever de informar, não existe qualquer lacuna a preencher com o regime jurídico geral das cláusulas contratuais gerais, mormente com o disposto nos arts. 5.º e 6.º do D.L. n.º 446/85, de 25-10, alterado pelos  D.L. n.º 220/95, de 31-08, D.L. n.º 249/99, de 07-07 e D.L. n.º 323/91, de 17-12. 


De resto, a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça, na vigência quer do D.L. n.º 176/95 quer do D.L. n.º 72/2008, tem entendido que, efectivamente, (1) o dever de informar os segurados das alterações ao contrato de seguro de grupo compete, salvo estipulação em contrário no contrato, apenas ao tomador de seguro, de acordo com o regime especial constante desses diplomas que afasta o regime geral das cláusulas contratuais gerais; e, (2) o cumprimento da obrigação de a seguradora informar o tomador e o incumprimento da obrigação de o tomador informar os segurados dessas mesmas alterações, não compromete a sua aplicação nas relações litigiosas entre a seguradora e os segurados.


Vejam-se, neste sentido, os seguintes acórdão deste Tribunal: de 22 de Janeiro de 2009 (proc. nº 08B40491), de 20 de Janeiro de 2010 (proc. nº 294/06.8TBOAZ.P1), de 11 de Março de 2010 (proc. nº 806/05.4TBBJA.E1.S1), de 17 de Junho de 2010 (proc. 651/04.4TBETR.P1.S1), de 12 de Outubro de 2010 (proc. nº 646/05.0TBAMR.G1.S1), de 11 de Novembro de 2010 (proc. nº 2284/08.7TVLSB.L1), de 13 de Janeiro de 2011 (proc. nº 1443/04.6TBGDM.P1.S1), de 29 de Março de 2011 (proc. nº 1295/04.6TBMFR), de 28 de Fevereiro de 2012 (proc. nº 175/10.0TBCHV.P1.S1), de 29 de Maio de 2012 (proc. nº 7615/06.1TBVNG.P1.S1), de 21 de Fevereiro de 2013 (proc. nº 267710.6TBBCL.G1.S1), de 25 de Junho de 2013 (proc. nº 24/10.0TBVNG.P1.S1), de 27 de Março de 2014 (proc. nº 2971/12.5TBBRG.G1.S1), de 9 de Julho de 2014 (proc. nº 841/10.0TVPRT.L1.S1), de 18 de Setembro de 2014 (proc. nº 2334/10.7TBCDM.P1.S1), de 11 de Fevereiro de 2015 (proc. nº 2045/08.3TBFAF.G2.S1), de 15 de Abril de 2015 (proc. nº 385/12.6TBBRG.G1.S1), consultáveis in www.dgsi.pt. E ainda, na doutrina, A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 2013, pág. 731, e Margarida Lima Rego, em Contrato de Seguro e Terceiros, Estudo de Direito Civil, 2010, pág. 861/862.

           

Pelo que, concluindo, a cláusula de exclusão do contrato de seguro introduzida em 2009, por acordo da seguradora e da tomadora, comunicada pela primeira à segunda, e não comunicada pela segunda aos segurados, vigorava à data da morte de DD e podia ser validamente invocada, como o foi, pela ré seguradora perante os autores segurados e beneficiários.

Este foi também o entendimento das instâncias. 


   Cumpre, aqui chegados, interpretar o sentido da cláusula de exclusão, no pressuposto de que a interpretação da vontade expressa na declaração negocial constitui questão de facto quando consista em apurar se o destinatário conhecia a vontade real do declarante e o seu conteúdo – que, pela ausência de factos provados, se não coloca – e constitui questão de direito sempre que haja de realizar-se, na ignorância de tal vontade, nos termos do artigo 236º, n.º 1, do Código Civil – v. Acórdão do STJ de 11.11.1992, processo n.º 003424, in www.dgsi.pt.


Uma vez que se está perante um contrato de seguro originariamente formal – art. 426.º do Código Comercial – e não resultou apurada a vontade das partes – para efeitos do que dispõe o art. 236.º, n.º2 do Código Civil, o sentido a extrair deve ser aquele que um declaratário normal, colocado na posição dos segurados, deduzisse – art. 236.º, n.º1 do Código Civil (a chamada teoria objectivista da impressão do destinatário, cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, em anotação a este artigo) do texto da cláusula, conquanto nela tenha um mínimo de correspondência – art. 238.º, n.º 1 do Código Civil.


Dentro destes ditames legais, não nos suscita dúvida que o sentido normal, apreendido ou extraído por um declaratário medianamente instruído colocado na posição dos segurados, da expressão acção ou omissão, é o do comportamento, activo ou omissivo, do segurado concretizador do risco ou do sinistro, a que se reconduz o facto provado de a morte ter sido causada por comportamento do DD; e, o da expressão ser detectado taxa de alcoolemia no sangue superior a 0,5 g/l é o da verificação objectiva, no momento do acidente e na pessoa do segurado, de um volume de álcool no sangue superior ao valor de 0,5 g/l, expresso no facto provado de que DD tinha uma taxa de álcool no sangue de 1,48 g/l.


Não encontra, neste particular, o mínimo de correspondência na letra da cláusula, o sentido de se exigir o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, ou melhor, dos efeitos a ela associados, e o sinistro, notando-se que apenas expressões como quando causado por uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, com origem em taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, quando se encontrasse sob a influência de taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, poderiam ancorar esse entendimento que, na concorrência com outros possíveis, acabaria por prevalecer, no entendimento de que se tratava, para o segurado, de cláusula contratual geral (o tomador negociou a cláusula com a seguradora, mas não o segurado, cf. Acórdão do STJ de 2 de Setembro de 2010, proc. nº 1017/07.0TVLSB.L1.S1) a que se aplicava a regra interpretativa enunciada no art. 11.º, n.º2 do D.L. n.º 446/85, de 25 de Outubro, na redacção dada pelo D.L. n.º 249/99, de 07 de Julho.


A detecção de uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, repete-se, comporta para o declaratário abstracto, medianamente instruído e sagaz, apenas o sentido da verificação objectiva de uma taxa superior aquele valor máximo, não implicando complementarmente a demonstração de qualquer nexo causal com o acidente verificado que nela não encontra expressão sustentadora.


E, compreende-se que assim seja: o sentido útil da cláusula é não fazer repercutir sobre a seguradora, no domínio de um seguro de grupo facultativo, o agravamento desmesurado do risco de acidente associado a alguém caçar com alcoolemia superior ao máximo legalmente permitido, e não também exigir – sabe-se lá que manancial informativo poderia a seguradora dispor a esse respeito – que alegue e, sobretudo prove, terem sido os efeitos associados à alcoolemia concretamente detectada que originaram ou justificaram o acidente, probatio diabolica que já se havia revelado injusta, ao tempo da alteração, no exercício judicial do direito de regresso da seguradora automóvel perante o condutor causador do acidente que, no momento, se encontrasse sob a influência do álcool, previsto no art. 19.º al. c) do D.L. n.º 522/85 de 31 de Dezembro.


No acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Maio de 2015, processo n.º 36/2.9.TBALD.C1, in www.dgsi.pt, em caso em tudo semelhante a este, seguiu-se o entendimento expresso e foi-se inclusivamente mais longe, aditando-se um outro argumento para afastar a aplicação de cláusula idêntica: uma cláusula que previsse uma cobertura de seguro que abrangesse um sinistro ocorrido na circunstância de o segurado/falecido estar a caçar e a transportar uma arma com a taxa de álcool de 1,48 g/l, praticando, assim, um acto criminoso - em face do disposto no art. 29º da Lei da Caça, e art. 88º do Regime Jurídico das Armas e Munições, pois caçar e deter armas com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l representa crime - estaria votada a ser fulminada com nulidade, nos termos do art. 280º do CC, dada a ilicitude da cobertura do risco.

Não concordamos com este entendimento.

Não oferece dúvida que, antes de morrer, DD encontrava-se a caçar armado com uma taxa de álcool no sangue superior a 0,5 g/l, comportamento que, na parte objectiva, configura os crimes previstos nos artigos 29.º da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro (Lei da Caça) e no artigo 88.º da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redacção dada pela Lei n.º17/2009, de 06.05. (Regime das Armas e Munições).

O regime jurídico do seguro, aprovado pelo D.L. n.º 72/2008, de 16 de Abril, proíbe que o seguro garanta a responsabilidade criminal do segurado – art. 14.º, n.º1 al. a).

Se DD não tivesse falecido e tivesse sido instaurado processo crime contra ele, o seguro não poderia cobrir, assim, sua responsabilidade pela prática daqueles crimes, circunscrita à sujeição a pena ou penas, mormente de multa, que lhe fossem aplicadas.

Mas, já o seguro poderia cobrir a responsabilidade civil que pudesse daí ter resultado, por exemplo se tivesse deflagrado tiro lesivo da integridade física de terceiro, como aquele mesmo art. 14.º expressamente ressalva no seu n.º3.  

Concretamente, a responsabilidade criminal de DD nem se suscita, porque faleceu – art. 127.º, n.º1 do Código Penal.

A situação concreta não é pois de responsabilidade criminal nem mesmo de responsabilidade civil com ela conexa, mas meramente da morte do segurado causado acidentalmente por acção ou omissão sua quando caçava.

O risco morte do segurado em situação de caça com alcoolemia podia, por isso, em abstracto, estar seguro.

O regime especial do seguro, prevalecente sobre o regime geral civil (e designadamente sobre o art. 280.º do Código Civil), regulou totalmente a matéria dos limites da segurabilidade, deixando de fora apenas a responsabilidade criminal do segurado, mas já não a sua morte por ele acidentalmente causada com tiro quando, sem se saber do nexo de causalidade existente entre a acção e o resultado, caçava com TAS superior ao máximo permitido, o que configura crime.


A cláusula de exclusão opera, assim, não porque a cobertura da situação contrária fosse nula, mas porque se verifica a sua previsão.


Donde, por excluído o acidente do âmbito da cobertura do contrato de seguro, impõe-se, na revogação do acórdão da Relação e na repristinação da sentença da 1.ª instância, a absolvição da ré do pedido.



III – DECISÃO.


Nestes termos e considerando o exposto, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, para subsistir a sentença da 1ª instância.


Custas pelos recorridos (autores)


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Março de 2016


Tavares de Paiva (Relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes