Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2580/08.3TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: BARRETO NUNES
Descritores: DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
SENTENÇA ESTRANGEIRA
REGULAMENTO (CE) 44/2001
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DUPLA CONFORME
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS
COMPETÊNCIA TERRITORIAL EXCLUSIVA
FRAUDE À SENTENÇA
Data do Acordão: 03/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 119
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – Com a publicação do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24-08, que operou a reforma do regime de recursos em processo civil, por força do disposto no n.º 3 do art. 721º do CPC, deixou de ser admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e ainda que com diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos referidos no artigo seguinte.
O artigo seguinte, 721º-A, prevê a revista excepcional, nos casos abrangidos pelo referido n.º 3 do art. 721º, em determinadas situações que não foram alegadas in casu.
Terá sido esta reforma que levou o presente recurso a ser distribuído no Supremo Tribunal de Justiça como revista excepcional, a qual, porém, foi afastada pelas razões constantes do despacho de fls. 266, que mandou integrar o processo na distribuição normal, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44º do Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000 (Regulamento 44/2001), o que em abstracto, poderá colocar a questão da inaplicabilidade do n.º 3 do art. 721º do CPC…”.
E, efectivamente, o Regulamento 44/2001, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial, estabelece no art. 44º que “a decisão proferida no recurso apenas poderá ser objecto do recurso referido no anexo IV”, o qual prevê que “A decisão proferida no recurso apenas pode ser objecto: (…) – em Portugal, de recurso de revista restrito a matéria de direito”, sendo que o recurso recorrível vem previsto no Anexo III, que é o proferido pelo Tribunal da Relação.
Podia então colocar-se a questão da sobreposição de normas nacionais e comunitárias em matéria de recursos. É pacífico, porém, que as normas comunitárias exercem primado sobre as normas internas.
Por isso mesmo, temos que acatar o Regulamento Comunitário em apreço, sem prejuízo de manifestarmos a nossa perplexidade por verificarmos que um litígio decidido num país estrangeiro, com decisão transitada em julgado, saia beneficiado em matéria de graus de recurso quando confrontado com um litígio idêntico que só tenha tramitado internamente.
II – Tendo sido requerido o reconhecimento de executoriedade de uma acção instaurada e julgada em França, que foi proposta unicamente contra o devedor solidário, enquanto garante de obrigação emergente de um contrato de mútuo bancário, e não, também, contra o outorgante do qual foi avalista, impedindo-o de exercer o seu direito de regresso, tal opção do autor não repugna o direito interno português, já que em Portugal o credor também pode exigir, por si só, a prestação por inteiro de qualquer um dos devedores solidários, ficando inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido, nos termos dos arts. 512º e 519º do Código Civil, não se vislumbrando que tal decisão seja contrária à ordem pública do Estado-Membro, que é Portugal.
Aliás, o Regulamento n.º 44/2001 apenas afasta o reconhecimento da decisão estrangeira, quando for “manifestamente” contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido, que também não ocorre in casu, face aos termos em que foi moldada a petição inicial.
III – Em nenhuma parte da decisão estrangeira vem configurado ou sequer perspectivado que o contrato referido em II caiba na classificação dos contratos celebrados por consumidores, enquanto celebrado por uma pessoa para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional.
Não caindo o contrato em apreço na previsão dos artigos 15º e 16º da Secção 4 do Regulamento n.º 44/2001, os litígios a dirimir não cabem na competência exclusiva dos tribunais portugueses.
IV – A fraude à sentença implica sempre dois elementos: um objectivo, o outro subjectivo. O primeiro consiste na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna, não configurando a situação em apreço, já que, por um lado, o regime das obrigações solidárias previsto na nossa legislação interna não põe em causa a decisão de mérito proferida em França e, por outro lado, o Tribunal de Comércio de Paris era competente para conhecer da causa. O segundo consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma imperativa que seria normalmente aplicável, sendo necessário dolo, já que não há fraude por negligência, o que não ocorre in casu, já que a acção foi instaurada num tribunal que gozava de competência internacional para dela conhecer, não resultando dessa mesma decisão estrangeira nem de quaisquer outros elementos do processo o mínimo intuito doloso no accionamento “revidendo”.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório

1. AA, S. A., requereu contra BB a declaração de executoriedade da sentença estrangeira proferida em 19 de Outubro de 2004 pelo Tribunal de Comércio de Paris, transitada em julgado, na qual o Requerido foi condenado a pagar à Requerente a quantia de € 425.400,17, acrescida dos juros vincendos até integral pagamento, bem como € 4.000,00, por força do art. 700.º do Código de Processo Civil francês e as custas do processo no valor de € 109,09.

O Requerente transmitiu e fez juntar aos autos, pela via electrónica, certidão da referida sentença bem como a sua tradução certificada, segundo o formulário uniforme constante do anexo V ao Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000.

Distribuída que foi a acção à 4.ª Vara Cível de Lisboa, declarou a mesma a respectiva incompetência, em razão da forma de processo aplicável.

Foram depois os auto remetidos e distribuídos ao 4.º Juízo, 3.ª Secção dos Juízos Cíveis de Lisboa, onde foi proferida decisão, nos termos do art. 41.º do citado Regulamento, que declarou a força executória em Portugal da ‘Certidão de Título Executivo’ emitida pelo Tribunal de Comércio de Paris no que concerne ao pagamento da quantia de € 425.400,17 (quatrocentos e vinte e cinco mil, quatrocentos euros e dezassete euros, capital e juros apurados em 30.06.2001, acrescida de juros vincendos até integral pagamento, bem como ao pagamento de € 4.000,00 (quatro mil euros) por força do art. 700.º do Código de Processo Civil francês e ao pagamento das custas do processo no valor de € 109,09 (cento e nove euros e nove cêntimos), autorizando assim a execução.

Inconformado, o Requerente recorreu para a Relação de Lisboa, a qual, por acórdão de 17 de Setembro de 2009, negou provimento à apelação e confirmou a decisão recorrida.

Persistindo no seu inconformismo, o Requerente vem agora recorrer de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

2. Como se vê dos autos, o requerimento de declaração de executoriedade da sentença estrangeira em apreço foi distribuído e autuado em 18 de Setembro de 2008, já em plena vigência da reforma de processo civil em matéria de recursos operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, cujas disposições, por força do n.º 1 do art. 1º, a contrario, são aplicáveis aos processos iniciados a partir de 1 de Janeiro de 2008, data da sua entrada em vigor.

Presentemente, em matéria de recursos, por força do disposto no n.º 3 do art. 721º do Código de Processo Civil (CPC, doravante), não é agora admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e ainda que com diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos referidos no artigo seguinte.

O artigo seguinte, 721º-A, prevê a revista excepcional, nos casos abrangidos pelo referido n.º 3 do art. 721º, em determinadas situações que não foram alegadas in casu.

Terá sido esta reforma que levou o presente recurso a ser distribuído no Supremo Tribunal como revista excepcional, a qual, porém, foi afastada pelas razões constantes do despacho de fls. 266, que mandou integrar o processo na distribuição normal, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44º do Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000 (Regulamento 44/2001), o que em abstracto, poderá colocar a questão da inaplicabilidade do n.º 3 do art. 721º do CPC…”.E, efectivamente, o Regulamento 44/2001, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial, estabelece no art. 44º que “a decisão proferida no recurso apenas poderá ser objecto do recurso referido no anexo IV”, o qual prevê que “A decisão proferida no recurso apenas pode ser objecto: (…) – em Portugal, de recurso de revista restrito a matéria de direito”, sendo que o recurso recorrível vem previsto no Anexo III, que é o proferido pelo Tribunal da Relação.

Podia então colocar-se a questão da sobreposição de normas nacionais e comunitárias em matéria de recursos. É pacífico, porém, que as normas comunitárias exercem primado sobre as normas internas.

Por isso mesmo, temos que acatar o Regulamento Comunitário em apreço, sem prejuízo de manifestarmos a nossa perplexidade por verificarmos que um litígio decidido no estrangeiro, com decisão transitada em julgado, saia beneficiado em matéria de graus de recurso quando confrontado com um litígio idêntico que só tenha tramitado internamente.

Resta-nos conhecer do mesmo, e fá-lo-emos por acórdão, embora a questão pudesse ficar já decidida por decisão sumária, nos termos do art. 705º do CPC.


II – Da delimitação do objecto do recurso

O Recorrente, quase reproduzindo as extensas alegações e conclusões da apelação, conclui as da revista nos seguintes termos:

«I. O presente recurso tem como objecto a declaração de executoriedade da Sentença estrangeira proferida pelo 10º Juízo Cível de Lisboa, a qual foi confirmada por Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
II. O Tribunal de Comércio de Paris julgou procedente a acção de condenação proposta pelo Recorrido unicamente contra o ora Recorrente, considerando que o mesmo, enquanto avalista e devedor solidário da sociedade Animatógrafo – Produção de
Audiovisuais, Lda. (“Animatógrafo”), deve responder pela totalidade dos montantes garantidos pelo Recorrente e não liquidados pela Animatógrafo, no âmbito de um contrato de mútuo bancário celebrado entre a última e o Recorrido.
III. Sucede, porém, que a Recorrido intentou a acção, inusitadamente, apenas contra o garante da obrigação, “desobrigando” o Animatógrafo das obrigações contratualmente assumidas, pelo que, consequentemente, os efeitos do caso julgado formal e material, à luz do princípio da eficácia relativa do caso julgado, abrangem apenas a Recorrente e a Recorrida.
IV. Tal significa que o Recorrente não pôde, no âmbito do caso sub judice, exercer o seu direito de regresso contra a aludida sociedade, motivo pelo qual terá de intentar, caso o presente recurso não seja julgado procedente, o que por mero dever de patrocínio se equaciona, uma acção declarativa de condenação contra o Animatógrafo.
V. Não obstante, a proposição de uma acção declarativa de condenação não impedirá, por um lado, que o património do Recorrente seja executado – como à presente data já sucede – e por outro, surge corno uma solução excessivamente onerosa e escusável, na medida em que o Recorrido poderia ter intentado a acção (também ou apenas) contra o Animatógrafo, enquanto devedor principal, e/ou deveria ter intentado a acção junto dos Tribunais Portugueses, de forma a permitir que o Recorrente tivesse podido requerer a intervenção principal de terceiro.
VI. Nesta matéria, entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa esclarecer que o argumento apresentado pelo Recorrente não poderia proceder na medida em que nos termos do n.º 1 do artigo 641 C. Civ. o Recorrido sempre poderia ter intentado a acção apenas contra o Recorrente caso a acção tivesse sido intentada em Portugal.
VII. Sucede que a violação da ordem pública portuguesa ocorre não por estar em causa um problema de ilegitimidade passiva, mas antes pelo claro desrespeito do disposto no artigo 6º, n.º 2 da Convenção de Bruxelas (em igual sentido dispõe o artigo 6º, n.º 2 do Regulamento 44/2001).

VIII.Com efeito, como ficou assente nos autos, quer o Animatógrafo, devedor principal, quer o Recorrente, enquanto garante e consequentemente devedor solidário, tinham, inclusive, à luz do disposto na lei francesa, e mantêm, respectivamente, o seu domicílio e a sua sede em Portugal, facto aliás que era do conhecimento do Recorrido, que na qualidade de entidade bancária, remeteu sempre a correspondência do Recorrente para a sua residência em Lisboa.
IX. Aliás, é o próprio Tribunal de Lisboa que admite que na sentença naquela acção proferida [pelo Tribunal de Comércio de Paris] o aqui Recorrente é aqui referido como tendo morada em 40 Rue de la Montagne Sainte Geneviev, 75005, Paris, embora a residir neste momento, na Rua Dom Pedro Quinto, 36, 1º – Lisboa".
X. Assim, e nos termos do artigo 2º da Convenção de Bruxelas (no mesmo sentido dispõe o artigo 2º do Regulamento 44/2001), a acção deveria ter sido proposta perante os Tribunais Portugueses, não se admitindo a competência internacional dos Tribunais Franceses, nos termos dos artigos 2º e 5º n.º 1 da Convenção de Bruxelas, na medida em que nenhum dos devedores tinha ou tem domicilio em território francês, nem o lugar de cumprimento da obrigação se situa em França.
XI. Acresce que, ao Recorrente não era sequer permitido, no âmbito ela acção que seguiu termos em França, requerer a intervenção provocada principal do Animatógrafo, porquanto o artigo 6.º, n.º 2 da Convenção de Bruxelas (em igual sentido dispõe o artigo 6.º, n.º 2 do Regulamento 44/2001) estabelece que "o requerido com domicilio no território de um Estado Contratante pode também ser demandado:
(... )
2. Se se tratar de chamamento de um garante à acção ou de qualquer incidente de intervenção de terceiro, perante o tribunal onde foi instaurada a acção principal, salvo se esta tiver sido proposta apenas com o intuito de subtrair o terceiro à jurisdição do tribunal que seria competente neste caso;
XII. Ora, como já se deixou alegado, os tribunais portugueses eram internacionalmente competentes para conhecer do litígio.

No entanto, o Recorrido, aproveitando-se do facto de o Recorrente ter indicado, aquando da assinatura da livrança a morada de um imóvel em Paris do qual é proprietário, intentou a acção em França alegando que o Recorrente teria domicílio em Paris.
XIII. Tal argumento só pode ser demonstrativo da actuação de má fé por parte do Recorrido, porquanto esta não ignorava que o Recorrente mantinha aberta, junto do Banco Recorrido, uma conta para não residentes em França, ao que acresce o facto de o Recorrido ter sempre remetido toda a correspondência bancária para a residência do Recorrente em Lisboa, como, aliás, ficou provado nos processo que correu termos no Tribunal de Comércio de Paris.
XIV. Assim, parece existir uma relação entre (i) a proposição da acção apenas contra o Recorrente e (ii) a proposição da acção nos tribunais franceses.
XV. Com efeito, a proposição da acção contra o Animatógrafo junto dos Tribunais Franceses teria, de certo, sido recusada liminarmente, ma vez que o Animatógrafo não tem sede real, ou estatutária, ou sequer sucursal ou filial em território francês, o que indicia um de dois propósitos possíveis do Recorrido, a saber: (i) subtrair o litígio aos tribunais portugueses evitando, para o efeito, intentar a acção contra o Animatógrafo; (ii) subtrair o Animatógrafo da acção, intentando, para o efeito, a acção junto dos Tribunais Franceses.
XVI. Por outro lado, esta limitação subjectiva da acção ao Recorrente e consequente exclusão do Animatógrafo, consubstancia-se numa violação grave e intolerável dos direitos de defesa e de acesso aos tribunais, os quais se encontram consagrados quer na Constituição da República Portuguesa (artigo 20º), quer na Convenção Europeia de Direitos do Homem (artigo 6º).
XVII. De facto, o Recorrente, como já se deixou alegado supra, viu-se impedido de exercer o seu direito de regresso contra o Animatógrafo em tempo útil, bem como o Animatógrafo viu-se impedido de fazer valer os seus direitos e apresentar a sua defesa na acção em crise.

XVIII. Tal violação de direitos fundamentais constitui uma evidente violação de princípios da ordem pública internacional do Estado Português, os quais deverão ser entendidos como sendo aqueles que "de tão decisivos que são, não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas".
XIX. Dispõe ainda o artigo 35º n.º 1 do Regulamento 44/2001, que "as decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capitulo II ou no caso previsto no artigo 72".
XX. Sucede que, de acordo com o disposto no artigo 14 da Convenção de Bruxelas (artigo 16 n.º 2 do Regulamento 44/2001) “outra parte no contrato só pode intentar uma acção contra o consumidor perante os tribunais do Estado Contratante em cujo território estiver domiciliado", sendo que na relação contratual sub judice, o Recorrente é consumidor.
XXI. Com efeito, o corpo do artigo 13 da Convenção de Bruxelas (artigo 15 n.º do Regulamento 44/2001) define como consumidor a pessoa que celebre um contrato para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional. O Recorrente, não sendo o devedor originário e principal, vem apenas servir de garante solidário ao cumprimento da obrigação assumida pelo Animatógrafo.
XXII. É evidente que, quer no âmbito das funções artísticas (produção e realização cinematográficas) que desenvolve quer no desempenho das funções administrativas (gerência da Animatógrafo), o Recorrente não tem por obrigação, nem faz parte do feixe dos seus deveres profissionais, assegurar ou garantir o cumprimento de obrigações contratuais assumidas por terceiros, motivo pelo qual perante o Recorrido o ora Recorrente surge como mero consumidor.
XXIII. Aliás, é o próprio Tribunal da Relação de Lisboa que admite que “nas atribuições de administração e representação da sociedade comercial por quotas não se inclui a prestação de garantias pessoais pelo gerente daquela", para depois nas Conclusões do mesmo Acórdão assumir, contraditoriamente que tal argumento não poderia proceder porquanto "a prestação dessa garantia teve lugar por parte do Recorrente, que não de outra qualquer outra pessoa, precisamente em função dessa qualidade daquele garante (...).
XXIV. Sucede que, a relação existente entre o Recorrente e o Animatógrafo não invalida que o primeiro seja considerado consumidor, quando nos termos do conceito patente no artigo 13 da Convenção de Bruxelas (artigo 15, n.º do Regulamento 44/2001) considera-se consumidor a pessoa que celebre um contrato para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional.
XXV. Atento ao exposto, ao considerar que a prestação de garantias pessoais não se inclui no feixe de atribuições de administradores e representantes legais de sociedades comerciais o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa admitiu que o Recorrente assumiu a posição de consumidor perante o Recorrido, pelo que o mesmo Tribunal deveria ter decidido em conformidade e não contraditoriamente, como fez – e consequentemente deveria ter decidido pela competência territorial exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos do artigo 14 da Convenção de Bruxelas (artigo 16, n.º 2 do Regulamento 44/2001).
XXVI. Por outro lado, ficou ainda provado nos autos da sentença objecto do reconhecimento que (i) o Recorrente é cliente do Recorrido desde finais dos anos 60 e que (ii) cm 1995, ano em que o Recorrente subscreveu a livrança, assumindo a responsabilidade solidária pelo crédito concedido ao Animatógrafo, o Recorrente encontrava-se numa situação financeira precária.
XXVII. Foi ainda alegado, tendo o Recorrente conseguido fazer prova de que à data da prática dos factos, o Banco, ora Recorrido, não podia ignorar quer a idade do Recorrente, quer os encargos extraordinários que este suportava (e suporta) atendendo à incapacidade total (100%) do seu filho.
XXVIII. Resulta ainda da factualidade dada como assente que o Recorrido, conhecendo a situação económica do Recorrente, intimou-o a aceitar a subscrição de uma livrança, sob pena de cessar unilateralmente as relações que mantinha com o Recorrente e com as sociedades Animatógrafo e ACT, de quem este último era gerente. Como resultado da pressão exercida, o Recorrido logrou que o Recorrente subscrevesse uma livrança, assumindo-se devedor solidário pelo montante de 3.000.000 de francos, acrescido de juros à taxa base aplicada pelo Recorrido e majorados em 2,75%.
XXIX. Resulta do comportamento do Recorrido que o mesmo, não só explorou a situação financeira em que o Recorrente se encontrava, ultimando-o a aceitar garantir uma dívida de uma entidade terceira, sob pena de cessar as relações comerciais que as partes mantinham desde há quase 30 anos, como tal ultimato é evidentemente excessivo, atendendo à situação precária em que o Recorrente se encontrava (e encontra), sabendo ainda que se trata de uma pessoa singular, já com idade avançada e com um filho totalmente incapacitado ao seu cargo.
XXX. Ora, para rebater a argumentação apresentada pelo Recorrente vem o Tribunal da Relação de Lisboa afirmar que "quando a própria lex fori apenas comina a mera anulabilidade para o negócio usurário, mal se vê como poderia a declaração de executoriedade reportada a obrigação emergente de tal negócio, (...), redundar na tal comoção ou abalo dos próprios fundamentos da ordem jurídica interna".
XXXI. É evidente que a figura da usura, só por si, não constitui fundamento para revogar a declaração executória da sentença estrangeira, Não obstante, de acordo com os ensinamentos do Professor Baptista Machado, define-se como contrário à ordem pública internacional "a aplicação de lei estrangeira (…) que contenha uma regulamentação (...) divergente da consagrada (…) na lex fori, quando estas disposições sejam inspiradas pelos interesses gerais da comunidade e sejam, por isso mesmo, rigorosamente imperativas (...) será ainda necessário que as disposições da lex fori (...) sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosas ou política".
XXXII. Desta forma, fundando-se a proibição de usura, pelo menos, em motivos ético-religiosos, constituindo o artigo 282 do Código Civil uma norma imperativa estatuída para protecção de interesses da comunidade, outra decisão não será aceitável, excepto a revogação da declaração de executoriedade da sentença
estrangeira por violação da ordem pública internacional do Estado Português.
XXXIII. Acresce que o facto de a lex fori cominar com a anulabilidade o negócio usurário, não obsta a que o mesmo deva ser considerado como contrário à ordem pública internacional do Estado Português. A proibição da usura é absoluta e como tal imperativa e como tal, um negócio usurário não pode produzir efeitos.
XXXIV. A escolha dos Tribunais Franceses por parte da Recorrida foi fraudulenta. Com efeito, os Tribunais Portugueses eram competentes, por força do artigo 14 n.º 2 em conjugação com o corpo do artigo 13, ambos da Convenção de Bruxelas, para apreciar e decidir sobre a matéria em litígio, porquanto estamos no âmbito de uma relação contratual constituída entre uma entidade bancária e os seus clientes/consumidores.
XXXV. Acontece que neste âmbito, não ocorreu uma pronúncia expressa por parte do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual se limitou a remeter para a argumentação vertida em sede de resposta ao capítulo "da violação de regras de competência territorial exclusiva". Nesse sentido, afirma o Tribunal da Relação de Lisboa, nas Conclusões do Acórdão em crise, que o Recorrente não assumiu a posição de consumidor na relação estabelecida com o Recorrido, quando, sublinhe-se, no corpo do mesmo Acórdão afirmou que a prestação de garantias por parte dos administradores e representantes legais das sociedades não se inclui no leque de competências profissionais dos mesmos.
XXXVI. Ora, como já se deixou alegado, o conceito de consumidor não deixa margens para especulações. Ao admitir que o Recorrente actuou fora do âmbito das suas obrigações e competências profissionais o Tribunal da Relação aceitou a relação de consumo estabelecida entre Recorrente e Recorrido, pelo que deveria ter concluído pela aplicação do artigo 14 da Convenção de Bruxelas (artigo 16, n.º 2 do Regulamento 44/2001).
XXXVII. Se assim não se entender, o que por mera cautela se enuncia, deverá entender-se que a acção apenas poderia ter sido instaurada em Portugal, já que quer o Animatógrafo, quer o
Recorrente tinham e tem domicilio em Lisboa, ao que acresce o facto de o lugar de cumprimento da obrigação não se situava em Franca.
XXXVIII. Nesta questão, entende o Professor Lima Pinheiro, citando MAYER E HEUZÉ, que "para que haja ‘fraude à sentença’, não basta que a acção tenha sido subtraída à competência dos tribunais locais; é necessário que tenha sido proposta em tribunais estrangeiros com o fim principal de se invocar a sentença na ordem jurídica local, porquanto não seria possível obter tal sentença nos tribunais locais. Perante as dificuldades de prova desta intenção, os autores afirmam que se a solução dada no estrangeiro é diferente daquela que teria sido dada pelo Tribunal do estado de reconhecimento e se o centro de gravidade do litígio está localizado no Estado de reconhecimento – se as partes vivem aí, ou se o réu tem os seus bens aí – a fraude é evidente (1)!.
XXXIX. Assim, a acção foi subtraída à competência dos tribunais portugueses. Por outro lado, se a Recorrida tivesse proposto a acção na jurisdição portuguesa, o Recorrente poderia ter exercido o seu direito de regresso na própria acção, sendo que o "centro de gravidade" do litígio se situa em Portugal, porquanto quer o devedor principal quer o garante têm domicilio em território nacional.
XL. Desta forma, se é certo que a fraude à sentença não vale por si só, por não se encontrar prevista nos artigo 34 e 35 do Regulamento 44/2001, não deixa de ser inequívoco que as regras de competência em matéria de contratos celebrados por consumidores visam a protecção destes últimos, enquanto partes mais frágeis na relação contratual.
XLI. A violação das aludidas normas de protecção da parte com menor poder negocial na relação contratual deve entender-se como violação de princípios de ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que limitam de forma excessiva e desnecessária a posição do consumidor, pelo que a declaração
de executoriedade deverá ser revogada nos termos do artigo 34, n.º 1 do Regulamento 44/2001.
XLII. Em suma, ao abrigo do disposto no artigo 45, n.º 1 do Regulamento 44/2001 ex vi do artigo 35 n.º 1, em conjugação com os artigos 16, n.º 2 e 15, n.º 1, e ex vi artigo 34, n.º 1, todos do Regulamento 44/2001 (à data da entrada da acção, artigos 14, n.º 2 e corpo do artigo 13, ambos da Convenção de Bruxelas), a declaração de executoriedade da sentença estrangeira deverá ser revogada.

Foram assim violados, pela Sentença do Tribunal a quo, os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, bem como regras de competência territorial exclusiva que atribuem aos Tribunais Portugueses competência exclusiva para analisar e decidir sobre a questão sub judice

O recorrido contra-alegou, no sentido do total improvimento da revista.

Sintetizando, podemos concluir que as questões a tratar são as seguintes:

- Se a declaração de executoriedade que se aprecia viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português;

- Se a declaração de executoriedade que se aprecia viola as regras de competência territorial exclusiva;

- Se ocorre usura;

- Se ocorre fraude à sentença.


III – Os factos

No que ora releva, as instâncias fixaram os seguintes factos:

“1) Por sentença do Tribunal de Comércio de Paris, proferida em 19 de Outubro de 2004, o Requerido BB foi condenado a pagar à Requerente a quantia de € 425.400,17 (quatrocentos e vinte e cinco mil e quatrocentos euros e dezassete cêntimos) – capital e juros apurados em 30.06.2001 –, acrescida de juros vincendos até integral pagamento.
2) Bem como ao pagamento de € 4.000 (quatro mil euros) por força do artigo 700.º do Código de Processo Civil francês, e ao pagamento das custas do processo no valor de € 109,00 (cento e nove euros e nove cêntimos).
3) Valores que o Requerido não pagou.
4) Em 21 de Outubro de 2004, o Tribunal emitiu o respectivo título executivo, o qual foi notificado à Ré em 21 de Abril de 2006.”


IV – O recurso restrito à matéria de direito
(art. 44º e Anexo IV do Regulamento (CE) n.º 44/2001)

No âmbito do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial (publicado no J. O. C.), n.º L 12, de 16 de Janeiro de 2001, AA, S. A. requereu contra BB a declaração de executoriedade da sentença proferida pelo Tribunal de Comércio de Paris em 19 de Outubro de 2004, que condenou o Requerido a pagar a Requerente a quantia de € 425,400,17, acrescida de juros vincendos até integral pagamento, bem como € 4.000,00, por força do art. 700º do Código de Processo Civil francês, bem como as custas do processo no valor de € 109,09.

Na 1ª instância, por sentença de fls. 64 a 67, foi declarada a força executória em Portugal da “Certidão de Título Executivo” emitida pelo Tribunal de Comércio de Paris, a qual foi confirmada pela Relação de Lisboa, pelo acórdão ora recorrido.

O Regulamento n.º 44/2001, prevê, como regra, no art. 33º, o reconhecimento automático de decisões estrangeiras, sem necessidade de recurso a qualquer processo.

Já, porém, o art. 38º do regulamento estabelece que as decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.

O requerimento para executoriedade da decisão estrangeira é apresentado, em Portugal, no Tribunal de Comarca – art. 39º, e Anexo II, havendo recurso para o Tribunal da Relação – art. 43º, e Anexo III. Pode ainda recorrer-se de revista “restrito a matéria de direito” para o Supremo Tribunal de Justiça – art. 44º e anexo IV.

É este o recurso com que ora nos confrontamos, mostrando-se pertinente o n.º 1 do art. 45º do Regulamento, nos termos do qual, o tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos artigos 43º ou 44º, e é este último que ora releva, apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35º, acrescentando, a final e inopinadamente, que este tribunal decidirá sem demora.

Com interesse, acrescenta o n.º 2 do art. 45º que as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito.

O primeiro dos artigos enfocados como excludotórios da declaração de executoriedade – o 34º –, estabelece que uma decisão não será reconhecida nos seguintes casos:

1. Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido;
2. Se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recursos contra a decisão, embora tendo a possibilidade de o fazer;
3. Se for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado-Membro requerido;
4. Se for inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido.

Destes requisitos, releva, in casu, apenas o primeiro, ou seja, uma decisão não será reconhecida, se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido.

1. Se a declaração de executoriedade que se aprecia viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português

No que concerne ao objecto do recurso, importa, como se disse, apenas o requisito previsto no n.º 1 do art. 34º, que afasta a declaração de executoriedade “se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido”.

A exigência deste requisito mostra-se em consonância com o art. 22º do Código Civil, que estabelece que não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.

No caso de revisão de sentença, a mesma só não será concedida quando contiver decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com esses princípios.

Trata-se de ordem pública internacional do Estado português e não, apenas, “ordem pública interna”, que o próprio recorrente não deixa de reconhecer nas suas alegações, que era um conceito já consagrado na al. f)do art. 1096º do CPC, enquanto requisito necessário para a confirmação de sentenças estrangeiras, surgindo o advérbio “manifestamente” a reforçar a ofensa ao entender-se que se devia acentuar “a exigência do carácter ostensivo da violação” (2)..

A ordem pública internacional surge como limitadora da aplicabilidade das leis estrangeiras Parece enquadrar-se nos conceitos indeterminados, cujo sentido e alcance o intérprete e aplicador da lei terá de apreciar caso a caso.

De qualquer modo, podemos avançar no sentido de que “para orientar o juiz a determinar se a lex fori deve ou não ser considerada de ordem pública internacional, pode dizer-se que são de ordem pública internacional as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respectiva relação jurídica, as quais devem ser rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. E os interesses que aqui estão em causa são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. Mas porque estas características também não convêm às leis de ordem pública interna, e nem todas as normas de ordem pública interna são normas de ordem pública internacional, para que possa intervir a excepção de ordem pública internacional será necessário que as disposições da lex fori essencialmente divergentes da lei estrangeira normalmente aplicável sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política” (3).
Por fim, não será despiciendo acrescentar “que são características da ordem pública internacional, para além da feição nacional – as exigências da ordem pública internacional variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles – a excepcionalidade, a imprecisão e a actualidade. A excepcionalidade e a imprecisão já resultam do que ficou dito; as leis de ordem pública internacional são um limite à aplicação da lei normalmente competente para regular as relações jurídicas, consistindo a sua função em desviar a aplicação dessa lei, substituindo-a pela lex fori; a imprecisão da sua noção é um mal sem remédio, e a sua actualidade ou mobilidade, mostra que as leis de ordem pública internacional têm um cunho nacional, são função das concepções no tempo e no espaço do País onde a questão se põe, hão-de vigorar na ocasião do julgamento, e podem deixar de o ser e vice-versa, visto que podem variar de acordo com as exigências do interesse geral”(4).

Resta concluir que, uma vez obtido um critério orientador para o juiz, e não uma definição do que seja a ordem pública internacional, esta tem por escopo impedir que a aplicação de norma estrangeira, pela via indirecta do reconhecimento e executoriedade de sentença estrangeira, conduza, em cada caso, a um resultado inaceitável e intolerável.

O domínio operacional desta excepção ou reserva de ordem pública situa-se portanto ao nível dos casos concretos e não comporta qualquer juízo de desvalor sobre a própria norma estrangeira cuja aplicação é recusada, nem muito menos sobre o ordenamento jurídico estrangeiro.

Toda a acção preclusiva da ordem pública internacional incide directa e unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si (5).

Retomando o caso concreto, o Recorrente insurge-se contra o facto de a acção, de cuja decisão vem pedido o reconhecimento de executoriedade, ter sido proposta unicamente contra si, devedor solidário, enquanto garante de obrigação emergente de um contrato de mútuo bancário, e não, também, contra o outorgante do qual foi avalista, impedindo-o de exercer o seu direito de regresso.

Essa opção do Autor na acção que correu termos em França, ora Recorrido, não repugna o direito interno português, já que em Portugal o credor também pode exigir, por si só, a prestação por inteiro de qualquer um dos devedores solidários, ficando inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido, nos termos dos arts. 512º e 519º do Código Civil.

Pelo que, não vislumbramos in casu decisão cujo reconhecimento seja contrário à ordem pública do Estado-Membro que é Portugal.

Aliás, o Regulamento n.º 44/2001 apenas afasta o reconhecimento da decisão estrangeira, quando for “manifestamente” contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido.

Ora, se não vislumbramos na decisão proferida no tribunal francês qualquer violação da ordem pública portuguesa, que a aceita nos termos em que foi moldada a petição inicial, afastada está, definitivamente, que essa eventual violação do princípio referido, inverificada in casu, seja manifesta.

Mais alega conclusivamente o Recorrente a violação do n.º 2 do art. 6º do Regulamento n.º 44/2001, que prevê que “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode também ser demandada … 2. Se se tratar de chamamento de um garante à acção (…) perante o tribunal onde foi instaurada a acção principal (…)”, esquecendo que esta norma incide sobre um poder e não sobre um dever.

Desse modo, a acção foi instaurada no tribunal competente, sendo certo que também o poderia ter sido em Portugal, sem violação da referida norma regulamentar comunitária e muito menos, sem qualquer ofensa ao princípio de ordem pública internacional do Estado Português.

Acresce, indiscutivelmente, que a acção instaurada em França foi-o contra quem tinha domicílio simultâneo em França e em Portugal, correu com as partes assistidas por advogados, sendo certo que o então Réu, ora Recorrente, poderia ter chamado à demanda o devedor principal (“Animatógrafo”), na acção que correu termos em França, o que lhe era permitido nos termos do n.º 2 do art. 6º do Regulamento (CE) n.º 44/2001.

Aliás, o Réu excepcionou a incompetência do tribunal francês, a qual foi indeferida pelo Tribunal de Comércio de Paris, com confirmação do Tribunal da Relação de Paris.

Consequentemente, a acção foi instaurada num tribunal com competência internacional, não sendo caso de aplicação do n.º 2 do art. 6º do Regulamento n.º 44/2001, nem de competência exclusiva dos tribunais portugueses prevista no art. 65º-A do CPC, e onde, face ao modo como foi instaurada, foi garantido o direito de defesa e de acesso aos tribunais ao Réu.

2. Se a declaração de executoriedade que se aprecia viola as regras de competência territorial exclusiva

Ultrapassada a questão da eventual violação dos princípios de ordem pública do Estado-Membro requerido, o Recorrente alega também que o litígio decidido pelo tribunal francês cai no âmbito da competência em matéria de contratos celebrados por consumidores, pelo que, como tal, nos termos do n.º 2 do art. 16º do Regulamento n.º 44/2001, a competência seria exclusiva dos tribunais portugueses, por ser o território do seu domicílio.

Anote-se que estamos no espaço da Comunidade Europeia, que consagra, como regra, a livre circulação das decisões judiciais, que se baseia na confiança mútua dos sistemas judiciais que a integram, não havendo que sindicar a bondade processual de cada sistema (6).

Esta questão surge como uma pretensa qualificação do contrato como de “contrato celebrado por consumidor”, nos termos previstos na Secção 4 do Regulamento, que abrange os arts. 15º e 16º.

O Recorrente qualifica-se como consumidor perante o recorrido, para efeitos do art. 15º do Regulamento n.º 44/2001, que define como consumidor a pessoa que celebre um contrato para “finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional”.

Desde logo se realça que o Recorrente é referido na sentença francesa, sem que tal tivesse sido impugnado, como tendo morada “em .............,..............e, 75005 Paris, embora a residir neste momento na Rua ....................., ...., ..º, 1220-Lisboa”, o que permite considerar como domiciliado no território onde foi accionado e portanto de acordo com as regras estabelecidas no Regulamento n. º 44/2001.

Tanto bastaria para, sem mais, negar de imediato provimento ao recurso.

Cumpre-nos, porém, acrescentar que a decisão proferida pelo Tribunal de Comércio de Paris, certificada a fls. 14-37, aceitou o peticionado, no qual o contrato de que emergia o litígio era qualificado apenas e tão-só como “abertura de um crédito em conta corrente em nome da Sociedade Animatógrafo Produção de Filmes”, nada sugerindo que o Recorrente, enquanto garante do cumprimento das obrigações assumidas pelo “Animatógrafo”, possa ser classificado como consumidor.

Ora, um contrato de abertura de crédito mais não é do que a vinculação de um banco a ter à disposição da outra parte uma determinada quantia de dinheiro durante determinado período de tempo ou por tempo indeterminado, vinculando-se a outra parte perante o banco ao reembolso das quantias levantadas e ao pagamento dos juros acordados. Nesta espécie de contrato o banco disponibiliza à outra parte um crédito que esta pode usar à medida das suas necessidades, sendo esta disponibilização do dinheiro o traço fundamental deste negócio jurídico.

Pode considerar-se que a abertura de crédito diz-se garantida, quando seja acompanhada duma garantia pessoal ou real, e a descoberto, na hipótese inversa.

Como se discorreu no acórdão recorrido, citando ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “A garantia – caso tenha sido acordada – é muitas vezes de ordem pessoal; na prática bancária portuguesa em que as aberturas de crédito operam a favor de sociedades, recorre-se a livranças subscritas pela própria sociedade e avalizadas pelos seus sócios mais significativos. Fala-se então, na gíria bancária, em conta-corrente caucionada”.

E ainda que:

“Ninguém pretenderá que a Animatógrafo, Lda., celebrou o aludido contrato de abertura de crédito em conta-corrente com a aqui Recorrida para finalidade estranha à sua actividade comercial ou profissional.
Nem o alegado pelo recorrente vai em tal sentido.
Trata-se a Animatógrafo de uma sociedade comercial por quotas, tendo por objecto a prática de actos de comércio – vd. Art. 1º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais – e devendo considerar-se actos de comércio todos os contratos e obrigações daquela, que não forem de natureza exclusivamente civil – como assim é o caso – se o contrário do próprio acto não resultar – o que não ocorre, cfr. art. 2º do Código Comercial.
Mas também a garantia pessoal prestada pelo ‘dirigente’ de uma sociedade de uma sociedade por quotas – na terminologia nacional, o gerente daquela, cfr. art. 252º, do Código das Sociedades Comerciais – ao cumprimento das obrigações emergentes de acto de comércio da sociedade por si administrada e representada, não sendo para finalidade estranha à actividade comercial daquela, tão pouco deverá ser considerada, na ausência de outros elementos, como havendo sido prestada para finalidade que possa ser considerada estranha à actividade profissional do gerente.
Sendo certo que nas atribuições de administração e representação da sociedade comercial por quotas não se inclui a prestação de garantias pessoais pelo gerente daquela, ponto também é que, como se nos afigura meridiano, que a prestação dessa garantia teve lugar por parte do Recorrente, que não de outra qualquer pessoa, precisamente em função dessa qualidade daquele garante e tendo em vista a concessão de crédito à sociedade pelo mesmo administrada e representada.
Em qualquer caso, a demonstração de ‘estranheza’ da finalidade da prestação de garantia, pelo recorrente, relativamente à actividade profissional deste – e atenta a natureza de excepção da incompetência do tribunal francês – sempre seria ónus, dest’arte não actuado, do mesmo Recorrente, cfr. art. 342º, n.º 2 do Código Civil.”

Em nenhuma parte da decisão estrangeira vem configurado ou sequer perspectivado que o contrato em apreço caiba na classificação dos contratos celebrados por consumidores, enquanto celebrado por uma pessoa para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional.

Consequentemente, não caindo o contrato, entre as partes na previsão dos arts. 15º e 16º do Regulamento n.º 44/2001, os litígios a dirimir não cabem na competência territorial exclusiva dos tribunais portugueses.


3. Se ocorre usura

Quanto à questão do negócio usurário que o Recorrente sustenta ter sido o celebrado pelo Recorrido, logo acrescenta: “É evidente que a figura da usura, só por si, não constitui fundamento para revogar a declaração executória da decisão estrangeira”. Mas reforça a sua alegação citando de novo BAPTISTA MACHADO, no sentido da violação da ordem pública internacional do Estado Português, invocando o art. 282º do Código Civil que, enquanto “norma imperativa estatuída para protecção de interesses da comunidade”, aponta para a revogação da declaração de executoriedade da sentença estrangeira.

Tal conclusão não tem o mínimo suporte fáctico na decisão cujo reconhecimento executório vem requerido, nem nos demais elementos constantes do processo, já que, pelo contrário, conforme se decidiu na Relação, citando a decisão francesa, “foi o Recorrente que ‘constituiu-se fiador através de documento particular’, não demonstrou que ‘a instituição bancária dispunha de informações relativas aos seus rendimentos, ao seu património ou à operação financiada’, nem, por outro lado, fez prova ‘de que ele próprio ignorava essas informações’. Sendo que ‘os documentos produzidos’ pelo ora Recorrente, ‘demonstram que os seus rendimentos em Portugal para o ano de 1995 ascendem a 37.848,79 euros e não a 16.891,79 euros. E que o ora Recorrente ‘não demonstra que a sua situação actual o impede de honrar os seus compromissos’ ”.

Culminando o legislador nacional com a mera anulabilidade para o negócio usurário, tal significa que na celebração de determinado negócio o interesse de determinada pessoa não foi suficientemente acautelado, pelo que não se vislumbra que com a sua celebração, embora censurável, saiam abalados os fundamentos da ordem jurídica interna.

Nada aponta, por conseguinte, que tenha sido celebrado um negócio usurário por parte do Recorrido em detrimento do Recorrente.


4. Se ocorre fraude à sentença

Quanto à fraude à sentença, segundo a alegação do Recorrente, repisando a questão da competência exclusiva dos tribunais portugueses, agora com fundamento no n.º 2 do art. 14º em conjugação com o art. 13º da Convenção de Bruxelas, que terá resultado da escolha dos tribunais franceses para dirimirem o litígio, carece tal alegação de qualquer suporte fáctico.

Aliás, acrescenta o Recorrente que “a fraude à sentença não vale só por si, por não se encontrar prevista nos artigos 34 e 35 do Regulamento…”.

Fraude implica sempre dois elementos: um objectivo, o outro subjectivo.

O elemento objectivo consiste na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna (7), o que não é o caso, já que, por um lado, o regime das obrigações solidárias previsto na nossa legislação interna não põe em causa a inatacável decisão de mérito proferida em França e, por outro lado, como já referimos, o Tribunal de Comércio de Paris era competente para conhecer da causa.

O elemento subjectivo, ou volitivo, consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma imperativa que seria normalmente aplicável sendo necessário dolo, já que não há fraude por negligência”(8)..

Ora, como é fácil de ver, face a tudo quanto supra se expendeu, a acção foi instaurada num tribunal que gozava de competência internacional para dela conhecer, não resultando dessa mesma decisão estrangeira nem de quaisquer outros elementos que constam do processo, o mínimo intuito doloso no accionamento “revidendo”.


Termos em que se acorda em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 11 de Março de 2010

José António Barreto Nunes (Relator)
Orlando Afonso
Ferreira de Sousa
___________________

(1) Anote-se, negativamente, que nem nas alegações nem nas conclusões da revista se identifica a obra onde vem inserido o texto citado!
(2) ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, “revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo civil de 1997 (alterações ao regime anterior)”, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 105-150, mais precisamente, p. 138, Lisboa .
(3) Cfr., acórdão do STJ, de 26 de Maio de 2009, Processo n.º 43/09, relatado pelo Conselheiro Paulo Sá, CJ/STJ, n.º 216, Ano XVII, tomo II, pp. 73-77, que acrescenta a p. 76:
“Continua-se a acentuar que não se está perante uma definição mas antes a procurar encontrar critérios de orientação para o juiz, e com valor aproximativo. Assim, por exemplo, são leis de ordem pública internacional a expropriação sem indemnização (confisco), as leis que proíbem a poligamia e que impedem um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido (editada por razões morais), e também seria de intervir a reserva de ordem pública internacional se a aplicação do direito estrangeiro atropelasse grosseiramente a concepção de justiça material como o Estado do foro a entende, abalando os fundamentos da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade, que choquem a consciência, como seria o caso de lei estrangeira que admitisse a morte civil ou a escravidão, ou a norma estrangeira que estabelecesse como impedimento à celebração do casamento a diversidade de raça ou de religião, ou a aceitação do repúdio por um marido muçulmano de uma esposa portuguesa, sem que esta tenha prestado o seu consentimento”.
E ainda:
“Mas já não é uma lei de ordem pública internacional, mas de ordem pública interna, a lei que exige a forma escrita para o contrato de arrendamento urbano que, de acordo com o princípio da lex regit actum admitido pelo nosso direito, só interessa aos arrendamentos celebrados em Portugal, e cujo fim a que obedeceu a dita norma em nada é comprometido ou atraiçoado pelo facto de em Portugal ser reconhecido como válido um arrendamento urbano celebrado verbalmente.”
(4) FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Vol. I, Almedina, 2000, p. 409 e segs.
(5) Continuando a acompanhar o acórdão do STJ citado, que nesta parte cita, por sua vez, BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, Atlântida Editora, Coimbra, 1974, p. 269.
(6) Neste sentido o acórdão do STJ de 08-04-2008, Processo n.º 08A568, relatado pelo Conselheiro Moreira Camilo, na base de dados do ITIJ.
(7) Neste sentido, ver LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, volume I, Almedina, 2008, p. 499-502.
(8) Idem