Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | SECÇÃO DO CONTENCIOSO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | SUSPENSÃO DE EFICÁCIA ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS JUIZ FUNÇÃO JURISDICIONAL INDEPENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS INDEPENDÊNCIA DO JUIZ CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA REGULAMENTO PUBLICIDADE PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA RESERVA DA VIDA PRIVADA PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL ANTECIPAÇÃO DA DECISÃO DECLARATIVA PRINCIPAL NORMA IMEDIATAMENTE OPERATIVA | ||
Data do Acordão: | 07/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | SUSPENSÃO DE EFICÁCIA | ||
Decisão: | PROCEDÊNCIA PARCIAL ANTECIPADA NO PROCEDIMENTO CAUTELAR. | ||
Sumário : | I. Do disposto no art. 5.º da Lei n.º 52/2019 emergem dois comandos normativos contempladores das especificidades estatutárias da posição dos magistrados judiciais (bem como dos magistrados do Ministério Público). Por um lado, essa norma transfere um específico poder regulador para o órgão competente - o Conselho Superior da Magistratura - para conformar o conteúdo e o exercício das obrigações declarativas (previstas no art. 13.º desse diploma legal) e, por outro lado, estabelece restrições à aplicação da própria Lei n.º 52/2029, na medida em que tal se tome adequado à compatibilização das normas deste diploma com as regras específicas que disciplinam a atividade dos magistrados judiciais. O Regulamento das Obrigações Declarativas [ROD] não cumpre na íntegra o alcance destes dois comandos normativos. II. A tutela do interesse geral da transparência patrimonial, subjacente à consagração legal das obrigações declarativas dos magistrados judiciais, prevista na Lei n.º 52/2019 e a concretizar pelo ROD, tem de se harmonizar adequadamente com os princípios ínsitos à função desempenhada pelos magistrados judiciais e particularmente com as suas específicas exigências de independência e isenção. III. Diferentemente dos demais obrigados ao cumprimento das obrigações declarativas (referidos nos artigos 2.º, 3.º e 4.º da Lei n.º 52/2019), os magistrados judiciais não desempenham cargos tipicamente limitados no tempo. Desempenham, sim, sempre o mesmo tipo de funções, ao longo de toda a sua vida ativa (permanecendo vinculados aos deveres estatutários mesmo na situação de jubilação). Daqui resulta que a sua vida privada pode ser potencialmente mais afetada pelo amplo acesso a dados pessoais do que a vida privada de outros sujeitos abrangidos por aquele diploma. IV. Diferentemente do que se verifica quanto a outros sujeitos abrangidos por aquele diploma, os magistrados judiciais proferem decisões que se projetam imediatamente na vida e nos interesses de cidadãos concretos, expondo-os, por isso, a eventuais reações diretas de pessoas descontentes com tais decisões. V. A segurança e a tranquilidade que os magistrados judiciais necessitam para poderem decidir, como decorre do Estatuto dos Magistrados Judiciais, com independência, imparcialidade e ponderação são valores que não podem ser postos em causa através de mecanismos que possam facilitar a devassa da sua vida pessoal e familiar. VI. Enquanto titulares do poder judicial e, portanto, enquanto elementos de órgãos de soberania que realizam a justiça em nome do povo, os magistrados devem estar sujeitos ao escrutínio do seu património, de modo a prevenir e detetar hipóteses de enriquecimento ilícito, como pretendeu a Lei n.º 52/2019. Mas tal escrutínio deverá fazer-se na justa medida daquilo que é necessário e adequado para o cumprimento de tal objetivo. Assim, informação que permita, direta ou indiretamente, aceder ao conhecimento da residência de qualquer magistrado judicial ou que, de algum modo, permita a lesão da reserva da sua vida privada e familiar não pode ser alvo de acesso público. VII. As normas do ROD relativamente às quais se identifica vício de violação de lei, bem como a violação de princípios gerais de direito administrativo têm de ser declaradas ilegais com força obrigatória geral, determinando-se a elaboração de novas normas que compatibilizem adequadamente os propósitos da Lei n.º 52/2019 com a RGPD e demais diplomas aplicáveis em matéria de exposição de informação pessoal. | ||
Decisão Texto Integral: |
Proc. nº 15/21.5YFLSB-A
Requerente/recorrente: ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES (ASJP) Entidade requerida: CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA (CSM)
Regulamento suspendendo/impugnado: Regulamento das Obrigações Declarativas n. 226/2021, aprovado na sessão Plenária do Conselho Superior da Magistratura de 12.01.2021, publicado na 2.ª Série do Diário da República n. 51/2021, de 15 de março.
I. RELATÓRIO 1. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), com NIPC 501370854 e sede na Rua Ivone Silva n. 6-A, 1050-124 Lisboa, instaurou os presentes autos cautelares contra o Conselho Superior da Magistratura (CSM), com sede na Rua Duque de Palmela 23, 1250-096 Lisboa, visando suspender a eficácia do Regulamento das Obrigações Declarativas n. 226/2021, aprovado na sessão Plenária do Conselho Superior da Magistratura de 12.01.2021, publicado na 2.ª Série do Diário da República n. 51/2021, de 15 de março. 2. Alegou, em síntese, que aquele Regulamento padecia de ilegalidade, tanto por omissão como por ação, na medida em que não usou o poder regulamentador emergente do art.5º da Lei n. 52/2019 no sentido de atender às especificidades da função dos magistrados judiciais, acabando por violar normas hierarquicamente superiores e princípios gerais de direito administrativo, bem como o Regulamento Geral de Proteção de Dados e o próprio direito constitucional à reserva da vida privada dos magistrados.
O decretamento da suspensão da eficácia do Regulamento justificar-se-ia, em síntese, porque o facto de ser permitida a consulta pública das declarações únicas apresentadas pelos magistrados judiciais poderia causar prejuízos ao seu direito à reserva da vida privada e à sua segurança pessoal e familiar, assim como à proteção da sua vida e integridade pessoal, o que se sobreporia ao princípio da transparência.
3. A requerente propôs a ação administrativa a que corresponde a instância declarativa principal, da qual dependem estes autos, que corre termos na Secção de Contencioso sob o n. 15/21.5YFLSB, onde reiterou os fundamentos que já havia apresentado na providência cautelar e pugnou pela declaração de ilegalidade do referido Regulamento tanto por omissão como por ação. Requereu a apensação dos autos do procedimento cautelar aos autos dessa ação.
4. O CSM apresentou oposição à providência cautelar de suspensão da eficácia, entendendo não se encontrarem preenchidos os requisitos exigidos pelo art.120º do CPTA (aplicável por força dos artigos 172º e 174º do EMJ) para que tal providência pudesse ser decretada e ainda que o referido Regulamento não apresentava qualquer ilegalidade nem por ação nem por omissão. Contestou igualmente a ação principal, sustentando, na essência, as mesmas razões para concluir que o Regulamento não apresenta ilegalidades por ação ou por omissão. Declarou não se opor à antecipação do julgamento da causa principal.
5. As partes foram notificadas, nos termos artigo 121º, n.1, in fine do CPTA, para a possibilidade de antecipação da decisão declarativa respeitante ao proc. n. 15/21.5YFLSB. As partes declararam não se opor à solução proposta no referido despacho.
6. Por despacho de 26.05.2021, foi determinada a antecipação da prolação, nos presentes autos, da decisão que seria proferida no processo n. 15/21.5YFLSB.
7. Tendo sido requerida a suspensão da eficácia do Regulamento impugnado, após citação da entidade recorrida, deixou de ser devida a sua execução, nos termos do art.128º, n.1 do CPTA. O CSM emitiu «resolução fundamentada a reconhecer que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público», ao abrigo do disposto na parte final do n. 1 do art. 128.º do CPTA. Notificada do teor dessa resolução fundamentada, veio a requerente deduzir incidente de declaração de ineficácia de atos de execução indevida, ao abrigo do disposto no art. 128º, n. 4, do CPTA, tendo a entidade requerida sido auscultada, nos termos do n. 6 do mesmo artigo. Por despacho proferido em 09.06.2021, foi indeferido o pedido incidental de declaração de ineficácia de atos de execução indevida. Nesse mesmo despacho foi ordenada a notificação da requerente e da entidade requerida para se pronunciarem acerca da intenção de apreciação, pela Relatora, de um incidente de decretamento provisório da providência, nos termos do art. 131º, n. 2, do CPTA, de suspensão de eficácia das normas suspendendas, apenas até serem decididos os presentes autos, considerando a manifesta urgência na adoção de uma decisão incidental que acautelasse os interesses em causa. As partes não se opuseram, pelo que, em 16.06.2021, nos termos do art.131º, n.2 do CPTA, a relatora decretou provisoriamente a providência de suspensão de eficácia do Regulamento das Obrigações Declarativas n. 226/2021 até serem decididos os presentes autos. 8. Foi dispensada a audiência prévia a que se refere o artigo 87º-A do CPTA (ex vi dos artigos 173º e 174º do EMJ).
II. SANEAMENTO
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território – art. 170.º, n. 1, do EMJ A petição inicial não é inepta.
O processo é o próprio e é válido (cf. artigos 72.º ss. do CPTA, ex vi do art. 169.º do EMJ). As partes têm capacidade e personalidade judiciárias e estão devidamente representadas. A legitimidade da requerente/autora foi já reconhecida no despacho de 02.06.2021. Assim, como aí se afirmou, dado que foi determinada a antecipação da decisão da ação administrativa nos presentes autos cautelares, nos termos do art. 121.º do CPTA, operou-se a convolação do objeto cautelar, que passou a ser o objeto da instância declarativa. Como tal, qualquer suposta ilegitimidade que pudesse suscitar-se nos autos cautelares, com base no art. 130.º, n. 2, do CPTA, teria deixado de relevar, sendo de reconhecer legitimidade à requerente para peticionar a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral do Regulamento das Obrigações Declarativas (art.73º CPTA).
Após vistos simultâneos, cumpre apreciar e decidir as questões suscitadas.
III. QUESTÕES A APRECIAR: 1. Aferir da ilegalidade do regulamento por omissão, por: 1.1. Omissão de um estatuto legal específico sobre os dados que os magistrados deveriam preencher, dado que os magistrados não estariam, alegadamente, obrigados ao preenchimento da declaração única nos exatos termos em que a Lei 52/2019 determina. 1.2. Omissão da regulamentação sobre o acesso e publicidade, bem como do tratamento dos dados constantes de tais declarações, por não resultar do artigo 5.º da Lei n.º 52/2019 que os juízes estejam obrigados ao disposto nos artigos 13.º, 14.º e 17.º de tal diploma legal. 1.3. Omissão ou insuficiente regulamentação sobre análise e fiscalização das declarações.
2. Aferir da ilegalidade do regulamento por ação, por: 2.1. Desconformidade das normas do ROD com normas hierarquicamente superiores e com os princípios gerais de direito administrativo, consagrando o ROD, indevidamente: a) o regime sancionatório da Lei n.º 52/2019, uma vez que os magistrados têm um estatuto sancionatório próprio, existindo assim uma contradição entre o art. 1.º e o art. 6.º, n.º 2, do ROD; b) uma obrigação dos magistrados judiciais de preenchimento do registo de interesses, por força do disposto no art. 13.º, n.º 4, da Lei n.º 52/2019, e do disposto no art.º 8.º-A do EMJ. 2.2. Violação do princípio da proporcionalidade quanto à periodicidade de entrega das declarações a que se refere o art. 4.º do ROD; 2.3. Violação de diversas normas do RGPD, porque nele estão previstas de normas de proteção de dados; 2.4. Ilicitude da previsão do art. 5.º do ROD por permitir o acesso a dados que podem identificar bens móveis e imóveis 2.5.Violação do direito fundamental à reserva da vida privada dos magistrados, também porque a identificação do nome do cônjuge permite o acesso à orientação sexual do magistrado; *
IV. FUNDAMENTOS
A) - Factos provados: Considerando as posições defendidas pelas partes nos seus articulados e o acervo documental junto aos autos, encontra-se provada, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, a seguinte matéria de facto: Artigo 1.º
Artigo 2.º Artigo 4.º Artigo 5.º Artigo 6.º Artigo 7.º 4.º 6.º 7.º 8.º 4.º 5.º 6.º 7.º 8.º
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B) O direito aplicável: 1. Aspetos introdutórios e enquadramento.
1.1. Questão previa – art. 121.º do CPTA Antecipação da decisão do proc. n. 15/21.5YFLSB: No seu requerimento inicial, a requerente peticionou a antecipação do julgamento da causa principal (a ação administrativa n. 15/21.5YFLSB), com base no art. 121º do CPTA, e a entidade requerida não se opôs a tal possibilidade. Assim, como supra referido, por despacho de 25.05.2021 foi determinada a antecipação da decisão na instância declarativa, que respeita ao processo que corre termos na Secção de Contencioso do STJ sob o n. 15/21.5YFLSB. Por força desse despacho a antecipar a decisão que iria ser proferida na instância declarativa principal, deixam de relevar os pressupostos a que se refere o artigo 120º do CPTA, nomeadamente os requisitos do periculum in mora e da ponderação de interesses.
O que importa agora é a indagação da pretensão impugnatória formulada na ação administrativa n.15/21.5YFLSB, com referência ao ato aí impugnado e aqui suspendendo. Trata-se, portanto, de saber se o regulamento sindicado padece dos vícios que lhe são apontados pela requerente. De qualquer modo, o periculum in mora de retardamento de uma decisão já foi acautelado nos presentes autos, por força do despacho de decretamento provisório de 16.06.2021, ao abrigo do disposto no art. 131º, n. 2, do CPTA.
1.2. Objeto da impugnação 1.2.1. O ato jurídico sindicado nos presentes autos é um regulamento administrativo. Em concreto, estamos perante a impugnação de normas contidas no Regulamento das Obrigações Declarativas n. 226/2021 (ROD), aprovado na sessão Plenária do Conselho Superior da Magistratura de 12.01.2021, publicado na 2.ª Série do Diário da República n. 51/2021, de 15 de março.
1.2.2. Os regulamentos administrativos, em definição doutrinal, são «normas jurídicas emanadas do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei»[1]. Segundo o art. 135.º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.4/2015, de 7 de janeiro (CPA), consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos. Assim, os regulamentos administrativos, do ponto de vista material, assumem, em geral, a característica de norma jurídica, dispondo das características da generalidade e abstração. Do ponto de vista orgânico, emanam de órgãos da Administração Pública, podendo o poder regulamentar ser exercido por pessoas coletivas que não integram o conceito da Administração em sentido estrito. Do ponto de vista funcional, emergem do exercício do poder administrativo, o que determina que, enquanto atividade secundária, a atividade regulamentar se encontre sempre dependente e subordinada à atividade legislativa. É nesta última caraterística que reside o ponto de partida para a análise das questões suscitadas nos presentes autos.
1.2.3. O ROD definiu, logo no seu proémio, que as normas regulamentares são emitidas ao abrigo do disposto no artigo 7.º-E do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redação que lhe foi dada pela Lei n. 67/2019, de 27 de agosto (EMJ), e no artigo 5.º da Lei n. 52/2019, de 31 de julho, para dar cumprimento às obrigações previstas nos artigos 13.º, 14.º e 17.º deste último diploma. Deste modo, não estamos perante um regulamento autónomo ou independente, porque não se trata de um regulamento elaborado por um órgão administrativo, no exercício da sua competência para assegurar a realização das suas atribuições específicas, sem cuidar de desenvolver ou completar nenhuma lei em especial[2]. O ROD visa complementar a Lei n. 52/2019, de modo a viabilizar a sua aplicação ao caso concreto dos magistrados judiciais da jurisdição comum.
Sobre a categoria dos regulamentos complementares ou de execução, afirma-se na doutrina[3]: «Os regulamentos complementares ou de execução consubstanciam uma tarefa de pormenorização, de detalhe e de complemento do comando legislativo […] são o desenvolvimento, operado por via administrativa, da previsão legislativa, tornando possível a aplicação do comando primário às situações concretas da vida - tornando, no fundo, possível a prática dos atos administrativos individuais e concretos que são seu natural corolário. Os regulamentos complementares ou de execução podem, por sua vez, ser espontâneos ou devidos. No primeiro caso, a lei nada diz quanto à necessidade da sua complementarização: todavia, se a Administração o entender adequado e para tanto dispuser de competência, poderá editar um regulamento de execução. No segundo, é a própria lei que impõe à Administração a tarefa de desenvolver a previsão do comando legislativo. Enfim, estes regulamentos complementares ou de execução são, tipicamente, regulamentos “secundum legem”, sendo, portanto, ilegais se colidirem com a disciplina fixada na lei, de que não podem ser senão o aprofundamento.»
1.3. Os pedidos formulados e a sua admissibilidade processual 1.3.1. Tendo presente que o instrumento legal impugnado é um regulamento complementar ou de execução, revejam-se, sucintamente as pretensões processuais formuladas pela requerente na ação administrativa que constitui a instância declarativa principal da qual dependem estes autos. São elas: declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares que definam: a obrigatoriedade de apresentação da declaração única e seu modelo, os termos do acesso e publicidade da mesma e os termos em que se processa a análise e fiscalização das declarações; e ainda a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas contidas nos artigos 2.º a 5.º do ROD.
1.3.2. No artigo 73.º, n. 1 do CPTA consagram-se os pressupostos objetivos e subjetivos da ação administrativa de impugnação de normas, aí se estabelecendo que «a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa pode ser pedida por quem seja diretamente prejudicado pela vigência da norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente da prática de ato concreto de aplicação, pelo Ministério Público e por pessoas e entidades nos termos do n.º 2 do artigo 9.º, assim como pelos presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas emitidas pelos respetivos órgãos». De acordo com o CPTA, o critério legal adotado para qualificar um regulamento como imediatamente operativo (produtor de efeitos) é o facto de ele estar, ou não, na dependência de um ato administrativo de aplicação. Assim, a operatividade será imediata quando resultar da própria natureza do regulamento, que se caracteriza por ser diretamente modificativo ou ablativo de uma dada situação jurídica ou estatuto preexistente, e quando comporte uma regulação em si mesmo de determinada situação substantiva. Assim, se a norma administrativa cria ou impõe, diretamente, exigências que não existiam, ou estabelece ex novo requisitos sem os quais o administrado não teria acesso a regalias ou a determinado estatuto, afetando automaticamente a posição jurídico-substantiva dos administrados, sem carecer da interposição de um ato administrativo, existirá uma norma imediatamente operativa na aceção da lei processual vigente. Além disso, ainda que operatividade ou exequibilidade não signifique necessariamente lesividade, para efeitos de impugnação de normas, só a questão da lesividade releva. E isto ainda que tal lesividade seja um reflexo indireto da norma, como sucede caso a norma conceda um benefício ou uma vantagem a um terceiro contrainteressado face à autora da impugnação da norma, cifrando-se num prejuízo correspetivo para este interessado[4]. Daí que a referência do artigo 268.º, n. 5, da Constituição da República Portuguesa à lesividade só faça sentido se se entender que se pode tratar também de um efeito direto da própria norma administrativa impugnada ([5]). Em resumo, para que se possa admitir o recurso a este meio processual, os efeitos jurídicos produzidos pela norma imediatamente operativa terão de ser necessariamente lesivos, pelo que tais normas serão, à partida, compressoras de um dado estatuto jurídico do administrado visado, direta ou indiretamente, pela previsão normativa. Como se afirma na doutrina: «o requisito de lesividade, que constitui o fundamento da sindicabilidade direta dos regulamentos, parece impor que estes só sejam impugnáveis se possuírem eficácia externa. Só assim se compreende que a legitimidade ativa para a impugnação da norma se encontre atribuída, em primeira linha, a quem seja diretamente prejudicado pela vigência (ou a aplicação) da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo […]» [6]. Daí que no contencioso de normas possam não estar incluídas normas que regulem uma estrita relação orgânica ou de funcionamento de determinada organização administrativa, sem repercussão direta nas relações com particulares. Mas não é esse o caso do ROD, dado que este Regulamento não se confina nem esgota numa estrita relação orgânica ou de funcionamento. Ao invés, possui normas suscetíveis de interferir na relação fundamental existente entre a entidade demandada e os magistrados judiciais, bem como suscetíveis de afetar os direitos ou interesses de terceiros (nomeadamente, os cônjuges dos ou os unidos de facto com os magistrados). As normas em questão não se limitam a influenciar apenas o sentido de uma dada relação administrativa, mas sim, de modo indireto, a própria relação jurídica de magistrados e de terceiros. Como tal, as disposições regulamentares possuem eficácia externa, pelo que podem ser objeto de impugnação contenciosa. Além disso, estamos perante normas administrativas imediatamente operativas, dado que os respetivos efeitos jurídicos se repercutem imediata, direta e desfavoravelmente sobre a esfera jurídica dos administrados visados pelas normas, projetando-se sobre as pessoas abrangidas pela sua previsão, sem necessidade de um ato administrativo ou jurisdicional de aplicação da respetiva estatuição. O regulamento, por ser geral e abstrato, é imediatamente operativo, porque é fonte de prejuízos diretos e imediatos para os particulares seus destinatários, antes mesmo de ser aplicado por atos concretos. É, assim, processualmente admissível a pretensão do requerente, nada obstando a que se conheça do mérito do seu pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral das normas aludidas.
1.3.3. A requerente peticiona ainda a declaração de «ilegalidade por omissão». Como se colhe na doutrina: «na redação anterior à revisão de 2015, falava-se, na epígrafe do artigo 77.º [do CPTA], numa “declaração de ilegalidade por omissão”, discutindo-se se o artigo previa ou não uma verdadeira condenação à emissão de normas regulamentares. A revisão do CPTA veio clarificar o ponto […] explicitando, tanto na epígrafe, como no texto do artigo, que o que nele está em causa é uma verdadeira condenação. Tornou-se assim mais claro que as pronúncias jurisdicionais proferidas ao abrigo do artigo 77.º reconhecem a existência de deveres e impõem o respetivo cumprimento, estabelecendo um prazo para o efeito […]»[7]. De acordo com o disposto no art. 77.º do CPTA, «o Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2 do artigo 9.º, […] e quem alegue um prejuízo diretamente resultante da situação de omissão podem pedir ao tribunal administrativo competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adoção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação» (n.1), sendo que, «quando verifique a existência de uma situação de ilegalidade por omissão, o tribunal condena a entidade competente à emissão do regulamento em falta, fixando prazo para que a omissão seja suprida» (n. 2). Os pressupostos da ação de condenação à emissão de normas regulamentares têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição administrativa e pela doutrina. Assim, pela positiva, esses pressupostos foram enunciados nos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 30.01.2007 (proc. n. 030/06) e de 06.05.2010 (proc. n. 0977/07), ambos acessíveis online in http://www.dgsi.pt/jsta, nos termos dos quais o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares depende do preenchimento dos seguintes pressupostos: i) que a omissão seja relativa à falta de emissão de normas cuja adoção possa considerar-se, sem margem para dúvidas, como uma exigência de lei; ii) que o ato legislativo careça de regulamentação para ser exequível, isto é, que faltem elementos para poder ser aplicada aos casos da vida visados no âmbito da norma, elementos esses cuja definição o legislador voluntariamente tenha endossado para a concretização através de regulamento; e iii) que a obrigação de regulamentar se tenha tonado exigível, por ter decorrido o prazo para efetuar a regulamentação. Pela negativa, o Tribunal Central Administrativo Sul, através dos Acórdãos de 09.12.2010 (proc. n.2161/06), de 12.05.2011 (proc. n.2252/07), acessíveis em http://www.dgsi.pt/jtca, esclareceu já que o interesse protegido na pronúncia condenatória à emissão de regulamentos cinge-se à inexistência de normação administrativa de execução de comando legal carecido da mesma para efeitos de operatividade, pelo que, na ação interposta por omissão ilegal de norma administrativa, o Tribunal apenas condena a Administração a preencher o vazio normativo existente, sendo este vazio que traduz a fonte da ilicitude por violação do dever de agir na vertente funcional normativa. Logo, segundo esta orientação, não teria cabimento conhecer de regulamentação insatisfatória ou deficiente. Esta orientação tem sido objeto de uma abordagem «corretiva» por parte de alguma doutrina[8]. Isto porque pode suceder que «a deficiência ou inadequação das normas equivalha à sua ausência para efeitos de operatividade da lei» [9], o que significa que, «nessas hipóteses, o interessado, quando deduz o pedido de condenação à emissão de normas, não está a solicitar ao tribunal que aprecie a conveniência do regulamento, mas que avalie se as normas emanadas dão efetivo cumprimento ao dever de regulamentar consagrado na lei»[10]. Como adverte a doutrina que advoga a admissibilidade de recurso à ação de condenação do art. 77.º do CPTA em caso de regulamento existente, mas com normas que padeçam de inadequação, insuficiência ou incompletude: «para que seja possível o uso da ação de condenação em face de regulamentos inválidos, é necessário que a norma regulamentar esteja a ser impugnada com força obrigatória geral. Isto porque a emissão e consequente vigência de um novo regulamento pressupõe a cessação da vigência do regulamento anterior, o que só é obtido mediante a impugnação com força obrigatória geral, a qual de facto elimina a norma regulamentar da ordem jurídica, ao contrário da declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral, que apenas garante a desaplicação da norma inválida àquele caso concreto, permanecendo esta vigente» [11]. Ora, no presente caso, a requerente formulou pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. Por outro lado, a insuficiência, inadequação ou deficiência do regulamento apenas podem ser conhecidas e declaradas no âmbito de uma ação de condenação à emissão de normas regulamentares quando «a deficiência ou inadequação das normas equivalha à sua ausência para efeitos de operatividade da lei. Basta pensar em hipóteses em que o regulamento emanado padeça de uma invalidade, precisamente por, contra a lei, afastar um direito que esta consagrava e cujo exercício dependia da emissão normativa; ou ainda em situações que o regulamento emitido […] não viabiliza a aplicação da lei que, apesar da emanação das normas, se vê impedida de produzir efeitos práticos» [12]. Ou, noutra formulação, «existem hipóteses em que a deficiência regulamentar autoriza o uso do artigo 77.º do CPTA»[13]. Ainda segundo a mesma doutrina, tais hipóteses verificar-se-ão quando as normas regulamentares, apesar de emitidas, padecem de inadequação, insuficiência ou incompletude, sendo admissível o recurso à ação de condenação do art. 77.º do CPTA em três situações distintas: i) em caso de antinomia de normas (ou seja quando uma norma regulamentar contrarie outra norma válida pertencente ao mesmo ordenamento, deixando um aspeto legislativo sem qualquer exequibilidade); ii) em caso de invalidade derivada (se a própria produção do regulamento tiver desrespeitado normas procedimentais como, por exemplo, normas de competência), inexistindo outro diploma regulamentar que possa ser objeto de repristinação; e iii) em caso de não supressão de lacuna que a lei fizesse depender precisamente do regulamento. Tudo em observância a um princípio de economia processual, permitindo ao interessado que, nesses casos em que se produza um vazio normativo, não seja necessário impugnar primeiro a norma e só depois pedir a emissão da norma devida. No caso concreto, o que a requerente alega, para sustentar a admissibilidade do seu pedido condenatório à emissão de normas, resume-se no seguinte: por um lado, os artigos 2.º, n. 1, e 6.º, n. 1, do ROD são completamente omissos quanto aos termos do tempo (quando) e modo (como) em que se deve processar a análise e fiscalização das declarações, nomeadamente em que situações são auditadas, por quem, com que procedimento, com que objetivo, com que participação do juiz visado, sem que se preveja, a existência de um encarregado de proteção de dados, deixando assim completamente por regulamentar, não só o art. 5.º, n. 2, da Lei n. 52/2019, como inclusive as normas constantes do Regulamento (UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. Por outro lado, os artigos do ROD reproduziriam acriticamente, para o universo de magistrados judiciais, as soluções que na Lei n.º 52/2019, se consagraram para os titulares de cargos políticos e equiparados, titulares de altos cargos públicos, juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, Procurador-Geral da República, Provedor de Justiça e membros dos Conselhos Superiores, quando «resulta com elementar clareza que o legislador não pretendeu que o modelo anexo à Lei n.º 52/2019, de 31de julho, fosse adotado no caso dos sujeitos previstos no seu artigo 5.º, tendo excluído expressamente aqueles destinatários da apresentação daquele modelo de declaração». Entende ainda a requerente que também a obrigação de acesso e publicidade constante do art. 17.º da lei habilitante «se cinge às declarações previstas no n.º 1 do artigo 13.º e no n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, as quais (…) excluem especificamente do seu campo de aplicação os sujeitos previstos no seu artigo 5.º», pelo que se imporia a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 3.º, 4.º e 5.º do ROD, o que implicará um vazio normativo que cumpre preencher pela emissão de novas normas regulamentares que deem cumprimento à obrigatoriedade de apresentação da declaração única e seu modelo, bem como os termos do acesso e publicidade da mesma. Independentemente do mérito da posição do requerente (que infra se apreciará), certo é que, no plano da admissibilidade processual, entende-se como justificada a formulação de pedido de condenação à emissão de normas devidas.
1.4. Os parâmetros de validade atendíveis na impugnação de um regulamento 1.4.1. Os regulamentos administrativos emergem do exercício do poder administrativo, o que determina que, enquanto atividade secundária, a atividade regulamentar se encontre sempre dependente e subordinada à atividade legislativa. O poder regulamentar da Administração Pública corresponde a uma parcela do poder normativo do Estado. Como tal, é na Constituição e na lei que reside o fundamento jurídico supremo do poder regulamentar, que lhe assinala as suas condicionantes e os seus limites, e é aí que radica o seu estatuto ([14]). A emissão de uma norma administrativa pressupõe a pré-existência de uma norma de valor superior que objetiva ou subjetivamente habilite o órgão ou a pessoa coletiva com competência regulamentar. A hierarquia normativa é o traço característico que mais incisivamente espelha as relações entre lei e regulamento, marcando a primariedade da primeira face ao segundo. Assim, as matérias que careçam de disciplina regulamentar têm de ser reguladas, em primeiro lugar, por diploma com força de lei. Segundo o nº 7 do artigo 112.º da Constituição, os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjetiva ou objetiva para a sua emissão. Idêntica exigência é feita no CPA, que no seu artigo 136.º, nº 2, exige que os regulamentos indiquem expressamente as leis que visam regulamentar, ou, no mínimo, as leis que definem a competência subjetiva e objetiva para sua emissão, designadamente quando se trate de regulamentos independentes. Tal implica uma dupla subordinação hierárquica: ao próprio regime legal pré dado, contido nas leis que as normas administrativas visam regulamentar (princípio da precedência de lei) e à definição de uma competência objetiva (quanto ao conteúdo) e subjetiva (quanto à autoria) do diploma regulamentar, que também devem estar definidos na lei.
1.4.2. Neste quadro, facilmente se compreende que, na primeira linha dos vícios que se podem apontar aos regulamentos administrativos, se encontre o vício de violação de lei, por desconformidade entre o ato regulamentar e um ato legislativo. O problema que aí se coloca é de ilegalidade, por se verificar uma «contradição entre duas normas não constitucionais, não […] a contradição entre uma norma ordinária e uma norma constitucional»[15], sendo certo que não é pelo facto de a CRP prescrever um princípio de prevalência de lei e, consequentemente, de subordinação do regulamento à lei [artigos 112.º, n. 7, e 199.º, alínea c), da Constituição] que se deve transformar a desconformidade entre o regulamento e a lei num vício de inconstitucionalidade ([16]). As ilegalidades que podem ser apreciadas nas impugnações de normas regulamentares correspondem a vícios «da incompetência do autor da norma, de vício de forma, ou de vício respeitante ao seu conteúdo, e, neste caso, designadamente, por contrariar diretamente a lei ou outra norma de hierarquia superior, ou por inconstitucionalidade da lei superior em que se baseia. […] Estamos, em todos estes casos, perante vícios de invalidade próprios; no entanto, como resulta do segmento final do n.º 1 [do art. 72.º do CPTA], a ilegalidade pode igualmente resultar da “invalidade de atos praticados no âmbito do respetivo procedimento de aprovação”, traduzindo-se numa forma de invalidade derivada.» ([17])
1.4.3. Mas a invalidade dos regulamentos não tem de se cingir nem circunscrever ao vício de violação de lei. Como se afirma na doutrina: «um fundamento de invalidade do regulamento administrativo pode também consistir na violação dos princípios gerais de direito administrativo, como expressamente decorre do n. 1 do artigo 143.º do CPA e vinha já sendo admitido pela doutrina […],como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé, […] consagrados na CRP (artigo 266.º) e no CPA (artigos 3.º a 19.º), que, enquanto princípios gerais, não deixam de ter aplicação no âmbito da atividade regulamentar» [18]. Na certeza, porém, de que «a invalidade dos regulamentos com fundamento autónomo na violação de princípios constitucionais (por exemplo, o princípio da proporcionalidade), determinando a inconstitucionalidade (e não a mera ilegalidade) do regulamento, não obsta a que esse vício possa ser controlado por um tribunal administrativo [ou por este STJ, na “sindicância” jurisdicional da atividade do CSM], mas só quando intervenha em apreciação incidental ou para efeitos de desaplicação da norma ao caso concreto, nos termos previstos no artigo 73.º, n.º 2, visto que está reservada à competência do Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas com força obrigatória geral.» ([19]).
2. A ilegalidade por omissão de um regime substantivo 2.1. As teses contrapostas
Na perspetiva da requerente, seria de concluir que o legislador não pretendeu que o modelo anexo à Lei n.52/2019 fosse adotado no caso dos magistrados, tendo no seu artigo 5.º excluído estes sujeitos da apresentação daquele modelo de declaração. Deste modo, os magistrados judiciais estariam excluídos do campo de aplicação dos Capítulos II e III da lei habilitante, e assim dos artigos 6.º a 21.º na sua exata redação. Daí extrai a requerente a conclusão de que, dada a redação do artigo 5.º, n. 1, da Lei n.º 52/2019, os magistrados judiciais não estão obrigados ao cumprimento do disposto nos seus artigos 13.º, 14.º e 17.º, na sua exata redação. Pelo contrário, o que resulta da lei é apenas uma obrigação geral de entrega da declaração, cujo regime de análise, fiscalização e aplicação do respetivo regime sancionatório deverá constar, de forma densificada, nos respetivos estatutos. Logo, ao remeter acriticamente para as normas constantes dos artigos 13.º e seguintes da Lei nº 52/2019, através do ROD, a entidade requerida omitiu o dever regulamentar a que se encontrava vinculada por via do disposto no artigo 5.º da mencionada lei. Seriam, assim, ilegais as soluções consagradas nos artigos 2.º a 6.º do ROD. Na perspetiva da entidade requerida, da redação da Lei n.º 52/2019, retirar-se-iam duas conclusões: que o legislador pretendeu manter a sua vontade de incluir os magistrados no rol de (altos) cargos públicos sujeitos às obrigações declarativas; e que os magistrados passam a apresentar as suas declarações junto dos respetivos Conselhos Superiores, sendo essa a única especificidade face aos demais sujeitos enunciados na lei, que continuam a apresentar as suas declarações junto da “Entidade para a Transparência”. Tudo o mais (as indicações genéricas sobre declaração a apresentar, ou seja, a declaração dos seus rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos), mantém-se para os magistrados. Ainda segundo a entidade requerida, uma interpretação correta do artigo 13.º, n. 1, da Lei n.º 52/2019, tendo presente a razão de ser da norma e toda a evolução da redação do diploma deve ser feita por dois momentos: na primeira parte do artigo 13.º, n. 1, estabelece-se perante que entidade os titulares dos cargos enumerados nos artigos 2.º, 3.º e 4.º entregam a sua declaração, que é a “Entidade para a Transparência” (não existindo a necessidade de se fazer referência aos magistrados, pois a já se tinha estabelecido no artigo 5.º, n.º 2, que estes apresentariam a sua declaração perante os respetivos Conselhos Superiores); na segunda parte do artigo 13.º, n. 1, constam as disposições genéricas sobre o prazo de entrega, 60 dias contados a partir da data de início do exercício das respetivas funções, e a indicação concreta de qual a declaração a que se faz referência: a anexa à presente lei, que dela faz parte integrante. O ROD limitou-se, pois, a observar estritamente o comando da lei habilitante, mesmo no que respeita à obrigação de preenchimento do campo relativo ao registo de interesses, uma vez que a lei refere claramente que todos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos estão obrigados a preencher a totalidade da declaração, e os magistrados não estão abrangidos pela exceção consagrada no fim do n. 4 do art. 13.º da Lei n.º 52/2019.
2.2. Apreciação das teses contrapostas quanto à ilegalidade por omissão 2.2.1. A Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, tem por escopo regular o «regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, suas obrigações declarativas e respetivo regime sancionatório» (art. 1.º). Este diploma veio estabelecer um novo regime legal tendo por objeto promover um eficaz combate à corrupção, através do controlo da riqueza dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, unificando os antigos regimes dispostos nas Lei n. 4/83, de 2 de abril, e na Lei n. 64/93, de 26 de agosto. Foi este o ponto de partida de um processo legislativo que teve início em 2016 e terminou em 2019 com a aprovação da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho ([20]). Para tanto, o legislador estabeleceu diversos âmbitos subjetivos de aplicação, criando quatro círculos de âmbito e de intensidades diversas quanto às obrigações declarativas. Num primeiro círculo, mais restrito, encontram-se os titulares de cargos políticos e os titulares de altos cargos públicos, referidos, respetivamente, nos artigos 2.º, n. 1, e 3.º, n. 1, destinatários diretos do diploma, como transparece do seu art. 1.º, que expressamente se lhes dirige, e como decorre dos diplomas que estiveram na origem remota deste diploma (Lei n.º 4/83, de 2 de abril, e Lei n.º 64/93, de 26 de agosto), estando estes sujeitos, nos seus exatos termos, a todas as obrigações decorrentes da lei. Num segundo círculo, opera-se um alargamento do âmbito subjetivo, no qual se encontram aqueles titulares a que a lei expressamente equipara a titulares de cargos políticos e a titulares de altos cargos públicos, referidos respetivamente nos artigos 2.º, n. 3, e 3.º, n. 2, igualmente sujeitos às obrigações, ainda que com ressalvas (vd. a exceção contida no art. 13.º, n. 4). Num terceiro círculo, esse alargamento é operado já para lá da equiparação supra estabelecida, pretendendo abranger titulares de cargos públicos distintos e afins dos cargos políticos e altos cargos públicos referidos nos artigos 2.º e 3.º, já com diversidade de situações (como resulta não só do art.1.º, que não se lhes refere diretamente, mas também do próprio art. 13.º, n.1, que distingue das situações anteriormente identificadas), abrangendo agora os titulares identificados no art. 4.º (juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, Procurador-Geral da República, Provedor de Justiça e membros dos Conselhos Superiores), também «sujeitos às obrigações declarativas previstas na presente lei». Num quarto círculo, com diversidade de situações e de enquadramento constitucional e legal, encontram-se os magistrados judiciais e do Ministério Público, também sujeitos às obrigações declarativas, mas «de acordo» e «nos termos dos respetivos estatutos», e junto dos respetivos Conselhos Superiores, «competentes para a sua análise, fiscalização e aplicação do respetivo regime sancionatório» (art. 5.º, n.os 1 e 2). Apesar desta diversidade de situações, e sem prejuízo das adaptações estabelecidas a propósito de cada um deles, todos estes titulares de cargos públicos se sujeitam às obrigações declarativas consagradas na Lei n.º 52/2019. Na lógica inicial do procedimento legislativo, iniciado em 2016, o controlo pretendido passaria pela unificação de regimes e de um modelo de declaração e, ainda por ser uma única entidade a proceder à análise, controlo e fiscalização das declarações. Todavia, tendo presente a independência do poder judicial e a atribuição constitucional e legal exclusiva dos Conselhos Superiores, nomeadamente da entidade requerida (artigos 217.º da Constituição da República e 149.º do EMJ), para nomeação, colocação, transferência, promoção, exoneração, apreciação do mérito profissional e exercício da ação disciplinar, tendo em vista a tutela constitucional e legal conferida à garantia da independência do poder judicial (artigos 203.º da CRP e 4.º, n.º 3, do EMJ), o legislador concluiu que esse caráter unitário não se poderia verificar, ao nível da exclusividade de competência de uma única entidade para análise, controlo e fiscalização (sem prejuízo da unidade de regimes substantivos e do modelo de declaração). Daí que, embora num momento inicial surgissem englobados no art. 4.º, à semelhança dos juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, do Procurador-Geral da República, do Provedor de Justiça e dos membros dos Conselhos Superiores, aquando da redação final, os magistrados judiciais e do Ministério Público ficaram enquadrados num preceito à parte, o art. 5.º. É o seguinte o teor deste art. 5.º Do próprio enunciado dos n.os 1 e 2 do art. 5.º decorre que o regime substantivo previsto na lei habilitante é aplicável às situações dos magistrados judiciais. E também se concluiu que a sua aplicação tem de ser efetuada nos termos dos respetivos estatutos dos magistrados judiciais, dos tribunais administrativos e fiscais e do Ministério Público. Decorre do artigo 7.º-E do EMJ, com a epígrafe «Dever de declaração», o seguinte: «Os magistrados judiais apresentam declarações de rendimentos e património nos termos da lei.» Trata-se de um preceito introduzido precisamente pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto, contemporâneo da lei habilitante. Assim da conjugação do artigo 5.º, n. 1, da Lei n.º 52/2019 e do artigo 7.º-E do EMJ conclui-se que os magistrados judiciais se encontram sujeitos às obrigações declarativas, nos termos da lei, o que só pode significar que se trata das declarações nos termos previstos na lei habilitante. Assim se conclui que os magistrados judiciais não se subtraem à unidade de regime substantivo e ao modelo único de declaração previstos na lei habilitante. Por seu turno, agora em cumprimento do disposto no n.2 do art. 5.º da Lei n.º 52/2019, o EMJ estabelece, no art. 149.º, n.1, alínea x), que «compete ao Conselho Superior da Magistratura assegurar o cumprimento das regras legais relativas à emissão e ao controlo das declarações de rendimentos e património dos magistrados judiciais e aprovar, em conformidade com a lei, os instrumentos necessários de aplicação» É por força desta disposição que a entidade requerida aprovou o ROD, que tinha como objetivo concretizar as regras aplicáveis aos magistrados judiciais decorrentes da Lei n.º 52/2019. No entanto, em nenhum momento ou preceito do EMJ se consagra uma especificidade do regime substantivo das obrigações declarativas. Os próprios artigos 7.º-A e 149.º, n.º 1, alínea x), ambos do EMJ, ao remeterem para os termos da lei, permitem concluir que as obrigações declarativas a que se sujeitam os magistrados judiciais são necessariamente as previstas na Lei n.º 52/2019, tendo o respetivo conteúdo como ponto de partida não apenas o articulado da lei, mas também o modelo anexo à mesma, que dela faz parte integrante.
2.2.2. Neste quadro, conclui-se que é no Capítulo III da Lei n.º 52/2019 que se encontram as disposições legais transpostas para as normas suspendendas e impugnadas nos presentes autos, contra as quais se insurge a requerente, que se estipulam as obrigações declarativas para os titulares de cargos públicos contidos no respetivo âmbito de aplicação, como o denuncia a própria epígrafe do capítulo. O Capítulo inicia-se com o art. 13.º, subordinado à epígrafe «Declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos».
O ponto de divergência reside nos n.os 1 e 4 deste artigo, os quais apresentam o seguinte teor: «1 - Os titulares de cargos políticos e equiparados e os titulares de altos cargos públicos referidos nos artigos 2.º e 3.º, bem como os referidos no artigo 4.º, apresentam por via eletrónica junto da entidade legalmente competente a definir nos termos do artigo 20.º, no prazo de 60 dias contado a partir da data de início do exercício das respetivas funções, declaração dos seus rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos, adiante designada por declaração única, de acordo com o modelo constante do anexo da presente lei, que dela faz parte integrante. Estas normas não se referem expressamente aos magistrados. Daí resulta, para a requerente, que os magistrados não têm de observar a estatuição do n.º 1 do art. 13.º. Não só não teriam de preencher em concreto a exata «declaração única, de acordo com o modelo constante do anexo da presente lei, que dela faz parte integrante», como a declaração que houverem de preencher (de acordo com o que for estabelecido pelos respetivos Conselhos Superiores) não é remetida para a entidade referida no art. 20.º da Lei n.º 52/2019, mas sim para os mesmos Conselhos Superiores (art. 5.º, n. 2). Do mesmo modo, dado que a previsão do n. 4 do art. 13.º apenas se reporta a «titulares de cargos políticos» e «titulares de altos cargos públicos», identificados nos artigos 2.º e 3.º da lei habilitante, sustenta a requerente não se aplica aos magistrados judiciais a obrigatoriedade de preenchimento de todos os campos do modelo de declaração. Porém, e ainda que se reconheça a deficiente técnica legislativa, julga-se que a solução interpretativa adequada não é a proposta pela requerente.
Quanto à previsão do n. 4, e ainda que a alusão a «titulares de cargos políticos» e «titulares de altos cargos públicos» pareça indiciar, à primeira leitura, que apenas se pretende reportar aos sujeitos da obrigação de declaração referidos nos artigos 2.º e 3.º da lei habilitante, sempre importará compaginar essa previsão com a do art. 1.º da Lei n.º 52/2019. Aí se deixa estabelecido, recorde-se, que «a presente lei regula o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, suas obrigações declarativas e respetivo regime sancionatório». Compaginando esta previsão com as dos demais artigos 2.º a 5.º, é inequívoco que o âmbito de aplicação subjetivo abrange outros titulares de cargos públicos que não os identificados naqueles artigos 2.º e 3.º. Tendo isto presente, e constatando também a alusão a «todos» consignada no início da previsão normativa do n.º 4, concluímos que este preceito abrange todo o universo de sujeitos obrigados à declaração de rendimentos. Por seu turno, uma interpretação correta do artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 52/2019, tendo presente a razão de ser da norma e toda a evolução da redação do diploma, deve ser efetuada associando a previsão ao primeiro segmento da estatuição, que indica a entidade perante a qual deve ser efetuada a declaração, por ser esta a única especificidade relevante para aquele universo de sujeitos das obrigações declarativas, face aos magistrados. Dito de outro modo, na primeira parte do artigo 13.º, n.1, estabelece-se perante que entidade os titulares dos cargos enumerados nos artigos 2.º, 3.º e 4.º entregam a sua declaração (que será uma entidade a definir em lei própria, nos termos do art. 20.º da mesma Lei n.º 52/2019). Não é esse o caso dos magistrados, não lhes sendo aplicável esse segmento da estatuição, posto que já se tinha estabelecido no artigo 5.º, n. 2, que estes apresentariam a sua declaração perante os respetivos Conselhos Superiores.
Mas significa isto que os magistrados não estão sujeitos à obrigação de declaração, nem ao modelo único anexo à lei habilitante? Concluiu-se que não. Como supra referido, o art. 5.º, n. 1, da Lei n.º 52/2019 e o art. 7.º-A do EMJ determinam a sujeição dos magistrados judicias à obrigação de declaração nos termos previstos na lei, esses termos terão de ser os estabelecidos no art. 13.º. Assim, considerando que na segunda parte do artigo 13.º, n. 1 constam as disposições genéricas sobre o prazo de entrega e a indicação concreta de qual a declaração a que se faz referência, e estando previstas nos n.os 2 e 3 as informações e o conteúdo da obrigação de declaração de rendimentos e património bem como de interesses, é esta disposição aplicável a todos os sujeitos abrangidos no âmbito de aplicação subjetivo do diploma, no qual se incluem os magistrados. De contrário, frustrar-se-ia o propósito legislativo de sujeitar também os magistrados judiciais e do Ministério Público às obrigações declarativas previstas na Lei n.º 52/2019. Diferentemente do defendido pela requerente, não se pode concluir que, pelo facto de o art.13º, n.1 não se referir expressamente aos magistrados, a entidade requerida, não pudesse aplicar essa disposição, tendo, antes, de prever mecanismos que concretizassem a aplicabilidade da lei habilitante à realidade dos magistrados judiciais. Decorre do princípio da legalidade da Administração, previsto nos artigos 266.º, n. 2, 1.ª parte, da CRP e 3.º do CPA, a exigência de observância, pela Administração, do princípio da supremacia ou da prevalência da lei e do princípio da reserva ou precedência de lei, que espelham a vinculação jurídico-constitucional da Administração. O princípio da precedência de lei determina que a atuação administrativa seja fundada numa lei prévia. Assim, sem uma norma legal que previamente defina as atribuições das entidades públicas e as competências dos respetivos órgãos, bem como os termos da sua atuação, a Administração Pública não teria poderes para agir ([21]). O princípio da prevalência da lei significa que a lei aprovada pelo Parlamento ou pelo Governo no exercício de competência legislativa tem superioridade e prevalência relativamente a quaisquer atos da Administração Pública. Trata-se de um princípio que vincula a administração, proibindo a prática de atos contrários à lei (proibição de desrespeito da lei), implicando a invalidade (anulabilidade ou nulidade) dos atos que a contrariem, e impondo-lhe a adoção das medidas necessárias e adequadas ao cumprimento da lei (exigência de aplicação da lei) ([22]). Seria neste último caso (exigência de aplicação da lei) que, na tese da requerente, se poderia situar a competência da entidade requerida para estabelecer as condições e as concretas obrigações declarativas dos magistrados, tendo presente que, se não compete ao CSM derrogar a lei habilitante, incumbir-lhe-ia assegurar-se de que as normas regulamentares que integram os estatutos dos magistrados judiciais devem dar operatividade ao comando legislativo previsto no artigo 5.º, n. 1, da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho. Daí que, segundo a requerente, constatando-se a inaplicabilidade do capítulo III, não poderiam as normas regulamentares ser determinadas por simples remissão para as normas constantes daquela norma legal que se revelem inaplicáveis, devendo ser estipuladas as condições em que a solução legislativa deve ser assegurada.
Simplesmente, ao obrigar os destinatários da Lei n.º 52/2019 (todos aqueles que se subsumam nas previsões nos artigos 2.º a 5.º), a uma obrigação de declaração, o legislador ordinário assumiu uma ponderação e valoração de um determinado bem jurídico, associado à transparência das instituições e dos titulares de cargos públicos, em detrimento de outro bem jurídico merecedor de tutela constitucional e legal: a reserva da intimidade privada desses mesmos titulares. Por conseguinte, verificando-se uma restrição a um direito fundamental (art. 26.º, n. 1, da Constituição), tal só poderá ser efetuado, ao nível do regime substantivo, por lei da Assembleia da República, ou decreto-lei do Governo autorizado pela mesma Assembleia [artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 165.º, n. 1, alínea b), da CRP]. Consequentemente, nunca poderia ser um regulamento administrativo da entidade requerida a definir o regime substantivo das obrigações declarativas dos magistrados (a declaração dos seus rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos, onde pode ser encontrada, que a mesma faz parte integrante da norma e o seu prazo de entrega). Como se afirma na doutrina «(…) pode dizer-se que restrição e concretização legislativa são conceitos opostos, uma vez que o primeiro se destina a comprimir por lei um conteúdo pré-existente, com ressalva do seu núcleo essencial, ao passo que o segundo se destina a construir por lei um certo conteúdo jusfundamental, a partir de um mínimo constitucionalmente determinável. (…) Mais distante da restrição, diminuição ou compressão do conteúdo do direito está o conceito de regulamentação, preenchimento ou desenvolvimento legislativo (ou, porventura, convencional) do direito. Com efeito, uma coisa é regulamentar, definindo pormenores relativos à aplicação prática das regras constitucionais sobre um certo direito, (…) de criação das condições organizativas ou instrumentais de exercício do direito (…); outra coisa bem diferente é restringir esse direito pela necessidade de garantir outros direitos ou em nome de determinados objetivos ou valores constitucionais (…)» ([23]).
Deste modo, o regime substantivo que restringe o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada (determinar o que deve constar da declaração, quais as obrigações declarativas, etc.) tem de estar contido em diploma legislativo, sob pena de inconstitucionalidade. É neste quadro que devem ser compreendidas, quer a estipulação da lei habilitante de que a sujeição dos magistrados às obrigações aí previstas teria de ser efetuada de acordo com e nos termos dos respetivos estatutos (e, portanto, perante os respetivos Conselhos Superiores), quer a estipulação no EMJ de que a entidade requerida teria de aprovar instrumentos necessários de aplicação. Assim, a requerente não tem razão quando entende que os magistrados judiciais estariam excluídos do campo de aplicação do Capítulo III da lei habilitante, e assim dos artigos 13.º a 21.º. E, consequentemente, também não tem razão quando entende que o legislador não pretendeu que o modelo anexo à Lei n.º 52/2019 fosse adotado no caso dos sujeitos previstos no seu artigo 5.º, tendo excluído expressamente aqueles destinatários da apresentação daquele modelo de declaração. Pelo exposto, tem de ser julgada improcedente a alegada ilegalidade por omissão da definição de um estatuto legal próprio e específico dos dados que os magistrados deveriam preencher, bem como a (correspetiva) ilegalidade com força obrigatória geral do art. 3.º, n.º 1, do ROD com esse fundamento. Por identidade de razão também não se pode concluir que exista ilegalidade por omissão da criação de um estatuto normativo próprio quando o art.5º do ROD remete para o art.17º da lei habilitante em matéria de “acesso e publicidade”.
3. Omissão ou insuficiente regulamentação quanto à análise e fiscalização pelo CSM Alega a demandante que os artigos 2.º, n. 1, e 6.º, n. 1, do ROD, nada estabelecem quanto aos termos da respetiva análise e fiscalização, violando assim o art. 5.º, n. 2, da lei habilitante. Estabelece o art. 2.º, n. 1, do ROD que «O Conselho Superior da Magistratura é a entidade competente para receber, analisar e fiscalizar as declarações apresentadas pelos magistrados judiciais previstas na Lei n.º 52/2019, de 31 de julho e, bem assim, para disponibilizar o acesso às mesmas». Por seu turno, determina o art. 6.º, n. 1, do ROD que, «Em caso de não apresentação ou apresentação incompleta ou incorreta da declaração e suas atualizações, o Conselho Superior da Magistratura notifica o magistrado judicial para suprir a omissão, completar ou corrigir a declaração, no prazo de 30 dias consecutivos ao termo de entrega da mesma». Facilmente se constata que o ROD nada diz acerca do «quando», nem a propósito do «como» se processa a análise e fiscalização das declarações. Não consta do ROD: que situações são auditadas?, por quem?, com que procedimento?, com que objetivo?, quais os moldes da participação do juiz visado? Tais matérias careciam de concretização em função, designadamente, das normas constantes do Regulamento (UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE, designado por Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, que preveem, por exemplo, a existência de um encarregado de proteção de dados, o que também não se prevê no âmbito do referido regulamento. Não estando em causa um aspeto substantivo e restritivo de direitos fundamentais, mas apenas complementar, regulamentar e executar a lei habilitante, não teriam de constar deste diploma as concretas soluções, incumbindo sim à entidade requerida operacionalizar estas matérias. A Lei n.º 52/2019 refere, no seu art. 20.º, que «A análise e fiscalização das declarações apresentadas nos termos da presente lei compete a entidade a identificar em lei própria, que define as suas competências, organização e regras de funcionamento». Será, portanto, em tal diploma que, para os demais sujeitos obrigados ao preenchimento da declaração única, ficarão estabelecidas as competências de análise e fiscalização da entidade competente. Constata-se que o ROD nada dispõe quanto aos termos em que se processa a análise e fiscalização das declarações, não dando, portanto, cumprimento ao disposto no art.20º da Lei n.52/2019. Deve concluir-se que, neste ponto, assiste razão à requerente. Consequentemente, existe fundamento para condenar a entidade requerida na emissão de norma que defina os termos em que se processa a análise e fiscalização das declarações, o que se determinará a final, no segmento dispositivo da presente decisão. * 4. Ilegalidades por ação
4.1. Da ilicitude do regime sancionatório previsto no ROD Segundo a requerente, o regime sancionatório a que se alude no art. 1.º do ROD, ao remeter para a Lei n.º 52/2019, seria ilegal, uma vez que, de acordo com os artigos 81.º e seguintes do EMJ, em particular os artigos 83.º-G, n. 1, alínea j), e 83.º-H, n. 1, alínea m), os magistrados judiciais apenas poderão ser sancionados nos termos do próprio estatuto, não lhes sendo aplicável o regime sancionatório previsto no artigo 11.º da Lei n.º 52/2019, de cujo âmbito de aplicação estariam excluídos os magistrados judiciais.
Estabelece o artigo 1.º da Lei n.º 52/2019, com a epígrafe «Objeto», que «A presente lei regula o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, suas obrigações declarativas e respetivo regime sancionatório». Assim o ROD, no seu artigo 1.º. ao estabelecer que «O presente diploma concretiza as regras aplicáveis aos magistrados judiciais decorrentes da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que regula o regime de exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, suas obrigações declarativas e respetivo regime sancionatório», limita-se a identificar a lei habilitante, pelo seu número e objeto. Por seu turno, o art. 5.º, n. 1, da lei habilitante estatui que, «De acordo com os respetivos estatutos, os magistrados judiciais e os magistrados do Ministério Público ficam também sujeitos às obrigações declarativas previstas na presente lei». Assim, apenas o regime substantivo, referente às obrigações declarativas, que decorrem do Capitulo III da Lei n.º 52/2019, são aplicáveis à situação dos magistrados. Ora, o regime sancionatório da Lei n.º 52/2019 encontra-se previsto no artigo 11.º, logo fora do Capítulo III correspondente às obrigações declarativas. Quanto ao regime sancionatório, resulta do disposto no n.º 2 do mesmo art. 5.º da Lei n.º 52/2019, que: «As declarações devem ser entregues, respetivamente, junto do Conselho Superior da Magistratura […], competente[e] para a sua análise, fiscalização e aplicação do respetivo regime sancionatório, nos termos dos respetivos estatutos». Assim, e tendo também em conta o disposto no art. 149.º, n.os 1, alínea x), e 2, ambos do EMJ, o regime sancionatório aplicável aos magistrados, mesmo por violação das obrigações de declaração, será o que decorre do próprio EMJ. Ora, o artigo 6.º, n.º 2, do ROD estabelece que: «Sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, a não apresentação das declarações nos moldes aludidos nos artigos 3.º e 4.º é suscetível de gerar a responsabilidade disciplinar prevista nos artigos 83.º-G, alínea j), e 83.º-H, alínea m), do Estatuto dos Magistrados Judiciais». Conclui-se, pois, que o ROD aplica inequivocamente o regime sancionatório decorrente do EMJ, nos termos devidos. Improcede, por conseguinte, a pretensão da requerente com este fundamento.
4.2. Da ilicitude da declaração de interesses Entende a requerente que, dado que o art. 13.º, n. 4, da Lei n.52/2019 apenas se aplica aos «titulares de cargos políticos e altos cargos públicos», os quais se encontram devidamente identificados no artigo 2.º e no artigo 3.º dessa lei, a obrigatoriedade de preenchimento de um registo de interesse para os magistrados é ilegal, por violação de lei. Acrescenta a requerente que o ROD, ao remeter para o modelo de declaração anexo à Lei n.º 52/2019, em particular no que respeita Ponto 3 da Divulgação n.º 66/2021, incumpre o disposto no artigo 8.º-A do EMJ, o qual refere que «os magistrados judiciais em efetividade de funções ou em situação de jubilação não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada de natureza profissional». Portanto, para além da violação do art. 13.º, n.º 4 da lei habilitante, concluir-se-ia ainda que o artigo 3.º do ROD não se coadunaria com o disposto no artigo 8.º-A, n.os 2 e 3, na medida em que promoveria a declaração de factos que proibidos por lei, e suscitaria dúvidas quanto à violação do princípio da autoincriminação em matéria disciplinar. Quanto à suposta ilicitude por desconformidade com o teor do art. 13.º, n.º 4, da Lei n.º 52/2019 reitera-se o supra afirmado. Não é correta a asserção da requerente, portanto, quando sustenta que o registo de interesses previsto naquela disposição da Lei n.º 52/2019 não seria aplicável aos magistrados judiciais. Quanto ao mais, e como sustenta a entidade requerida, certo é que a nova redação do EMJ decorrente da Lei n.º 67/2019, de 26 de agosto, e a realidade do quotidiano (ilustrada com vários exemplos de pedidos de autorização de magistrados para o exercício de outras atividades) revelam a necessidade nesse preenchimento do registo de interesses. Assim, da nova redação ao EMJ resultou, e para os efeitos que ora interessa apurar, a consagração do novo art. 8.º-A, com o seguinte teor:
Decorre deste preceito que os magistrados que não estejam em efetividade de funções podem desempenhar outras funções públicas ou privadas de natureza profissional, e que os magistrados em exercício de funções podem desempenhar funções públicas ou privadas que não tenham caráter profissional.
Assim, por um lado, um magistrado que não se encontrava em efetividade de funções podia desempenhar outras funções públicas ou privadas de natureza profissional, podendo depois voltar à efetividade de funções. Assim sucederá no caso das licenças sem remuneração de longa duração, ou nas autorizações concedidas a magistrados pela entidade requerida para o exercício de funções públicas ou inclusive governativas, revelando-se de todo pertinente que após o terminus destas situações seja preenchida na declaração única, e inclusivamente o registo de interesses relativo a este período em que o magistrado não estava impedido de desempenhar funções de natureza profissional. Outro exemplo aludido pela entidade requerida, com total pertinência, é o caso dos magistrados que iniciam a sua carreira tardiamente, após o exercício de outras atividades profissionais. Nesse tipo de situações, aliás, também o EMJ, na alínea e) do seu artigo 7.º, relativamente aos impedimentos, dispõe que se encontra vedado aos magistrados judiciais «servir em juízo cuja área territorial abranja o concelho em que, nos últimos cinco anos, tenham desempenhado funções de Ministério Público ou de advogado ou defensor nomeado no âmbito do apoio judiciário ou em que, em igual período, tenham tido escritório de advogado, solicitador, agente de execução ou administrador judicial». Por identidade de razão, vislumbra-se nestes casos ser totalmente pertinente o preenchimento do registo de interesses. Outras situações há em que esse preenchimento do registo de interesses se justifica, como deu conta a entidade requerida, resulta plasmado em legislação anotada pela doutrina ([24]) e está disponível online no site da requerida com referência a deliberações diversas que o CSM adotou, seja com referência ao exercício de outras atividades/funções sociais e cívicas por magistrados judiciais (que vão desde a presidência de comissões de apelo, presidência de conselhos judiciais e de justiça, presidências de conselhos consultivos, membros de conselhos de fundações, etc.), seja situações que acarretam um acréscimo patrimonial por parte dos magistrados. Além do mais, as situações a descrever no campo relativo aos registos de interesses da declaração única dizem respeito a toda e qualquer atividade pública ou privada que o declarante exerça, ou tenha exercido nos últimos três anos ou que venha a exercer em acumulação com o mandato ou que tenha exercido até três anos após a cessação de funções, incluindo atividades profissionais subordinadas, comerciais ou empresariais, exercício de profissão liberal e de funções eletivas ou de nomeação. Assim, estão aqui incluídas atividades que não são vedadas aos magistrados, porque a declaração requer a indicação de toda e qualquer atividade pública ou privada (profissional ou não, remunerada ou não), sem que exclusividade de funções possa aqui ser invocada, por conseguinte, como vicissitude que obsta à aplicabilidade do citado registo de interesses. Face ao exposto deve ser julgada improcedente a pretensão da requerente quanto a este ponto.
4.3. Periodicidade da entrega de declarações – art.4º do ROD Alega a requerente que a periodicidade de entrega das declarações a que se refere o art. 4.º do ROD viola o princípio da proporcionalidade e estabelece um regime mais gravoso que a própria lei habilitante. Afirma que o facto de o magistrado ter de apresentar declarações sempre que muda de tribunal ou usa de licença de parentalidade é desproporcional e irrazoável.
No que respeita à periodicidade da declaração, estabelece o artigo 14.º da Lei n.52/2019:
O regime da lei habilitante prevê a apresentação de declarações em quatro momentos distintos: declaração inicial (art. 13.º, n.os 1 e 3); declaração de alteração, durante o exercício do cargo (art. 14.º, n.º 2); declaração final, no termo de funções (art. 14.º, n.º 1); e declaração final atualizada, 3 anos após o fim do exercício do cargo (art. 14.º, n.os 4 e 5). O objetivo da lei é o de permitir a fiscalização da evolução da situação patrimonial durante o período de tempo correspondente ao exercício dos cargos, por natureza temporários, entre o início de funções e três anos após o seu termo, para prevenir e detetar a aquisição de riqueza por meios ilícitos.
Sobre esta matéria, estabelece o art. 4.º do ROD, com a epígrafe «Renovação e atualização da declaração», o seguinte:
O ROD define, assim, o seguinte regime de apresentação de declarações, relativamente aos juízes que permanecem em funções jurisdicionais sem interrupções: - declaração inicial a seguir à publicação do regulamento e depois, aos novos juízes, a partir da posse subsequente à primeira nomeação (art. 3.º); - atualização da declaração a seguir à posse em cada novo lugar isto é, quando inicia funções em qualquer tribunal, cuja nomeação seja publicada em Diário da República (artigos 53.º e 57.º do EMJ), o que ocorre nas situações previstas nos artigos 42.º, 43.º, 45.º, 46.º e 50.º do EMJ, ou ainda nos casos decorrentes de interrupção por força de licença (art. 4.º, n.os 1 e 3); - declaração de alteração, durante todo o período de exercício de funções, sempre que se verifique uma alteração patrimonial em montante superior a 50 salários mínimos mensais (art. 4.º, n.º 5). Do confronto do art.4º do ROD com o art.14º da Lei n.52/2019, conclui-se que o regime previsto para os magistrados judiciais é mais gravoso do que o estabelecido no artigo 14.º da lei habilitante, dado que este foi pensado essencialmente para os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, cuja duração dos cargos é temporalmente limitada, estando, em alguns casos, proibida a sua renovação (conforme resulta da Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto). O art. 14.º da lei habilitante está essencialmente dirigido a situações de cargos eletivos ou cargos que detêm uma duração curta, atendendo à sua natureza temporária, o que não se verifica quanto ao regime de funções dos magistrados judiciais, cuja duração, em regra, é vitalícia. Cabe, portanto, apurar se o estabelecido no art. 4.º do ROD viola o princípio da proporcionalidade, tendo por base a adequação do ROD à norma do art. 14.º da lei habilitante. O princípio da proporcionalidade em sentido amplo, enquanto princípio geral de limitação dos poderes públicos, decorre do princípio geral do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP, exercendo uma função de controlo da atuação do Estado-legislador e Estado-administrador, tendo em vista a adequação das medidas a adotar aos fins pretendidos. Este princípio encontra acolhimento expresso no art. 18.º, n.º 2 da CRP (segundo o qual «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»), e, no que respeita à matéria dos presentes autos, no 266.º, n.º 2, da CRP, o qual estabelece que: «Os órgãos e agentes da administração estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da boa-fé».
Em conformidade com tal preceito constitucional, estatui o artigo 7.º, n. 2, do CPA que «As decisões da Administração que colidam com direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afetar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objetivos a realizar». O legislador pretendeu, assim, afirmar que a Administração não está obrigada apenas a prosseguir o interesse definido pelo legislador, mas a consegui-lo pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições jurídicas dos particulares, ou seja, com respeito pela proporcionalidade, que, no dizer da doutrina, «(…) é o princípio segundo o qual a limitação dos bens ou interesses privados por atos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais atos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins» ([25]). O princípio da proporcionalidade exige que, no exercício dos poderes discricionários, a Administração não se baste em prosseguir o fim legal justificador da concessão de tais poderes: ela deverá prosseguir os fins legais, os interesses públicos, primários e secundários, segundo o princípio da justa medida, adotando, de entre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins e prosseguir esses interesses, aquelas menos gravosas, que impliquem menos sacrifícios ou perturbações à posição jurídica dos administrados.
O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três vertentes: o princípio da adequação, o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. O princípio da adequação impõe que as medidas adotadas sejam aptas a realizar o fim ou fins que têm em vista alcançar. A atuação administrativa deve ser, assim, congruente com as circunstâncias do caso e os fins que a justificam, impondo-se uma avaliação causa-efeito entre, por um lado, o meio ou solução propostos, e, por outro lado, o objetivo a atingir. Os critérios da Administração Pública têm de ser possíveis de conduzir ao fim do ato, que, por seu turno, deve coincidir com o fim legal.
O princípio da necessidade exige que se escolha, de entre todos os meios idóneos e de igual modo aptos a prosseguir o fim visado, aquele que produza um efeito menos restritivo. A medida administrativa deve ser necessária para o cumprimento dos fins que determinam a atuação pública, de tal sorte que a Administração só deve sacrificar o direito do particular quando tal se revele indispensável para a prossecução do interesse público. Trata-se de aferir se existem outras medidas idóneas que sejam menos lesivas dos vários interesses em presença. Como afirma a doutrina: «(…) o princípio da proporcionalidade assume-se como um princípio comparativo, obrigando à realização de um confronto entre diferentes meios: entre o meio efetivamente utilizado e outros meios hipoteticamente disponíveis para alcançar o fim almejado pelo legislador (e constitucionalmente almejado). O problema agora não é tanto de eficácia do meio eleito pelo legislador como de eficiência ─ da sua eficiência comparada com outros meios, com outras soluções legais, com outras vias de abordar o mesmo problema» ([26]). O princípio da proporcionalidade em sentido estrito proíbe a adoção de medidas excessivas ou desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos. A atuação administrativa deve, nesta perspetiva, ser tomada na justa medida da situação carecida de resolução. A Administração deve pesar a relação entre os benefícios que vai obter para o interesse público e os prejuízos correlativos que vai impor ao particular, exigindo-se que se esteja perante um meio equilibrado. Este princípio põe em confronto os interesses perseguidos com a escolha do procedimento e os bens, interesses ou valores sacrificados por essa decisão, obrigando a verificar se o resultado obtido com a limitação de efeitos configura uma justa medida face ao sacrifício de interesses que a mesma implica. Meios e fim são, assim, «colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim» ([27]).
Tal implica uma ponderação de bens: de um lado, o bem jusfundamental que é objeto de restrição; do outro, o bem constitucional justificador dessa intervenção restritiva. Segundo a doutrina, trata-se de «apreciar o desvalor do sacrifício imposto (…) quando comparado com o valor do bem que se pretende atingir. Assim, ao contrário do que acontecia nos controlos de idoneidade e de indispensabilidade - exclusivamente centrados na apreciação do meio e dando, à partida, como bom, ou pelo menos, inquestionável o fim visado -, na proporcionalidade faz-se necessariamente uma valoração das duas grandezas ou termos da relação em causa, apreciando-se a gravidade da restrição em associação à importância e imperatividade das razões que a justificam”» ([28]). Para que se possa apreciar, no caso concreto, a alegada violação do princípio da proporcionalidade, importa ter presente o fim visado com a periodicidade da declaração única referida pela lei habilitante. A Lei n.º 52/2019 pretende ser um instrumento de combate à corrupção, visando o aumento da confiança dos cidadãos através da transparência, sendo o cumprimento das obrigações declarativas, nela previstas, um meio idóneo à prossecução do interesse público em causa.
Sendo os juízes nomeados vitaliciamente, não seria eficiente, tendo em conta o fim a que a lei se propõe, que as obrigações declarativas se cingissem à data da nomeação e à data do desligamento do serviço, havendo que determinar a periodicidade dessa obrigação. Todavia, a solução gizada no art. 4.º do ROD, ao reportar essa obrigação a cada tomada de posse (à semelhança dos demais titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos) acaba por pretender assegurar esse desiderato através de meios, não só mais lesivos de que outros meios ou medidas disponíveis, violando assim o princípio da necessidade, como também desproporcional ao fim visado. Efetivamente, o art. 4.º do ROD alarga o regime de apresentação de nova declaração a situações de suspensão e de interrupção do exercício de funções, ao que acresce a circunstância de se revelar mais exigente que o disposto no seu artigo 14.º da lei habilitante (que tem como ponto de partida a duração em média de um cargo político de 4/5 anos), uma vez que no caso dos magistrados, com a formulação do artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento, pode determinar a entrega da referida declaração sempre que os magistrados judiciais mudem de lugar por força do movimento judicial, e assim com uma periodicidade em média de dois em dois anos, com inteira desconsideração do período temporal decorrido com a colocação no lugar anterior. A desproporcionalidade decorre igualmente, por inerência temporal, do facto de se permitir o acesso de terceiros, nos exatos termos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, à declaração única dos magistrados judiciais, respeitante a um período que corresponde a toda a sua vida ativa (e para além dela), quando os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, em regra, apenas, terão as suas declarações acessíveis, quanto a períodos curtos (os períodos em que tipicamente exercem esses tipos de funções).
Ora, a obrigação de atualização da declaração não poderá ser transposta acriticamente para os magistrados judiciais, desde logo, tendo em conta a natureza das funções desempenhadas e, por outro lado, por não se vislumbrar a existência de uma alteração patrimonial relevante em cada 2 anos, até que cesse a sua carreira (de duração média de 40 anos). Assim, aliado ao regime de publicidade aplicável, a periodicidade exigida pelo ROD irá determinar e permitir a publicidade dos dados pessoais e rendimentos dos magistrados, por um tempo praticamente indeterminado, que só cessa no termo da carreira. Assim, impõe-se que o início e a cessação do exercício de funções seja interpretado de forma adequada ao fim pretendido com o referido diploma e tendo em conta o tipo de funções exercidas. Nessa perspetiva, uma correta interpretação da norma habilitante impede que se imponha o dever de atualização e renovação da obrigação declarativa nos termos amplos decorrentes do artigo 4.º, n.º 1, não se mostrando razoável e, por sua vez, proporcional, por excessiva, ainda que se possa considerar razoável a consagração da imposição de apresentação da declaração aos casos de suspensão e interrupção do exercício de funções. Cabe notar que, em situações idênticas, os demais regulamentos afins, aprovados pelo Conselho Superior do Ministério Público e pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais [referidos nos pontos 9) e 10) do probatório], consagram soluções nos termos das quais, em condições normais, os magistrados apresentam a declaração de cinco em cinco anos. Em resumo, deve proceder a pretensão da requerente quanto a esta matéria, devendo ser declarada a ilegalidade, com força obrigatória geral, do art. 4.º, n.1 do ROD, por violação do princípio da proporcionalidade no que respeita ao estabelecimento da periodicidade normal de entrega de declaração.
4.4. Publicidade dos dados e acesso à declaração (RGPD) Alega a requerente que o art. 5.º do ROD viola, por omissão, os artigos 5.º, 13.º, 15.º, 25.º, 32.º, 37.º a 41.º do RGPD, artigos 9.º a 13.º e 21.º da LPDP, art. 9.º do LADA, e artigos 17.º e 19.º do REFTCP. O art. 5.º do ROD estatui, singelamente, o seguinte: «As declarações apresentadas pelos magistrados judiciais previstas nos artigos anteriores são de acesso público, nos termos do artigo 17.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, cumprindo ao Conselho Superior da Magistratura facultar a consulta das declarações e assegurar que a mesma decorra com observância dos limites e condicionantes estabelecidos por aquele preceito legal.» Estabelece o art. 17.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho: c) Relativamente a quotas, ações, participações ou outras partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, apenas é disponibilizado para consulta o seu quantitativo e o nome da sociedade respetiva; 8 - Com fundamento em motivo atendível, designadamente interesses de terceiros ou salvaguarda da reserva da vida privada, o titular do cargo pode opor-se ao acesso parcelar ou integral aos elementos constantes da declaração de rendimento e património, competindo à entidade responsável pela análise e fiscalização das declarações apresentadas apreciar a existência ou não do aludido motivo, bem como da possibilidade e dos termos do referido acesso.
Considerando que, com aquela memissão, o art. 5.º do ROD acaba por dispor sobre a recolha, tratamento, utilização, análise e controlo de dados pessoais, há que concluir que a mesma norma se encontra submetida ao regime do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (RGPD), o qual assume, por via do disposto no artigo 8.º da CRP, valor supralegal decorrente do efeito direto e do primado do direito da União Europeia.
Como estabelece o art. 4.º do RGPD, consideram-se: 1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular; 2)«Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição.
Sustenta a requerente que, enquanto entidade que trata os dados pessoais para os efeitos do ROD, a entidade requerida se encontra vinculada ao cumprimento do RGPD, devido ao valor que o mesmo ocupa na hierarquia das fontes e face ao disposto no artigo 143.º do CPA. Encontra-se, assim, a entidade requerida sujeita, além do mais, ao disposto no art. 30.º do RGPD, nos termos do qual: «Cada responsável pelo tratamento e, sendo caso disso, o seu representante conserva um registo de todas as atividades de tratamento sob a sua responsabilidade. Desse registo constam todas seguintes informações: a) O nome e os contactos do responsável pelo tratamento e, sendo caso disso, de qualquer responsável conjunto pelo tratamento, do representante do responsável pelo tratamento e do encarregado da proteção de dados; b) As finalidades do tratamento dos dados; c) A descrição das categorias de titulares de dados e das categorias de dados pessoais; d) As categorias de destinatários a quem os dados pessoais foram ou serão divulgados, incluindo os destinatários estabelecidos em países terceiros ou organizações internacionais; e) Se for aplicável, as transferências de dados pessoais para países terceiros ou organizações internacionais, incluindo a identificação desses países terceiros ou organizações internacionais e, no caso das transferências referidas no artigo 49.º, n.º 1, segundo parágrafo, a documentação que comprove a existência das garantias adequadas; f) Se possível, os prazos previstos para o apagamento das diferentes categorias de dados; g) Se possível, uma descrição geral das medidas técnicas e organizativas no domínio da segurança referidas no artigo 32.º, n.º 1.»
Nos termos do art. 32º do RGPD, a entidade requerida é ainda responsável por atestar e garantir a segurança do tratamento dos dados pessoais, encontrando-se, designadamente, obrigado: à pseudonimização e a cifragem dos dados pessoais: à capacidade de assegurar a confidencialidade, integridade, disponibilidade e resiliência permanentes dos sistemas e dos serviços de tratamento; à capacidade de restabelecer a disponibilidade e o acesso aos dados pessoais de forma atempada no caso de um incidente físico ou técnico; a um processo para testar, apreciar e avaliar regularmente a eficácia das medidas técnicas e organizativas para garantir a segurança do tratamento. A indicação do responsável pelo tratamento dos dados, que se encontra omisso no ROD, é particularmente importante nos casos previstos no artigo 33.º do RGPD, referentes à notificação de incidentes de violação de dados pessoais, e nos casos previstos nos artigos 35.º e 36.º do RGPD, referentes à elaboração de avaliações de impacto sobre a proteção de dados. Relativamente ao acesso à informação, estabelece o artigo 16.º da Lei da Proteção de Dados Pessoais, Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto (LPDP), que este se processa nos termos do disposto na Lei de Acesso a Documentos Administrativos, aprovada pela Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto (LADA), a qual aprova o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, transpondo a Diretiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro, e a Diretiva 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de novembro. Nestes termos, a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, lei habilitante do ROD (logo, também este), deve obediência ao disposto na LADA, uma vez que esta última norma procede à transposição para a ordem jurídica interna de normas de direito da União Europeia, nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da CRP. Estabelece a LADA, no seu artigo 9.º, que «Cada órgão ou entidade referida no n.º 1 do artigo 4.º deve designar um responsável pelo cumprimento das disposições da presente lei, a quem compete nomeadamente organizar e promover as obrigações de divulgação ativa de informação a que está vinculado o órgão ou a entidade, acompanhar a tramitação dos pedidos de acesso e reutilização e estabelecer a articulação necessária ao exercício das competências da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, doravante designada por CADA»
Nos termos dos artigos 35.º e 36.º do RGPD, a entidade requerida encontra-se vinculada a consultar a autoridade de controlo (Comissão Nacional de Proteção de Dados) antes de proceder ao tratamento, visto que a avaliação de impacto sobre a proteção de dados nos termos do artigo 35.º indica que o tratamento resultaria num elevado risco na ausência das medidas tomadas pelo responsável pelo tratamento para atenuar o risco. Para o efeito, torna-se essencial que, ao abrigo do ROD, seja indicado um encarregado de proteção de dados, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 37.º e 38.º do RGPD, que deverá emitir parecer, designadamente, sobre o impacto da proteção de dados, e cumprir com as obrigações constantes do artigo 38.º do RGPD. Estas omissões assumem relevância porque, nos termos dos artigos 77.º a 79.º e 82.º do RGPD e ainda do artigo 33.º da LPDP (sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou judicial), todos os titulares de dados têm direito a reclamar junto da autoridade de controlo, no caso a CNPD, e qualquer pessoa que tenha sofrido danos materiais ou imateriais devido a uma violação do RGPD, tem direito a receber uma indemnização pelo responsável pelo tratamento, pelos danos sofridos do incorreto tratamento dos dados nos termos previstos naquele regulamento. Por outro lado, segundo o regime sancionatório previsto nos artigos 37.º e 38.º da LPDP, enquanto a entidade requerida não adaptar o ROD àquelas normas e não o tornar operativo em face das normas que ali se mencionam, entrará em incumprimento daquele regime, ficando sujeito às sanções previstas naqueles artigos.
Em resumo, deve concluir-se que assiste razão à requerente quando alega que se verifica a deficiente regulamentação do ROD, no que respeita às normas do RGPD, verificando-se também contrariedade ao disposto no art. 18.º do CPA, o qual estabelece que «Os particulares têm direito à proteção dos seus dados pessoais e à segurança e integridade dos suportes, sistemas e aplicações utilizados para o efeito, nos termos da lei». Existe, assim, fundamento para declarar (no segmento dispositivo) a ilegalidade com força obrigatória geral do art. 5.º do ROD, por ação (violação de normas supraordenadas com referência à proteção de dados) e por omissão, devendo a entidade requerida, suprindo essa omissão, definir: - as medidas técnicas e organizativas adequadas (artigos 25.º e 32.º do RGPD); - a indicação do encarregado de proteção de dados (artigos 13.º, 37.º a 39.º do RGPD, artigos 9.º a 13.º da LPDP e artigo 9.º do LADA); - a indicação do prazo de conservação dos dados pessoais ou, se não for possível, os critérios usados para definir esse prazo (art. 21.º da LPDP, e alínea a) do n.º 2 do art. 13.º do RGPD); - a previsão da audição do titular do cargo (artigos 15.º do RGPD, n.os 7 e 8 do art. 17.º do REFTCP).
4.5. Acesso a dados que permitem identificar bens móveis e imóveis Insurge-se a requerente contra o art. 5.º do ROD por, acolhendo sem adaptações a solução do artigo 17.º, n.º 3, alíneas b) e d), da Lei n.º 52/2019, permitir o acesso a dados que possam identificar bens móveis e imóveis. Na perspetiva da requerente, impunha-se que a norma constante do artigo 17.º, n.º 3, alíneas b) e d), da Lei n.º 52/2019 fossem devidamente adaptadas pelo ROD, uma vez que a sua remissão acrítica para as normas constantes daquele diploma legal, para além de omissão por deficiente regulamentação, põe em causa o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, consagrada no artigo 80.º do Código Civil, e à segurança [direito a proteção especial de que beneficiam os magistrados, para sua segurança pessoal e familiar e dos seus bens, conforme resulta do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do EMJ, artigos 25.º e 27.º, n.º 1, da CRP e artigos 2.º, n.º 1, e 5.º da CEDH].
O art. 5.º do ROD limita-se a remeter para o teor do art. 17.º da lei habilitante, a qual estatui no seu n.º 2: «Não são objeto de consulta ou acesso público os seguintes elementos da declaração: a) Dados pessoais sensíveis como a morada, números de identificação civil e fiscal, números de telemóvel e telefone, e endereço eletrónico; […] c) Dados que permitam a identificação individualizada da residência, exceto do município de localização, ou de viaturas e de outros meios de transporte do titular do cargo».
Algo contraditoriamente, porém, no seu n.º 3, o mesmo preceito estatui que, «No que respeita a dados sobre rendimentos e património, a consulta da declaração garante: […] b) Relativamente ao património imobiliário, é disponibilizado para consulta a identificação de cada imóvel, pela sua matriz, localização e valor patrimonial […]».
No n.2 do art.17º, o legislador revela ter ponderado os valores de transparência prosseguidos pelo diploma e as necessárias garantias atinentes à intimidade da vida privada e familiar e à segurança física dos titulares de cargos públicos. E, nessa ponderação, assume uma posição inequívoca na garantia destes últimos bens jurídicos, quando exclui expressamente a possibilidade de acesso de acesso de «Dados pessoais sensíveis como a morada [ou] que permitam a identificação individualizada da residência, exceto do município de localização […]». Porém, logo a seguir permite o acesso a dados que frustram essa garantia, nomeadamente pela disponibilização «[…] para consulta a identificação de cada imóvel, pela sua matriz, localização e valor patrimonial […]». Ora, estabelece o art. 93.º, n.º 7, do Código do Imposto Municipal sobre Imoveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, que: «Os advogados e solicitadores podem, no exercício da sua profissão, ter acesso à informação constante das cadernetas prediais, sem que se lhes possa opor o regime da confidencialidade, nas seguintes condições: a) Quando se trate de matéria relacionada com o interesse efetivo dos respetivos clientes; b) Sujeição a deveres de confidencialidade relativamente à informação que consultam». Por sua vez, o artigo 104.º do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de julho, com a epígrafe «Caráter público do registo», refere que: «Qualquer pessoa pode pedir certidões dos atos de registo e dos documentos arquivados, bem como obter informações verbais ou escritas sobre o conteúdo de uns e de outros». Daqui resulta que o acesso ao endereço da casa de morada de família dos magistrados poderá ser facilmente alcançado se a divulgação dos elementos da matriz constarem dos elementos a consultar publicamente. Existe aqui uma contradição entre os dois preceitos da própria lei habilitante, posto que a solução do n.º 2 do art. 17.º é parcialmente oposta à da alínea b) do n.º 3.
Por outro lado, a identificação do imóvel, através da matriz predial, é igualmente violadora do princípio da proporcionalidade, porque não se adequa à finalidade prevista na lei habilitante: assegurar a transparência quanto à situação patrimonial dos visados na lei. Na verdade, em cumprimento da norma contida no artigo 17.º, n.º 3, da Lei n.º 52/2019, não será necessário identificar o imóvel através da matriz ou da sua concreta localização para que o objetivo da norma fique salvaguardado. Por outro lado, importa ter presente que a entidade requerida, ao aprovar o ROD, estando sujeita ao regime substantivo da lei habilitante, está também, nos termos exigidos por essa mesma lei (art. 5.º, n.º 1), obrigada a observar exigências estabelecidos no EMJ, sem prejuízo de outras disposições que compõem o bloco de legalidade a que se encontra adstrito o CSM. Entre elas avulta uma preocupação legislativa, acrescida em virtude das funções exercidas pelos magistrados judiciais, com a proteção especial de que beneficiam os juízes, para sua segurança pessoal e familiar e dos seus bens, conforme resulta do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do EMJ. Com efeito, o acesso àquele tipo de dados, designadamente à casa de morada de família, configura um aumento sensível de risco de retaliação sobre a pessoa dos magistrados judiciais ou das suas famílias e sobre os seus bens, que passa a ser facilitado pelo acesso público a elementos patrimoniais que permitem a fácil localização da residência habitual ou de férias.
Nesta perspetiva, a identificação do imóvel e sua disponibilização em acesso público, além de colocar em causa a segurança do magistrado, e que se impõe preservar, por força do disposto no artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do EMJ e artigos 2.º, n.º 1, e 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), também é fator potencialmente perturbador do exercício livre das funções judiciais e, consequentemente, do dever de independência e imparcialidade inerente à função de julgar, decorrentes dos artigos 4.º e 6.º-C do EMJ. Por isso, a ampla remissão que o art. 5.º do ROD faz para o art. 17.º da Lei n.º 52/2019, sem adaptação e sem exclusão do aludido segmento da alínea b) do n.º 3 do art. 17.º, viola o dever de legalidade a que se submetera a entidade requerida, por força dos artigos 5.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 52/2019 e 149.º do EMJ.
Neste quadro, conclui-se que o art. 5º do ROD, na remissão para o art.17º da lei habilitante, deverá contemplar as necessárias adaptações, nomeadamente suprimindo a exigência de identificação dos imóveis, para efeitos de acesso ao público, através da identificação da respetiva matriz predial.
4.6. Identificação de cônjuge ou unido(a) de facto Alega a requerente que o ROD não acautela devidamente os direitos de terceiros à não divulgação ou tratamento de dados pessoais, como é o caso do cônjuge ou unido de facto do magistrado judicial.
Afirma a requerente que a imposição da menção ao estado civil (e do nome do cônjuge ou unido de facto), que consta do Ponto 2 – Dados Pessoais, da Divulgação n.º 66/2021, acaba por permitir o acesso à orientação sexual do magistrado, o que traduz um resultado desproporcionado, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada do próprio titular de cargo público que seja destinatário, nessa qualidade, da Lei n.º 52/2019.
O art. 5.º, n.º 1, alínea c), do RGPD estabelece que a recolha dos dados pessoais são os adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados. E o art. 9.º do mesmo diploma proíbe expressamente o tratamento de dados pessoais que revelem a orientação sexual de uma pessoa.
No caso em apreço, não parece estar em causa uma questão de exposição da orientação sexual do magistrado. A imposição da menção ao estado civil (e do nome do cônjuge ou unido de facto) que consta do Ponto 2 – Dados Pessoais, da Divulgação n.º 66/2021 acaba por ser uma consequência de o anexo da Lei n.º 52/2019 também impor como elementos obrigatórios a preencher a identificação do estado civil e a indicação do nome do cônjuge, a morada e os bens a declarar em Portugal do seu património imobiliário. Todavia, deve questionar-se se essa exigência é legal, face ao teor do art. 13.º da lei habilitante. E se é proporcional aos fins que a Lei nº 52/2019 e o ROD pretendem atingir. É certo que a declaração anexa à lei habilitante faz parte integrante dessa lei. Todavia, os campos dessa declaração não poderão exceder o que se estabelece no articulado da lei habilitante, designadamente nos n.os 2 e 3 do art. 13.º da Lei n.º 52/2019, como enquadramento e delimitação previa do conteúdo da declaração única. Assim, se dos elementos obrigatórios do Modelo de Declaração anexo à Lei n.º 52/2019 consta um campo para identificação do cônjuge ou unido de facto, também se impõe reconhecer que desse mesmo campo consta a menção «Se aplicável». Deste modo, da leitura conjugada do referido “Modelo” com as normas do artigo 13.º, n.os 2 e 3 da Lei n.º 52/2019 não se pode concluir, sem mais, que a identificação do cônjuge ou unido de facto deva constar, em toda e qualquer hipótese, dos elementos obrigatórios da declaração. Tal sentido interpretativo resulta reforçado se atendermos a que o n.º 4 do artigo 13.º restringe a obrigatoriedade de declaração apenas relativamente aos campos da declaração única, destinados à prestação das informações a que se referem esses números.
Assim, do disposto no art. 13º da Lei nº 52/2019 será de concluir que a obrigatoriedade de identificação de terceiros só se justificará nos casos de contitularidade ou acesso a bens por interposta pessoa, como previsto na alínea b) do nº 2, e ainda nos casos em que a lei se refere expressamente à titularidade de bens ou acesso a bens pelo cônjuge ou unido de facto, previstos nas subalíneas iii e iv da alínea b) do nº 3 [sobre interesses financeiros relevantes]. Fora daquelas hipóteses, a imposição da identificação do cônjuge ou unido de facto, por ser absolutamente desnecessária ao cumprimento dos fins da lei habilitante, mais do que violar a reserva da intimidade privada do próprio magistrado, viola a intimidade da vida privada de terceiros não visados pela lei habilitante.
Deve, assim, entender-se que o art. 3.º, n.º 1, do ROD, ao remeter para o anexo da Lei n.º 52/2019, obrigando ao preenchimento do campo da identificação do cônjuge ou unido de facto do magistrado em todas as situações, fora dos casos exigíveis nos termos do art. 13.º, n.os 2 e 3, da mesma lei, se encontra ferido de ilegalidade por afetar de forma desproporcional a reserva da intimidade da vida privada do cônjuge ou unido de facto do magistrado.
* 6. Em síntese: 6.1. Do disposto no art. 5º da Lei nº 52/2019 emergem dois comandos normativos contempladores das especificidades estatutárias da posição dos magistrados judiciais (bem como dos magistrados do Ministério Público). Por um lado, essa norma transfere um específico poder regulador para o órgão competente – o Conselho Superior da Magistratura – para conformar o conteúdo e o exercício das obrigações declarativas (previstas no art. 13º desse diploma legal) e, por outro lado, estabelece restrições à aplicação da própria Lei nº 52/2029, na medida em que tal se torne adequado à compatibilização das normas deste diploma com as regras específicas que disciplinam a atividade dos magistrados judiciais. O Regulamento das Obrigações Declarativas [ROD] não cumpre na íntegra o alcance destes dois comandos normativos. 6.2. A tutela do interesse geral da transparência patrimonial, subjacente à consagração legal das obrigações declarativas dos magistrados judiciais, prevista na Lei nº 52/2019 e a concretizar pelo ROD, tem de se harmonizar adequadamente com os princípios ínsitos à função desempenhada pelos magistrados judiciais e particularmente com as suas específicas exigências de independência e isenção. 6.3. Diferentemente dos demais obrigados ao cumprimento das obrigações declarativas (referidos nos artigos 2º, 3º e 4º da Lei nº 52/2019), os magistrados judiciais não desempenham cargos tipicamente limitados no tempo. Desempenham, sim, sempre o mesmo tipo de funções, ao longo de toda a sua vida ativa (permanecendo vinculados aos deveres estatutários mesmo na situação de jubilação). Daqui resulta que a sua vida privada pode ser potencialmente mais afetada pelo amplo acesso a dados pessoais do que a vida privada de outros sujeitos abrangidos por aquele diploma. 6.4. Diferentemente do que se verifica quanto a outros sujeitos abrangidos por aquele diploma, os magistrados judiciais proferem decisões que se projetam imediatamente na vida e nos interesses de cidadãos concretos, expondo-os, por isso, a eventuais reações diretas de pessoas descontentes com tais decisões. 6.5. A segurança e a tranquilidade que os magistrados judiciais necessitam para poderem decidir, como decorre do Estatuto dos Magistrados Judiciais, com independência, imparcialidade e ponderação são valores que não podem ser postos em causa através de mecanismos que possam facilitar a devassa da sua vida pessoal e familiar. 6.6. Enquanto titulares do poder judicial e, portanto, enquanto elementos de órgãos de soberania que realizam a justiça em nome do povo, os magistrados devem estar sujeitos ao escrutínio do seu património, de modo a prevenir e detetar hipóteses de enriquecimento ilícito, como pretendeu a Lei n.52/2019. Mas tal escrutínio deverá fazer-se na justa medida daquilo que é necessário e adequado para o cumprimento de tal objetivo. Assim, informação que permita, direta ou indiretamente, aceder ao conhecimento da residência de qualquer magistrado judicial ou que, de algum modo, permita a lesão da reserva da sua vida privada e familiar não pode ser alvo de acesso público. 6.7. As normas do ROD relativamente às quais se identifica vício de violação de lei, bem como a violação de princípios gerais de direito administrativo têm de ser declaradas ilegais com força obrigatória geral, determinando-se a elaboração de novas normas que compatibilizem adequadamente os propósitos da Lei n.52/2019 com a RGPD e outros diplomas aplicáveis em matéria de exposição de informação pessoal.
7. Com a prolação do Acórdão deste processo, cessa o decretamento provisório decidido por despacho da Relatora a 16.06.2021. Porém, dada a declaração com força obrigatória geral (e, portanto, com eficácia erga omnes e com eliminação do ordenamento jurídico com eficácia ex tunc, retroagindo à data da sua publicação) das normas 2.º a 6.º do ROD, nos termos expostos, bem como a condenação da entidade requerida a emitir novo regulamento, cessa a obrigatoriedade de entrega de declaração única por parte dos magistrados judiciais até emissão e publicação em Diário da República do novo Regulamento das Obrigações Declarativas, ficando igualmente sem efeito todas as declarações entretanto apresentadas ao abrigo das normas declaradas ilegais.
8. Em matéria de custas: Face ao disposto no Regulamento das Custas Processuais, nomeadamente no seu art. 4º, concluiu-se que a entidade requerida não se encontra isenta do pagamento de custas, pelo que assumirá essa responsabilidade na proporção que lhe couber.
Também a requerente não beneficia expressamente dessa isenção, apesar de a ter alegado com base na alínea f) do n.1 do artigo 4.º do RCP. No despacho liminar, dado que a relatora teve dúvidas quanto à questão de saber se a requerente estaria ou não, no caso concreto, isenta do pagamento da taxa inicial, foi a questão das custas remetida para decisão final. Todavia, a jurisprudência consolidada nesta matéria tem sustentado a interpretação segundo a qual os sindicatos/associações sindicais não cabem automaticamente no âmbito de aplicação daquela norma. Esta jurisprudência tem entendido que «(…) de acordo com as disposições articuladas das alíneas f) e h) do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais (…), os sindicatos, quando litigam em defesa coletiva dos direitos individuais dos seus associados, só estão isentos de custas se prestarem serviço jurídico gratuito ao trabalhador e se o rendimento ilíquido deste não for superior a 200 UC». Veja-se, por exemplo: - Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo n. 5/2013, de 14-03-2013, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 95, pp. 2962 a 2967, que reproduziu a fundamentação do acórdão do mesmo tribunal proferido a 19-01-2012, no recurso n.º 220/11, in http://www.dgsi.pt/jsta; - Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.11.2017 (proc. n.º 26175/16.9T8LSB-A.L1-4), in http://www.dgsi.pt/jtrl; - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 190/2016, de 30.03.2016, proferido no proc. n.º 868/15, publicado no Diário da República n.º 85/2016, 2.ª Série, de 03.05.2016. Nestes termos, entende-se que a requerente/autora não se encontra isenta do pagamento de custas, pelo que será responsável na proporção do respetivo decaimento.
* DECISÃO: Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação administrativa, decidindo-se: 1. Ser declarada a ilegalidade, com força obrigatória geral: 1.1. Do artigo 2.º do ROD, por insuficiente regulamentação dos termos da análise e fiscalização, pelo CSM, das declarações únicas apresentadas pelos magistrados judiciais;
1.2. Do art. 3.º do ROD, pelos vícios de violação de lei (art. 13.º, n.os 2 a 4, da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho) e da proporcionalidade (7.º do CPA), por obrigar ao preenchimento do campo da identificação do cônjuge ou unido de facto do magistrado em todas as situações, fora dos casos exigíveis nos termos do art. 13.º, n.os 2 e 3, da lei habilitante. 1.3. Do art. 4.º do ROD, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 7.º do CPA) no estabelecimento e fixação da periodicidade da obrigação de entrega de declaração única; 1.4. Do art. 5.º do ROD: 1.4.1. Por violação de lei (artigos 5.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, conjugados com os artigos 4.º, 6.º-C e 17.º, n.º 1, alínea c), do EMJ) e da proporcionalidade (art. 7.º do CPA) na exigência de identificação dos imóveis (nomeadamente da casa de morada de família) dos magistrados através da matriz; 1.4.2. Por violação de lei (artigos 18.º do CPA; 5.º, n.º 1, alínea c), 13.º, 15.º, 25.º, 32.º, 37.º a 41.º do RGPD; 9.º a 13.º e 21.º da LPDP; 9.º da LADA; 17.º, n.os 7 e 8, do REFTCP) e deficiente regulamentação, decorrente da omissão de definição: - das medidas técnicas e organizativas adequadas; - da indicação do encarregado de proteção de dados; - da indicação do prazo de conservação dos dados pessoais ou dos critérios usados para definir esse prazo; - da previsão da audição do titular do cargo. 2. Condenar a entidade requerida, nos termos do disposto no art. 77.º, n. 2, do CPTA, a emitir normas que supram as ilegalidades supra detetadas, fixando-se um prazo de 180 dias para o efeito; 3. Quanto ao demais peticionado, julga-se a ação improcedente.
* - Valor da ação: € 30.000.01 (artigo 34º nº 2 do CPTA). - Fixa-se a taxa de justiça em 6 (seis) UCs de acordo com o n. 1 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais e respetiva Tabela I-A, anexa a este diploma, estabelecendo-se a responsabilidade por custas em ¾ a cargo da entidade recorrida e em ¼ a cargo da recorrente.
Lisboa, 14.07.2021 - Maria Olinda Garcia (Relatora) - Ilídio Sacarrão Martins - Fernando Samões - Catarina Serra - Conceição Gomes - Leonor Rodrigues - Margarida Blasco - Maria dos Prazeres Beleza - Presidente da Secção
*A relatora declara, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos adjuntos.
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC). _______________________________________________________
[23] Jorge Miranda / Jorge Pereira Silva, «Artigo 18.º». AAVV. Constituição Portuguesa Anotada. Tomo i, 2.ª edição, 2010, Coordenação: Jorge Miranda / Rui Medeiros, Coimbra Editora, p. 348. |