Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1036/16.5T8BGC.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
JULGAMENTO AMPLIADO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I- O critério da conveniência, subjacente à possibilidade do julgamento ampliado da revista, integra as situações em que se mostra indesejável ou inconveniente para o sistema a consumação de jurisprudência contraditória ao nível do STJ.

II- Não constitui omissão de pronúncia nem é impugnável o uso ou não uso pelo relator ou pelos adjuntos e presidentes das secções cíveis da faculdade de sugerir ao presidente do STJ o julgamento ampliado requerido pelas partes

Decisão Texto Integral:


      

PROC. N.º 1036/16.5T8BGC.G1.S1

                                                                       *

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

      
Notificados do acórdão proferido em 19 de Maio de 2020, que julgou parcialmente procedente o recurso de revista da Ré “Ageas – Portugal, Companhia de Seguros, S.A.”, vieram os Autores, ali recorridos, apresentar reclamação, nos termos dos artigos 685º, 666º, 613º, n.º 2, 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, alinhando as seguintes razões:
a) O acórdão de 19.05.2020 não se pronunciou sobre o pedido formulado pelos recorridos, nas contra-alegações, de julgamento ampliado da revista, incorrendo dessa forma na nulidade de omissão de pronúncia, prevista no artigo 615º, n,1, alínea d) do CPC.
b) O mesmo acórdão também não se pronunciou sobre o fundamento que fez proceder, no acórdão da Relação de Guimarães, o pedido de indemnização pelos danos futuros.

A parte contrária, na resposta, pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.

Apreciando:

a)
No final das suas contra-alegações do recurso ao recurso de revista apresentado pela Ré seguradora, os Autores requereram o julgamento ampliado da revista, nos termos do artigo 686º do CPC, por considerarem “necessário e conveniente para efeitos de assegurar a uniformidade da jurisprudência” – cfr. fls. 642, verso.
Excluído o critério da ‘necessidade’[1], o critério da conveniência integra as situações em que se mostra indesejável ou inconveniente para o sistema a consumação de jurisprudência contraditória ao nível do STJ, sem que seja previsível a prevalência de alguma das teses antagónicas[2].
No caso, a questão jurídica envolvente era a de saber se a indemnização prevista no n.º 3 do artigo 495º do CC se basta com a verificação da qualidade de que depende a possibilidade legal da exigência de alimentos (não relevando, por conseguinte, a efectiva necessidade dos mesmos), ou se tal indemnização depende da alegação e prova da necessidade de alimentos por parte de quem invoca esse direito.
Como se referiu no acórdão sob reclamação, o STJ tem vindo a decidir neste último sentido, de modo consistente e uniforme.
Vejamos o que se deixou exarado:

“(…) os Autores são irmãos do condutor do tractor agrícola, falecido em consequência do acidente tratado nos autos.

Invocando essa qualidade, peticionaram o montante de 106.050,00 €, a título de danos patrimoniais futuros, sendo esse valor calculado em função da remuneração mensal mínima garantida em vigor à data (505,00), durante 14 meses, e por todo o tempo restante para o termo da vida activa do falecido (15 anos) – 7.070,00 € x 15 (cfr. artigo 54º da petição inicial).

            (…)

Ora, nos termos do n.º 3 do artigo 495º, têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aquele a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Esta norma consagra uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, aí se abrangendo terceiros reflexamente prejudicados com o evento danoso.

Para a concessão dessa indemnização torna-se indispensável a alegação e prova da necessidade de alimentos, presente ou futura, por banda daquele que invoca esse direito. Esta é a única forma de conferir o direito a indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da morte da vítima. Não pela via sucessória (jure hereditario), com referência a um suposto direito à indemnização pela perda da capacidade de ganho que se teria constituído na esfera jurídica do falecido[3].

É neste sentido que o STJ vem ultimamente decidido, como nos dão conta, entre outros, os acórdãos de 11.02.2015, no processo n.º 6301/13.0TBMTS.S1, de 28.11.2013, no processo n.º 177/11.0TBPCR.S1, e de 18.09.2012, no processo n.º 973/09.8TBVIS.C1.S1.

No caso dos autos, nada se provou quanto à necessidade de alimentos por parte dos Autores em relação ao seu irmão, falecido no acidente. Os factos elencados no excerto do acórdão acima transcrito (pontos de facto 34. a 36. e 39 a 41.) nada traduzem de relevante quanto a essa necessidade, limitando-se à anódina menção de que o falecido explorava, juntamente com seu irmão AA (aqui Autor), alguns terrenos agrícolas, e de que, com ele, criava algum gado bovino”.

Considerou-se dispensável, pelas razões expostas, qualquer tomada de posição sobre o requerimento de revista alargada, sendo certo que a inexistência de pronúncia concreta em relação a esse requerimento não configura a nulidade do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC. Esta só ocorre quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre as questões recursórias apresentadas e, neste particular, nenhuma ficou por resolver.

Ex abundanti, sempre se dirá que, conforme já se decidiu neste tribunal, é inimpugnável o uso ou não uso pelo relator ou pelos adjuntos e presidentes das secções cíveis da faculdade de sugerir ao presidente do STJ o julgamento ampliado requerido pelas partes[4].

b)

Carecem também de razão os reclamantes quando dizem que o acórdão reclamado não ponderou a hipótese de a indemnização aos Autores reclamantes lhes ser atribuída nos termos em que o Tribunal da Relação de Guimarães o fez.

Com efeito, basta atentar na seguinte passagem do nosso acórdão para se constatar que o entendimento da Relação de Guimarães foi especificamente contrariado:

“A 1ª instância recusou a atribuição de qualquer quantia, com o argumento de que o falecido não prestava alimentos a nenhum dos Autores, nem estes demonstraram que se encontravam em situação de legalmente exigir alimentos àquele ou que o mesmo estava vinculado a prestar-lhos.

O acórdão recorrido seguiu entendimento diverso e atribuiu aos Autores a indemnização de 24.000,00 €, alinhando as seguintes razões:

“Para se averiguar da complexidade da natureza da indemnização por morte, basta atentar na exposição do Dr. Dario Martins de Almeida no seu Manual de Acidentes de Viação, 3ª Edição a pág. 168 e segs., onde refere que ‘saber quem tem direito à indemnização constitui, em geral, problema de fácil solução.

Em princípio, esse direito cabe ao lesado – aquele que diretamente sofreu o dano na sua pessoa ou no seu património.

Outras pessoas, porém, podem vir a ter direito a indemnização jure proprio, segundo o artigo 495º do Código Civil; este direito é, entretanto, limitado ao ressarcimento das despesas feitas ou de uma perda de alimentos: não abrange outra espécie de danos….

Assim, em caso de morte da vítima, tem direito a indemnização por dano patrimonial:

a) Jure proprio, aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural, podendo, portanto, incluir-se aqui o cônjuge, desde que este não seja o sucessor legítimo ou testamentário da vítima (artigo 495º nº 3 e, no que respeita ao cônjuge, artigo 2015º);

b) Jure haereditario, os sucessores da vítima, legítimos ou testamentários (são-lhes devidas as próprias despesas do funeral, se as fizeram (artigos 495º nº 1, 2024º e 2025º);

c) Jure proprio, aqueles que fizeram despesas ou prestaram serviços para salvar a vítima, os hospitais, médicos ou outras pessoas, singulares ou coletivas, que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima (artigo 495º nºs 1 e 2);

(…)

E acrescenta o mesmo autor que ‘no caso de morte do lesado, funcionam as regras da sucessão: a indemnização pelo dano patrimonial de que o de cujus era titular transmite-se com a herança’ (fls. 171), referindo ainda (fls. 174) que ‘o direito à vida é um direito pessoal inerente à personalidade. Como é óbvio, esse direito não se transmite. Coisa, porém, diferente, senão diversa, é a violação ou lesão desse direito e a indemnização que venha a corresponder-lhe, a qual se reveste de natureza patrimonial.

O problema da aquisição, por parte da vítima, do direito a essa indemnização, transcende a visão puramente naturalística ou materialista da personalidade;

Não tem que situar-se no tempo more geometrico, numa escala de mais ou menos minutos ou segundos após a morte. A aquisição desse direito é automática; segue-se à própria violação do direito, acabando por coincidir com ela, tal como a correspondente obrigação de indemnizar está logo envolvida na consumação do facto danoso que é a perda daquele direito.

(…)

E se, à perda do direito à vida, se substitui automaticamente o direito à indemnização, nada impede que os herdeiros da vítima lhe sucedam nesse direito. Isto concilia-se com o princípio subjacente aos artigos 68º nº 1, 70º e 71º nº 1 do Código Civil’.

Do exposto decorre que a indemnização do dano patrimonial futuro não tem a ver com qualquer obrigação de alimentos, como refere o tribunal a quo – no caso concreto – mas, antes, com a aquisição de tal direito pela vítima e pela sua transmissão por via hereditária, aos seus herdeiros.

Daí que os apelantes tenham direito a tal indemnização, importando apurar em que termos. 

Conforme se referiu, os apelantes peticionam o ressarcimento do dano patrimonial futuro, no montante de €106.050,00, sendo certo que não se mostram apurados quaisquer valores que nos permitam basear esse cálculo, nomeadamente quanto aos rendimentos concretos que o falecido auferia.

Os elementos que podem interessar para a decisão são, designadamente, os seguintes:

34. BB nasceu em 00.00.1955.

35. Ao momento da sua morte BB era robusto, física e psiquicamente saudável, não havendo registo de qualquer doença.

36. BB era bem-disposto, feliz e alegre, apresentando uma vida ativa no campo pessoal e profissional.

39. BB exercia a atividade de agricultor, conjuntamente com o seu irmão e aqui autor AA, cultivando terrenos agrícolas (sua propriedade e de terceiros) compostos de árvores de fruto e vinha, nos quais produzia para consumo próprio e/ou para venda produtos agrícolas e hortícolas, designadamente maçãs, cerejas, peras trigo, centeio, aveia, milho e forragem para animais.

40. Paralelamente e em conjunto com o seu irmão e aqui autor AA, BB, que era proprietário de dois tratores e de alfaias agrícolas e titular de carta de condução de tratores agrícolas e de licença de operador de máquinas agrícolas, explorava 21 cabeças de gado bovino de raça mirandesa, dedicando-se, assim e também, à criação e ulterior venda de gado.

41. BB era uma pessoa simples e parca nos seus gastos, pelo que o rendimento que obtinha das atividades que desenvolvia era superior ao que despendia com os seus encargos.

Face à inexistência de valores concretos que permitissem apurar o rendimento médio do falecido, ónus de alegação e prova, que incumbia aos autores, não podemos deixar de partir do valor relativo ao salário mínimo nacional que, em 2015 era de €505,00 e ter em consideração que, nessa ocasião, o malogrado BB tinha 60 anos e seria razoável admitir que pudesse trabalhar mais 10 anos, até aos 70 anos, valor que se nos afigura ser aceitável, não obstante pudesse ser ultrapassado e, também, não ser alcançado.

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado atribuir, como indemnização pelo dano futuro o valor de €60.000,00, pelo que a ré terá de suportar a indemnização no montante €24.000,00 (40%)”.

Salvo o muito respeito, não podemos concordar.

A fundamentação jurídica exposta adere a uma corrente da doutrina e da jurisprudência para quem a atribuição de indemnização se basta com a verificação da qualidade de que depende a possibilidade legal da exigência de alimentos, não relevando a efectiva necessidade dos mesmos.

Ora, nos termos do n.º 3 do artigo 495º, têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aquele a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Esta norma consagra uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, aí se abrangendo terceiros reflexamente prejudicados com o evento danoso.

Para a concessão dessa indemnização torna-se indispensável a alegação e prova da necessidade de alimentos, presente ou futura, por banda daquele que invoca esse direito. Esta é a única forma de conferir o direito a indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da morte da vítima. Não pela via sucessória (jure hereditario), com referência a um suposto direito à indemnização pela perda da capacidade de ganho que se teria constituído na esfera jurídica do falecido”.

Daqui se vê que foi enfrentada a específica base jurídica em que se assentou o acórdão recorrido, não se detectando a nulidade de omissão de pronúncia apontada pelos reclamantes.

Em conformidade com o exposto, indefere-se a reclamação.

                                                           *

Custas pelos reclamantes.

                                                           *

LISBOA, 13 de Outubro de 2020

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Que apenas releva quando se mostre provável o vencimento de uma solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência uniformizada no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, páginas 369/370.
[3] Cfr. o acórdão do STJ de 28.02.2018, no processo n.º º 33/12.4GTSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. acórdão de 07.02.2002, no processo n.º 01B634, em www.dgsi.pt.